O DISCURSO DE ALUNOS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA EM QUÍMICA: ANÁLISE DE RELATÓRIOS DE PESQUISA[1]

Salete Linhares Queiroz[2]
linhares@unicamp.br

Maria José P. M. de Almeida[3]
mjpma@unicamp.br


Resumo


    Neste artigo são analisados discursos produzidos por alunos de iniciação científica em química nos seus relatórios de pesquisa. Estes relatórios foram analisados com base no esquema de classificação dos tipos de enunciados de discursos científicos elaborado por Latour e Woolgar. Os resultados desta pesquisa são discutidos em termos das possibilidades de se avaliar a apropriação do discurso científico pelos estudantes com base neste instrumento.

Abstract

    In this paper the discourse that undergraduate chemistry students used in their research reports is analyzed. The reports were analyzed based on the scheme of classification of types of statements of scientific discourse elaborated by Latour e Woolgar. The results were discussed in terms of the possibility of evaluating the appropriation by the students of the scientific discourse based on this tool.
 

Introdução

    Após dez anos desenvolvendo projetos científicos na área de química em uma universidade federal e em uma universidade estadual no estado de São Paulo, assim como em uma universidade privada na Austrália, a principal autora deste estudo trabalhou na orientação e acompanhamento de vários alunos de iniciação científica. O convívio amiúde com os mesmos suscitou questionamentos sobre a forma como a química é aprendida por estes estudantes e como eles explicitam essa aprendizagem, incluindo a apropriação do discurso científico.

    É fato que uma das questões aparentemente mais complexas para os estudantes é o uso adequado da linguagem científica na redação de seus relatórios. Em grande parte provavelmente essa dificuldade se deve à maneira fragmentada como conseguem se apropriar dos fenômenos e conceitos em estudo. Mas essa questão merece investigação, pois devem também interferir dificuldades relativas ao próprio funcionamento das relações entre oralidade e escrita.

    O aluno de iniciação em química convive diariamente com inscrições presentes em cadernos de laboratório, cópias de artigos publicados em revistas, preprints e em gráficos que são extraídos de computadores via de regra atrelados a equipamentos que executam funções específicas. Sendo o laboratório um local onde textos são constantemente produzidos, é pouco provável que o aluno de iniciação conclua o seu estágio sem que dele solicite-se também a produção de um texto versando sobre o trabalho que desenvolveu enquanto membro daquele laboratório. Esse trabalho costuma ser pedido pelo orientador sob a forma de um relatório, que é discutido no grupo de pesquisa e enviado à fonte de financiamento, no caso de bolsistas. Dessa forma, julgamos que a análise desses relatórios era um primeiro passo para a compreensão das características e dificuldades do aluno de iniciação ao redigir um texto nos moldes aceitos pela comunidade científica. Assim, no estudo aqui apresentado, as autoras analisam discursos presentes em relatórios de pesquisa, tendo em vista essa compreensão.

    Na tentativa de uma caracterização inicial do discurso científico, foi realizada uma pesquisa bibliográfica que nos conduziu aos seguintes trabalhos que enfocam este discurso : alguns historiadores da ciência mostraram interesse na forma como os cientistas escreveram seus textos, podendo-se citar como exemplo os estudos de Koyré (1968) sobre o trabalho de Newton, de Grmek (1973) sobre Claude Bernard e de Feyerabend (1975) sobre Galileo. Análises de discurso (Gilbert e Mulkay, 1984; Woolgar, 1976,1980, Latour e Fabbri, 1977; Latour e Woolgar, 1997; Latour, 2000) sobre o tema também foram apresentadas. Alguns lingüistas estudaram a estrutura dos textos científicos (Gopnik, 1972; Loffelet-Laurian, 1980); referências a aspectos visuais da literatura científica também foram feitas (Goody, 1980; Ong, 1982; Jacobi, 1982). O estilo e a retórica presente em tais discursos foram investigados por Granger (1974) e Gustfield (1976), respectivamente. Possenti (1997) apresenta um paralelo entre linguagem científica e linguagem comum.

    Dada a característica dos autores Bruno Latour e Steve Woolgar (1997) de investigarem a "vida" de laboratório, consideramos a pertinência dos relatórios dos alunos serem analisados tomando como base as observações e interpretações destes sociólogos da ciência, presentes no livros A Vida de Laboratório: A Produção dos Fatos Científicos.


