OS ESPAÇOS OCUPADOS PELAS IMAGENS CANÔNICAS DA BIOLOGIA EM SALA DE AULA EM SEU PROCESSO DE CONSTRUÇÃO



Cláudia Avellar Freitas[1]
(Programa de Pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais)



Resumo

    Este artigo comunica a investigação de como imagens canônicas da Biologia são utilizadas em sala de aula. Esta investigação é feita através de um mapa de eventos construído a partir da transcrição de uma aula de Biologia garavada em vídeo. Através do mapa, uma ferramenta emprestada da etnografia interacional, foi possível produzir um quadro analítico, onde as imagens são classificadas e essa categorização é relacionada ao espaços que ela ocupa na aula. A análise desse quadro, feita com base nas idéias de Bakhtin e de Kress e van Leeuwen, revela que além de ocupar um espaço físico, a imagem ocupa também outros tipos de espaço durante o processo de sua construção em sala de aula: um espaço temático e um espaço discursivo.




Abstract

    This paper investigates how Biological canonic images are used at the classroom set. In order to investigate this process I use the event map which was constructed with data transcribed from a video record of a Biology class. The map is an Interactional Ethnography tool and works here as a base for the construction of an analitic table, in which the canonic images are classified. This categorzation is related to the spaces the image occupies in the class. The table analysis was framed by Bakhtin and Kress and van Leuween ideas. It shows that besides occuping a phisical space in the classroom, images may occupy discoursive and thematic spaces in their process of construction.
 

Introdução

    O interesse pelo estudo do uso das imagens no processo de ensino-aprendizagem surgiu graças a um trabalho anterior (Bernuy, Freitas e Martins,2000), realizado com o objetivo de revisar os livros didáticos de ciências e de física. Este trabalho mostrou que o número de imagens usadas pelos autores dos livros didáticos vem aumentando significativamente e sua variedade também. O próximo passo para a construção das questões que vou apresentar aqui foi a realização de um levantamento dos trabalhos sobre análise de livros didáticos de ciências, que revelou que o papel atribuído às imagens no ensino aprendizagem vem sendo questionado. Em um dos trabalhos (Martins,1997) a autora revela que a função que vem sendo tradicionalmente atribuída as imagens é a de mera ilustração ou de auxiliar na memorização dos conteúdos veiculados pelo texto verbal.

    Desenvolvemos, então, uma investigação sobre o papel das imagens nos livros didáticos de ciências que foi publicada nos Anais do VII EPEB (Freitas e Martins,2000). Nessa investigação fornecemos um texto, apenas verbal (verbal, no sentido de que só havia palavras neste texto), retirado de um livro didático de Ciências aos alunos e pedimos que eles desenhassem aquilo de que o texto falava. Este texto se referia, no livro, a uma imagem que estava na mesma página. Ao comparar esta imagem com aquelas que os alunos fizeram observamos que as imagens desenhadas pelos alunos se assemelhavam a do livro de ciências e que a produção de imagens, sobre os conteúdos científicos, pelos alunos é pessoal e influenciada pelo contexto particular do produtor da imagem.

    Uma nova revisão bibliográfica mostrou que não há investigações que possuem como objeto de estudo as imagens em uso. Alguns pesquisadores tratam o tema transversalmente como, por exemplo, Carneiro (1997) que observa que a escolha dos docentes por um determinado livro se baseia na quantidade de imagens que este traz, sem haver consciência de como estas imagens podem ser trabalhadas em sala de aula, ou Avgerinou e Ericson (1997) que consideram que a educação dá pouca ênfase ao ensino da interpretação de material visual. Estes resultados confirmam a necessidade de se pesquisar o uso das imagens em sala de aula e as possíveis interpretações que surgem de sua leitura.


Justificativa

    A experiência obtida nas investigações que venho realizando mostrou que os autores dos livros didáticos, muitas vezes, fazem uso de algumas convenções visuais ou símbolos que podem não ser familiares aos alunos, levando-os a uma compreensão confusa ou até equivocada dos conceitos científicos. Percebo, através da minha experiência como professora de Biologia, que o entendimento de algumas ilustrações dos livros didáticos não é imediato e único, varia de acordo com o leitor. Considero problemático tanto o processo de introdução da imagem em sala de aula, como a discussão sobre a interpretação dos elementos visuais e da imagem como um todo. É esse processo discursivo em torno da apresentação e uso das imagens que pretendo investigar.

    O foco dessa investigação é a interação entre professor/aluno e aluno/aluno em sala de aula, durante o uso de imagens canônicas da biologia. Os discursos, tanto orais quanto escritos, foram o material coletado para essa análise. Entendo como discurso todo ato que tem efeito de sentido (inclusive atos não verbais) que deve ser considerado de acordo com o contexto no qual ocorre. Considerando Bloome (1993), todas as ações, todos os gestos, até mesmo o silêncio dos participantes são dados importantes a serem analisados quando se quer analisar os significados e sentidos que estão em jogo numa interação.

    Esta investigação é parte de um estudo mais amplo que venho desenvolvendo para obter o grau de mestra em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pretendo aqui apresentar apenas uma parte desse estudo, que tem como objetivo desenvolver um quadro para analisar o momento em que as imagens canônicas são construídas na aula de Biologia do ensino médio.

