O QUE PENSAM OS PROFESSORES SOBRE O QUE PENSAM OS ALUNOS.
UMA PESQUISA EM DIFERENTES ESTÁGIOS DE FORMAÇÃO NO CASO DAS CONCEPÇÕES SOBRE A FORMA DA TERRA[1]
 

João Batista Siqueira Harres
jbharres@fates.tche.br

Lígia Bergesh Rocha
rochha@uol.com.br

Tatiane Henz
henz@joinnet.com.br
UNIVATES – Centro Universitário
Caixa Postal 155 - Lajeado – RS – 95.900-000 - Brasil
 
 

Resumo

    Relata-se como um grupo de 103 professores de Ciências e Matemática, envolvidos em processos de formação inicial e continuada, manifestam-se e propõem ações com relação ao conhecimento prévio dos alunos. Se analisa qualitativa e quantitativamente, em função do estágio de formação, as concepções sobre aprendizagem implícitas na consideração do conhecimento prévio dos estudantes sobre a forma da Terra e as propostas didáticas apresentadas para evolução desse conhecimento. Os resultados mostram que o estágio de formação influi no reconhecimento da existência do conhecimento prévio, mas não no nível das estratégias didáticas, caracterizadas majoritariamente por uma "pobreza didática". Aquelas estratégias de mais alto nível só aparecem significativamente quando as concepções sobre aprendizagem correspondentes se aproximam dos pressupostos construtivistas .



Abstract

    The research reports how 103 science and mathematic teachers, during a span of their initial and continuing education, express themselves and suggest actions in relation to the alternative conceptions of their students. Qualitative and quantitative data is done, due to the stage of education, about the implicit learning conception in previous knowledge about the shape of the earth take account and the didactic proposals presented for the evolution of this student’s conceptions. The results show that the stage of teacher education influences the recognition of the existence of a previous knowledge, but does not in the didactic strategies level, generally caracterizd as "didactic poverty". The strategies with a higher level of complexity mostly show up when the learning conceptions are close to the constructivist point of view.
 
 

1 - Introdução

    Da mesma forma que o conhecimento dos alunos, o conhecimento profissional dos professores também está em permanente evolução, por isso consideramos relevante investigar como evolui esse conhecimento em função do estágio de formação. Ao mesmo tempo, como o conhecimento profissional oferecido nos processos formativos não atua sobre uma mente didática "em branco", nos propomos a investigar como esses processos favorecem a superação do conhecimento didático prévio dos professores, geralmente apoiado nas formas "naturais" (García e Porlán, 2000) de considerar o ensino (por transmissão) e a aprendizagem (por recepção passiva e sem reinterpretações).

    Nesse sentido, como parte de uma pesquisa mais ampla que integra e investiga ações ao nível da formação inicial e continuada de professores (Grupo de Pesquisa na Formação de Professores, 2000), estendeu-se uma pesquisa específica sobre o conhecimento didático prévio de um grupo de professores envolvidos em um processo de formação continuada (Krüger e Harres, 2000), para efeitos de comparação, a outros três grupos: um iniciando o mesmo processo de formação continuada e dois outros grupos envolvidos ainda em formação inicial.

    A atividade investigada, adaptada de Hashweh (1996), envolvia um dilema no qual pedia-se aos professores que respondessem a duas perguntas relacionadas com as concepções dos alunos sobre a forma da Terra. No contexto do conhecimento prévio, as concepções sobre a forma da Terra têm recebido bastante atenção (Nussbaum, 1979; Cubero, 1989; Vosniadou e Brewer, 1992; Nardi e Carvalho, 1996 e Harres,1999) e a conclusão geral, tal com em outros âmbitos dessa linha de pesquisa, é de que muitos estudantes, mesmo depois do período em que esta idéia é abordada na escola, ainda apresentam sérias dificuldades de integração da concepção esférica da Terra com a experiência cotidiana marcadamente plana.

    Dessa forma, aquilo que à primeira vista parece um simples erro revela-se uma questão didática bem mais complexa. Nesta complexidade, influi a própria concepção docente de erro. Segundo Astolfi (1999), a forma como o erro é considerado na escola é orientada implicitamente pela concepção de aprendizagem que determina, por sua vez, a postura do professor e, em certa medida, o grau de alcance pelo estudante de uma aprendizagem significativa.