O esquema de classificação dos enunciados de discursos científicos

    Conforme mencionamos anteriormente, as observações e interpretações de Bruno Latour e Steve Woolgar (1997) sobre a produção e análise do discurso científico foram úteis para analisar os relatórios que tínhamos em mãos dos alunos de iniciação científica em química. Desta forma, nos parece imprescindível que uma síntese do que foi apresentado por estes autores no livros A Vida de Laboratório: A Produção dos Fatos Científicos seja aqui colocada. Uma síntese bastante completa desse livro pode ser encontrada no trabalho de Vianna (1998).

    No livro A Vida de Laboratório: A Produção dos Fatos Científicos, Bruno Latour e Steve Woolgar relatam observações por eles colhidas sobre o cotidiano de profissionais envolvidos no dia-a-dia do laboratório do professor Roger Guillemim, Prêmio Nobel de Medicina em 1978, no Instituto Salk de San Diego, Califórnia, EUA. Busca-se desta forma apresentar ao leitor o modo como os cientistas trabalham, ou seja, os degraus por eles galgados até a apresentação dos fatos científicos gerados neste meio. Em um trabalho criterioso, que apresenta diálogos entre os membros do laboratório e contatos destes com integrantes de outros laboratórios, seja através da troca de cartas, leitura de artigos e projetos de pares, ou o simples pronunciamento sobre o aceite ou a recusa de convites para conferências, Latour e Woolgar atingem o seu objetivo de uma forma sem precedentes.

    O relato dos autores deixa evidente que uma descoberta científica não é fruto do trabalho de uma só criatura de mente brilhante, e sim do trabalho de todos, desde o técnico que desempenha seu papel rotineiro com exatidão até o pesquisador que elabora um projeto de pesquisa, acompanha o seu desenvolvimento através da análise de resultados obtidos por estudantes de graduação e pós-graduação, divulga estes resultados para a comunidade científica e ainda angaria verbas necessárias para o andamento da pesquisa junto a agências de fomento.

    A dinâmica do laboratório, no que diz respeito às batalhas intelectuais que aí tomam lugar (por batalhas intelectuais entenda-se o trabalho necessário para convencer a um parceiro de que a sua interpretação de um fato é equivocada) éapresentada, e os afetos, desafetos e credibilidade daí decorrentes são também mostrados. Observando a "vida de laboratório" e considerando todos os aspectos acima mencionados os autores conseguem nos colocar diante de dois processos: a ciência já feita e a ciência sendo feita.

    De particular interesse para o desenvolvimento do nosso trabalho são as colocações de Latour e Woolgar sobre a função do laboratório como um local de inscrição literária, onde a produção de um artigo constitui-se no ápice de um longo processo que envolve todos os membros da hierarquia do laboratório. Tal constatação intriga e surpreende os autores que expressam estes sentimentos em textos ricos em pontos de interrogação :

"O fato de que os cientistas leiam os artigos publicados não surpreende nosso observador. Ele espanta-se mais, em contrapartida, ao constatar que uma grande quantidade de literatura emana do laboratório. Através de que mediação chega-se - a partir desses aparelhos caros, desses animais, desses produtos químicos e das atividades que se desenvolvem no laboratório – a produzir um documento escrito? E por que esses documentos têm tanto valor aos olhos da equipe?" (Latour e Woolgar, 1997, p. 40).

"Várias incursões na parte das bancadas convencem nosso observador de que aqueles que aí trabalham escrevem de forma compulsiva e sobretudo maníaca...... Quando passa do laboratório para o espaço do escritório, o observador se vê mergulhado em um universo no qual a escrita é ainda mais impregnante. Os escritórios estão cobertos de fotocópias de artigos. Algumas palavras estão sublinhadas, as margens estão cheias de pontos de exclamação. Os rascunhos de artigos misturam-se aos esquemas rabiscados apressadamente em pedaços de papel já usado: a carta de um colega, as listagens provenientes da seção ao lado. Página cortadas de um artigo são coladas em outros, excertos de artigos em preparação passam de mão em mão, as versões mais acabadascirculam de mesa em mesa. Os textos são constantemente modificados, novamente datilografados, corrigidos mais uma vez e, segundo o caso, adaptados ao formato desta ou daquela revista." (Latour e Woolgar, 1997, p. 41- 42)

"Desse modo, nosso observador antropólogo vê-se confrontado com uma estranha tribo que passa a maior parte do tempo codificando, marcando, lendo e escrevendo. Qual é pois o significado das atividades aparentemente não relacionadas com a marcação, a escrita, a codificação e a revisão?" (Latour e Woolgar, 1997, p. 42).
 

