O REPERTÓRIO DE CONHECIMENTOS ESPECÍFICOS AO ENSINO DE QUÍMICA NO NÍVEL FUNDAMENTAL
 

Nilma Soares da Silva
Faculdade de Educação UFMG

Arnaldo Vaz
Coltec, Faculdade de educação UFMG
 

Resumo

    Analisamos as narrativas de um grupo de professores de Ciências submetidos a um teste de repertório com o objetivo de explorar seu repertório de conhecimentos sobre o ensino de Química. Procuramos assim satisfazer duas necessidades da área: primeiro a de se repensar a maneira como a química vem sendo ensinada no nível Fundamental e, segundo, a de se levantar quais escolhas estão sendo feitas em relação ao que ensinar. O Teste de Repertório tem sua origem na Psicologia de Construtos Pessoais de George Kelly. Como metodologia de pesquisa esse teste força o conteúdo das narrativas dos professores a se circunscrever a episódios reais de ensino e a exigir que esses episódios sejam comparados através de padrões de classificação estabelecidos pelo próprio professor. O repertório de conhecimentos engloba o conjunto de saberes, de conhecimentos, de habilidades e de atitudes que o professor utiliza no seu dia a dia.
 


Abstract

    Narratives of a group of Science teachers who took a Repertory Grid Test have been analyzed to elicit their knowledge base for Chemistry teaching. For this, it was sought to meet two basic needs in the area: first, to think over the way chemistry has been taught at elementary school, and second, to survey which choices have been made in relation to teaching. The Repertory Test originated in the Psychology of Personal Constructs of George Kelly. As a research methodology, this test leads the teachers’ stories to be limited to real teaching episodes and to demand that these episodes be compared through classification standards established by the teachers themselves. The repertoire encompasses a set of knowledge, of abilities, and attitudes that the teachers themselves use in their daily lives.
 

Introdução

    Nas práticas atuais os conteúdos de ciências estão subordinados aos saberes disciplinares. Isso resulta em uma redução e simplificação deste conteúdo . Por exemplo, para que possa ser apresentado aos estudantes no nível Fundamental, toma-se os mesmos conteúdos químicos destinados à primeira série do Ensino Médio, porém de modo compacto.

    No ensino Fundamental, a química é ensinada na disciplina Ciências, daí nos referirmos aqui a professores, aulas ou estudantes de ciências. Essa química aparece como uma versão empobrecida e reduzida da química no Ensino Médio e esta, por sua vez, não passa de uma versão simplificada dos tratados de química para carreiras científicas e tecnológicas no ensino superior. O resultado disso é uma visão dogmática, detalhista e compartimentada da química pelos estudantes. São praticamente inexistentes as relações entre os aspectos teóricos e experimentais, entre os modelos propostos e os fenômenos para os quais foram elaboradas. Além disso, se os professores de química repetem no Ensino Médio aquilo que já foi teoricamente ensinado no nível Fundamental pode-se concluir que há nessa atitude uma desconsideração do trabalho do professor de ciências. Daí a necessidade de se repensar como a química vem sendo ensinada, o que especificamente ensinar e quais as contribuições que os professores de ciências no nível Fundamental podem dar ao ensino de química.

    A partir da leitura de autores que têm contribuído para o debate sobre saberes docentes, percebe-se que essa avaliação do ensino de Química no nível Fundamental, desmerece soluções encontradas pelos professores de Ciências, consideradas potencialmente positivas. Estamos concebendo que o professor se utiliza de um conjunto de vários saberes que formam um reservatório a partir do qual podem se orientar em situações concretas de ensino. Autores como Gauthier, consideram que esse reservatório de saberes é constituído pelos saberes disciplinares, os saberes curriculares, os saberes da ciência da educação, os saberes da tradição pedagógica, os saberes experienciais e os saberes da ação pedagógica. Trabalharemos com parte desse reservatório de saberes, que são os saberes da ação pedagógica. Desse modo, a expressão repertório de conhecimentos servirá para designar os saberes da ação pedagógica que estão relacionados com o gerenciamento de classe e o gerenciamento do conteúdo.

