SERMOS OU TORNARMO-NOS HUMANOS É RELEVANTE PARA O ENSINO DE CIÊNCIAS?



Elenise Cristina Pires de Andrade

Resumo

    Certamente inúmeras vezes já nos debruçamos sobre as complexas questões acerca dos fundamentos filosóficos abordados pela primeira parte do questionamento proposto pelo título assim como adentramo-nos em um verdadeiro labirinto em busca de subsídios, crenças, fatos e conhecimentos sobre o ensino de ciências. Foi a partir das minhas incursões a esse complexo labirinto que comecei a preocupar-me com as possíveis relações entre ambas as questões.

    Mas, qual a diferença entre sermos ou tornarmo-nos humanos?

    Um dos atributos fundamentais da espécie humana relaciona-se à inerente interação entre as suas ações e reflexões. Embora essa constatação nem sempre tenha sido tranqüilamente aceita e validada no transcorrer da história, constitui-se em uma das características que permitiu à espécie humana atingir o atual estágio evolutivo, qual seja, a conexão e a dependência entre a execução da ação e a reflexão de seu planejamento.

    Outro atributo essencial para a discussão do significado da essência humana repousa na inerente e inextricável associação do binômio ação/reflexão aos interesses, valores, crenças e ideologias que o norteia. Assim, qualquer ação/reflexão humana, incluindo a construção e invenção do conhecimento científico, é inerentemente relativa, não sendo possível, por mais que já tenha sido tentado, transformá-la em absoluta, neutra, verdadeira e eterna.

    Um terceiro atributo, igualmente indispensável a essa discussão, é a inextricabilidade e dependência dessas ações/reflexões a um incrível emaranhado celular denominado, genericamente, de corpo humano. A nossa altura, a constituição de nossos membros, a fragilidade metabólica de nosso organismo, além de dezenas de outras características genéticas da espécie humana são fundamentais para que possamos controlar o fogo, extrairmos minerais, construirmos e inventarmos artefatos dos mais diversos tamanhos, desde as colossais estações espaciais até os pertencentes à nanotecnologia, entre tantas outras ações/reflexões.

    Portanto, todas as ações/reflexões humanas são guiadas e fundamentadas por um complexo de interferentes e condicionantes que considera tanto as seqüências das bases nitrogenadas do organismo humano quanto as dimensões históricas, culturais, econômicas, políticas, éticas e psicológicas. A vivência histórica, as lembranças, as dúvidas, as ambições e expectativas, os sentimentos, as relações com outros seres vivos e com os materiais inanimados, conjuntamente a todas as sensações, percepções, concepções e significações construídas e inventadas, constituem a complexa teia que vai transformando, processualmente, os "simples" seres biológicos em seres humanos, constituindo-se na essência humana.

    Proponho, a partir dessas considerações, algumas questões que tentam integrar tais premissas acerca das especificidades da essência humana à abordagem ambiental do ensino de ciências. 1) apesar da espécie humana ser inerentemente dependente e integrada ao ambiente da Terra, a dinâmica terrestre não está sujeita exclusivamente a essa espécie para manter-se. 2) o processo através do qual os seres "orgânicos" vão se transformando em seres humanos só ocorre com a apropriação deliberada dos componentes do ambiente, que causa impactos das mais diversas intensidades e abrangências. Portanto, enquanto existir ser humano, existirá impactos decorrentes de ações/reflexões humanas nas diversas dimensões do ambiente. 3) como essa apropriação é guiada e fundamentada por interesses, valores, crenças e ideologias, os controles dos impactos decorrentes dessa apropriação é igualmente relativo, não possuindo sentido em considerar ações/reflexões humanas que são exclusivamente destruidoras ou conservadoras dos componentes do ambiente.

    Acredito ser papel fundamental do ensino de ciências, em qualquer instância, propor tais considerações e mostrar a impossibilidade de pararmos de transformar o planeta com nossas ações/reflexões. A discussão dessas premissas é imprescindível, nem que seja simplesmente para discordar totalmente delas. O que não podemos mais é omiti-las do processo de ensino-aprendizagem do conhecimento científico.