    Assim, analisa-se como as concepções de aprendizagem, implícitas na consideração do conhecimento prévio, relacionam-se com o potencial das estratégias didáticas propostas para a evolução conceitual dos estudantes e como o grau de evolução deste conhecimento didático está relacionado com o grau de envolvimento dos professores em estudos anteriores sobre aprendizagem.
 

2 - Metodologia

    O dilema foi submetido a 103 professores gaúchos de Ciências e Matemática envolvidos em processos de formação inicial ou continuada e subdivididos em quatro grupos segundo o estágio de sua formação e segundo o nível de estudo anterior sobre aprendizagem. O Quadro 1, abaixo, ilustra a distribuição da amostra de professores.

Quadro 1 - Número de professores por grupo

Grupo
Estágio da formação
Estudo anterior sobre a aprendizagem
Número de professores
A
Inicial
Nenhum
23
B
Inicial
Pequeno
34
C
Continuada
Médio
20
D
Continuada
Avançado
26

    O grupo A era formado por futuros professores na faixa média de 20 anos de idade, sem experiência profissional na área, situados no primeiro ano do Curso de Licenciatura em Ciências Exatas[2] na UNIVATES e matriculados na primeira disciplina que estuda a ação do professor. Esta disciplina, denominada Laboratório de Ensino, está estruturada em torno a Problemas Práticos Profissionais (Harres, 2000) e é desenvolvida segundo uma perspectiva construtivista da aprendizagem profissional. Nela, baseando-se em (Porlán, 1998), parte-se da explicitação e contraste entre as concepções iniciais dos futuros professores sobre "como é" e sobre "como deveria ser" o ensino de Ciências e Matemática.

    O grupo B também era formado por futuros professores e todos concluintes da disciplina descrita acima. Estes, portanto, já haviam vivido a experiência educativa inédita na qual parte-se do seu conhecimento (nesse caso, didático) prévio para posterior evolução. Tal como o grupo A, estes futuros professores não haviam realizado ainda nenhum estudo específico sobre as idéias prévias.

    O grupo C era formado por professores em formação continuada iniciando um curso de especialização (lato sensu) em ensino de Ciências e Matemática. Este curso, com um total de 360 horas, está estruturado basicamente em etapas analítico-reflexivas sobre a prática docente (Krüger, 2001). Nesta estruturação, parte-se do conhecimento profissional prévio para explicitar o modelo didático pessoal de partida e, na segunda etapa, concluindo a primeira terça parte do curso, discute-se e contrasta-se esse modelo com estudos genéricos sobre aprendizagem e epistemologia.

    No momento da coleta de dados, isto é, da proposição do dilema relatado e analisado a seguir, este grupo havia vivenciado apenas a primeira etapa desse processo. Isto é, suas concepções sobre ensino e aprendizagem haviam sido explicitadas, contrastadas entre os colegas, mas não comparadas com uma perspectiva desejável dessas concepções. Embora já tivesse havido alguma evolução dessas concepções, os modelos didáticos próprios ainda não haviam sido testados na prática, isto é, em sala de aula.

    O grupo D, cujos dados já foram relatados em outro trabalho (Harres e Krüger, 2000), era formado por professores do mesmo curso descrito acima mas da edição do ano anterior. No momento da pesquisa, esse grupo situava-se em uma etapa curricular mais adiantada que o grupo C. Além da fase inicial de caracterização e evolução inicial do modelo didático pessoal, este grupo já havia se envolvido em discussões sobre a construção do conhecimento tanto do ponto de vista interno ao sujeito, nas perspectivas piagetiana e vygotskiana, quanto do ponto de vista externo, nas perspectivas histórica e filosófica. Porém, estes estudos não tiveram relação direta com a questão do conhecimento prévio e da sua consideração em sala de aula, temas das etapas posteriores do curso.

    Durante as etapas iniciais desse curso, confirmaram-se para ambos os grupos os mesmos obstáculos centrais à evolução do conhecimento profissional apontados por Porlán e García (2000): um absolutismo epistemológico quanto aos conteúdos e uma visão simplista de como os alunos constróem conhecimento (Krüger e Harrers, 1999).
 