    Consideramos que conhecer o saber da ação pedagógica dos professores de ciências em relação à química torna-se importante a partir do momento que pode tornar pública uma jurisprudência particular, que reserva saberes que lhe são inerentes. Ressaltamos ainda a possibilidade de tornar menos discrepantes os resultados das pesquisas em ciências da educação ao avaliar o processo de ensino aprendizagem não levando em conta as condições concretas de exercício do magistério.
 
    Por esses motivos decidimos por uma pesquisa que pretende mostrar as estratégias e perspectivas utilizadas por um grupo de professores de Ciências ao ensinar Química no nível Fundamental. A ação pedagógica, constituída por estratégias e perspectivas será denominada de repertório de conhecimentos. Tal repertório engloba o conjunto de saberes, de conhecimentos, de habilidades e de atitudes que o professor utiliza no seu dia a dia. O repertório de conhecimentos está sendo constituído a partir da análise da narrativa dos professores em entrevistas auxiliadas pelo Teste de Repertório.
 
    Apresentaremos categorias que englobam conjuntos de estratégias didáticas utilizadas pelos professores de Ciências ao ensinar Química, acompanhadas das perspectivas que envolvem tais ações. As ações dos professores, suas escolhas e julgamentos poderão ser contemplados, avaliados e pesados, a fim de estabelecer guias de ação que serão conhecidas e aprendidas por outros professores. Compartilhamos das idéias de Gimeno (1988), considerando que as perspectivas não são simples atitudes perante os fatos. Perspectivas pessoais têm uma componente ativa que se projeta na ação. Representam uma matriz de pressupostos que dão sentido ao mundo, não sendo, contudo, um simples reflexo da realidade, mas sim algo construído no decurso da interação com outros, com essa realidade, na experiência.

    Sabemos que o saber do professor é em grande parte privado e não passa por nenhuma comprovação sistemática como em outras profissões. Cada professor, elabora uma espécie de jurisprudência particular, onde ele acredita em certas práticas e descarta outras. Este julgamento não chega ao conhecimento público para ser testado. Se a sociedade não pode reconhecer a pertinência e a especificidade de um saber pedagógico não podemos falar de profissionalização do ensino pois não será conhecida a aceitação e a legitimação desses saberes


Desenho Metodológico
 
    Diante da importância de se conhecer as ações dos professores de Ciências ao ensinar Química no nível Fundamental, optamos por uma metodologia que possa incentivar a narrativa dos professores sobre episódios de ensino, ao mesmo tempo que os incentiva a sugerir seus próprios critérios para análise desses episódios.

    Sabemos que ao solicitar a um professor que expresse sua opinião sobre suas ações e a forma como desempenha suas tarefas abordando os problemas encontrados, obtemos respostas, em geral, bastante pobres. Por outro lado, podem ser ricas em um discurso já bastante enraizado. Muitas vezes o professor expressa uma visão simplista, onde acredita que para ensinar basta um bom conhecimento da matéria, algo de prática e alguns complementos psicopedagógicos.

    Diante dessa dificuldade em conhecermos o pensamento ou observarmos a ação dos professores, trabalhamos com elementos do discurso dos professores sobre a ação. Para isso usamos o Teste de Repertório que funciona como um detonador para a discussão e análise que se estabelecerá.

    A técnica, conhecida como "Teste de Repertório", é baseada no trabalho de Kelly (1955) e desenvolvida por autores como por exemplo, Fransella e Thomas (1988). Kelly defende que o ser humano organiza o mundo de acordo com um complexo de "constructos", isto é, de critérios bi-polares.

    Constructo pessoal é um termo que distintos autores vêm introduzindo para se referirem ao universo do pensamento dos professores. A teoria dos construtos contém toda uma perspectiva sobre a forma que nós temos de elaborar o nosso universo mental e de organizar no seu interior estruturas de conhecimento e de ação.