    Imagens canônicas, segundo Jay Gould (1990), são as "imagens-padrão ligadas a conceitos-chave de nossa vida social e intelectual", aquelas que de alguma forma nos mostram o estereótipo de um conceito, a forma popularizada e consagrada pela qual esse conceito é veiculado. Um exemplo é a imagem da célula, que pode ser desenhada de várias formas, pois existem vários tipos diferentes de células na natureza. Entretanto, a representação canônica da célula é a imagem de uma célula que não existe, é hipotética, mas é a imagem mais divulgada tanto em material didático de ensino médio e fundamental quanto na mídia (Bernuy, Freitas e Martins,1999). O acesso às imagens canônicas da biologia não é feito exclusivamente na escola, porém é na escola que os alunos aprendem a ler, de forma sistematizada, essas imagens, aprendem a nomear partes da imagem e a própria imagem, aprendem a reproduzir essas imagens em seus cadernos. São esses momentos de apresentação das imagens canônicas que vão nortear a construção do quadro de análise que é objeto dessa investigação.

    Uma vez identificado o problema da produção de significados sobre as imagens pelos alunos e definido o objetivo desse estudo, pretendo me concentrar em responder, através da produção do quadro analítico, as seguintes questões:

    As respostas a essas questões devem ser buscadas levando em consideração o contexto que as imagens ocupam na sala de aula e para isso é importante também responder a outra questão:
Aspectos teóricos

    A teoria da enunciação proposta por Bakhtin é o referencial que vou usar para analisar o processo de produção de significados. Esse autor trata a linguagem e a produção de significados como uma construção social em permanente edificação. Esta definição está em oposição a outras filosofias que acreditam que a produção de significado (interpretação) é um ato individual.

    Para Bakhtin signo é um objeto físico que faz parte de uma realidade material e que, ao mesmo tempo, reflete e refrata uma outra realidade. Essa definição está claramente fundamentada na matriz sócio-histórica na qual este autor baseia todo seu pensamento. É através dessa fundamentação materialista que Bakhtin desenvolve suas idéias sobre a interpretação. O autor trata o processo de construção de significados como um fenômeno sociocultural, como algo que se realiza na interação dos sujeitos uns com os outros. Para o autor, o sentido de uma enunciação completa é o seu tema, que não se repete, pois é a expressão de uma situação concreta que deu origem a enunciação. O tema é determinado pelas formas verbais e não verbais que constituem a situação. Já o significado "é um estágio inferior... um potencial de significar no interior de um tema concreto" (Bakhtin,M./Volochinov,1995,p.108). O "significado lingüístico de uma enunciação é conhecido sobre o fundo de uma língua, enquanto que o sentido ... é conhecido sobre o fundo de outras enunciações concretas sobre o mesmo tema, sobre o fundo daquilo que complica o acesso de qualquer discurso ao seu objeto" (ibid,p. 131). Segundo esse autor toda expressão-enunciação é determinada pela situação social imediata (contexto) e a palavra dirige-se a um auditório social através de um interlocutor real, ou em suas próprias palavras: "O centro organizador de toda enunciação está situado no meio social" (ibid, p.131).

    Outro conceito importante para esta investigação sobre o lugar discursivo da imagem na aula é o conceito de voz proposto por Bakhtin. Segundo Wertsch (1991), voz para Bakhtin significa a consciência de quem fala, o seu ponto de vista sobre o mundo. A enunciação só pode existir se produzida por uma voz, não uma voz no sentido físico, produtora de signos audíveis, mas no sentido da consciência de alguém que elabora um enunciado. Para Wertsch (1991) essa consciência de que Bakhtin fala não é uma consciência individual, mas pertence a um certo grupo social, um grupo que partilha de um mesmo horizonte sócio-ideológico. Bakhtin (1995), além disso afirma que sempre uma enunciação produzida por uma voz se orienta para o meio de outras vozes, de outras "linguagens sociais" nos limites da mesma cultura e do mesmo horizonte sócio-ideológico. Essa orientação dialógica cria continuamente no discurso novas possibilidades interpretativas.

    Para Bakhtin existem basicamente duas formas pelas quais o discurso se orienta para outros discursos: 1º forma – com o objeto. "Entre todo o discurso e seu objeto e entre todo objeto e a personalidade do falante interpõe-se um meio flexível de discursos de outrem sobre o mesmo objeto, sobre o mesmo tema.... O objeto é a concentração de vozes multidiscursivas, dentre as quais o locutor deve fazer ressoar a sua voz. Qualquer discurso, inclusive de costumes, da retórica, da ciência não pode deixar de se orientar para o já dito." (Bakhtin,1998, p.86). 2º forma – com o discurso da resposta antecipada. "Todo discurso é orientado para uma resposta e ele não pode se esquivar da influência profunda do discurso da resposta antecipada. Ao se constituir na esfera do "já dito", o discurso é orientado, ao mesmo tempo, para o discurso-resposta, que ainda não foi dito, porém que foi solicitado a surgir e que já era esperado." (ibid, p.89).