3 - Dilema

    A situação didática (adaptada de Hashweh, 1996) apresentada aos sujeitos foi:

"O professor, em uma aula de ciências faz a seguinte pergunta:

- Se você andar sempre em linha reta sobre a superfície da Terra, o que acontece?

"Um aluno responde:

- Depois de andar um certo tempo chegaria no fim da superfície terrestre e, continuando, cairia para baixo no espaço vazio.

    Após a leitura do dilema, aos professores foram feitas as seguintes perguntas:

(a) O que você acha da resposta deste aluno?

(b) Que estratégias didáticas você proporia para esta situação?

    As respostas às duas questões foram submetidas a um processo de integração entre metodologias qualitativas e quantitativas. A análise de conteúdo (Moraes, 1995) foi direcionada para a estruturação de escalas evolutivas das categorias, construídas em níveis de complexidade crescente (García, 1995), tanto das concepções sobre aprendizagem, implícitas nas respostas à primeira pergunta (a), como das estratégias didáticas propostas para a evolução conceitual (b).

    Além disso, visando superar na pesquisa em educação o dilema entre posições epistemológicas radicalmente empiristas ou radicalmente aprioristas, a interpretação foi sendo, como sugere Porlán (1989), direcionada para as hipóteses de partida e, estas, por sua vez, contextualizadas de acordo com os dados obtidos. Portanto, a categorização dos indivíduos apresentada a seguir deve ser vista de forma relativa pois algumas afirmativas dos professores envolvem, ao mesmo tempo, mais de um nível de concepção de aprendizagem. Para identificar cada indivíduo, da forma mais adequada possível, com apenas um dos níveis considerados, a definição de qual nível mais se enquadrava determinada afirmação ocorreu algumas vezes pela análise simultânea da resposta da outra pergunta ou, em outras vezes, pela parte da manifestação mais identificada com as hipóteses de trabalho.
 

4 - Concepções sobre aprendizagem

    Tal como Hashweh (1996), construiu-se, na primeira pergunta, duas grandes categorias sobre aprendizagem: concepção construtivista e concepção empirista. Em seguida, subdividiu-se cada uma dessas categorias em níveis internos: três na categoria empirista e dois na construtivista. Os cinco níveis definidos estão estruturados segundo uma escala de complexidade crescente que vai desde a concepção mais inadequada até a concepção mais próxima do conhecimento profissional desejável (Porlán e Rivero, 1998).

    Na categoria concepção construtivista da aprendizagem incluiu-se aqueles professores que enfatizam o papel ativo do aprendiz na construção de seu entendimento do mundo. Parecem estar conscientes de que os alunos desenvolvem idéias distintas por si mesmos que, na maioria dos casos, são inconsistentes com o conhecimento científico aceito. Esses professores consideram o conhecimento prévio dos estudantes desde o início da proposta didática.

    De outro lado, na categoria concepção empirista da aprendizagem, incluiu-se os professores que enfatizam o papel do reforço externo na aprendizagem. Esses não concebem que os estudantes constróem e desenvolvem, por si mesmos, idéias sobre os fenômenos. Por isso, não estão conscientes da existência das concepções alternativas e, por isso, não as consideram didaticamente. O conhecimento vem de fora e atua sobre uma mente vazia. Enfim, defende-se, implicitamente, uma epistemologia indutivista ingênua já superada (Porlán e Harres, 1999).

    O Quadro 2, abaixo, apresenta o indicador de cada um dos níveis de concepção de aprendizagem, segundo a escala de complexidade crescente construída.

Quadro 2 - Níveis de complexidade das concepções de aprendizagem

CONCEPÇÃO DE APRENDIZAGEM
NÍVEL
  1. INDICADOR
CEA

(não existe conhecimento 

prévio)

1
Resposta inadequada
2
Erro como falha individual
3
Falta de informação ou ensino ineficiente
CCA

(existe conhecimento prévio)

4
Erro a eliminar
5
Relativa aceitabilidade,

Resultado de interação com o meio

    Adiante, discute-se cada um desses níveis exemplificando com algumas manifestações dos professores. Nesses exemplos, predominam as manifestações do grupo D pois acredita-se que estas podem demarcar o "núcleo duro" do conhecimento profissional (García e Porlán, 2000).
 