"Um construto é uma abstração; uma propriedade atribuída a um acontecimento, pessoa ou coisa. Toma a forma de um par de termos dicotômicos, por exemplo, aceitação-rejeição, importante-não importantante, gentil-rude. Qualquer construto dado pode aplicar-se a mais do que um elemento da realidade (acontecimento, pessoa, coisa). De acordo com a teoria , para confirmar a identidade de um construto, exige-se a identificação de pelo menos dois elementos que constituam o atributo nominal no construto e um terceiro elemento que não lhe pertença."(Oberg, 1984, p.7).     Devemos salientar que várias pesquisas que utilizaram o Teste de Repertório, consideram como repertório um conjunto de construtos pessoais que espelham o modo com que as pessoas organizam seus pensamentos. Optamos por usar o teste como metodologia por ser a oportunidade de iniciar uma conversa com o professor na intenção de que ele descreva episódios de ensino, onde ensinou Química nas suas aulas de Ciências. Os construtos ou critérios foram úteis para guiar a discussão dos episódios de ensino através da comparação por padrões de classificação. Ao contrário de outras pesquisas que utilizaram o teste de repertório, não foram os construtos ou critérios o ponto de partida para a análise. Nesta pesquisa, são as ações dos professores de Ciências que estão em foco e que constituirão o repertório de conhecimentos desses professores.

    Em contraposição a uma entrevista estruturada ou a um questionário, no momento da entrevista, o professor tem a oportunidade de se lembrar de situações particulares dos episódios ou de novos episódios que não foram citados mas que se assemelham aos já mencionados.

    Diante da análise da narrativa dos professores, procuramos entender como eles usam suas teorias e como analisam suas próprias vivências. Que tipo de atividades realizam? Que critérios utilizam? Como fazem suas escolhas?

    Não pretendemos utilizar o Teste de Repertório para classificar ou hierarquizar as vivências dos professores mas usá-lo como ponto de partida para um investigação das ações do professor de forma dialogada. Foram entrevistados oito professores de ciências das redes públicas, municipal e estadual, e particulares.


Descrição do Teste de Repertório

    O professor é convidado a citar, em fichas, episódios significativos. O esperado é que o professor, ao colocar aqueles episódios mais significativos, saiba posteriormente, falar um pouco mais sobre suas impressões acerca da atividade, do envolvimento dos alunos, do seu próprio envolvimento e dos conteúdos tratados, comentando as dificuldades e os méritos da atividade.

    Depois de descrever os episódios peço-lhe que fale rapidamente sobre cada um para que eu me familiarize um pouco com eles. A seguir, sorteio três fichas. O professor então, deve agrupar dois episódios semelhantes e que sejam diferentes do terceiro episódio. Ao fazer esta separação o professor irá me dizer o critério utilizado. O critério é anotado e os dois episódios parecidos são inseridos, em uma escala de 1 a 5, no número 1 e o terceiro episódio é colocado no número 5. Feito isso, todos os outros seis episódios são classificados dentro desta escala. Os números atribuídos são anotados em uma grade e posteriormente será feita uma análise fatorial com todas as classificações. A intenção é identificar padrões de classificação para os episódios descritos e usá-los para uma discussão no segundo encontro. O quadro 1, a seguir, mostra cada momento:
 
 

Primeiro momento Segundo momento Terceiro momento Quarto momento Quinto momento
Citação dos nove episódios.

Breve comentário sobre os episódios.
 
 
 
 

 

Sorteio de três episódios e agrupamento em dois semelhantes e um diferente.

Estabelecimento do critério de classificação.

Atribuição de números aos episódios, de acordo com o critério estabelecido no momento anterior, numa escala de 1 a 5 sendo que os dois episódios semelhantes estão no número 1 e o terceiro no número 5.  Análise fatorial usando o programa computacional(Mancuso e Shaw, 1988; RepGrid, 1991). Segundo encontro com o professor: discussões e comparações entre os episódios.

Quadro1 - O teste e seus momentos

Aplicação

    Inicialmente, no segundo encontro, concentrei minha atenção nas atividades que, através dos critérios estabelecidos pelo professor e da análise fatorial, tiveram muita proximidade, ou seja, os números atribuídos na escala de 1 a 5 foram praticamente os mesmos.