    Analisando a sala de aula a partir dessa perspectiva teórica, podemos pensar os participantes das dinâmicas discursivas, alunos e professor, como portadores de vozes distintas, que ao estabelecerem um processo discursivo sobre determinado objeto ou tema o estão fazendo sobre um terreno onde outras vozes ressoam. Assim, ao tratar sobre energia ou sobre fluxo de energia, por exemplo, os alunos estão penetrando em um meio flexível de discursos alheios (do colega, do professor, do livro, da mídia, da família). E é no processo de interação com esse meio que os alunos produzem seus discursos e que constróem os significados sobre energia e fluxo de energia através de uma concepção dialógica destes objetos.

    Gostaria de chamar a atenção para o fato de que, nessa perspectiva sócio-histórica, o contexto desempenha papel crucial na produção de significados. Assim, a definição de tema e significado proposta por Bakhtin pode ser útil para analisar a introdução de uma imagem em sala de aula, se levarmos em conta que o contexto em que essa introdução ocorre pode contribuir para a definição do sentido que aquele objeto vai ter para os que o estão apreendendo. Por exemplo, o que é enunciado numa aula em que se discute sobre energia, possui sentido único, por estar sendo dito naquele local, para certas pessoas, naquele momento específico. Dessa forma a investigação que pretendo desenvolver vai privilegiar a identificação e a descrição dos contextos que se estabelecem em sala de aula, que podem ser conseguidas com a aplicação do método etnográfico de pesquisa, o que vou discutir mais adiante.

    Para analisar as imagens usadas durante a aula observada, vou usar como referencial teórico os trabalhos de Kress e van Leeuwen (1990). Estes autores se preocupam com as regras da organização do texto visual e sua teoria se baseia em estudos de como o texto visual está disposto na página, como as imagens relacionam-se umas com as outras e com o texto verbal. Para estes autores a compreensão de uma imagem não é nem transparente, nem imediata e depende do contexto em que é introduzida. Um dos fatos que, para eles, derruba a idéia de que uma imagem é imediatamente compreensível é que, a partir de um mesmo texto (verbal) escrito, várias imagens diferentes podem ser produzidas.

    Kress e van Leeuwen (1990) tomam emprestado as idéias propostas por Halliday (1992) ao afirmar que as imagens possuem três tipos diferentes de função: a função ideacional (representar os objetos e representar as relações entre esses objetos); a função interpessoal (relacionar sua representação ao seu produtor e àquele que será o seu receptor); a função textual (formar um texto, um complexo de signos, que é coerente internamente e coerente com o contexto no qual é produzido). Esta teoria funcional se baseia no significado social da representação visual e cria categorias de análise de imagens com base em sua função, organização interna, disposição na página (organização textual), além de seu aspecto iconográfico. Desta forma Kress e van Leeuwen (1990) propõem classificar as imagens em: narrativas, descritivas, classificatórias e analíticas.

    Tanto s idéias de Kress e van Leeuwen sobre a leitura de imagens, como as idéias de Bakhtin, se referem ao contexto como o elemento fundamental para que o processo de interpretação se desenvolva. Ambas admitem que os sistemas de representação de idéias são produto sociocultural e que existem regras socialmente aceitas para a produção e leitura destes sistemas. No caso do texto científico e, especificamente, do texto do livro didático de ciências, estas regras de uso em sala de aula, formam um conjunto ainda mais particular.


Aspectos metodológicos

    O desenvolvimento dos aspectos teóricos para este trabalho me levaram a crer que para realizar um estudo da dinâmica discursiva em sala de aula é preciso levar em conta o contexto e as ações dos participantes, suas falas e gestos, ou seja, seus enunciados. Para que isso ocorra é preciso que, durante todo processo de investigação, o pesquisador esteja inserido no ambiente observado. Um estudo sobre o método etnográfico demonstrou que esse é adequado para uma investigação desse tipo, que pretende analisar de modo qualitativo e interpretativo seu objeto. O método etnográfico pode, através da busca por padrões de comportamento existentes entre a cultura observada, descrever contextos e significados culturais de determinadas situações (Spradley,1979). Nesse sentido, esse método consegue ser útil na investigação de como as imagens canônicas da biologia são construídas em sala de aula. É também um método que, ao identificar padrões culturais, pode responder como o cotidiano da sala de aula está organizado e qual é o espaço ocupado pela imagem nesse cotidiano.

    Segundo Fonseca (1999), a pesquisa etnográfica aplicada à educação pode enriquecer a intervenção educativa, "o sucesso do contato educativo depende do diálogo estabelecido entre o agente e seu interlocutor e é nessa área de comunicação que o método etnográfico atua." (Fonseca, p. 59, 1990). Acredito que a identificação e descrição desse espaço comunicativo irá auxiliar na construção de um quadro analítico sobre o espaço discursivo da imagem na sala de aula.

    Para realizar essa construção vou partir de dados coletados durante todo o primeiro semestre de 2001, como recomenda o método etnográfico. Como a apresentação deste artigo não comporta a análise de um corpus tão extenso, pretendo, nessa comunicação, analisar os dados de apenas uma das aulas, onde algumas imagens são introduzidas pela professora, usando como recurso didático o quadro e o giz. Mais adiante vou justificar a escolha dessa aula específica, que se insere num corpus total de 35 aulas (de 50 minutos cada) gravadas em vídeo. Antes de me referir a aula específica gostaria de justificar algumas escolhas que fiz para chegar até essa professora e essa turma.