    Respostas às questões acima colocadas foram meticulosamente buscadas pelos autores que acabam, por várias vias, chegando ao consenso de que a produção de artigos é a finalidade essencial da atividade dos cientistas. Desta forma, urge que a forma como os pesquisadores alcançam o seu objetivo de produzir um discurso científico seja cuidadosamente analisada. Latour e Woolgar expressam este intuito, mostrando a relevância da redação do artigo para a comunidade científica. "....a produção de artigos é a finalidade essencial da sua (do cientista) atividade. A realização desse objetivo necessita de uma cadeia de operações de escrita.....Os inúmeros estágios intermediários (conferências com projeções, difusão dos rascunhos, etc) têm relação de uma forma ou de outra, com a produção literária. É portanto necessário estudar com cuidado os diferentes processos que resultam na produção de um artigo. Para isso, começaremos por tratar os artigos como objetos, à maneira de produtos manufaturados. Em um segundo momento, iremos nos interessar pelo conteúdo dos artigos" (Latour e Woolgar, 1997, p. 70).     Para o caso específico deste estudo é de interesse o segundo momento, no trecho acima, a que se referem os autores, no qual esmiuça-se o conteúdo dos artigos. A partir desta criteriosa averiguação e da observação de falas dos cientistas no cotidiano da vida de laboratório, Latour e Woolgar elaboram um esquema de classificação dos tipos de enunciados de discursos científicos.

    Fizemos a análise do discurso dos relatórios de alunos de iniciação científica em química tomando por base o referido esquema, que identifica cinco principais tipos de enunciados nos discursos científicos. Os enunciados do tipo 5 se referem a um fato tido como adquirido. Precisamente porque são tomados como adquiridos, esses enunciados nunca surgem nas discussões entre os membros do laboratório, exceto quando os novatos pedem explicações sobre certos significados (Latour e Woolgar, 1997, p. 77).

    Para esclarecer o enunciado do tipo 5 os autores apresentam uma conversa entre cientistas do Instituto Salk e explicam porque o diálogo abriga este tipo de enunciado:

"Durante uma discussão, por exemplo, Bloom não cessa de afirmar que, "no teste de imobilização, os ratos não reagem como se tivessem sob o efeito de neurolépticos". Para Bloom, a força do argumento é clara. Mas Guillemin, um pesquisador que trabalha em outro domínio, tem questões preliminares a colocar : "O que você quer dizer com teste de imobilização?" Um tanto desconcertado, Bloom para, olha para Guillemin e adota o tom de um professor que lê um manual : "O teste clássico de catalepsia é um teste de tela vertical. Há uma rede elétrica. Põe-se o animal nesta rede; um animal que tomou uma injeção de um animal não tratado simplesmente vai descer (IX, 83). Para Bloom, que conhece o teste, este é um enunciado do tipo 5, que não exige qualquer explicação complementar. Depois dessa interrupção, ele retoma o tom excitado do começo e volta ao argumento inicial." (Latour e Woolgar, 1997, p. 78).     Continuando na apresentação do seu esquema de classificação, Latour e Woolgar se dão conta de que proliferam nos manuais científicos frases do tipo : "A tem determinada relação com B". Por exemplo, "as proteínas ribossômicas ligam-se aos pré-ARN desde o começo das transcrições", e chamam esses enunciados de tipo 4. Embora a relação apresentada no enunciado não esteja sob questão, ela é claramente expressa, ao contrário dos enunciados do tipo 5. Essa classe de enunciados raramente é encontrada nos trabalhos dos pesquisadores do laboratório. Os enunciados do tipo 4 já fazem parte de um saber aceito e são mais correntes nos textos destinados a estudantes (Latour e Woolgar, 1997, p. 78).

