ENTREVISTA
Onde está a ciência?
Prof. Luís Carlos de Menezes -
01/06/2004
por Renata Nory
Apresentação: Sou Luis Carlos
de Menezes, físico e educador, professor do Instituto de Física
da Universidade de São Paulo. Fui pesquisador científico até
cerca de 20 anos atrás e depois me tornei militante da Educação,
especialmente da Educação Pública, inicialmente através
da formação de professores, e no ensino de ciências, e
hoje me ocupo da educação de forma geral. Continuo interessado
em Física, tenho escrito alguns textos, mas meu interesse maior está
na Educação.
Onde está
a Ciência? A Ciência está na vida moderna em diferentes,
variados e cada vez mais amplos domínios. Se tomarmos esta evolução
ao longo do século XX, por exemplo, os resultados do pensar científico
estão presentes nos objetos de uso diário: na lente multifocal
dos meus óculos, no chip eletrônico que soma as pulsações
de um cristal de quartzo para compor segundos e minutos do meu relógio,
nos medicamentos de que faço uso, na telefonia móvel. Estão
incorporados resultados de investigação científica e
tecnológica que há uma década atrás eram só
cogitação. Mas dizer isso é pouco. É preciso lembrar
que no próprio sistema produtivo, na forma de se produzir essas coisas,
de trocar e comerciar, no modo de as pessoas se informarem, pelas telecomunicações,
internet, telefone, a ciência, e a tecnologia a ela associada, tem uma
presença concreta na vida das pessoas. Além disso, a ciência
está em visões de mundo, não tão disseminadas,
mas sabidas, como a compreensão, por exemplo, de que coisa é
o sistema solar e de quando é que se formou, há 4,6 bilhões
de anos. Há muitas questões abertas, evidentemente, e a natureza
da Ciência é de questões abertas e não de saberes
definitivos. Mas, na visão de mundo, nas filosofias, nas práticas
sociais e físicas, a presença da Ciência é permanente.
A Ciência Moderna é inseparável, a meu ver, da própria
Modernidade. A ruptura cartesiana, que separou Deus, homem e mundo, a idéia
de que o bom vem à frente, de que o progresso está por vir etc.,
esta idéia, fundada no começo da modernidade, de uma certa maneira,
dura até hoje. Enfim, eu diria que a Ciência está em todas
as partes.
Onde está
a Ciência no Brasil? A Ciência está em todas as
partes do mundo e está em todas as partes do Brasil, pois o Brasil
faz parte deste mundo de muitas maneiras. A produção científica,
o pensamento científico, já era uma prática no Brasil
há mais de um século. Não em todas as áreas da
Ciência, mas pelo menos nas ciências da vida, associadas aos museus
científicos, como o Museu Nacional, Museu Paraense. No Museu Paulista
eu sei que havia pesquisas associadas à teoria da evolução.
As ciências médicas abriram o caminho para isso, já ao
longo do século XIX. Então a ciência no Brasil tem pelo
menos um século de prática. Algumas ciências só
vieram a ser mais sistematicamente desenvolvidas no Brasil, a partir dos anos
30. As Ciências Físicas, por exemplo, cresceram, sobretudo a
partir de 1934, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Gente como Gleb Wataguin,
em São Paulo e Bernard Gross, no Rio, foram pioneiros europeus para
ancorar grupos de pesquisas. Já são setenta anos da Física.
Desde então, há uma participação brasileira, talvez
proporcionalmente pequena, mas em cada instante atual. A Física dos
Raios Cósmicos, que se praticava no Brasil nos anos 30, era de vanguarda.
Então não é verdade que, por fazer menos ciência,
o Brasil faça uma ciência de segunda categoria. A Ciência
está presente no Brasil, como investigação científica,
há muitas décadas, sobretudo nas Universidades. Nas Universidades
mesmo, porque há algumas instituições que, por razões
de autonomia didática, querem fazer força para se chamarem universidades,
mas não sediam de fato grupos de pesquisa. Então, sobretudo
nas Universidades e, porque não dizer, nas Universidades Públicas,
em uma dezena de instituições, a Ciência é praticada
de uma forma contemporânea e em plena articulação com
os demais centros de investigação no mundo. E nessas instituições,
o ensino universitário não fica devendo a nenhuma parte do mundo.