    Durante o segundo semestre de 2000, procurei alguns dos professores de biologia da rede pública estadual de Sete Lagoas. Minha escolha se pautou pelo critério da competência profissional deles. Os selecionados eram considerados, pela rede estadual, como os mais competentes e foram os primeiros a serem contratados para as aulas de Biologia, no início do ano. Seis deles se mostraram dispostos a colaborar comigo e, através das entrevistas e da observação direta de algumas de suas aulas pude selecionar uma professora com a qual estou prosseguindo o projeto de pesquisa no ano letivo de 2001. Durante a apresentação e análise dos dados essa professora será denominada Soraia, uma vez que não tenho autorização para revelar seu nome. Os critérios para a sua escolha foram o de bom relacionamento com os alunos e o de domínio do uso das imagens canônicas da biologia. Soraia foi a professora que utilizou uma maior variedade de imagens diferentes durante a abordagem de um tema e apresentou maior facilidade em verbalizar idéias para suas turmas. Esses critérios são justificáveis uma vez que o objeto da minha investigação é a dinâmica discursiva da sala de aula e as interpretações produzidas a partir da apresentação da imagem canônica pelo professor. Para que possa coletar material suficiente para análise é necessário que esse professor desenvolva um bom relacionamento com os alunos, que o seu discurso não seja somente um discurso de autoridade (Bakhtin,1998), que ele desenvolva atividades em que os alunos possam se expressar e que trabalhe com várias imagens da biologia durante as aulas.

    A escolha da turma foi feita no início do ano de 2001, com base em critérios semelhantes aos usados para a escolha da professora: de bom relacionamento e de participação. Escolhi a turma D porque é uma turma onde os alunos participam bastante das aulas, realizando intervenções na fala da professora, opinando sobre o conteúdo ou sobre a forma como ele é exposto por ela. A turma D possui bom relacionamento com a professora de Biologia, fato que foi comum entre as outras cinco turmas também observadas para a seleção.

    Após o término do período de coleta de dados iniciei a transcrição das fitas de vídeo produzidas. O que vou comunicar aqui é fruto da transcrição da 2º aula de Biologia da turma 1ºD, do turno da noite. A análise das primeiras aulas é fundamental para que eu possa ter acesso as práticas que são instituídas por professora e alunos no início de sua história como um grupo. De acordo com Green (1989) é nos primeiros momentos de interação que os membros de uma turma começam a definir normas, expectativas, papeis, relações, direitos e obrigações para se tornarem parte do grupo. É nos primeiros dias em que a turma se reúne (alunos e a professora de Biologia) que se constitui institucionalmente um grupo, mesmo que alguns dos participantes já se conheçam de outros contextos. Ao revelar as práticas deste segundo dia de aula de Biologia estarei dando o passo inicial para responder às questões que levantei anteriormente.

    Não vou me ater aqui a discussão sobre o processo de transcrição de dados, já que este não é meu objetivo. Apenas gostaria de ressaltar que as transcrições foram feitas com base nos trabalhos de Marcuschi (1991) e Ochs (1979).


A produção do Mapa de Eventos

    As questões que demandam investigação do cotidiano da sala de aula, levantadas no projeto, necessitam para serem respondidas de algumas ferramentas da etnografia. Pretendo usar o recurso do mapa de eventos como base para a construção do quadro de análise dos espaços ocupados pelas imagens canônicas na aula. O mapa de eventos é uma das ferramentas da etnografia interacional que pode revelar de modo sistemático as atividades realizadas em sala de aula. Através dele, o pesquisador pode identificar como o tempo e o espaço estão organizados pelos participantes do grupo institucionalmente constituído e evidenciar eventos e subeventos que ocorrem durante uma aula. No caso específico dessa investigação, o mapa vai auxiliar na localização dos espaços ocupados pela imagem nas práticas cotidianas da turma escolhida, durante a aula de biologia.

    De acordo com artigo publicado por Castanheira e colaboradoras (2001), existe uma rotina escolar que pode ser analisada com o uso de um recurso técnico como o mapa de eventos. Este grupo analisou a construção social das práticas de letramento em sala de aula e, neste trabalho, afirma que membros de um grupo constróem essas práticas durante as atividades escolares. As práticas de letramento podem ser identificadas, categorizadas e analisadas do ponto de vista de um pesquisador que esteja inserido no contexto nas quais elas ocorrem. Uma maneira de registrar essas práticas é o mapa de eventos. Ele é produzido a partir da transcrição dos dados do vídeo e se constitui em um quadro que revela tanto mudanças de tópico durante a aula, como mudanças nos espaços interacionais que são construídos e reconstruídos a todo momento na sala de aula. A partir da transcrição da segunda aula, da turma 1ºD, produzi o mapa de eventos que apresento aqui, onde o tempo e as atividades em curso, de cada evento e subevento, são explicitados.



MAPA DE EVENTOS

LEGENDA: EI – Espaço interacional; S – professora; AA – alunos; T – turma; C2 aluno da coluna C, 2º fila.
 