    Os enunciados do tipo 3 contêm enunciados sobre outros enunciados, e a isto os autores classificam como modalidades[4]. A diferença entre os enunciados dos manuais e esses do tipo 3 - cuja maioria é extraída de artigos publicados em revistas (Greimas, 1976) - pode ser caracterizada pela presença ou ausência de modalidades. Alguns enunciados contêm modalidades que exprimem o mérito do autor ou a prioridade daquele que postulou pela primeira vez a relação em pauta : "Esse método foi primeiramente descrito por Pieta e Marshall. Vários pesquisadores claramente estabeleceram (referência) ..." , "Uma prova mais convincente foi fornecida por (referência)..." (Latour e Woolgar, 1997, p. 79).

    Os enunciados do tipo 2 aproximam-se mais de afirmações do que de fatos aceitos. Mais precisamente, os enunciados do tipo 2 são aqueles que contêm modalidades nas quais se insiste sobre a generalidade dos dados que se dispõe (ou não). As relações de base são em seguida embutidas em apelos ao "que é geralmente conhecido", ou "ao que se pode razoavelmente pensar que acontece". (Latour e Woolgar, 1997, p. 80).

    Por fim, os exemplo escolhidos de enunciados do tipo 1 expressam conjecturas e especulações :

"Peter sugeriu que o hipotálamo de um peixe vermelho tem um efeito inibitório sobre a secreção de TSH." (Latour e Woolgar, 1997, p. 81).

"Talvez isso signifique que tudo o que se vê, diz e deduz sobre os opiáceos pode não ser necessariamente aplicado às endorfinas." (Latour e Woolgar, 1997, p. 81).
 

Condições de produção dos relatórios e procedimentos de análise

    Para analisarmos os relatórios dos estudantes utilizamos basicamente o esquema de classificação dos tipos de enunciados de discursos científicos de Latour e Woolgar, apresentados no item anterior.

    Os estudantes realizaram os seus estágios de iniciação científica em um mesmo laboratório de química de uma universidade federal, localizada no estado de São Paulo. Dois dos alunos eram bolsistas do programa de bolsas de iniciação científica PIBIC-CNPq e um deles era bolsista da FAPESP. Dois deles estavam sob a supervisão da mesma orientadora[5] , enquanto o terceiro bolsista estava sob a supervisão de um outro orientador.

    O grupo de pesquisadores do laboratório onde os alunos ficaram alocados durante o seu estágio desenvolve estudos sobre a síntese, caracterização, reatividade e aplicação de compostos de coordenação, que abrigam metais de transição como rutênio, cobalto e vanádio nas suas estruturas. Desta foram, os estudantes tiveram a oportunidade de entrar em contato com diversos métodos de obtenção destes compostos e com as técnicas que possibilitam as suas caracterizações. As técnicas mais frequentemente usadas pelos alunos foram espectroscopia de absorção na região do infravermelho e do ultravioleta/visível, ressonância magnética nuclear de fósforo e voltametria cíclica.

    Os relatórios analisados foram produzidos pelos bolsistas após um semestre de imersão no laboratório. Para as suas confecções, os alunos seguiram a indicação dos orientadores e sugestões do de outros membros do grupo sobre "como fazer um relatório de pesquisa". Sugeriu-se que os alunos produzissem os seus relatórios nos moldes de algum outro já concluído, de autoria de um integrante do grupo de pesquisa, e que não esquecessem de observar o estilo da linguagem científica. Ou seja, os orientadores colocaram para os iniciantes, em um primeiro momento, o que Possenti (1997), citando Granger (1974), relata como característica fundamental do trabalho científico: "a progressiva eliminação do vivido, do vivido enquanto representado na linguagem não-científica. Tal estruturação busca eliminar (ou diminuir ao máximo) a relação entre o sujeito produtor desse enunciado e o enunciado".

    Dois dos alunos, aqueles com a mesma orientadora, tiveram os seus relatórios por ela corrigidos antes da produção da versão final, que foi enviada para as agências de fomento. Não temos informação se o mesmo aconteceu com o terceiro aluno. Assim, é o produto da história de outras redações realizadas pelos alunos, das sugestões dos membros do grupo, da própria intuição e experiência dos alunos após o seu contato com o laboratório, e, no caso dos dois alunos acima mencionados, também das correções feitas pela orientadora, que analisamos neste trabalho.

