OBJEÇÕES EM RELAÇÃO A PROPOSTAS CONSTRUTIVISTAS PARA A EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS: POSSÍVEIS IMPLICAÇÕES PARA A CONSTITUIÇÃO DE REFERENCIAIS TEÓRICOS NORTEADORES DA PESQUISA E DO ENSINO



Fernando Bastos
Roberto Nardi
Depto. de Educação. Faculdade de Ciências. UNESP. Bauru, SP.

Renato Eugênio da Silva Diniz
Depto. de Educação. Instituto de Biociências. UNESP. Botucatu, SP.



Resumo

    O presente trabalho discute objeções que são feitas em relação a propostas recentes para um ensino construtivista de ciências e procura estabelecer as possíveis implicações desse debate para a constituição de referenciais teóricos norteadores da pesquisa e da docência. As análises realizadas fornecem argumentos que ratificam abordagens construtivistas segundo as quais a aprendizagem significativa de conteúdos de ciências envolve a interação entre fatores internos e externos à mente do aprendiz e exige atividade mental voltada para a construção e reconstrução de significados.




Abstract

    This work discusses some objections in relation to constructivist approaches for science teaching and tries to establish the possible implications of that debate for the constitution of theoretical guidelines for research and teaching. Analysis carried out supplies arguments that ratify construtivist approaches that stress the interaction of mental factors and external information and the importance of mental activity on the construction and reconstruction of meanings.



Introdução

    O presente trabalho de reflexão teórica é resultado de um projeto de pesquisa em andamento que está sendo desenvolvido por integrantes do Grupo de Ensino de Ciências do Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência (Área de Concentração: Ensino de Ciências) da UNESP, sediado na Faculdade de Ciências da UNESP (Bauru, SP). Tem como objetivo discutir algumas objeções que são colocadas em relação a propostas construtivistas para o ensino de ciências e as possíveis implicações desse debate para a constituição de referenciais teóricos norteadores da pesquisa e da docência. Nesse sentido, abordará inicialmente os trabalhos pioneiros que, na década de 1970, deram origem ao movimento da mudança conceitual.

    Pesquisas realizadas na década de 1970 mostraram que (a) as crianças possuem concepções "sobre uma variedade de tópicos em ciência, desde uma idade precoce e antes da aprendizagem formal da ciência"; (b) as concepções das crianças "são freqüentemente diferentes das concepções dos cientistas"; e (c) as concepções das crianças "podem não ser influenciadas pelo ensino de ciências, ou ser influenciadas de maneira imprevista". Além disso, dados obtidos em diferentes países e por meio de diferentes "metodologias de investigação" foram similares, o que reforçou ainda mais o fenômeno da existência, entre crianças e jovens, de concepções que eram em maior ou menor grau contraditórias com os conhecimentos científicos vigentes (cf. Osborne & Wittrock, 1985, p.59).

    Tais resultados evidenciaram que o ensino escolar estava falhando em "desenvolver nas crianças conceitos que fossem ao mesmo tempo aceitáveis e úteis para as crianças e solidamente fundamentados [...] [numa] cultura científica" (cf. Osborne & Wittrock, 1985, p.60).

    Além disso, duas importantes suposições tornaram-se possíveis: (d) os alunos, a partir de suas experiências com objetos, eventos, seres vivos, outras pessoas, informações da mídia etc., constróem por si mesmos uma variedade de idéias e explicações acerca das coisas da natureza; (e) as idéias e explicações construídas pelos alunos podem ser consideravelmente resistentes à mudança e funcionar como importantes obstáculos à aprendizagem escolar.

    Os dados de pesquisa produzidos nesse período e em etapas subseqüentes permitiram um extenso mapeamento das idéias dos alunos em relação a inúmeros temas. Idéias dos alunos que não coincidiam com o saber científico foram denominadas concepções, conceitos ou idéias alternativos, ingênuos, intuitivos, espontâneos ou de senso comum.

    Na década de 1980, a preocupação em relação ao fenômeno das concepções alternativas deu origem a debates e pesquisas que visavam estabelecer de que forma essas concepções poderiam ser eliminadas ou transformadas, dando lugar a concepções que fossem coerentes com os conhecimentos científicos atuais. Surgiram então diversos trabalhos que tinham como objetivo discutir os processos mentais que conduzem à mudança conceitual e identificar as condições objetivas (contextos de ensino e aprendizagem) que estimulam o indivíduo a voluntariamente substituir suas concepções alternativas por concepções mais adequadas do ponto de vista científico (cf., por exemplo, Posner et. al., 1982; Giordan & De Vecchi, 1987; Hewson & Thorley, 1989) (1).

    Esses debates foram influenciados por conhecimentos provenientes de diversas fontes, entre elas a filosofia da ciência (cf. Bastos, 1998). Assim, nesse período, uma das idéias que se fortaleceu e ganhou adeptos no interior da comunidade de pesquisadores foi aquela que havia sido defendida por Posner et al. (1982), segundo a qual a mudança conceitual nos indivíduos se assemelharia à mudança de paradigma na ciência, proposta por Kuhn (1962).

    Entender a mudança conceitual como mudança de paradigma teve uma série de implicações importantes. O estudante, para transitar de um conjunto de noções para outro (por exemplo, para movimentar-se de uma física de senso comum para uma física compatível com a física newtoniana), precisaria operar em si mesmo uma autêntica 'revolução científica'. Além disso, ficava claro que a mudança conceitual poderia requer que as concepções dos alunos fossem expostas a contra-exemplos, pois, na análise realizada por Kuhn, as anomalias (observações que contradiziam o paradigma vigente) eram fatores importantes que impulsionavam a mudança de paradigma.