Marcador  Evento Subevento  EI Quem faz a introdução do conteúdo  Imagens 
05:17:33 Início da aula Conversando sobre a compra do LD (livro didático) S / A AA perguntam 

S responde individualmente aos alunos

 
05:20:53

05:24.43

05:26.09

Realizando a chamada S / T S diz os nomes dos alunos AA respondem
Retomando o conteúdo da aula anterior S /A S pergunta onde paramos AA respondem 
Sondando o conhecimento prévio dos alunos sobre a constituição do ser vivo S / T S pergunta; escreve e desenha no quadro; faz metáforas AA respondem Célula canônica , descritiva
05:28:57 Desenvolvi-mento do conteúdo proposto Exemplificando os tipos de substâncias orgânicas e inorgânicas S / T

S / A

S pergunta; escreve; responde; explica; cita e pede exemplos 

AA perguntam; respondem; citam exemplos.

05:33:00 Definindo substâncias inorgânicas e orgânicas.  S / T  S pergunta ; explica

AA respondem ; perguntam

05:33:31 Exemplificando: sais minerais Exemplificando substância orgânica: DNA S / T S pergunta; responde; explica; escreve e desenha 

AA respondem ; perguntam

Célula canônica, descritiva 
05:34:54 Exemplificando substância inorgânica: água  S / T 

S / A

AA perguntam ; respondem 

S responde; escreve e desenha

Copo com água descritivo
05:38:30 Definindo substância pura.

Representando quimicamente moléculas de água e glicose.

S / T S pergunta ; responde ; explica ; acrescenta palavras ao desenho

AA perguntam ; respondem

Fórmula da água – 

Balão de soro – descritivo / analítico Fórmula da glicose 

05:43:15 Definindo átomos que formam moléculas S / T S pergunta; responde; explica; escreve no quadro

AA respondem

05:43:53 Representando ligação química S / T

A / A

S pergunta; responde; explica; escreve e desenha AA respondem e conversam entre si Fórmula espacial da água – descritiva 
05:45:10 Definindo tecido e exemplificando tipos de tecidos S / T S desenha e escreve; pergunta; responde e explica

AA respondem e perguntam

Filas de quadrados empilhados descritiva 
05:47:50 Localizando uma célula num desenho de ovo S / T S desenha e escreve; nomeia as partes da célula 

AA respondem

Ovo quebrado, sem a casca – descritiva / analítica
05:48:55 Exemplificando tecidos. Citando as funções dos diversos tipos de tecidos S / T  S pergunta; responde; explica; escreve no quadro

AA respondem e C2 pergunta

05:52:07 Definindo órgão como um conjunto de tecidos S / T S pergunta; responde; explica; escreve e desenha 

AA respondem e perguntam

Contorno corpo humano de perfil com sistema digestivo – Canônica

Descritivo / analítico

05:57:01 Citando partes constituintes de um órgão e funções dos tecidos S / T S pergunta ; responde; localiza os tecidos no desenho e nomeia partes do desenho 

AA respondem

Parede do estômago de boi em corte transversal – descritivo / analítico
05:59:26 Fechamento da aula Conversando individualmente sobre o estômago a digestão e temas associados  S / A

A / A

S se dirige a alunos com dúvidas individualmente

AA conversam entre si ou com S

06:00:15 Conversando sobre o conteúdo da próxima aula S / T S pergunta; pede alunos lembrem onde ela parou. 

AA respondem 

    Cada coluna desse mapa pode ser lida isoladamente ou em conjunto com as outras. Lendo o mapa da esquerda para a direita, as informações sobre a organização da sala de aula vão se tornando cada vez mais detalhadas. A primeira coluna, denominada marcador, representa o tempo da gravação no qual o evento se inicia, na fita de vídeo. Essa marcação é fundamental para a análise tanto da porção que este evento ocupa na aula como um todo, como da seqüência em que os eventos e subeventos ocorrem.

    A segunda coluna indica o evento, a ação que está ocorrendo naquele tempo. A terceira coluna é a dos subeventos, que são as partes em que se dividem os eventos da aula de 50 minutos. Para dividir uma aula em eventos e subeventos observo tanto o espaço interacional (Heras,1993 in Castanheira e colaboradoras,2001) que está sendo construído naquele momento, como o tipo de atividade que está se desenrolando naquele espaço (Castanheira e colaboradoras,2001). Por exemplo, se Soraia está se dirigindo a apenas um aluno, (S/A) em uma atividade pergunta e resposta, naquele momento observamos um subevento. Se este quadro muda e Soraia passa a se dirigir a turma como um todo (S/T), a atividade, geralmente, muda e passamos aí a observar outro subevento. A quarta coluna evidencia qual é o espaço interacional que está em construção naquele subevento. Durante a aula observei três tipos de interações: Soraia com a turma T (S/T); Sorraia com um aluno (S/A); aluno com outro aluno (A/A). Durante a construção da transcrição dessa aula, observei que nela podem ocorrer, simultaneamente, diferentes espaços interacionais, como por exemplo uma conversa entre dois colegas que ocorre enquanto Soraia e a Turma estão interagindo.

    A quinta coluna indica quem faz a introdução do conteúdo ou tema daquele evento. Esta coluna mostra em que parte da aula alunos e professora estão iniciando interações e buscando falar sobre algum conteúdo específico. A sexta coluna descreve as imagens que estão sendo usadas em de cada subevento e as classifica de acordo com as categorias propostas por Kress e van Leeuwen (1990).