    A organização dos dados foi realizada da seguinte forma : primeiramente nomes fictícios, Marina, Nei e João, foram atribuídos aos alunos e em seguida, extraímos dos relatórios alguns enunciados típicos do discurso científico, segundo Latour e Woolgar (1997). Estes foram distribuídos em três colunas de uma tabela; cada uma destas colunas mostra enunciados do relatório de um determinado aluno. Por fim, nos orientamos por estes enunciados para analisar os discursos científicos produzidos pelos estudantes.


O discurso dos relatórios

    Os enunciados selecionados a partir da leitura dos relatórios dos alunos de iniciação científica e expostos na Tabela 1 foram por nós classificados como de tipo 5, 4, 3, 2 ou 1 com base nos princípios que regem o esquema de classificação dos enunciados de discursos científico (Latour e Woolgar, 1997), apresentados anteriormente. Desta forma, os enunciados de Marina, Nei e João , respectivamente, "A existência de apenas dois dubletos neste espectro ....", "De acordo com o observado nos espectros mencionados atribui-se tentativamente estes estiramentos como sendo devido a Cl trans CO" e "Para os compostos ...era esperado um valor para g, porém isto não foi observado...", foram considerados do tipo 5 porque expressões e palavras como dubletos, Cl trans CO e valor de g, fazem parte de um saber adquirido pelos membros do grupo, que, por isso mesmo, não admitem a necessidade em esclarecê-las no contexto em que são aqui encontradas.

    Os enunciados, "O rutênio é um metal de transição ........." e "O centro metálico do rutênio apresenta configuração eletrônica...", escritos por Nei no seu relatório, assim como o enunciado, "O cobalto é um metal de transição pertencente...." apresentado por João, foram classificados como enunciados do tipo 4 porque, embora não sendo alvo de questionamentos, e fazendo parte de um saber aceito (espera-se de alunos de química o reconhecimento de metais de transição e do que venha a ser a configuração eletrônica de um elemento), encontram-se claramente expressos e definidos no relatório, diferentemente dos enunciados do tipo 5, ilustrados acima.

    Marina e Nei, ao redigirem os seus discursos e neles embutirem as sentenças "Complexos pentacoordenados de Ru(II) contendo bifosfinas foram estudados inicialmente por Rigo (referência)" e "O dicloro-tris(trifenilfosfina)-rutênio(II),.. sintetizado pela primeira vez por Wilkinson em 1965 (referência) é um dos mais conhecidos complexos ...", lançam mão de enunciados do tipo 3. Classificamos desta forma estes enunciados porque os estudantes fazem remissões a documentos que lidam com o problema em questão.

    Quando escrevem, "Nos complexos sintetizados verifica-se a presença de uma única banda na faixa de vibração Ru-Cl. Assim, em analogia aos dados da literatura (referência) atribui-se como sendo devida a Ru-Cl terminal." e "Os valores de condutância molar obtidos para os complexos encontram-se em torno de ... e encontram-se de acordo com a composição de um eletrólito do tipo 1:1...", Marina e Nei apresentam enunciados que assemelham-se mais a afirmações do que a fatos aceitos, ou seja, empregam enunciados do tipo 2. Podemos também justificar esta classificação, considerando que estes enunciados apelam para a generalidade dos dados que os alunos dispõe.

Tabela 1 – Enunciados dos tipos 5, 4, 3, 2 e 1 presentes nos relatórios de Marina, Nei e João.

ENUNCIADO ALUNA : MARINA ALUNO : NEI ALUNO : JOÃO
TIPO 5 "A existência de apenas dois dois dubletos neste espectro ...." "De acordo com o observado nos espectros mencionados atribui-se tentativamente estes estiramentos

como sendo devido a Cl trans CO"

"Para os compostos ...era 

esperado um valor para g, 

porém isto não foi observado..."

TIPO 4 nenhum "O rutênio é um metal de transição ........."

"O centro metálico do rutênio apresenta configuração eletrô-nica..."

"O cobalto é um metal de transição pertencente...."

"O cobalto é relativamente iner-te,...."

"As fosfinas possuem........"

"As fosfinas são bases bastantes fortes...."