    De acordo com Hewson & Thorley, a mudança conceitual é um processo em que a concepção alternativa do aluno perde status e a concepção científica apresentada pelo professor ganha status. As concepções que o aluno tende a conservar são aquelas que ele considera inteligíveis, plausíveis e frutíferas. A tarefa do professor é pois fazer com que o aluno passe a ver as concepções científicas como inteligíveis e ao mesmo tempo mais plausíveis e frutíferas que as concepções alternativas. Para que isto ocorra, no entanto, o professor precisará criar situações em que o aluno se torne insatisfeito com suas concepções atuais, isto é, situações em que as concepções atuais do aluno se tornem pouco plausíveis e pouco frutíferas (cf. Hewson & Thorley, 1989, p.542). Nesse sentido, Posner et al. (1982, p.225) sugerem que o professor procure desenvolver "exposições, demonstrações, problemas e exercícios de laboratório que possam ser usados para criar conflito cognitivo nos estudantes [grifo nosso]". Esse conflito seria um importante estímulo à mudança conceitual, e se estabeleceria no momento em que o aluno percebesse que suas previsões não se concretizaram, suas propostas de solução não funcionaram, suas idéias são incoerentes com a realidade observada etc.

    As pesquisas sobre concepções dos alunos e mudança conceitual foram influenciadas em maior ou menor grau por trabalhos de autores como Piaget, Ausubel, Kuhn e Lakatos. Nesse sentido, esteve presente em tais pesquisas, de forma implícita ou explícita, a idéia de que os conhecimentos (cotidianos, científicos ou de outra natureza) correspondem a construções da mente humana e não a descrições objetivas da realidade concreta.

    Em Ausubel, o caráter 'construtivo' do processo de aprendizagem aparece, por exemplo, na proposição de que a interação entre um conteúdo a (externo à mente do aprendiz) e um conceito subsunçor A (disponível na mente do aprendiz) resultará na modificação de ambos (A'a') e, posteriormente, na produção de um conceito A' que não é nem a nem A, conforme a seguinte representação esquemática (cf. Ausubel et al., 1980):

a A ® A'a' ® A'

    Na verdade, a idéia de que os conhecimentos pessoais de um indivíduo correspondem a construções intelectuais está ligada à idéia mais ampla de que a aprendizagem com compreensão se caracteriza por um processo que envolve interação entre elementos internos e externos à mente do aprendiz. Assim, o conhecimento seria construído pelo indivíduo "conforme ele ou ela interage com o ambiente e tenta compreendê-lo" (Osborne & Wittrock, 1985, p.61, procurando traduzir o posicionamento de Piaget em relação a essa questão).

    A influência de análises desse tipo fez com que, no âmbito da educação em ciências, as propostas de ensino derivadas das pesquisas sobre concepções dos alunos e mudança conceitual fossem reunidas sob o rótulo geral de "construtivismo".

    O impacto dos estudos e pesquisas que propunham um ensino por mudança conceitual foi tão grande que, durante a década de 1980, mudança conceitual "tornou-se sinônimo de 'aprender ciências' (Niedderer, Goldberg & Duit, 1991)" (Mortimer, 1995, p.57). Além disso, estabeleceu-se gradativamente, nesse período (décadas de 1970 e 1980), aquilo que Novak (1998) designou "um consenso emergente" em torno de idéias construtivistas.

    Entre os avanços significativos que foram então obtidos, podem ser citados os seguintes:

(a) Redescoberta do fenômeno das concepções alternativas;

(b) Mapeamento das idéias que os alunos possuem em relação a diversos fenômenos naturais;

(c) Proposição de modelos de ensino centrados no estudo e avaliação de diferentes formas de se compreender a realidade. De acordo com essa nova perspectiva, o professor criaria situações de ensino em que os alunos considerassem diferentes teorias acerca das coisas da natureza (teorias científicas, concepções alternativas, idéias de senso comum etc.), as quais seriam avaliadas com base em seu poder descritivo, preditivo, explicativo etc., o que possibilitaria a realização atividades de ensino muito mais ricas, significativas e inteligentes do que aquelas que eram usualmente adotadas no ensino por transmissão.

(d) Opção por uma visão interacionista do processo de aprendizagem, em oposição às opiniões segundo as quais o conhecimento é de origem totalmente externa à mente do aprendiz ou, ao contrário, de origem totalmente interna. Tal opção esteve relacionada ao fato de que, a partir da consideração de trabalhos de autores como Piaget e Ausubel, não parecia mais plausível, por exemplo, que a mente do aprendiz pudesse ser uma folha em branco ou tabula rasa sobre a qual vão sendo registradas as impressões provenientes do meio externo.
 

    Segundo Mortimer, há pelo menos "duas características" principais que estão presentes em "uma visão construtivista de ensino-aprendizagem": 1) a aprendizagem se dá "através do ativo envolvimento do aprendiz na construção do conhecimento; 2) as idéias prévias dos alunos desempenham um papel importante no processo de aprendizagem" [Mortimer, 1995, p.57].