Nós temos bons cursos de física, biologia, química, perfeitamente
equiparados com outros centros universitários, mas na nossa educação
básica, a Ciência é muito deficitária. No ensino
básico tudo está frágil, não só a Ciência.
Nas tecnologias, nas áreas em que o Brasil é vanguarda, na agropecuária,
por exemplo, a nossa pecuária dispõe de elementos de investigação,
de pesquisa, perfeitamente em sintonia com o mundo. Empresas como a Embrapa
estão desenvolvendo pesquisas de vanguarda. Nos setores em que nós
estamos mais atrasados, não é que a pesquisa esteja atrasada,
mas tudo o mais também está um pouco para trás. Mas eu
acho que nós estamos imersos no mundo da Ciência como o mundo
em geral está imerso no mundo da ciência.
Por que
as pessoas em geral, mais especificamente, os alunos do ensino médio,
têm um certo medo da Ciência e acham que, como você disse,
se ela está em tudo o que os rodeia, por que parece que a Ciência
é algo tão distante? Eu acho que eles aprendem isso.
Aprendem erradamente, mas aprendem isso. Porque a ciência não
está só “distante deles”. Ela está distante
dos professores de ciências. A maior parte dos professores de ciências,
tanto de ciências do ensino fundamental, como a maior parte dos professores
das várias ciências - física, química, biologia
– no ensino médio, tem uma distância muito grande da compreensão
do que é a própria investigação científica
nas suas áreas, ou mesmo das tecnologias dessas áreas. Se você
perguntar para um genérico professor de física do ensino médio
que ele explique para você como funciona um simples transistor, o que
é um semi-condutor extrínseco, estes com dopagem positiva ou
negativa, p ou n, ou um semi-condutor intrínseco, como enxofre, germânio,
silício, o mais provável é que ele não saiba nem
definir, nem conceituar um semi-condutor e isso num mundo em que não
há equipamento eletrônico que não disponha de semi-condutores.
Este gravador que você está usando, o computador aqui ligado,
os CDs e os DVDs usando lasers, a luz coerente e tal, é a mesma coisa,
poucos sabem. Há uma enorme distância conceitual entre esse mundo
tecnológico e a escola, incluindo aí os professores e boa parte
dos livros didáticos do ensino médio. Não estou falando
nem da fronteira da investigação científica. Esta enorme
distância se expressa na forma com que esta ciência é ensinada.
Então, esta percepção é “aprendida”
e essa “ciência dos outros” é um equívoco
transmitido de uma geração para outra.
Ciência
e Sociedade: são juntas ou separadas? São juntas e
separadas. Juntas, porque a sociedade moderna não se distingue da ciência
moderna, quer dizer, é impensável uma sociedade com linhas de
montagem automatizadas, com produção de cereais transgênicos
etc. sem a presença intensa da ciência como resultado científico-tecnológico
das investigações. Separadas, porque a ciência tem métodos
de trabalho próprios, tem formas de conduta, tem ambientes especiais,
formas de difusão diferentes. É, sim, possível olhar
a evolução dos conceitos da ciência, mas eles não
são separados na história do período em que essa ciência
está imersa. É dificílimo você separar, digamos,
a evolução da física nuclear do uso bélico da
energia nuclear e do uso energético da energia nuclear; são
duas coisas que caminharam paralelamente. No entanto, pode-se olhar o progresso,
a evolução conceitual da física nuclear de per si. O
modelo da gota líquida, o modelo da reunião de alfas, uma porção
de modelos do núcleo, as interpretações de Yukawa das
interações fortes, depois a interpretação de Gell-Mann
dos quarks etc. Você pode, em suma, olhar a Ciência em separado,
ainda que ela não seja autônoma.