4.1 – Níveis da Concepção Empirista da Aprendizagem

    Na primeira categoria estão 50% da amostra total de professores. No Nível 1: resposta Inadequada - incluiu-se aqueles sujeitos que ou nada afirmam sobre a idéia do aluno ou parecem não ter entendido que a questão pedia um posicionamento didático. Revelando um "egocentrismo" docente (ensino centrado exclusivamente no professor) tem-se por exemplo: "eu acho que todo caminhar deveria ter uma finalidade (...) se eu for a algum lugar é porque tenho um objetivo a ser alcançado"(B25); "uma resposta que poderá ser relacionada ao conteúdo de física"(C6); "a Terra é redonda e a trajetória sendo reta, não chegaria ao fim, andaria em círculos por causa da força da Terra sobre os corpos"(D11).

    No segundo nível - Nível 2: Falha Individual - o aluno já parece "existir". Porém, ele é visto como um ser deficiente pois "não percebe que está errado"(D1). Para estes professores, a deficiência da aprendizagem estaria na observação incorreta da realidade: "este aluno demonstra que tem uma cabeça muito incoerente: com muita imaginação e pouca explicação"(A16); "acho que o aluno está com uma visão meio confusa sobre a forma da Terra"(B28); "este aluno não se dá conta que está na superfície esférica da Terra" (D10).

    Por fim, como nível mais avançado na concepção empirista da aprendizagem – Nível 3: Falta de conhecimento ou Ensino Deficiente, aparecem aqueles que, ao menos, crêem na capacidade dos alunos de, pelo ensino, aprender. Aqui, a inadequação das respostas refere-se ou à falta de informação por parte dos estudantes; ou por não haverem "visto" este tema ainda na escola; ou, ainda, pela má compreensão decorrente de um ensino ineficiente: "o aluno não tem conhecimentos de que a Terra é um planeta redondo"(B27); "ele ainda não tinha conhecimentos suficientes sobre o assunto"(C17); "ele não está preparado para dar outro tipo de resposta"(D7); "esta resposta (...) demonstra falta de conhecimento"(D25).
 

4.2 – Níveis da concepção construtivista da aprendizagem

    Nesta categoria, constituída pela metade restante dos professores, o critério geral é o reconhecimento de que a manifestação do estudante pode estar relacionada à existência de uma idéia prévia sobre a forma da Terra. Tal reconhecimento, segundo García (1999), caracteriza claramente uma perspectiva construtivista do ensino, porém a hierarquia epistemológica (Harrres, 1999) concedida ao conhecimento do aluno permite ainda diferenciar esta categoria em dois níveis.

    No primeiro – Nível 4: Erro a Eliminar - aparecem aqueles que, embora vêem na manifestação do estudante o resultado de um processo de construção coerente com o estágio de desenvolvimento cognitivo em que se encontra, o consideram inferior epistemologicamente ao conhecimento científico estabelecido. Para estes, o conhecimento prévio é um erro a ser eliminado. Assim, nesse nível aparecem respostas como: "este aluno não tem a idéia certa (...) achando que ela é plana como uma moeda"(A14); "é difícil para os alunos acreditarem que a Terra é redonda (...) ela é tão imensa que dá a impressão de ser plana"(B14); "acho que ele pensa que a Terra acaba onde acaba sua visão concreta dela: o horizonte"(C5); "por não entender bem, o aluno respondeu de maneira lógica, no alcance dos seus olhos"(D22).

    No segundo nível dessa categoria - Nível 5: Aceitabilidade Relativa – verifica-se claros indícios do reconhecimento da existência implícita, na resposta do estudante, da idéia de Terra plana. Essas respostas diferenciam-se do nível anterior pelo acompanhamento de manifestações menos absolutistas (hierarquicamente superior) do conhecimento científico. Ao mesmo tempo, verifica-se uma maior aceitabilidade e compreensão do conhecimento prévio, o qual é visto como o resultado de um processo de interação com o meio. Tudo isso, parece indicar a presença de uma concepção de aprendizagem mais complexa, de perspectiva construtivista e acompanhada, ao menos implicitamente, de uma postura didática também construtivista. Alguns destaques desse nível são: "(...) a resposta é compatível (...) o aluno não está completamente errado (pois) não possui outra noção da Terra a não ser vê-la no plano"(A15); "(a resposta) é real, concreta e vem sendo formada no decorrer da vida"(A20); "é uma resposta coerente com seu pensamento"(C7); "resposta óbvia do ponto de vista da criança"(D5); "é aceitável (...) é uma visão do cotidiano"(D27).