    Nesse sentido, é possível identificar algumas proposições que constituem, provavelmente, o núcleo central de uma visão construtivista do processo de aprendizagem em ciências:

(a) a aprendizagem significativa envolve construção de significados para a informação que é recebida pelo indivíduo, já que imagens, sons e outras informações de natureza sensorial não possuem "significado intrínseco" (cf. Osborne & Wittrock, 1985, p.65);

(b) os significados que o indivíduo constrói para a informação recebida dependem das ferramentas intelectuais que esse mesmo indivíduo possui, entre as quais se destacam os conhecimentos prévios;

(c) os significados que o indivíduo constrói para a informação recebida podem estimular uma reconstrução dos conhecimentos existentes (indivíduo pode mudar suas idéias se considerar que elas são incoerentes com a realidade, insatisfatórias, pouco frutíferas etc.);

(d) pelas razões expostas em "b" e "c", os conhecimentos prévios desempenham um papel primordial na maneira como o indivíduo lida com as informações recebidas e com as situações de sua realidade cotidiana;

(e) os conhecimentos que o indivíduo produz durante esse processo de construção e reconstrução são algo "adicional" tanto às informações recebidas quanto aos conhecimentos prévios (cf. Osborne & Wittrock, 1985, p.64) (2);

(f) a aprendizagem significativa requer atividade mental, já que não é possível construir significados, estabelecer relações entre idéias, checar interpretações, reestruturar conhecimentos etc. de maneira passiva.
 

    Um modelo de aprendizagem que procura articular os diversos aspectos mencionados acima (aprendizagem significativa, construção de significados, conhecimentos prévios, atividade mental etc.) é aquele que foi proposto por Osborne & Wittrock (1985).

    Por fim, é importante destacar mais uma vez que os debates e pesquisas realizados nessas décadas de 1970 e 1980 deram lugar a importantes avanços e significaram uma ruptura com as interpretações simplistas que vigoravam até então acerca do processo de ensino e aprendizagem em ciências (ensino como transmissão de informações; aprendizagem como absorção passiva de informações que eram, em seguida, gravadas na mente do aprendiz, entendida como tabula rasa).

    Recentemente, porém, vários trabalhos têm sido publicados com o intuito de analisar criticamente as propostas construtivistas para o ensino de ciências (ver, p. ex., Mortimer, 2000; Mortimer, 1995; Cachapuz, 2000; Osborne, 1996; Solomon, 1994; Suchting, 1992) (3). Os títulos de alguns desses trabalhos (p. ex., "The rise and fall of constructivism", "Constructivism deconstructed", "Beyond constructivism") sugerem que as abordagens construtivistas perderam sua validade ou estão superadas.

    Mortimer (2000) argumenta que as estratégias de ensino voltadas para a mudança conceitual são pouco efetivas e que os indivíduos não abandonam concepções anteriores quando constroem concepções novas. Ele sugere que a evolução conceitual nos indivíduos se dá por meio da formação de perfis conceituais. Um perfil conceitual é um conjunto heterogêneo que reúne simultaneamente diferentes versões para um mesmo conceito.

    Solomon (1994), apoiando-se em autores como Bourdieu, afirma que sistemas de conhecimento com epistemologias diferentes (p. ex., saber cotidiano e ciência) precisam coexistir na mente dos indivíduos, e que o professor, ao tentar produzir mudanças conceituais, pode estar forçando a "submissão em relação a novas formas de pensamento e novos conceitos". Ela afirma também que o "construtivismo" não explica de modo adequado a aprendizagem de conteúdos totalmente novos para o indivíduo.

    Para Cachapuz (2000), o ensino por mudança conceitual enfatiza excessivamente a aprendizagem de conceitos científicos, desvalorizando "finalidades educacionais e culturalmente relevantes".

    Argumenta-se ainda que o ensino por mudança conceitual desconsidera os aspectos afetivos da aprendizagem e, por recorrer repetidamente a estratégias de conflito cognitivo, tende a gerar insegurança, inibição e rejeição entre os alunos (Mortimer, 2000; Gil-Pérez et al., 1999a).

    Há hoje, portanto, várias objeções em relação ao principal modelo de ensino que, nas décadas de 1980 e 1990, foi associado a propostas construtivistas para a educação em ciências.

    Em nossa opinião, a existência de tais objeções, ao mesmo tempo em que tem estimulado o debate e a produção de novos conhecimentos, também tem gerado, na comunidade de pesquisadores e professores, certa perplexidade em relação aos princípios teóricos que poderão servir como fundamento para a investigação e o ensino na área de educação em ciências.

    Assim, torna-se importante perguntar: Que princípios continuam sendo válidos como elementos norteadores para o ensino e a pesquisa em educação em ciências? É adequado que o ensino de ciências continue buscando seus fundamentos em abordagens construtivistas?


Discussão

    Nos trabalhos mencionados acima (p. ex., Mortimer, 2000; Osborne, 1996; Solomon, 1994), embora se enfatize (de modo mais ou menos explícito) a inadequação de um conjunto de idéias denominado 'construtivismo', o principal tema que aparece como objeto de discussão é um modelo de ensino específico - o ensino por mudança conceitual.

    Assim, pode-se perguntar se as objeções que são colocadas nesses trabalhos de fato atingem os princípios básicos de uma visão construtivista do processo de aprendizagem (p. ex., interação entre elementos internos e externos à mente do aprendiz; estreita relação entre atividade mental, construção de significados e aprendizagem significativa; influência dos conhecimentos prévios e demais elementos mentais sobre a seleção, interpretação e processamento de informações externas etc.).