    As quatro primeiras colunas são úteis para que eu possa responder qual é a organização dessa aula de biologia. A quinta e sexta colunas auxiliam a responder outra das questões levantadas: quais seriam os espaços que uma imagem canônica ocupa na aula de biologia. O recurso de categorizar a imagem já no mapa de eventos, em sua última coluna, vai auxiliar a responder a questão da relação entre os tipos de imagens e o espaço que elas ocupam na aula.


Observações importantes

    Uma primeira análise desse mapa de eventos revela que esta aula pode ser dividida em três grandes partes: seu início, com o estabelecimento da interação professora/turma, chamada e levantamento do tema a ser explorado durante a aula; o desenvolvimento, onde são explorados os conteúdos, numa seqüência de níveis de organização dos seres vivos que parte do nível celular, vai até o atômico e depois salta para o histológico; e finalmente o fechamento da aula, marcado pela alteração do espaço interacional S/T, para interações individuais em que são discutidas "curiosidades" sobre o funcionamento do corpo humano. Já nessa análise preliminar podemos notar que a apresentação de imagens se concentra no desenvolvimento da aula.

    O mapa de eventos é útil também para que eu possa selecionar quais são as imagens canônicas que foram apresentadas nessa aula. Apesar da professora (S) desenhar no quadro 12 imagens diferentes durante toda a aula, apenas três podem ser consideradas como canônicas, ou seja, imagens-padrão ligadas a conceitos-chave da Biologia, que mostram o estereótipo desse conceito. Usarei as categorias do quadro para analisar apenas as imagens canônicas da Biologia que, na aula transcrita, são: célula desenhada em 05:28.45; célula desenhada em 05:33.31; contorno do corpo humano de perfil, representando, em parte, o sistema digestivo em 05:52.07.


O quadro analítico das imagens canônicas

    O quadro de análise que apresento aqui foi feito a partir do mapa de eventos e da transcrição dessa aula. Neste quadro os espaços ocupados pelas imagens canônicas são colocados em relação a aula como um todo. Ele apresenta também a classificação dessas imagens, o que é fundamental para que eu possa estabelecer relações entre tipos de imagem e o espaço da aula por elas ocupado.

    Segundo a gramática visual de Kress e van Leeuwen (1990), podemos classificar as imagens em quatro tipos: as descritivas, as classificatórias, as narrativas e as analíticas, o que não impede a existência de imagens que se incluam em duas dessas categorias ao mesmo tempo. Na prática, a análise de livros didáticos de ciências brasileiros (Freitas e Martins, 2000) mostra que a maior parte das imagens pode ser classificada em duas dessas categorias. Como veremos nesse estudo, durante o uso da imagem, o desenho desta pode até ser alterado, o que modifica sua inclusão nas categorias propostas por Kress e van Leeuwen.


Quadro Analítico dos Espaços Ocupados pela Imagem EI = Espaço interacional; S = professora

Marcador Tipo de imagem Transcrição Estrutura da aula Quando: momento discursivo Quando: momento temático 
05:28.45 Célula canônica.

Descritiva.

S: prá produzir uma célula/ prá formar uma célula... tem que misturar também.. tá? outros... é::: misturar mesmo várias substâncias... tá? então aqueles compartimentos lá da célula... núcleo...citoplasma...membrana plasmática... são constituídos de substâncias...tá?  Aos 11 min. 

Início

Sondando conhecimento prévio dos alunos.

EI = S / T

O desenho surge após S perguntar: de que é formada a célula? Os alunos não respondem o que ela espera, então, S faz uma metáfora, diz que p/ formar uma célula tem que misturar várias substâncias assim como na massa do pão, depois faz o desenho que usa passando a mão sobre ele S faz a metáfora e o desenho p/ localizar as substâncias de que as células são formadas. Após desenhar S define: uma célula é formada por diferentes substâncias. O desenho é recurso para auxiliar na descrição das substâncias que existem na célula
05:35.05  Célula canônica. Descritiva

 

S: o DNA é uma substância orgânica que é... você só encontra substância ... (...) tá? qualquer parte do ser vivo você encontra ... se tiver célula tem que ter DNA... a:::.. o DNA é encontrado onde? 

AA: na célula

S: mas em que lugar?

C2: no núcleo

Aos 18 min

Desenvolvimento 

Exemplificando e localizando uma substância orgânica: DNA.

EI = S / T

S retoma o tema substâncias orgânicas após falar das inorgânicas. Exemplifica subst. orgânica com o DNA e pergunta aos alunos se o DNA pode ser encontrado "no ambiente assim" C2 diz que encontramos DNA no Ratinho. S faz outra pergunta reforçando com giz o contorno do núcleo e C2 responde que o DNA é encontrado no núcleo.  S faz o desenho para localizar onde está o DNA dentro da célula. O DNA é o exemplo de substância orgânica que S fornece aos alunos nesse momento, mas ela já citou outros exemplos (proteína, vitamina e lipídeos) quando fez a sondagem do conhecimento dos alunos.
05:53.12 Contorno do estômago. Depois, ao lado, sem escala, contorno do rosto humano de perfil com o sistema digestivo, da boca ao anus, sem os órgãos anexos. Descritiva no início, passa a ser analítica - descritiva depois da alteração e da fala de S. S: então aqui ó::. o nosso organismo tem vários órgãos...cada órgão é formado de dois ou mais tecidos 

A : tecidos?