Ciência
e Forças Políticas, estão juntas ou separadas?
A Ciência exige, no seu desenvolvimento, gente que trabalhe nisso, que
faça disso sua atividade principal. Não se pode fazer Ciência
só com diletantes e fazer a sério custa caro, porque, quem é
capaz de produzir Ciência numa sociedade, qualquer que seja, é
uma parcela dessa sociedade com uma condição de trabalho e de
formação especiais. Então, a sociedade que mantém
ciência precisa, por assim dizer, de excedente produtivo. Cientistas
não plantam o que comem; eles têm que viver de um excedente produtivo.
Então, é natural procurarem lugares mais ricos e abastados que
desenvolvam ciência. Essa relação não é
linear, mas há uma certa relação. E, segundo, é
natural que o poder político, que detém o excedente produtivo,
tenha ascendência sobre a produção científica.
Nessa medida, há uma proximidade indiscutível entre Ciência
e Poder.Política,
pode olhar no dicionário, significa aquilo que tem a ver com o Poder.
Ao mesmo tempo, a ciência é algo que tem muito a ver com o poder,
mas, contraditoriamente, o questiona. É impossível fazer ciência
por muito tempo sem o desenvolvimento do espírito crítico, porque
a ciência vive de contestar até a si mesma, quer dizer, os resultados
da ciência, o resultado recém-alcançado na ciência,
imediatamente passa a ser contestado, porque é da natureza da ciência
verificar, checar, contra-checar todas as suas descobertas. Então,
nesta medida, a ciência também é perturbadora para o poder,
porque é o espaço da crítica. Então, a ciência,
de novo, tem a ver com o poder, porque é sustentada, mantida pelo Poder,
que retém o excedente produtivo. Mas, também, porque ocupa espaço
do pensamento crítico, ela pode ser, e muitas vezes é, perturbadora
desse mesmo Poder. A História está carregada de exemplos desse
tipo e, às vezes, exemplos que dão voltas em cima da mesma pessoa.
Olha o Oppenheimer: ele dirigiu o Projeto Manhattam e era o principal cientista
do projeto que conduziu à bomba atômica e, logo em seguida, foi
um dos alvos do macarthismo porque ele não aderiu ao poder, no projeto
da bomba H e a sua visão progressista do mundo o colocou sob suspeita.
Há uma porção de exemplos em que a ciência pode
estar muito próxima do poder e, ao mesmo tempo, desequilibrá-lo
pelo seu exercício livre.
Gostaríamos
que você falasse um pouco sobre a questão da neutralidade da
ciência. É muito simples falar sobre isso: não
existe! A ciência nunca é neutra porque nenhum conhecimento,
nada que se construa ligado aos valores, conceitos etc. pode ser neutro. Quer
dizer, não pode ser neutro porque, até pelo exemplo que acabei
de apontar, sobre o vínculo da ciência com o poder, vínculo
positivo ou negativo, mas neutro nunca, e, também, por conta de a ciência
não ser separada do conjunto dos valores humanos, seja do coletivo
que pratica a ciência, seja de uma única pessoa. O cientista
é alguém que, para se tornar cientista, precisa desenvolver
uma cultura, ter alguma atitude diante da vida. Mesmo que o cara seja bem
quadradinho, desses que não olham de lado, não professam ideologia,
não é neutro, até por isso não é. Ele adere,
ele tem uma posição por não discordar, por não
destoar. Até por essa atitude de alhear-se da política é
uma atitude de adesão, portanto, não é neutra.
Ciência
e cultura: juntas ou separadas? Juntas e separadas. A ciência
é, pelo menos depois da modernidade e até antes disso, da ciência
da Grécia Clássica, parte da cultura, dos pensares filosóficos
de cada período. Você não vai separar a Física
de Aristóteles de seu pensamento filosófico em geral, e, portanto,
a Física é um ingrediente da cultura e a ciência é
um ingrediente da cultura, indiscutivelmente. Por outro lado, especialmente
a partir do Renascimento, ela é exercida com práticas e procedimentos
que não são iguais aos de outros ramos da cultura. A criação
musical, para pegar como exemplo uma particular arte, ao seguir regras de
canto, escalas etc., tem certos procedimentos, certas regras, mas que são
completamente distintas das regras da ciência, das leis da conservação,
dos princípios de transformação etc. Pode-se, sim, estabelecer
sérios, importantes e significativos paralelos entre todos os campos
da cultura, entre a música e a ciência, especialmente entre a
música e a matemática, entre a música e a física,
mas isso não significa que elas sejam idênticas em campo nenhum.