    Acreditamos que não, por uma série de razões: (a) a idéia de que os conhecimentos (cotidianos, científicos, filosóficos etc.) representam construções, produções ou elaborações da mente humana (e não cópias da realidade) está firmemente estabelecida em filosofia e psicologia, e não tem como conseqüência necessária um ensino por mudança conceitual, o que significa que, a rigor, o questionamento do ensino por mudança conceitual não pode causar danos a uma visão construtivista do processo de produção de conhecimentos na ciência ou do processo de aprendizagem no indivíduo; (b) os argumentos empregados nas discussões voltadas para a análise crítica do ensino por mudança conceitual nem sempre são os mais adequados, conforme procuraremos mostrar a seguir.

    A mudança conceitual como um entre vários processos mentais relacionados à construção de conhecimentos no indivíduo

    Durante o período compreendido aproximadamente entre 1982 e 1992, uma ênfase especial foi colocada na necessidade de que o ensino de ciências procurasse promover mudanças conceituais nos estudantes.

    Recentemente, porém, diversos autores vêm questionando esse tipo de visão.

    Segundo Mortimer (1995), resultados disponíveis na literatura (por exemplo, Mortimer, 1994; Galili & Bar, 1992; Scott, 1987) reforçam a idéia de que "não é adequado descrever o processo de ensino como uma substituição das idéias prévias dos alunos por idéias científicas" (4):

[...] O trabalho de Galili & Bar (1992) [...] mostra que os mesmos estudantes que tiveram um bom desempenho em problemas familiares sobre força e movimento revertem a um raciocínio pré-newtoniano de 'movimento requer força' em questões não-familiares. Os autores concluem que "essa 'regressão' a visões ingênuas pelos mesmo sujeitos é uma evidência a mais de que o processo de substituição de crenças ingênuas pos novos conhecimentos adquiridos nas aulas de Física é complicado e muitas vezes inconsistente [...].

De maneira semelhante, Scott (1987), ao estudar o desenvolvimento de idéias sobre a matéria entre alunos da escola secundária, conclui que 'mudança conceitual' não parece o título apropriado para o que se observa no processo. "No lugar de mudança conceitual parece haver um desenvolvimento paralelo de idéias sobre partículas e das idéias já existentes (...) O desenvolvimento paralelo de idéias resulta em explicações alternativas que podem ser empregados no momento e situação apropriados. Não há mudança conceitual do tipo referido por Posner et al. (1982) como uma acomodação" [...] [Mortimer, 1995, p. 64].
 

    Para Mortimer, objeções dessa natureza (aliadas a discussões sobre a importância específica de diferentes formas de saber - saber cotidiano, saber científico, saber filosófico etc.) impõem a tarefa de buscar "um modelo teórico alternativo para analisar a evolução conceitual em sala de aula". Ele propõe, então, a noção de "perfil conceitual". De acordo com esta noção, "as novas idéias adquiridas no processo de ensino-aprendizagem passam a conviver com as idéias anteriores, sendo que cada uma delas pode ser empregada no contexto conveniente". Como conseqüência disso, uma dada pessoa pode apresentar, por exemplo, duas ou mais versões para um mesmo conceito. Tais versões comporiam um leque, leque este que representaria o perfil conceitual (cf. Mortimer, 1995, p.58 e 64).

    De acordo com este modelo, portanto, saber cotidiano, saber escolar e saber científico coexistem, e os indíviduos não precisam transformar ou abandonar velhas concepções para que possam construir concepções novas e condizentes com a visão dos cientistas. Nesse sentido, a evolução dos estudantes ao longo do processo de escolarização se daria através de mudanças nos perfis conceituais, e não de mudanças em concepções específicas. Além disso, o professor e a escola passariam a ter a tarefa de discutir os contextos específicos em que as diferentes versões de um mesmo conceito tornam-se mais ou menos apropriadas (cf. Mortimer, 1995).

    Em nossa opinião, a noção de perfil conceitual traz as seguintes contribuições importantes, entre outras: (a) sugere uma outra possibilidade para o modo como os indivíduos lidam com novas informações e idéias; (b) sugere que as pessoas comuns, em comparação com os cientistas, estão menos preocupadas em tentar solucionar inconsistências em seus próprios conhecimentos (tal característica precisa ser considerada ao se propor e conduzir programações de ensino); (c) é particularmente apropriada para se discutir situações de ensino em que predomine o debate de idéias, já que, nesse caso, o professor precisa cuidar para que sua ação seja vista como uma tentativa de ensinar novas formas de se enxergar uma dada realidade, e não como uma tentativa de doutrinação.

    Note-se porém que a possibilidade da coexistência de saberes discrepantes na mente dos indivíduos não deve servir como argumento para negar o fato evidente de que as pessoas, ao longo da vida, podem mudar radicalmente suas idéias, valores e atitudes.

    Em outras palavras, tanto a formação de perfis como também as mudanças de natureza conceitual são processos passíveis de ocorrer na mente de um indivíduo. Parece pouco plausível que as pessoas, ao aprender, apenas incorporem novas informações e idéias, formando perfis, sem que isso tenha qualquer impacto no restante de seu conteúdo mental (conhecimentos, concepções, valores, crenças etc.).