S: é::...tecidos.. tá? o estômago... aqui eu vou desenhar um estômago humano

A: eu não sei desenhar isso não 

S: vocês não tem o sistema digestivo?

A: eu tenho... então não precisa desenhar isso não.. põe um bigode no cara aí

S: mais ou menos...olha só... boca.. aqui é uma... uma::. um desenho né é:: de lado.. então aqui o nariz... aqui é a cavidade nasal... então o alimento triturado cai na faringe... esse pedaço aqui é faringe...aqui é o esôfago ... e aqui é o estômago.. que é esse aqui...essa abertura aqui... que passa prá cá é tá?... o gogó é aqui... tá entendido?

Aos 28 min 

Desenvolvimento

Definindo, exemplificando e órgão localizando um órgão.

EI = S / T

S desenha primeiro o estômago, apaga e desenha outro estômago enquanto fala com os alunos. Passa a desenhar o corpo humano depois que um dos alunos diz que não sabe desenhar o estômago. Desenha o perfil do rosto e o aparelho digestivo, em silêncio, quando acaba diz "mais ou menos". Usa o próprio corpo p/ se referir ao angulo em que é mostrado o corpo humano (põe a mão de lado perto do seu rosto). Nomeia as partes começando pela boca e fala seguindo a direção por onde o alimento passa. Apaga o desenho do sistema permanecendo apenas o contorno do estômago. S volta para este desenho após perguntar se os alunos se situaram. Quando S define órgão e cita exemplos o primeiro deles é o estômago. 

Nomeia as partes do sistema.

S descreve o caminho percorrido pelo alimento no sistema digestivo e dentro do corpo humano.
 
 

 

    A primeira coluna do quadro representa o tempo, no marcador do vídeo, em que houve o início do uso da imagem na aula. Por exemplo, na primeira linha surge o número 05:28.45 que quer dizer que o desenho a que se refere esta linha começou a ser feito, no quadro, nesse momento da gravação. A segunda coluna contém informações sobre a o desenho feito e sobre a(s) categoria(s) na(s) qual(is) ele se encaixa. A terceira coluna contém a transcrição da parte da aula em que a imagem está sendo inserida. A transcrição abrange tanto os discursos que precedem o desenho da imagem no quadro, quanto a parte em que o desenho está sendo concretizado.

    A quarta coluna indica qual é o evento e o subevento em que aquela imagem se insere, dentro do mapa previamente apresentado e qual é o espaço interacional que está em jogo quando a imagem é colocada na aula. A quinta coluna do quadro analítico apresenta os meus comentários sobre a dinâmica discursiva que está em andamento quando a imagem está sendo colocada, ou seja, comentários descritivos sobre os discursos produzidos e os espaços interacionais em jogo, naquele momento. A sexta coluna também contém comentários pessoais, mas nela coloco observações sobre o momento temático em que a imagem surge, ou seja, sobre qual conteúdo específico da Biologia que os participantes da aula estavam discutindo no momento de introdução da imagem canônica.

    A quarta e a quinta colunas do quadro ajudam a responder qual é o espaço discursivo ocupado por uma imagem canônica na aula de Biologia. Já a sexta coluna é fundamental para que eu possa estabelecer relações entre o conteúdo proposto na aula e o tipo de imagem usado pela professora.


Análise do quadro

    O trabalho de desenvolvimento do quadro analítico revelou que além de ocupar um espaço físico – desenhada no quadro durante eventos de desenvolvimento – a imagem ocupa também dois outros tipos de espaços em seu processo de construção: um espaço temático, uma vez que ela se apresenta como o conteúdo da aula, ou parte dele; um espaço discursivo, pois ela é construída nos enunciados, ou seja, existe além da imagem desenhada, exposta no quadro, uma imagem falada, discutida pelos participantes da aula. A imagem ocupa um espaço nos enunciados produzidos em sala de aula.

    As imagens canônicas desenhadas nessa aula podem ser classificadas, segundo Kress e van Leeuween, no início de seu uso, como descritivas. Essa categorização muda a medida que a imagem vai sendo falada. Assim percebemos que a imagem ocupa espaços temáticos diferentes conforme variam os discursos produzidos sobre ela e os elementos visuais que se acrescentam a ela durante a aula. As funções temáticas que a imagem desempenha se alteram, seu papel na aula de Biologia se altera ao sofrer a influência dos discursos que se produzem sobre ela. Através de gestos e falas a imagem inicialmente descritiva passa a ser objeto de análise e de narrações. Observamos isso quando a segunda imagem é apresentada para localizar o DNA na célula. Inicialmente o tema é localizar uma substância orgânica (DNA) e depois o gesto de S de reforçar o núcleo no todo da célula pode ser interpretado como uma atitude cuja intenção é estabelecer uma análise parte/todo entre núcleo e célula. Observamos também o mesmo fato quando Soraia apresenta a terceira imagem. Esta pode ser classificada como descritiva: mostra o que é o sistema digestivo. Soraia no entanto, apresenta um discurso que pode ser interpretado como uma narração do caminho do alimento através do sistema digestivo. Soraia usa verbos que representam processos que ocorrem ao longo do tempo: "... alimento triturado cai na faringe... que passa prá cá...." e, segundo Halliday (1992), isso caracteriza uma narração.