    A fim de investigar a existência de relação entre as duas variáveis (grupo de professores e concepções de aprendizagem), construi-se uma tabela de contingência (Quadro3). As células desse quadro contém a freqüência relativa (porcentagem) de professores aproximadas para múltiplos de 5% em cada grupo e por nível de concepção de aprendizagem.

Quadro 3 - Porcentagem de professores por concepção de aprendizagem

CONCEPÇÃO DE APRENDIZAGEM
  • NÍVEL
  • PORCENTAGEM POR GRUPO
    A
    B
    C
    D
    TOTAL
    CEA

    (não há conhecimento 

    prévio)

    1
    0
    5
    5
    10
    5
    2
    30
    35
    25
    5
    25
    3
    35
    10
    10
    15
    20
    CCA

    (há conhecimento prévio)

    4
    25
    50
    60
    35
    40
    5
    10
    0
    0
    35
    10

        Além disso, calculou-se também, com auxílio do pacote estatístico "SPSS for Windows - Release 10.0" o Coeficiente de Contingência, bem como seu nível de significância estatística. O coeficiente encontrado foi de 0,51 e com uma significância estatística inferior 1% (p<0,01), indicando que as variáveis estão relacionadas.

        Os dados do Quadro 3 e as análises estatísticas realizadas indicam que o nível das concepções de aprendizagem identificadas diferem em função do grupo de origem dos professores. A relação com o estudo anterior sobre aprendizagem pode ser visualizada procedendo-se uma Análise de Correspondência (Escotier e Pagès, 1990). Tal procedimento mapeia, em um espaço multidimensional (usualmente com duas dimensões), as similaridades entre as categorias das variáveis nominais, permitindo uma compreensão melhor da relação entre elas. Quanto menor ou maior é a distância entre duas categorias, tanto mais ou menos relacionadas elas estão. A Figura 1 apresenta o mapeamento bidimensional obtido a partir do Quadro 3 com o programa SPSS for Windows (Release 10.0).

    Figura 1 - Mapeamento bidimensional das concepções de aprendizagem por grupo

        Analisando a Figura 1, verifica-se que o grupo D apresentou a maior proximidade com o nível mais avançado de concepção de aprendizagem - Nível 5: Concepção aceitável. Isto pode ser conseqüência das reflexões anteriores sobre os dois obstáculos à evolução do conhecimento profissional apontados por Porlán e Rivero (1998), quais sejam, uma concepção absolutista (hierarquicamente superior) do conhecimento científico e uma concepção aditiva da aprendizagem. Durante as atividades do curso de especialização, esses obstáculos já haviam sido identificados, explicitados e contrastados com as contribuições recentes da pesquisa nas didáticas específicas, sendo esperado, portanto, alguma evolução no seu conhecimento prévio sobre a aprendizagem.

        O grupo C, por sua vez, aparece mais relacionado com a concepção de aprendizagem do Nível 4:Erro a eliminar. Nesse grupo, nenhum professor foi identificado no nível mais avançado (Nível 5: Aceitabilidade Relativa), cuja explicação pode ser o fato de as reflexões acima citadas não haverem ainda acontecido para o Grupo C.

        Da mesma forma que o anterior, mas constituído por futuros professores, o grupo B também aparece mais associado com a concepção sobre o conhecimento prévio como erro a eliminar (Nível 4). Entretanto, mesmo que em estágios distintos de formação profissional, ambos os grupos haviam vivenciado uma situação de sala de aula na qual as suas próprias idéias (no caso sobre "o que é ensinar", "o que é aprender", "qual o meu modelo didático", etc.) foram explicitadas e contrastadas com as dos companheiros. A pequena diferença na "distância" desses grupos na Figura 1 em relação à concepção do Nível 2: Erro individual, talvez seja explicada pelo estágio de formação de cada um.