    De fato, é possível encontrarmos exemplos tanto de casos em que houve mudança conceitual como de casos em que uma nova concepção passou a conviver com as antigas, e isso seria um interessante problema para novas pesquisas (as descrições a seguir procuram representar casos reais dos quais tivemos conhecimento):

Quando eu era pequeno, pensava que o dente do ciso dava problemas porque era um dente que não tinha uso. Meu pai me falava isso - ele dizia que aquilo que as pessoas não usam acaba atrofiando. Agora sei que não é bem assim. O dente do ciso é o que ele é por razões ligadas ao processo de evolução. Ele deve ter sofrido mudanças que o fizeram pior, mas isso não teve conseqüências muito negativas para a espécie. Quer dizer: a seleção natural não prejudicou os indivíduos que tinham problemas com o dente do ciso

Quando eu comecei a trabalhar como professor, achava que conseguia, através da minha fala, transmitir aos alunos tudo aquilo que eu estava pensando. Depois fui vendo que não é bem assim, eu fui estudando as questões de ensino e aprendizagem e percebi que os alunos interpretam a nossa fala, que eles precisam de oportunidade para estar explorando aquele conteúdo, refletindo sobre ele. Só que às vezes, quando estou dando aula, me pego de novo falando, falando e falando. Eu sei que apenas falar não resolve, mas, naquele momento, parece que eu me esqueço disso e volto para as idéias antigas.
 

    Além da mudança conceitual e da formação de perfis, é provável que outros processos também tenham um papel na aprendizagem escolar. Um desses processos seria a construção e modificação de conhecimentos que não possuem o status de concepção, no sentido de que não fazem parte do conjunto de saberes que o indivíduo aceita como válidos naquele momento.

    Conforme procuraremos mostrar a seguir, a aquisição de conhecimentos que não possuem status de concepção é perfeitamente possível e também requer atividade mental construtiva por parte do aprendiz (requer o estabelecimento de relações entre as novas informações e os conhecimentos prévios, construção e reconstrução de significados etc.). Tal processo será aqui exemplificado através de situações referentes ao ensino de filosofia e ao ensino de evolução dos seres vivos.

    O ensino de evolução, por abordar questões sobre as quais a religião também se pronuncia, não poderá ter como objetivo a mudança conceitual, sob pena de estar afrontando a liberdade dos educandos ao credo religioso (5). Diante disso, o trabalho do professor seria melhor descrito como uma tentativa de fazer com que os alunos melhorem e ampliem a compreensão que possuem acerca das explicações científicas, independentemente de aceitarem ou não essas explicações. Nesse contexto, um aluno que possui concepções de caráter criacionista / fixista pode melhorar seus conhecimentos sobre teoria da evolução (pode, por exemplo, entender que as explicações científicas atuais não prevêem herança de caracteres adquiridos) e, no entanto, conservar sua própria opinião sobre o assunto.

    Um segundo exemplo relacionado à construção de conhecimentos sem status de concepção é o da situação que pode caracterizar os estudos introdutórios em filosofia. Nessa etapa inicial, o que mais importa é compreender idéias, não sendo estritamente necessário que o aprendiz se posicione em relação ao pensamento deste ou daquele filósofo. Esse aprendiz, através de leituras, debates, exercícios escritos etc., desenvolverá conhecimentos sobre a obra de diferentes autores, mas, no início, sua compreensão acerca das idéias que estão sendo estudadas pode ser superficial e até mesmo equivocada. Com a continuidade desses estudos, o aprendiz pode aperfeiçoar seus conhecimentos e até mesmo mudar suas interpretações ('Eu tinha entendido que Aristóteles quis dizer x, agora não acho mais isso'). Note-se que não se trata, aqui, de mudar concepções (no sentido de mudar idéias nas quais o indivíduo acredita), mas de mudar a compreensão que se tem das idéias do outro, seja esse outro um filósofo, um cientista ou uma autoridade religiosa.

    Finalmente, é importante lembrar que uma das etapas do modelo de mudança conceitual proposto por Posner et al. - isto é, a etapa em que uma nova idéia se torna "inteligível" para o aprendiz (cf. Posner et al., 1982, p.214) - também pode ser entendida como situação em que é construído um conhecimento que não possui (ainda) status de concepção.

    Pode-se portanto afirmar que a aprendizagem com compreensão não requer necessariamente mudança conceitual ou construção de conhecimentos que sejam aceitos pelo indíviduo como verdadeiros. Nesse sentido, a simples compreensão de idéias torna-se um resultado válido do processo de ensino e aprendizagem.

    Note-se porém que uma compreensão satisfatória das idéias científicas que são corriqueiramente ensinadas pela escola exigirá etapas sucessivas de construção de significados, checagem e retificação dos significados que estão sendo construídos, estabelecimentos de relações etc. - isto é, a atividade mental construtora por parte do aprendiz deve ser considerada um elemento central dentro de qualquer um dos três processos referidos acima (mudança de natureza conceitual, formação de perfis conceituais, construção de conhecimentos sem status de concepção).

    Importância crucial dos problemas e questionamentos para o processo de construção de conhecimentos.

    Um aspecto bastante enfatizado dentro das abordagens construtivistas para o processo de aprendizagem é o da importância das situações problemáticas, conflituosas ou desafiadoras. Tal aspecto pode ser traçado desde Bachelard - "O conhecimento é sempre resposta a uma questão" (6) - e Piaget – as "perturbações exteriores" são fatores essenciais que desencadeam a construção progressiva de estruturas mentais (cf. Piaget, 1969) - até análises mais recentes como as de Posner et al. (1982, p.225) - "criar conflitos cognitivos nos estudantes" -, Osborne & Wittrock (1985, p.77) - "desenvolvimento das habilidades de questionamento das crianças" - e Gil Pérez et al. (1999b, p.313) - ensino de ciências "como situação problemática que exige investigação".

