MESTRES ILUSTRES: IMAGENS LITERÁRIAS DO BOM PROFESSOR E SUA PRÁTICA(1)
 

Pedro da Cunha Pinto Neto
Faculdade de Educação - Unicamp



Resumo

    A busca da compreensão dos processos de constituição de um imaginário sobre as práticas dos professores leva-nos ao contato com fontes produzidas em outros campos do conhecimento. Neste movimento, a literatura brasileira do final do século XIX apresenta uma riqueza de temas e situações, que a configuram enquanto uma produção privilegiada para o tratamento de algumas questões. No presente trabalho, examinam-se imagens literárias, que põem em cena a figura do professor no exercício da docência, destacadas dos romances "O Ateneu" (1888), de Raul Pompéia, e "A Normalista" (1893), de Adolfo Caminha. Fazendo da vida escolar tema para o romance, tais obras remetem o leitor àquilo que é próprio da escola oitocentista, revelando todo o conjunto de dispositivos escolares, o trabalho do professor, a organização escolar, os impressos que ali circulam e as relações que se estabelecem entre os estudantes.

    As imagens escolhidas colocam-nos diante de momentos da atuação de dois professores. A primeira nos leva a adentrar em um colégio interno e observar as práticas em torno das quais se articula o "curso noturno de cosmografia". A outra nos insere no universo de formação das normalistas, convidando-nos a participar de uma aula de geografia. Nas duas imagens destacam-se dois elementos, o primeiro é aquele que denominaremos de ‘efeito de encantamento’, isto é, o efeito de atração e deslumbramento, provocado pela atuação dos mestres em seus discípulos. O segundo diz respeito à presença dos dispositivos que compõem a prática dos professores e, especialmente, aqueles ligados ao ensino das ciências.

    No "curso de cosmografia" temos um relato da atuação de Aristarco, mestre que consegue encantar seus discípulos nas noites estreladas e nas noites brumosas, sendo, inclusive, capaz de mudar a posição dos astros no céu. O céu, as estrelas e os maquinismos do ensino astronômico aparecem como complementos, acessórios, em uma cena na qual o professor é o astro principal. O sucesso de suas preleções enleva os espíritos, levando o menino Sérgio a se debruçar sobre o compêndio. Esta imagem também nos revela outros elementos, uma vez que, ao expor o uso dos "maquinismos do ensino astronômico", aproxima a prática desenvolvida por Aristarco dos preceitos de uma "pedagogia moderna". Esta modernidade, ancorada na materialidade e no uso de instrumentos de ensino, parece atender, sobretudo, aos intentos de construção de uma imagem do colégio enquanto escola moldada nos novos imperativos pedagógicos que se configuravam naquele fim de século.

    Na narrativa da "aula de geografia", encontramos as intervenções de Berredo, intercaladas pelas impressões da normalista Maria do Carmo. Ela admira a sua capacidade de oratória, a forma como trabalha a disciplina, tornando-a mais interessante, recorrendo aos detalhes pitorescos e às pilhérias, que usa para fechar o seu discurso. Na descrição da sala de aula - usada para as aulas de geografia e de ciências físicas e naturais -, dos objetos e instrumentos ali presentes, Maria do Carmo reclama da ausência de uma esfera terrestre, dos mapas e cartas geográficas, mostrando que o professor de geografia não pode valer-se destes recursos o que, aparentemente, parece frustrar suas expectativas. Por outro lado, ao comentar a existência de uma série de equipamentos voltados para as ciências físicas e naturais, intactos, nunca servidos, incompletos e abandonados, mostra que os outros mestres não conseguem valer-se destes recursos em suas aulas.

    Esta análise nos fornece pistas para a compreensão do processo de constituição de modelos que compõem as representações sobre a prática docente. Na escola que atravessa o texto literário, há uma relação entre práticas, dispositivos e proposições das ciências pedagógicas. Particularmente em relação ao ensino das ciências naturais, o que encontramos é, de certo modo, uma afirmação de um movimento de modernidade pedagógica, que se expressa nos múltiplos instrumentos que naquele momento se colocavam a serviço do professor.

(1) Uma versão deste trabalho foi apresentada  na “V Escola de Verão para Professores de Prática de Ensino de Física, Química , Biologia e Áreas Afins” – Bauru-SP – Dezembro/2000.