        Quanto ao grupo A, o mais incipiente em estudos sobre aprendizagem, verificou-se uma localização muito próxima à consideração do conhecimento prévio como falha do ensino (Nível 3). Isso, além de caracterizar o conhecimento didático prévio atual, pode estar relacionado a não haverem vivido até o momento situações de aprendizagem significativa.
     

    5 – Estratégias para evolução conceitual

        As propostas para evolução conceitual foram analisadas segundo a escala construída por Hashweh (1996). Essa escala classifica as estratégias de ensino segundo o seu potencial efetivo para "induzir" uma evolução conceitual. Esse potencial cresce a medida em que a estratégia satisfaça determinados pressupostos sobre a aprendizagem aceitos no âmbito dos estudos sobre a evolução e mudança conceitual (Posner e outros, 1982). O Quadro 4, abaixo, resume a caracterização de Hasweh (1996), apresentando o aspecto indicador de cada nível.

    Quadro 4 – Potencial das estratégias didáticas para a evolução conceitual (Hashweh, 1996)

    NÍVEIS DE POTENCIAL
  • AÇÃO DIDÁTICA INDICADORA
  • Nível 1
    Explica e/ou Repete
    Nível 2
    Convence
    Nível 3
    Refuta
    Nível 4
    Desenvolve
    Nível 5
    Reestrutura

        Segundo Hashweh (1996), no nível potencial mais baixo para favorecer uma evolução conceitual - Nível 1: Explica/Repete - estariam as estratégias que envolvem apenas a explicação do conhecimento científico. Neste nível, pressupõe-se que basta enfatizar o conhecimento científico para que, assim, os estudantes descartem suas concepções alternativas, as quais, na verdade, são negligenciadas. Em caso de dificuldade do aluno (incompreensão), o professor repete a explicação tantas vezes quantas forem necessárias para "induzir" a evolução conceitual (da qual o professor, a rigor, não é consciente). Assim, incluímos no Nível 1 estratégias como: "ofereceria uma explicação mais lógica e científica"(A22); "uma das estratégias é mostrar para o aluno que moramos numa superfície terrestre"(B26); "daria ao aluno a idéia de que a Terra é redonda"(C10); "mostraria o globo para ele ver onde nos localizamos"(D15); ou, ainda, "o melhor seria trabalhar com material concreto, como o globo terrestre, vídeo"(D25).

        O segundo nível - Nível 2: Convence - englobaria estratégias de apresentação de exemplos, conseqüências ou "experiências de pensamento" que "provariam" a veracidade do conhecimento científico. Aqui aparecem estratégias como: "explicaria que sua resposta estava incorreta e proporia que observasse os acontecimentos ao seu redor"(B16); "trabalharia com o globo terrestre e provaria que na prática caminharia sempre em linha reta"(C14); "colocando um globo terrestre a frente dos alunos para mostrar que a Terra é redonda"(D5); "procuraria exemplos, como o de um navio andando em alto mar "(D11); "eu proporia a observação do globo terrestre, comparando-o com o mapa-mundi, mostraria fotos espaciais da Terra para que a criança entendesse que a Terra é redonda"(D17).

        O nível seguinte - Nível 3: Refuta - é semelhante ao anterior mas avança um pouco na medida em que os exemplos, conseqüências ou "experiências de pensamento" são oferecidos não simplesmente para confirmar o conhecimento "verdadeiro" mas sim para refutar ou contradizer as concepções alternativas dos estudantes. Isto é, a partir desse nível o professor parece reconhecer a existência de um conhecimento anterior e, portanto, o conhecimento científico não atuaria sobre uma mente em branco. São exemplos deste nível: "questionaria sua resposta e em seguida o grupo para verificar outras idéias (..) usaria material concreto para explicar-lhes de que forma se apresenta a superfície da Terra"(B31); "questionar, levar o aluno a pesquisar e descobrir se a sua resposta está de acordo ou não com a pergunta feita"(C17); "pediria desenhassem a Terra com as pessoas morando nela (...) mostraria no globo como a Terra é"(D4); "no globo (...) o provocaria a buscar a solução para o problema até que ele, com o dedo, fizesse o percurso sugerido"(D10).