    Uma das razões apresentadas para essa ênfase em situações problemáticas ou desafiadoras é o papel que tais situações podem ter na geração de um anseio por mudanças nos conhecimentos existentes. Assim, nas palavras de Posner et al. (1982, p.214), cientistas e estudantes "provavelmente não farão grandes mudanças em seus conceitos até que eles acreditem que mudanças menos radicais não funcionarão". Osborne & Wittrock (1985, p.77) destacam, por outro lado o "valor das perguntas das crianças em ajudá-las a dar sentido ao seu mundo" (note-se que as perguntas são uma forma importante pela qual os problemas, conflitos e desafios são expressos). Admite-se ainda que situações problemáticas ou desafiadoras possam ser interessantes e estimulantes, ajudando a gerar maior motivação para a aprendizagem (cf. Gil Pérez, 1999b, p.316).

    Na década de 1980, conforme já foi mencionado, foram propostos modelos para um ensino que tivesse como objetivo promover mudanças conceituais nos estudantes (cf., por exemplo, Posner et al., 1982). Esses modelos, sob a influência dos trabalhos de autores como Piaget e Thomas Kuhn, que enfatizavam a importância das "pertubações exteriores" (Piaget, 1969, p.88) e das "anomalias" (Kuhn, 1962) no processo de construção de conhecimentos, introduziram a noção de conflito cognitivo. Os alunos seriam defrontados com informações, exemplos, demonstrações, problemas e atividades de laboratório que contrariassem suas concepções, a fim de que essas perturbações externas ou anomalias produzissem conflito cognitivo e estimulassem os alunos a reformular suas idéias.

    A idéia de um ensino que procure produzir conflitos cognitivos nos alunos com certeza representou um avanço, pois reconhece a existência das concepções alternativas e sugere um caminho para que o professor possa lidar com elas.

    Recentemente, porém, tem sido argumentado que a ênfase no conflito cognitivo pode ser desnecessária e até mesmo ter conseqüências negativas para a aprendizagem.

    Mortimer lembra que, de acordo com a noção de perfil conceitual, a construção da concepção científica não força necessariamente a eliminação da concepção alternativa correspondente (ambas passam a coexistir na mente do indivíduo), e isto sugere que as duas concepções não se relacionam em termos de oposição ou conflito cognitivo, ou seja, as pessoas não dependem de situações conflituosas para poder aprender. Nesse sentido, o conflito cognitivo pode ter uma importância menor, como fator para a aprendizagem, do que aquela que lhe foi originalmente atribuída (Mortimer, 1995, p.59-60).

    Gil Pérez et al. afirmam que estratégias de ensino voltadas para a geração de conflitos cognitivos, praticadas "de forma reiterada", produzem "uma inibição e uma rejeição muito compreensíveis", não tendo mesmo muito sentido "fazer com que os alunos explicitem e fundamentem suas idéias, para seguidamente questioná-las" (Gil Pérez et al., 1999b, p.317).

    Mortimer menciona a dificuldade "que os alunos enfrentam em reconhecer e vivenciar conflitos" e o equívoco que pode estar sendo cometido quando se espera que a criança ou o jovem se comportem similarmente ao cientista diante de uma situação nova que parece requerer modificação das idéias existentes (cf. Mortimer, 1995, p.59 e 60).

    Mortimer alerta ainda para o risco de as estratégias de mudança conceitual estimularem o aluno a perder sua auto-confiança. Ele menciona o uso de analogias como uma alternativa que poderia evitar esse problema:

[...] Um dos modelos mais discutidos atualmente é o do ensino por analogias [...]. Stavy (1991) acredita que haja uma profunda diferença entre estratégias de ensino por conflito e aquelas por analogia. Nesta última, os estudantes não expressam suas idéias alternativas explicitamente; não precisam ficar conscientes do conflito ou do processo de ensino. Eles são informados apenas sobre a similaridade das tarefas. Do ponto de vista do estudante, não há conceito errado e nenhuma aprendizagem ocorre, pois ele, intuitivamente, entende as situações análogas. Assim, não há risco de os estudantes perderem sua auto-confiança ou optarem por idéias erradas. Do ponto de vista do professor não há necessidade de treinamento específico. O processo de aprendizagem decorre da escolha de uma situação ou exemplo inicial apropriado [...] [ Mortimer, 1995, p.60].
 
    Diante de tais argumentos, torna-se lícito perguntar: a noção de conflito cognitivo deve ser banida das discussões sobre ensino de ciências? A resposta a essa questão é controvertida, conforme veremos a seguir; pode-se entretanto concluir, desde já, que a educação científica, por diversas razões, não pode prescindir dos problemas e questionamentos.

    Para Gil Pérez et al., não se trata de "eliminar os conflitos cognitivos, mas apenas de evitar que adquiram um caráter de confrontação entre as idéias próprias e os conhecimentos científicos" (Gil Pérez et al., 1999b, p.317). Nesse sentido, é interessante que o professor estimule os alunos a enxergar suas próprias idéias e as idéias dos outros como hipóteses de trabalho (Gil Pérez et al., 1999a, p.505).

    Além disso, é particularmente importante colocar para os alunos que nosso crescimento pessoal e intelectual pode ser severamente obstaculizado se nos fecharmos em nossas concepções e nos negarmos a considerar a validade de outras possíveis alternativas de interpretação da realidade (a falta de humildade intelectual torna-se então uma atitude nociva para o indivíduo).

    Mortimer afirma que é necessário estender o conceito de conflito cognitivo para além das situações meramente estressantes (cf. Mortimer, 1995). De fato, o conflito cognitivo se expressa por um certo nível de insatisfação com as concepções que o indivíduo possui no momento, e isso significa que também as lacunas de conhecimento ('não sei, e agora fiquei curioso/a para saber') e, por exemplo, um interesse espontâneo do indivíduo por uma nova idéia podem ser elementos geradores de um conflito (estimulante) entre o que se sabe e o que se gostaria de saber.