TIPO 3 "Complexos pentacoordena-dos de Ru(II) contendo bifosfinas foram estudados inicialmente por Rigo (ref)"
 
 

 

"O dicloro-tris(trifenilfosfina)-rutênio(II),.. sintetizado pela primeira vez por Wilkinson em 1965 (ref) é um dos mais co-nhecidos complexos ..." nenhum
TIPO 2 "Nos complexos sintetizados verifica-se a presença de uma única banda na faixa de vibração Ru-Cl. Assim, em analogia aos dados da literatura (ref) atribui-se como sendo devida a Ru-Cl terminal."

"A existência de apenas dois dubletos neste espectro, ...., encontra-se em concordância com a estrutura proposta para o complexo investigado" 

 

"Os valores de condutância molar obtidos para os complexos encontram-se em torno de ... e encontram-se de acordo com a composição de um eletrólito do tipo 1:1..." 

"O espectro eletrônico do com-plexo..., apresentou uma banda em 314 nm, que foi atribuída a transições eletrônicas internas dos ligantes..."

"Para os compostos de fórmula... as análises de RMN mostraram a presença de fosfina oxidada para os compostos, em torno de ... e...."

"A tentativa de obtenção de vol-voltamogramas cíclicos para os compostos.... mostrou-se infrutí-fera fera uma vez que nenhum proces-cesso redox foi observado" 

TIPO 1 "Embora o conjunto de dados obtidos para os complexos... demonstre a pureza dos mesmos e apresente-se em concordância com as estruturas propostas, causa-nos estranheza a ocorrência de ligantes ....Assim, aventamos a possibilidade destes complexos apresenta-rem-se como tetrâmeros......"  "(...) Considerando-se estas atribuições e levando-se em conta os dados de ...pode-se constatar a não equivalência entre os fósforos. Sugere-se que uma possível fórmula estrutural para estes compostos seria a ilustrada abaixo..... "  "(...) porém isto não foi observado, que pode-se supor ou que esta 

espécie esteja num estado de 

oxidação diferente do Co(III) esperado ou nossas medidas espectroscópicas necessitam 

de condições específicas" 

ref = referência bibliográfica inserida pelo aluno no texto.

    Os enunciados classificados como do tipo 1 apresentam conjecturas e especulações, como o apresentado por João : "(...) porém isto não foi observado, o que pode-se supor ou que esta espécie esteja num estado de oxidação diferente do Co(III) esperado ou nossas medidas espectroscópicas necessitam de condições específicas".

    A observação dos enunciados exemplificativos constantes na Tabela 1 evidencia que, de uma maneira geral, os estudantes fizeram uso dos 5 tipos de enunciados nos seus discursos.

    Cautela deve ser usada na análise do relatório da aluna Marina, uma vez que se diferencia do observado nos relatórios de Nei e João, no que diz respeito a enunciados do tipo 4. A ausência deste tipo de enunciado no relatório da aluna nos parece positiva pois eles não são freqüentemente encontrados nos trabalhos dos pesquisadores do laboratório, sendo mais facilmente localizados em textos destinados a estudantes. Como o relatório é um documento que trata de uma pesquisa, é esperado que não apresente estes enunciado com frequência. Ao nosso ver, um outro forte indício do uso adequado da linguagem científica no relatório apresentado por Marina encontra-se no uso de enunciados do tipo 3. O uso destes enunciados pela estudantes indica uma boa assimilação de como a linguagem científica deve ser usada para fortalecer o texto. Ou, como explica Latour (1997, p. 88), "o recurso a antigos artigos pode ser considerado como um apoio à empreitada atual".

    O relatório de João, assim como o de Marina, distingue-se dos demais por apresentar muitos enunciados do tipo 4 e nenhum do tipo 3. Fazendo-se uma análise do relatório deste aluno, observando apenas os critérios considerados na análise do relatório de Marina, poderíamos dizer que ele não conseguiu escrever um texto nos moldes exigidos pela linguagem científica. O uso exagerado de enunciados do tipo 4, que aparecem em dez parágrafos no relatório, e a completa ausência de sentenças capazes de fortalecer o texto apoiam esta tese.

    Já o relatório de Nei apresentou todos os tipos de enunciados, o que, acreditamos, pode nos levar a acreditar que ele se apropriou da linguagem científica e produziu um texto condizente com ela, mas em certas situações talvez o aluno tenha considerado que a linguagem cotidiana era mais explicativa para o que queria expressar.