    A pergunta inicial era: O que você poderia me falar sobre essas duas atividades? Elas são mesmo tão parecidas? Me fale sobre elas com mais detalhes.

    A nossa intenção era a de que o professor explicitasse melhor as razões que o levaram a atribuir tais números a tais episódios. Os números propriamente não são discutidos mas os resultados atribuídos a eles. De acordo com tais números, os episódios são agrupados devido à semelhança nas classificações. A conversa então, gira em torno dessas semelhanças. A possibilidade de comparar os episódios é um momento muito rico desta metodologia.

    O estabelecimento dos critérios para a classificação das atividades (segundo momento), destacou-se como um momento de tensões. Os professores tiveram muitas dificuldades pois, a princípio, só conseguiam estabelecer critérios que se referiam aos conteúdos. Em alguns casos, sugeri que os critérios poderiam ser em relação ao professor e ao aluno, como por exemplo, interesse, envolvimento, resultados.

    Alguma vezes minha intervenção foi necessária para melhor entendimento do episódio. Foi muito interessante poder contar, nos segundos encontros, com as descrições das atividades e os critérios usados nas classificações, pois desta forma, eu pude conversar estando consciente de maiores detalhes sobre as atividades.
 

Resultados

    Como esperado, o teste de repertório proporcionou um momento mais desafiador, onde o professor, valendo-se da memória, contou-me sobre as atividades que desenvolveu ou desenvolve em sala de aula. No momento em que o professor descreve nove episódios, nos quais ele tenha ensinado Química em suas aulas de Ciências, é possível aumentar o universo temático, o que proporcionou um maior cenário para conversas durante o teste. As classificações feitas pelos professores, foram artifícios para que eles detalhassem mais suas atitudes ao desenvolver suas atividades.
 

Dados

    Os dados aqui apresentados foram obtidos através de uma análise das transcrições das entrevistas. Buscamos, em primeiro lugar, identificar as estratégias de ação dos professores. Nas narrativas, as estratégias sempre vinham acompanhadas de justificativas. Agrupamos então, grupos de estratégias que, segundo os professores, são utilizadas no sentido de resolver algumas situações do processo de ensino aprendizagem que se colocam no dia a dia da sala de aula de Ciências. Essas estratégias foram denominadas:

    Consideramos que as perspectivas são um conjunto de idéias e de ações que os professores utilizam. Achamos importante transcrever alguns trechos das narrativas para dar exemplos das idéias apresentadas por nossa análise. Com esta análise pretendemos mostrar o repertório de conhecimentos dos professores de ciências em relação à Química partindo de atividades concretas de ensino aprendizagem.


Estratégias concretizadoras

    Nesse grupo, os professores se utilizam de atividades de visualização, demonstrações, atividades práticas envolvendo o manuseio de materiais, desenhos e jogos. Ao utilizar esse conjunto de atividades a intenção é de transpor um grande obstáculo: a dificuldade dos alunos em trabalhar com a abstração. Tal habilidade é uma exigência muito comum nas abordagens tradicionais para os conteúdos químicos. Um outro motivo, é o fato de que as práticas em laboratório chamam a atenção para os fenômenos, às vezes interpretados como mágicas.

    O trecho abaixo, destaca a idéia da professora sobre a química como uma ciência que envolve conceitos muito abstratos.

".... sabe que é uma coisa invisível, vamos dizer entre aspas, né? E fica difícil para os meninos de química assimilarem isso, né? Porque eles dependem muito da visualização, do tato, então eles estão nessa faixa etária aí." ( Flávia)     Segundo a professora, esse tipo de dificuldade desenvolve no estudante uma descrença ou uma crença sem questionamentos.

    Os trechos abaixo destacam a idéia dos professores em apresentar os fenômenos da química com uma certa magia, na intenção de chamar a atenção para o fantástico.