    Por outro lado, seria absurdo imaginar que as concepções dos alunos devam (e de fato possam) ser protegidas de todo e qualquer questionamento, permanecendo intocadas pelo ensino escolar. Gimeno Sacristán & Pérez Gómez, por exemplo, colocam de modo veemente a necessidade de que a escola questione concepções acríticas que foram formadas nos alunos por meio de processos de inculcação:

[...] É ingênuo esperar que as organizações políticas, sindicais ou religiosas, ou o âmbito da empresa, mercado e propaganda estejam interessados em oferecer ao futuro cidadão/dã as chaves significativas para um debate aberto e racional, que permita opções relativamente autônomas sobre qualquer aspecto da vida econômica, política ou social. Seus interesses, mais ou menos legítimos, orientam-se em outras direções mais próximas da inculcação, persuasão ou sedução do indivíduo a qualquer preço do que da reflexão racional e da comparação crítica de pareceres e propostas.

Somente a escola pode cumprir essa função. [...] [A escola] deve começar por diagnosticar as pré-concepções e interesses com que os indivíduos e grupos de alunos/as interpretam a realidade e decidem sua prática. Ao mesmo tempo, deve oferecer o conhecimento público [filosofia, sociologia, história, biologia etc.] como ferramenta inestimável de análise para facilitar que cada aluno/a questione, compare e reconstrua suas concepções vulgares, seus interesses e atitudes condicionados, assim como as pautas de conduta [...] [Gimeno Sacristán & Pérez Gómez, 1998, p25].
 

    Gil Pérez et al. entendem que o foco de atenção do ensino de ciências deve ser o "tratamento de situações problemáticas abertas que os alunos possam considerar de interesse". De acordo com tal perspectiva, embora "as concepções iniciais" dos estudantes possam sofrer modificações mais ou menos radicais ao longo do processo de ensino-aprendizagem, o objetivo final das ações empreendidas não é a promoção de conflitos cognitivos e mudanças conceituais, e sim "a resolução dos problemas colocados" (cf. Gil Pérez et al.,1999a, p.505). Note-se que esse tipo de proposta apresenta o mérito de ao mesmo tempo reconhecer a possibilidade de conflito cognitivo e mudança conceitual e retirar a ênfase excessiva que recaía sobre ela.

    Finalmente, é preciso lembrar que há interessantes exemplos de programações de ensino que foram bem sucedidas e que incluíram, em vários momentos, estratégias típicas de um ensino para a mudança conceitual, como o teste e refutação experimental de hipóteses e previsões apresentadas pelos alunos (cf. Carvalho et. al., 2000; Barros Filho, 1999). Segundo relatam os autores desses trabalhos, o conjunto das atividades realizadas (no qual também houve espaço para conflito cognitivo) despertou entre os alunos um interesse bem maior do que aquele que se verifica em aulas de formato mais tradicional.

    Em nossa opinião, a discussão sobre a importância dos problemas e questionamentos dentro da educação científica apresenta, entre outros, os seguintes aspectos que precisam ser destacados: (a) os conhecimentos científicos que a humanidade foi produzindo ao longo dos séculos estão indissociavelmente ligados a determinados problemas e questões que os originaram; assim sendo, um ensino de ciências desprovido de problemas e questionamentos torna-se uma mera caricatura daquilo que deveria ser a educação científica; (b) se o professor se esforçar para garantir certas condições em aula (clima de trabalho em que a curiosidade e a participação dos alunos sejam incentivadas; alunos percebendo o professor como alguém com quem poderão contar para auxiliá-los a resolver as dificuldades que surgirem; estudo de questões que apresentem interesse potencial para os alunos; tarefas que não sejam exageradamente fáceis ou difíceis), não há porque situações problemáticas ou desafiadoras não possam ser atraentes para os alunos; isto é, essas situações podem sim ser utilizadas como alguns dos principais pontos de partida para o processo de ensino e aprendizagem; (c) por ser influenciada pelos conhecimentos prévios e outros elementos presentes na estrutura cognitiva, a aprendizagem dos diversos conteúdos escolares de ciências não se dá de modo satisfatório a não ser que os alunos estejam continuamente checando e retificando os conhecimentos construídos; em outras palavras, compreender corretamente o que é que os cientistas estão dizendo exige que os alunos questionem periodicamente as interpretações que fizeram da fala do professor, do texto do livro, da observação de fenômenos etc.; assim, embora estratégias voltadas para criar conflito cognitivo sejam muitas vezes desnecessárias ou inadequadas, é preciso haver espaço, nos debates e demais atividades realizados em aula, para que as compreensões ou interpretações equivocadas sejam explicitadas, discutidas e retificadas.

    Isso tudo nos leva a afirmar que os problemas e questionamentos têm uma importância crucial para o processo de construção de conhecimentos na escola.
 

Considerações finais

    Os argumentos apresentados nos ítens anteriores sugerem que, independentemente da ocorrência ou não de mudanças de natureza conceitual, a aprendizagem de conteúdos de ciências é um processo que requer construção e reconstrução de conhecimentos. A reconstrução sucessiva se torna necessária porque os alunos, em razão de suas concepções prévias, habilidades mentais, interesses, valores etc., dificilmente conseguem, de início, interpretar as informações veiculadas em aula de modo a construir conhecimentos fidedignos (coerentes com o discurso dos cientistas).