        No Nível 4: Desenvolve as estratégias didáticas propõem que as idéias dos alunos sejam desenvolvidas até que estejam claras e suficientemente explícitas para, só então, promover-se um confronto com as concepções científicas. Como exemplos desse nível aparecem afirmações como: "procuraria primeiramente descobrir de onde surgiu esta informação (...) mostraria coisas concretas como o contato do aluno com o mundo"(A20); "proporia uma busca de conhecimentos através de experiências, informações, trabalhos em grupos onde o mesmo aluno teria que buscar a resposta da sua resposta" (B4); "realizaria atividades que os desafiassem, (...) o aluno passaria a construir o seu conhecimento, onde o professor seria o mediador (...), analisando as concepções de cada um"(D15); "o professor deveria explorar ao máximo o conhecimento do aluno"(D24).

        Por fim, no mais alto grau de potencialidade para uma evolução conceitual, estaria o Nível 5: Reestrutura. Aqui, as estratégias de ensino, variadas na sua forma, envolveriam o contraste entre as concepções científicas e as concepções alternativas para promover uma compreensão da adequação e dos limites de cada uma, na tentativa, como escreve Hashweh (1996, p.52), "de superar o conflito entre elas". Nenhum sujeito foi identificado neste nível.

        O Quadro 5, mostrado a seguir, sintetiza os resultados da categorização das estratégias propostas e foi construído separando o grupo de origem dos professores. As células desse quadro contém a freqüência relativa (aproximada para múltiplos de 5%) de sujeitos que incidiram nas categorias respectivas das duas variáveis. Os dados indicam que o nível de potencial das estratégias didáticas analisadas não depende do estágio de formação dos professores. Calculando-se o Coeficente de Contingência, o valor encontrado foi de 0,35, sem significância estatística (p>0,10).

    Quadro 5 - Nível de potencial das estratégias didáticas por grupo de professores

    POTENCIAL DAS ESTRATÉGIAS DIDÁTICAS
    PORCENTAGEM POR GRUPO
     
    A
    B
    C
    D
    TOTAL
    Nível 1 – Explica/Repete
    10
    10
    15
    10
    10
    Nível 2 – Convence
    20
    45
    35
    40
    35
    Nível 3 – Refuta
    60
    40
    45
    25
    40
    Nível 4 – Desenvolve
    10
    5
    5
    25
    10
    Nível 5 – Reestrutura
    0
    0
    0
    0
    0

        De fato, comparando o Quadro 5 com o Quadro 3, verifica-se que o número de professores situados nos níveis mais avançados das escalas é bem diferente. Enquanto a metade dos professores apresenta concepções sobre aprendizagem coerentes com o reconhecimento do conhecimento prévio do estudante (Níveis 4 e 5 do Quadro 3), o mesmo não ocorreu quanto às propostas didáticas. Nesta escala: a maioria situa-se nos Níveis 2 e 3, a proporção de estratégias do Nível 4 é apenas de 25% no grupo D e 10% no grupo total além de que nenhuma proposta foi identificada no Nível 5.
     

    6 - Relação entre as concepções sobre aprendizagem e o potencial das estratégias

        Uma vez constatado que o conhecimento prévio dos professores não diferia muito quanto às estratégias didáticas em função dos estudos anteriores sobre aprendizagem, constituiu-se um só grupo para uma análise mais ampla dessa relação. Agora, os professores foram separados em função das suas concepções sobre aprendizagem.

        Dessa forma, embora os professores sejam oriundos de estágios de formação diferentes, verificou-se a existência de uma relação entre a concepção de aprendizagem e o tipo de estratégia didática. O cálculo do índice de correlação ordinal de Spearmann entre esas escalas revelou um valor de 0,48, com uma significância estatística inferior a 1% (p<0,01).

        A Figura 2, adiante, ilustra essa relação através de um gráfico da distribuição dos professores por estratégia didática em cada nível de concepção de aprendizagem. Pelo gráfico, percebe-se a predominância, nos níveis iniciais da concepção de aprendizagem, de posturas didáticas de explicação e de convencimento, ambas, como viu-se, com pequeno potencial para favorecer a evolução conceitual. Ao contrário, nos níveis mais avançados de aprendizagem, predominam as estratégias de refutação e, de modo crescente, começam a aparecer estratégias de explicitação inicial e de desenvolvimento das idéias dos alunos.