    Antes, porém, de apresentarmos um veredicto com base exclusivamente na observação da tabela, cabe-nos recordar que a orientadora de Marina e de Nei corrigiu a versão final dos seus relatórios, o que pode ter conduzido estes estudantes à apresentação de um relato final em uma linguagem considerada por ela como mais adequada, enquanto o aluno João, que talvez não tenha tido essa assistência, aparentemente não chegou a se expressar na linguagem do grupo acadêmico em que estava estagiando. Assumindo-se esta hipótese como correta, Marina e Nei tiveram maior oportunidade de comparar a linguagem que estavam utilizando com a da "portadora" da linguagem científica, no caso a orientadora, mas nada pode nos afiançar que se apropriaram mais adequadamente do discurso científico do que João. Assim, faz-se necessário que o processo de produção do relatório científico nas suas várias etapas seja conhecido para que realmente possamos concluir sobre a real apropriação dos alunos do discurso científico.

    Acreditamos também ser pertinente considerarmos a questão de quão adequado é se solicitar de um aluno iniciante um relatório contendo os enunciados identificados por Latour e Woolgar (1997) nos discursos dos cientistas. Será que não seria melhor se pedir ao aluno um relato da sua pesquisa em linguagem comum e que de fato explicitasse o seu conhecimento e as suas dúvidas da forma que para ele é familiar ? Talvez a imposição que ao aluno se apresenta de escrever pela primeira vez um relato em linguagem científica acabe por levá-lo a usar o recurso mais simples de fazer, na medida do possível, apenas cópias de relatórios de veteranos do grupo, sem se dar conta do que as suas palavras realmente expressam.


Discussão final

    Nesta análise dos discursos produzidos por alunos de iniciação científica observou-se que quando imbuídos da tarefa de produzir os seus relatório de pesquisa eles o fazem utilizando diferentes tipos de discursos, tipos estes considerados por Latour, e certamente reconhecidos por pesquisadores de química, como uns mais e outros menos científicos. Questionou-se neste estudo a validade de se exigir dos estudantes de iniciação o uso imediato da linguagem científica.

    A análise criteriosa dos três relatórios de pesquisa dos alunos Marina, Nei e João nos levou também a concluir que, por si só, o relatório de pesquisa não é um instrumento suficiente para indicar a apropriação ou não do discurso científico pelos alunos. Apenas com o acompanhamento das etapas que envolveram o processo de produção do relatório e com entrevistas aos alunos sobre suas redações, se poderia ter maiores indícios de quanto a linguagem dos relatórios indica a apropriação de uma nova forma de se expressar. Talvez possamos comparar o relatório de pesquisa dos alunos de iniciação científica a uma "caixa-preta"[6] que precisa ser aberta para que sejamos capazes de avaliar os fatores que contribuíram para a sua confecção. Perguntas como : qual a efetiva participação do aluno no laboratório durante o seu estágio? Ele foi ajudado por outro colega no período de obtenção e tratamento dos seus dados? A discussão dos seus dados envolveu a orientação de outro membro do grupo, além do próprio supervisor? Até que ponto ele conseguiu compreender o sistema que estudava? O seu relatório foi corrigido e aperfeiçoado pelo orientador até a redação final? Sendo assim, como saber em que parte acaba o discurso do orientador e começa o seu? precisam ser respondidas para que se possa saber de fato o que a versão final do relatório representa na vida acadêmica do aluno.

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[1] Trabalho realizado com apoio do CNPq
[2] Pós-doutoranda - Faculdade de Educação - Unicamp
[3] Faculdade de Educação - Unicamp
[4] No sentido lógico tradicional, “modalidade” é uma proposição que modifica ou qualifica um predicado. Em sentido mais moderno, modalidade designa todo enunciado sobre um outro enunciado (Ducrot e Torodov, 1972).
[5] Os dois alunos em questão foram orientados pela autora principal deste trabalho.
[6] A expressão caixa-preta é usada em cibernética sempre que uma máquina ou um conjunto de comandos se revela complexo demais. Em seu lugar é desenhada uma caixinha preta, a respeito da qual nada é preciso saber, senão o que nela entra e o que nela sai (Latour, 2000).