"Como eu falei de ácido, senti necessidade de mostrar os ácidos para eles, senti o drama mesmo. Pensei assim abrir um ácido sair fumaça, cuidado gente, isso é um ácido, aquela confusão que a gente faz. Super admirados com a gente." ( Georgio)

"Essa, ela é também assim, né? Faço de conta que eu sou mágica, faço aquela coisa toda.... e aí eu mostro prá eles a importância do oxigênio prá combustão. Mas assim, na verdade eu vou trabalhar com essa combustão mais prá frente. Mas na hora da aula não dá para você realçar isso aí não, é a sensação de pegar fogo." ( Nilza )
 

    Muitas vezes, a explicação desses fenômenos não faz parte do planejamento do professor. Com esse tipo de atividade o professor procura encantar o estudante e fazê-lo gostar de suas aulas.
 

Estratégias de diversificação

    Nesse grupo, os professores se utilizam de atividades envolvendo o trabalho com contas de água, contas de luz, rótulos e bulas de remédios, reportagens de revistas e jornais. Os professores utilizam esse conjunto de atividades como meios de informações diversificados e que atingem faixas etária diferenciadas (alunos adultos do supletivo e alunos do curso normal).

".... Aí eu trabalhei com bula de remédio para eles identificarem os elementos e tal. Mas eu não me sinto a vontade prá trabalhar com conceitos de química, então eu fiquei discutindo uma coisa que era mais, que eu acho que era mais assim, prá conscientizar eles e tal". (Mariana).

"Os alimentos, a confecção daqueles alimentos. O uso do alimento natural e rótulos que a gente compra, né? Os alimentos, mais eles tem uma composição além dos nutrientes, tem aditivos. Corantes, conservantes, né? Olha composição química, de nutrientes e validade. E isso é um alimento natural que tem que ser consumido rápido, feito na hora e consumido." (Helena).

"Mas aí por exemplo, como eu tenho adultos, aí eu levo um texto falando sobre a construção de hidrelétricas, geração de energia. Essa questão da água tá relacionada com essa geração de energia. Porque que o Brasil por exemplo, usa muito mais energia elétrica do que outra fonte de energia. Quer dizer que você já vai tentando, já que você tem esse público adulto. Então dá prá ir trabalhando isso, uma conta de água, uma conta de luz da prá ser trabalhado." ( Cristina)
 

    São atividades que envolvem uma intenção de conscientização em relação à cidadania dos estudantes estimulando para a importância de se conhecer a composição das coisas, datas de validade, princípios ativos de remédios etc. Essas alternativas apontam a habilidade desses professores em procurar saídas para as deficiências dos livros didáticos adotados.
 

Estratégias de sondagem

    Os professores utilizam esse conjunto de atividades considerando que os alunos possuem conhecimentos prévios que podem ser alternativos ou não. Consideram ainda que a explicitação desse conhecimento pode ajudar no andamento do conteúdo, seja para detectar contradições com o conhecimento científico, seja para detonar uma discussão buscando contextos de vivências dos estudantes.
 

"Mas em ciências eu acho que o conhecimento prá eles é fantástico. Essa questão quando eu falei que fazer um café, eles estavam extraindo uma substância, que essa. Como é que ficava, o café, fica transparente? Não, fica escura. Porque? Por que alguma coisa está dissolvida ali. Então elas ficavam assim, meio tipo de boca aberta. Eu falo assim, com é que vocês fazem para tentar consertar uma comida que tá salgada, eu disse, uma carne mais salgada. Aí elas pensaram, pensaram. Vocês colocam alguma coisa, muita dona de casa sabe fazer isso. Aí uma me respondeu, que colocava batata. Aí porque? Por que puxa o sal. Aí quer dizer, então eu falei da comida que é uma concentração." ( Cristina)
 
    As aulas pautadas por estratégias de sondagem são dialogadas e a professora procura envolver a turma na discussão usando um contexto muito familiar para discutir concentração que é a cozinha.