São campos distintos. Então, a ciência é parte
da cultura, mas é uma parte específica da cultura.
Para terminarmos
a entrevista, qual é a sua visão para o futuro da ciência?
Eu acho que não se pode pensar no futuro da ciência sem pensar
no futuro da sociedade, por tudo que eu estou dizendo até agora. Então,
as previsões para o futuro da ciência são associadas mais
seriamente com o futuro da gente mesmo. Sendo otimista, imaginando que a gente
não vá mandar tudo para o inferno, que esse enorme descompasso
que existe hoje entre o poderio tecnológico, a capacidade produtiva
e a brutal exclusão social que o mundo vive, imagino que isso num certo
momento seja superado. Eu espero que seja ao longo do século XXI, porque
a exclusão está sendo muito dolorosa e muito do que estamos
vivendo hoje, as matanças, chacinas etc. são o preço
desse descompasso. O que significa superar esse descompasso? Eu vou mostrar
que isso tem muito a ver com a sua pergunta. Superar esse descompasso significa
não voltar para trás nos métodos produtivos. Por que
digo isso? Porque o descompasso tem muito a ver com os métodos produtivos,
você produz cada vez mais com menos gente, a exclusão decorre
disto. Achar uma solução certamente não significa voltar
a produzir com métodos primitivos, significa pôr mais gente para
produzir intelectualmente, portanto, para haver muito mais ócio, ócio
no bom sentido. Ócio não é sinônimo de vagabundagem;
ócio é fazer, ócio é fazer coisas que não
resultem imediatamente num parafuso, numa coisa. Nós estamos, nesta
entrevista, exercendo um bom tipo de ócio. Se nós imaginarmos
um mundo bem sucedido, sei lá, no fim do século XXI, mais gente
estará voltada àquilo que Marx chamava de atividade fim do ser
humano, atividade não alienada, não alheia ao ser humano. Portanto,
eu imagino que a prática da ciência, das artes e da cultura em
geral, se torne muito mais disseminada. Eu tenho alguns elementos para corroborar
essa minha hipótese otimista: antigamente, para você se informar
sobre o que estava acontecendo no laboratório do outro, saber onde
é que estava a vanguarda do pensamento em qualquer área, era
preciso estar perto, tinha que estar na vanguarda, nos grandes laboratórios.
Ora, hoje, neste prédio, tem gente fazendo para valer ciência
com dados tirados ontem de um acelerador de partículas na Europa! As
modernas comunicações articulam isso tudo muito rapidamente.
Isso dá, de forma não de todo ficcional, a idéia de que
se possa fazer ciência de vanguarda em vários pontos em volta
do mundo, e que, talvez, também por esses métodos se possa educar
mais gente, que mais gente possa se assenhorear destes métodos. Então,
eu diria, uma hipótese otimista sobre o futuro, não da ciência,
mas da humanidade, que muito mais gente se dedique a isto, e não necessariamente
com o objetivo pragmático de fazer melhores gravadores, DVDs ou computadores.
Não só com esse objetivo, mas, também, com o de compreender
melhor o desenvolvimento da vida, a evolução, compreender melhor
o cosmos e sua evolução, entender melhor o espaço, o
tempo e a matéria. Será a ciência como atividade fim,
do mesmo jeito que a música é uma atividade fim, que a arte
é uma atividade fim. Se nós pudermos sobreviver, se tivermos
juízo, faremos ciência prazerosamente, faremos arte prazerosamente
e viveremos prazerosamente...