    A análise do espaço discursivo que as três imagens canônicas ocupam sugere que elas surgem num espaço interacional S/T, ou seja, quando Soraia está interagindo com a turma como um todo. Esse espaço se altera, por uns instantes, durante a apresentação da segunda e da terceira imagens, quando Soraia passa a desenvolver uma dinâmica discursiva com um aluno em particular (díade). Entretanto, em ambos os casos, Soraia volta a considerar como seu interlocutor a turma como um todo, ao final do subevento. Este dado deve ser interpretado juntamente com outra informação sobre a turma: neste dia de aula nenhum aluno possuía o livro didático. Soraia talvez esteja utilizando os desenhos nesse espaço S/T para que todo o grupo possa visualizar o conteúdo proposto por ela.

    Apesar do uso das imagens se concentrar no desenvolvimento da aula, uma delas é usada no início da aula, quando Soraia está fazendo uma sondagem do conhecimento prévio dos alunos sobre as substâncias que formam os seres vivos. Apesar de pedir a opinião dos alunos, somente Soraia fala e sua fala é unívoca, no sentido bakhtiniano. Ela constrói, através do uso de palavras e do desenho uma definição: células são formadas por substâncias. A negociação dessa definição, construída em torno da imagem, é fortemente influenciada pela voz de Soraia, que, no grupo, representa a voz da ciência. Isso sugere a interpretação de que a imagem possa estar servindo para dar credibilidade a afirmação de que células são formadas de substâncias. Tanto a fala quanto a imagem são construídas como verdade não questionável. Um outro indício disso é o comportamento de Soraia que, logo depois de ter feito a afirmação: "...aqueles compartimentos lá da célula núcleo, citoplasma, membrana plasmática são constituídos de substâncias, tá?" apaga o desenho do quadro e muda o objeto de seu discurso, passa a um outro tema.

    A próxima imagem canônica que aparece, na seqüência, durante o desenvolvimento da aula é outra célula. O elemento visual que diferencia essa da primeira célula desenhada é um reforço, com giz, na parte que representa o núcleo da célula. Na primeira o núcleo é vazado, na segunda é colorido. Ambas são usadas como recurso para situar "onde estão" as substâncias de que Soraia fala, substâncias abstratas que não podem ser vistas. Uma diferença quanto ao espaço temático ocupado pelas duas é que a segunda célula canônica é usada para localizar um tipo específico de substância (DNA), enquanto que a primeira localiza substâncias em geral. Outra diferença, que já citei é que a segunda célula passa a servir como elemento de análise durante o desenvolvimento do discurso enquanto que a primeira serve apenas para definição.

    Durante a construção do espaço discursivo dessa segunda imagem observamos a participação de, pelo menos, duas vozes distintas: a voz de S, representando a visão de mundo do professor de ciências e a voz de C2, que representa uma outra visão, que é a visão do leigo em Biologia, uma visão mais popular do objeto discursivo que é o DNA. Antes do desenho ser feito, C2 havia dito que esta substância é encontrada num programa de televisão. É uma visão da mídia sobre o DNA e esta fala de C2 pode ser interpretada com base na idéia de dialogicidade proposta por Bakhtin. O enunciado de C2 sobre o programa do Ratinho se refere a um contexto diferente do da sala de aula, provavelmente o contexto cotidiano desse aluno e, juntamente com o enunciado de S, que reflete o contexto escolar, constrói discursivamente, através de duas vozes distintas, a imagem canônica da célula que será interpretada pelos alunos dessa turma. Essa construção dialógica pode criar novas possibilidades de interpretação da imagem canônica, tanto para os alunos como para a professora.

    O espaço temático ocupado pela terceira imagem é bem completo, no sentido que ela é usada para descrever: apresentar um sistema; como para narrar: apresentar ações que se desenrolam no tempo; como para analisar: relacionar uma parte (o estômago) com o todo (o sistema digestivo). Sobre a construção discursiva dessa última imagem canônica podemos afirmar que também é uma construção dialógica onde duas vozes, pelo menos, ressoam, sobre um mesmo objeto: a voz de S e a do aluno que diz que não sabe desenhar e pede "... põe um bigode no cara...". Essa última fala reflete uma visão de mundo irreverente, que não é característica do discurso didático. Esse enunciado se junta aos enunciados de S, sobre as partes do aparelho, para construir discursivamente a imagem canônica do sistema digestivo neste grupo particular.

    A análise que apresento aqui é limitada no sentido de que ela se baseia em apenas uma aula. O cotidiano dessa turma não pode ser estabelecido através de apenas uma aula e eu não poderia fazer uma análise completa do espaço ocupado pela imagem, sob uma perspectiva etnográfica, sem ter acesso a um corpus maior e sem realizar entrevistas para esclarecer pontos obscuros. Esse trabalho foi realizado com o intuito de testar o uso do quadro como ferramenta de análise para um processo de estudo maior que é o mestrado que venho cursando.


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[1] apoio parcial da CAPES