Estratégias transversais

    Nesse grupo o uso de filmes e a leitura de livros e textos, seguidas de interpretações e apresentações são escolhas que identificam nos professores o interesse em trabalhar a história da ciência e mais uma vez a busca de contexto exemplares para a discussão dos conceitos químicos. São atividades que têm a intenção de iniciar os alunos em um mundo de idéias que não sejam aquelas do livro texto "... Porque nós assistimos um filme "O inferno de Dante" e tem um momento que um vulcanólogo vai na região prá, prá ver como estava essa região. Não sei se você já assistiu esse filme. Então nessa região ele vê que a água tá, tá com uma cor diferente e tá com o cheiro estranho. Então ele falou que a água estava com excesso de enxofre e estava com, aí começou, ele pôs um, como chama? Um elemento prá olhar a acidez e a basicidade da água. É, de pH. E aí ele foi e colocou lá prá olhar, né? Aí os meninos acharam engraçado porque que isso estava acontecendo e tal. Aí a gente falou sobre o enxofre, sobre os óxidos, tinha mais elementos que compunham essa situação que trazia problema, que mostrava que o vulcão estava em atividade, que ele ia entrar em atividade, que ele estava, né? Quase. Então nós falamos sobre elementos químicos, falamos, mostramos na tabela periódica e tal." (Dalva)

"...Eu não tô lembrada muito bem como é que começou o projeto. Mas eu lembro que a gente chegou no ciclo da água. A gente estudou sobre a história da água, como era a idéia do ciclo da água desde antigamente, desde muito tempo, né? Desde Aristóteles, então a gente pegou um livro, aí nós lemos uma parte desses fatos prá eles e nós falamos sobre a água. Aí saiu, a gente falou sobre a eletrólise. Aí nós fizemos a experiência da eletrólise da água." (Dalva)

"A gente senta em círculo, né? Geralmente a turma é pequena, por exemplo, a oitava série os meninos são novos, são poucos alunos, né? A gente senta no círculo, distribui um texto, como a escola não tem muitas condições geralmente a gente trabalha com texto ou então uma experiência que dá para fazer e tal. Mas os meninos lêem o texto aí a gente tira, eu gosto muito de tirar a idéia central, eu gosto muito de dar nomes ao parágrafos. Primeiro eu peço aos meninos para dar nomes aos parágrafos, eu acho isso ótimo, porque aí como a turma é pequena. Igual acontece senta e fala qual é o nome do primeiro parágrafo aí? Aí eles não entenderam, então eles dão qualquer nome, aí você começa explorar a questão do texto, geralmente é desse jeito."( Dalva )

    Normalmente, ao recorrer a estratégias transversais, a professora não utiliza um único livro texto. É destaque em sua narrativa, a importância dada ao trabalho com a interpretação e o uso de recursos que permitem desenvolver no estudante uma habilidade para situações variadas. Os conceitos químicos aparecem nos contextos e são discutidos de acordo com o interesse dos estudantes.
 

Conclusões

    De acordo com as análises realizadas, detectamos que cada professor pensa e atua de acordo com um conjunto de construtos, que se diferenciam e modificam pela própria ação. Consideramos então que são sujeitos que reconstróem sucessivamente o seu pensamento e a sua ação. Isto se dá , de acordo com Oberg (1984), da sua experiência passada, da escolha dos valores e das situações particulares e individuais em que se encontra.

    Muitos professores reconheciam, no momento da entrevista, que determinados episódios descritos foram significativos em certos momentos. Em outros, a mesma estratégia utilizada, não ofereceu bons resultados. Este fato mostra a reflexão do professor sobre as necessidades de adaptações no trabalho educativo, mesmo acreditando que a atividade parte do episódio é boa.

    O uso do livro didático, é motivo de análises criticas em relação ao conteúdo específico, textos, metodologia etc. Os professores acreditam que os livros texto não são satisfatórios. Diante disto, muitos os abandonam, buscando materiais alternativos ou produzindo seu próprio material.

    A deficiência na formação acadêmica em relação aos conteúdos químicos é outro fator de bastante destaque nas narrativas dos professores. Estes professores aliam as dificuldades em tratar a química no nível Fundamental à pouca habilidade em relação à tríade fenômeno, explicação do fenômeno e linguagem específicos à esta área do conhecimento.