    Tais considerações ratificam abordagens construtivistas segundo as quais a aprendizagem significativa envolve a interação entre fatores internos e externos à mente do aprendiz e exige atividade mental voltada para a construção e reconstrução de significados.

    O ensino escolar de ciências abrange conteúdos cada vez mais diversificados, os quais podem ser assim categorizados: (a) conhecimentos de natureza factual; (b) conhecimentos de natureza conceitual (conceitos, leis, teorias, modelos etc.); (c) argumentos que sustentam os conhecimentos de natureza conceitual; (d) análises sobre ciência e seu desenvolvimento (História e Filosofia da Ciência); (e) análises sobre relações entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente (relações CTSA); (f) procedimentos, valores e atitudes.

    Embora objetivos como 'formação para a cidadania' e 'conscientização em relação à problemática ambiental' apareçam com grande destaque nos currículos escolares atuais, aprender ciências significa, em sua essência mínima, compreender os conceitos, teorias, leis e modelos que vêm sendo propostos pelos cientistas. A esse objetivo elementar têm sido agregadas outras expectativas, entre elas a de que os alunos compreendam satisfatoriamente os argumentos que sustentam os conhecimentos de natureza conceitual.

    Pode-se portanto afirmar que hoje, assim como nos momentos em que se enfatizou com maior veemência o ensino por mudança conceitual, uma das tarefas importantes a serem desempenhadas pelo professor é mostrar aos alunos as razões pelas quais os cientistas acreditam que determinados conhecimentos científicos fazem sentido e devem ser considerados válidos. Os alunos, por sua vez, podem ou não considerar convincentes as razões que são apresentadas pelos cientistas, e podem ou não aceitar para si os conhecimentos científicos que estão sendo ensinados.

    Quando os alunos desenvolvem uma compreensão satisfatória dos conteúdos ensinados (conceitos, teorias, leis, modelos, argumentos científicos, análises sobre relações CTSA etc.), tal compreensão pode se dar como decorrência da construção de conhecimentos sem status de concepção ou como decorrência da formação de perfis conceituais; pode também representar o embrião ou o resultado final de um processo de mudança conceitual etc. Em qualquer uma dessas situações, porém, os significados que forem sendo construídos precisarão ser continuamente aperfeiçoados (checados e retificados) para que se tornem coerentes com os conhecimentos científicos atuais. Isso faz com que os questionamentos e desafios assumam uma importância central dentro do processo de aprendizagem (o aluno dificilmente será capaz de aperfeiçoar seus conhecimentos se não puder questioná-los ou desafiá-los).

    Os professores geralmente concordam que, quando os temas de ensino estão relacionados a questões como saúde individual e coletiva, direitos e deveres do cidadão, conservação do ambiente etc., a educação escolar deve ser conduzida de tal forma que os alunos sejam incentivados a modificar seus valores, atitudes e comportamentos. Pode-se portanto perguntar se nesses casos a mudança conceitual torna-se imprescindível. Acreditamos que não, pois as modificações pretendidas podem estar relacionadas predominantemente a conhecimentos de natureza factual (saber que banhos prolongados ao chuveiro elétrico resultam em maior consumo de energia elétrica; que o uso correto de preservativos minimiza o risco de se contrair AIDS etc.).

    O presente trabalho se ateve principalmente à discussão de aspectos cognitivos da aprendizagem. Não é demais lembrar que os aspectos afetivos também são de enorme importância nesse debate. Construir ou mudar atitudes, valores ou comportamentos, conforme muitas vezes é sugerido em propostas curriculares recentes, requer um grande envolvimento da dimensão afetiva do indivíduo. É pois de fundamental importância que pesquisas futuras em educação em ciências comecem a explorar com maior profundidade essa problemática, buscando subsídios apropriados, por exemplo, na psicologia (que condições podemos criar em aula que favoreçam a construção ou mudança de determinados valores, atitudes e comportamentos considerados desejáveis ou não?).


Notas


(1) O segundo trabalho é GIORDAN, A., DE VECCHI. Les origines du savoir. Neuchátel, Delachaux & Niestlé, 1987. Citado por Cachapuz, 2000, p. 36.

(2) Note-se que o termo construtivismo está relacionado justamente à idéia de que a aprendizagem significativa envolve o estabelecimento significados, relações, conhecimentos etc. que não estavam previamente disponíveis nem nas informações recebidas nem na mente do aprendiz, representando, portanto, elementos que o próprio aprendiz constrói (cria) na tentativa de interpretar e escolher modos de ação frente à sua experiência cotidiana.

(3) SUCHTING, W. A. Constructivism deconstructed. Science & Education, v.1, n.3, p.223-54, 1992. Citado por Gil Pérez et al., 1999a, p.506.

(4) GALILI, I., BAR, V. Motion implies force: where to expect vestiges of misconceptions? International Journal of Science Education , v.14, p. 63-81, 1992. Citado por Mortimer, 1995, p. 64.

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(5) Isso não significa, porém, que as explicações científicas sobre a diversidade dos seres vivos não possam ser interessantes e convincentes para os jovens e, dessa forma, estimular modificações nas idéias que os educandos possuem. Tais modificações, entretanto, caso ocorram, deverão surgir como efeito secundário de um processo de ensino e aprendizagem cujo objetivo primordial não é mudar as concepções dos alunos, mas mostrar como OS CIENTISTAS explicam o fenômeno da diversidade.

(6) BACHELARD, G. La formation de l'esprit scientifique. Paris: Vrin, 1938. Citado por Gil Pérez et al., 1999a, p.505.


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