    Figura 2 - Distribuição das propostas didáticas por concepção de aprendizagem

        Tudo isso evidencia a relação entre os diferentes níveis de formação, as concepções sobre a aprendizagem e a proposição de estratégias didáticas para a evolução conceitual. Porém, é diferente, em cada grupo, a relação entre esses aspectos do conhecimento profissional. Uma parcela significativa dos professores que apresenta uma concepção de aprendizagem reconhecendo a existência do conhecimento prévio dos alunos propõe, ao mesmo tempo, estratégias para a evolução conceitual que se situam nos níveis mais baixos da escala construída, caracterizando uma evidente desconsideração didática do conhecimento prévio.

        Esse descompasso na evolução entre a concepção de aprendizagem e o nível das estratégias de evolução conceitual pode ter explicações diferentes conforme o estágio da formação. Entre os futuros professores (grupos A e B) talvez ainda seja pequena a capacidade de propor alternativas didáticas adequadas devido a sua experiência escolar eminentemente tradicional e pelo fato do problema em questão, embora reconhecido e vivenciado pessoalmente, ser, como demonstrou Nussbaum (1985) ser de natureza complexa.

        Nos professores em serviço (grupos C e D), enquanto as concepções de aprendizagem tiveram um tratamento didático acentuado dentro do programa de formação permanente desenvolvido (especialmente para o grupo D), o mesmo não havia ainda ocorrido com a proposição, análise e evolução de planejamentos didáticos coerentes com estas concepções, etapa posterior do curso. Em outras palavras, os professores estavam manifestando, quando propuseram estratégias para a evolução conceitual, o seu conhecimento profissional prévio. Como já identificado em várias pesquisas, este conhecimento, de modo majoritário, está associado à forma tradicional de ensinar (Porlán, 1993).
     

    7 - Conclusões e implicações para a formação de professores

        De modo geral, os resultados apresentados dão suporte à hipótese de que o nível de complexidade da estratégia de evolução conceitual aumenta à medida que a concepção de aprendizagem dos professores se aproxima de uma perspectiva construtivista. Nossos resultados são análogos aos de Hashweh (1996) que investigou como uma concepção construtivista sobre a natureza do conhecimento científico relaciona-se com o potencial das estratégias didáticas. Em nosso caso, encontramos esta mesma influência do ponto de vista da aprendizagem, isto é, professores com uma concepção construtivista da aprendizagem tendem a usar (ou a defender o uso de) estratégias de evolução conceitual potencialmente mais efetivas.

        Além disso, é possível afirmar que a estratégia de estabelecer uma escala evolutiva das concepções de aprendizagem e das estratégias para evolução conceitual mostrou-se frutífera quanto à capacidade de caracterizar o estágio de evolução do conhecimento profissional dos professores. Esse resultado é relevante, ele evidencia a necessidade de superação de posturas absolutistas no âmbito da investigação do conhecimento profissional e na estruturação das atividades de formação de professores, evitando, assim, a classificação dos professores em "bons" e "ruins" ou em "tradicionais" e "construtivistas" ou, ainda, naqueles que "valem" e naqueles que "não valem".

        Com isso, pode-se partir dos diferentes patamares nos quais se encontram as concepções dos professores na sua ação profissional e planejar atividades formativas mais coerentes com uma perspectiva evolutiva do conhecimento profissional. Dada a natureza prática da profissão docente (Zeichner, 2000), tais atividades devem estar orientadas por uma teoria do conhecimento profissional que estabeleça uma hipótese de progressão (Porlán e Rivero, 1998) sobre como esse conhecimento pode evoluir em direção a modelos didáticos pessoais mais potentes para resolver os problemas da sala de aula.
     

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    [1] Trabalho parcialmente financiado pela FAPERGS.
    [2] Curso de licenciatura criado em março de 1999 e que habilita integralmente para o Ensino Médio nas disciplinas de Física, Química e Matemática.