    Os professores possuem estratégias próprias de ação. São guiados pela experiência que lhe permite fazer julgamentos e escolhas. Nesta experiência estão incluídos o uso do livro didático, o contato com cursos de formação de professores, a discussão com seus pares, o dia a dia com seus alunos. O reconhecimento do perfil da escola, direção, comunidade, a disponibilidade de recursos materiais são outros fatores importantes.

    O trabalho dos professores ainda envolve uma grande preocupação com o conhecimento prévio dos estudantes, como forma de guiar uma discussão baseada em seus interesses e vivências.

    Diante do exposto acima, constatamos que as contribuições que os professores de ciências têm para o ensino de química são importantes. Destaca-se o uso de uma diversidade de fontes de informação como uma forma de introduzir o estudante no mundo da mídia e da defesa do consumidor além de trabalhar com a identificação dos componentes de produtos comercializados e utilizados na sua vida diária. Os nomes e as fórmula químicas começam a ser familiarizados pelos estudantes e são base para as discussões sobre substâncias puras e misturas, importante para a estruturação dos conhecimentos químicos. A pesquisa em educação tem destacado a importância de se conhecer e explorar as idéias prévias dos estudantes, prática comum entre o grupo de professores. Tal prática é base na construção de conceitos e desenvolvimento de um perfil conceitual ( Mortimer, 1994 ). Existe ainda uma preocupação muito grande em relação ao envolvimento com conceitos pouco familiares e de pouco domínio. Diante disto, os professores optam por tratá-los superficialmente ou envolvê-los em atividades transversais ou de laboratório, onde a preocupação maior é com o desenvolvimento do interesse do estudante pelas ciências.

    De acordo com o panorama para o ensino de ciências descrito inicialmente, consideramos que as ações dos professores de ciências ao ensinar Química no nível Fundamental são guiadas por crenças de natureza teórica, ética, política, religiosa, econômica, social e educacional que vão além das considerações de conteúdos específicos e metodologias de ensino. As escolhas dos tópicos a serem ensinados, como serão ensinados e as contribuições ao ensino, envolvem uma jurisprudência que, ao constituir o repertório de conhecimentos neste trabalho, poderá ser apreciada e discutida em cursos de formação de professores de ciências, no sentido de se repensar o ensino de Química para o nível Fundamental.
 

Referências


AGUIAR Jr., Orlando, LIMA, Maria Emília C. C. e BRAGA, Selma A. M. A Construção de um Currículo de Ciências para a 5ª a 8ª séries do ensino fundamental: um trabalho de parceria FaE-Centro Pedagógico da UFMG. In: Atas do Encontro Nacional de Pesquisa em Ensino de Ciências, Águas de Lindóia, 1997, p. 357-365.

CARVALHO, ANNA M. P., GIL - PÉREZ, DANIEL (1993): Formação de professores de ciências: tendências e inovações. São Paulo: Ed. Cortez.
CHASSOT, Attico I. (1995). Catalizando Transformações na Educação. Ijuí: Unijuí.

DRIVER, R.; GUESNE, E. y TIBERGHIEN, A .(1989). Ideas científicas en la infancia y la adolescencia. Madrid: Morata.

DUIT,R. e HAUEUSSLER,P. (1994). Learning and Teaching Energy. In: FENSHAM, WHITE & GUNGSTONE - The Content of Science: a constructivist approach to its teaching and learning. London: Falmer Press.

FENSHAM, Peter (1991). Familiar but Different: Some Dilemmas and New Directions in Science Education. In FENSHAM, Peter (ed.) Development and Dillemas in Science Education. Barcombe, UK: The Falmer Press.

FENSHAM, Peter (1994). Começando a Ensinar Química. In: Fensham, Gunstone & White (orgs.) The content of science: a constructivist approach to its teaching and learning. London: Falmer Press. Tradução Luiz Otávio F. Amaral, Depto. Química, UFMG.

FRANSELLA, F.; THOMAS, L. F. (1988). Experimenting with Personal Construct – Theory. London: Rutledge & Kegan Paul.

GARCIA, CARLOS, M. (1987). El Pensamiento del Profesor. Ediciones CEAC, Espanha.

GAUTHIER, C., MARTINEAU, S., DESBIENS., J.-F., MALO, ANNIE E SIMARD, D. (1998):Por uma teoria da pedagogia: Pesquisas contemporâneas sobre o saber docente. Trad. Do francês por Francisco Pereira de Lima. Ijuí: Ed. UNIJUÍ.

KELLY, G. A (1955). The Psychology of Personal Constructs. New York: W. Norton & Co, 1 st Edition.

MALDANER,OTÁVIO ALOISIO (2000): A formação inicial e continuada de professores de química: professor/pesquisador. Ijuí: Ed. UNIJUÍ.

MANCUSO, J. C.; SHAW, M. L. G.; Eds. (1988). Cognition and Personal Construct Technology: Coomputer Access and Analysis. New York: Praeger Press.

MARTINS, Carmen M. PAULA, Helder F. LIMA, Maria Emília, SILVA, Nilma S. AGUIAR Jr. Orlando e BRAGA, Selma M. (1998). Uma Proposta de Reformulação do Currículo de Ciências para o 2º Ciclo do Ensino Fundamental (versão preliminar). Secretaria de Estado de Educação de MG.

MILLAR, Robin (1996) - Towards a science curriculum for public understanding. In: Science School Review, v. 77, n. 280: 7-18.

MORTIMER, EDUARDO F. Estratégias de Ensino para Evolução Conceitual: Da Mudança Conceitual a Evolução de Perfis Conceituais. Anais do VII Encontro Nacional e II Encontro Sudeste de Ensino de Química, Belo Horizonte, 1994, p. 57-91.

OBERG, A . (1984). Construct Theory as a Framework for Understanding Action Research, Paper. Anual Meeting AERA. New Orleans.

OGBORN, Jon (1994). Um currículo de ciências popular. In: JENNISON, B. e OGBORN, J. (eds.) Wonder and delight. Essays in science education en honour of the life and work of Eric Rogers 1902-1990. London, 1994. Tradução Jordelina Wykrota e Mª Hilda Andrade, CECIMIG.

SACRISTÁN, GIMENO (1994). El curriculum: ¿Los contenidos de la enseñanza o un análisis de la práctica? In: SACRISTÁN, Gimeno & GÓMEZ, Pérez. Comprender y transformar la enseñanza. Madrid: Morata, Tercera Edicion.

SACRISTAN, GIMENO (1988). El Curriculum: uma reflexón sobre la práctica. Madrid: Morata.

RepGrid Version 2.0 a Realease January 1991. Centre for Person-Computer Studies, Calgary, Canada.

SHULMAN, L. (1986): Those who understand: Knowledge growth in teaching. Educational Researcher, 15 (2) pp 4 – 14.

SHULMAN, L. (1992c): Toward a pedagogy of cases. In J. Shulman (ed.), Case Methods in Teacher Education. New York.

SHULMAN, L.S. (1987). Knowledge and Teaching. Fondations of the New Reform. Harvard Educational Review, 57 (1), p. 1-22.

VAZ, A . (1996b): Saber esratégico de professores primários: pesquisa crítica em ensino de ciências. Pró-posições. V.7, n.1(19), pp 103 – 112.

VAZ, A . (1996 a): Being challenged – reflections on the contribuition of Paulo Freire`s work to teacher education: the thematic in investigation of orimary teacher`s thinking and practice with regard to the teaching of Science. Tese de doutorado. Centre of Learning and Research in Science Education, Roehampton Institute, Surrey University, Grã Bretanha.

ZABALZA, M., (1994): Diários de aula – contributo para o estudo dos dilemas práticos dos professores. Coleção Ciências da educação. Porto Cortex: Porto Editora.

ZEICHNER, K. (1993): El maetro como profesional reflexivo. Cadernos de Pedagogia. N. 220, pp44 –49.