A. Tarciso Borges
Colégio Técnico e Faculdade de Educação,
UFMG
tarciso@coltec.ufmg.br
Resumo
Este trabalho apresenta e examina possíveis
modelos mentais de atmosfera apresentado por dois grupos de estudantes
brasileiros. Faz parte de uma pesquisa mais ampla que visa investigar possíveis
relações entre modelos de forma da Terra, gravidade e ação
à distância, apresentados por estes e outros estudantes e
que vem sendo desenvolvida no mestrado em Educação da UFMG.
Tais modelos apresentam características marcantes da ciência
escolar, mas deixam transparecer diferentes maneiras de entendimento da
idéia de atmosfera.
O presente texto tem como objetivo apresentar e examinar alguns possíveis modelos mentais apresentados por estudantes brasileiros. Dados de dois grupos foram obtidos a partir de entrevistas semiestruturadas individuais. O primeiro grupo era composto por alunos, com idades de 11 a 13 anos, que cursavam a 6a série do Ensino Fundamental e o segundo por alunos, com idades de 17 a 19 anos, que cursavam o 3o ano do Ensino Médio. Este trabalho é parte de uma pesquisa mais ampla, que está sendo desenvolvida junto ao programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da UFMG (nível: mestrado). Este trabalho mais amplo visa investigar possíveis relações entre os modelos de forma da Terra, gravidade e ação à distância apresentados por estes e outros estudantes. Durante o estudo piloto, realizado para ajustes e adequação dos instrumentos aos propósitos da pesquisa e à amostra, foi detectada uma possível fonte de confusão com o uso do termo "atmosfera". O termo era usado, por alguns estudantes, de forma diferente da comumente aceita no âmbito da ciência escolar. Isto nos indicou a necessidade de avaliarmos o que os alunos tinham em mente quando se referiam ao termo "atmosfera", durante o processo das entrevistas. Apesar desse não ser o foco principal do estudo, decidi, após terminar minha revisão da literatura, investigar o entendimento da idéia de atmosfera e os possíveis modelos utilizados pelos alunos quando se referiam ao termo. Assim surgiu a idéia deste trabalho.
De fato, a literatura de pesquisa pertinente ao problema de minha pesquisa sugere que o entendimento da idéia de ação à distância, por parte de estudantes, não é facilmente construído. Pesquisas sobre o entendimento de estudantes a respeito de eletricidade e magnetismo (Andersson, 1985; Erickson, 1994, Borges, 1996) sustentam que os estudantes têm dificuldades com a idéia de ação à distância e incluem um mediador (o ar ou a existência de ‘raios’, por exemplo) para tais ações, não aceitando a interação sem contato. A interação à distância poderia ser então bloqueada pela interposição de obstáculos entre os objetos envolvidos. Assim, a colocação de uma barreira, entre um imã e um pedaço de ferro, faria cessar a interação entre eles.
Nessa mesma linha, a gravidade costuma ser associada com a presença da atmosfera, como sendo algo análogo a uma ‘pressão atmosférica’ ou do ar (Bar et al. 1997). Isto pode levar à concepções do tipo: acima da atmosfera não existe gravidade ou, sem a presença do ar os corpos flutuariam no espaço e não cairiam, etc. A partir disso, decidimos pela investigação desses modelos sobre a influência do ar ou da atmosfera nas interações à distância, em particular no caso gravitacional. Para tal, incluímos nos instrumentos de pesquisa desenvolvidos, algumas situações que pudessem possibilitar a exploração desses modelos. O objetivo não é o estudo sistemático e exaustivo deles, mas explorar em que medida eles nos ajudam na compreensão dos modelos de gravidade e ação à distância utilizados pelos estudantes.
Modelos e aprendizagem de Ciências
O acesso ao conhecimento e à maneira de pensar das pessoas tem uma grande importância na pesquisa em educação em ciências. Há muitas maneiras de tentar entender o raciocínio humano, uma delas seria imaginar que as pessoas construam modelos explicativos para lidar com situações e problemas, assim como tentar entender o mundo que as cerca. Há indícios de que o nosso raciocínio pode estar fortemente baseado em modelos que temos da realidade. Segundo a teoria dos modelos mentais de Johnson-Laird (1983,1993), nossa habilidade em dar explicações está intimamente relacionada com nossa compreensão daquilo que é explicado, e para compreender qualquer fenômeno ou estado de coisas, precisamos ter um modelo funcional dele. Johnson-Laird (1983, p.402) chega mesmo a afirmar que todo o nosso conhecimento do mundo depende da nossa habilidade em construir modelos dele. Segundo Rubem Alves (1981), a inteligência humana está diretamente relacionada à nossa capacidade para inventar e operar modelos. Modelos nos permitem simular o que deverá acontecer sob certas condições. Com o seu auxílio, simulamos situações, sem que elas jamais aconteçam. Isso nos permite ajustar o comportamento ou para evitar, ou para provocar um determinado futuro.
O termo "modelo mental" é usado aqui, de maneira ampla, podendo ser entendido como um modelo pessoal, construído ou internalizado por um indivíduo. Trata-se de uma estrutura que reflete a compreensão do sujeito sobre o que um determinado sistema contém, de como ele funciona e por que funciona daquela forma. Ele pode ser imaginado como conhecimento sobre o sistema, suficiente para permitir que o usuário experimente ações mentalmente antes de executá-las. O que significa que um modelo mental é diferente de simples idéias ou informações fragmentadas, mas, ao contrário, é uma ferramenta importante de raciocínio e entendimento do funcionamento do mundo. Os modelos mentais dos indivíduos podem ser expressos através da ação, da fala, da escrita ou do desenho e dependem da experiência e da educação prévias dos mesmos. São limitados pela própria estrutura cognitiva humana e evoluem com a interação da mesma com o assunto em questão, seja diretamente, ou mediada por artefatos culturais e cognitivos. A habilidade de um indivíduo em explicar e prever eventos e fenômenos que acontecem a sua volta evolui à medida que ele adquire modelos mentais mais sofisticados dos domínios envolvidos, principalmente como resultado do processo de educação escolar específica nestes domínios (Borges, 1999).
Cabe aqui diferenciar claramente os modelos mentais dos modelos científicos. Os primeiros, como já exposto, são individuais, internos e, segundo Norman (1983), são estruturas confusas e incompletas com as quais as pessoas realmente pensam. Já os modelos científicos são compartilhados por grupos sociais (cientistas, professores, etc.), portanto são consensuais (Gilbert e Boulter, 1998) e, em geral, são sofisticados e formulados rigorosamente. A construção e utilização de modelos na ciência é uma constante. Na realidade, podemos dizer que o uso de modelos constitui a verdadeira base do pensamento científico (Harré, 1972). Portanto, é bastante razoável supor que o entendimento de como as pessoas constroem modelos mentais sobre o mundo que as cerca, pode nos fornecer importantes subsídios para compreensão do processo de aprendizagem de ciências.
Possíveis modelos mentais de Atmosfera
As entrevistas utilizadas foram baseadas em eventos (White & Gunstone, 1993) e seguiram uma estruturação do tipo POE (previsão, observação, explicação). Neste tipo de entrevista são apresentados aos estudantes eventos ou situações que tenham relação com as idéias a serem investigadas. Estes eventos são apresentados em forma de montagens experimentais com as quais o entrevistado pode interagir. Quando o evento não permite observação direta, são feitas adaptações com fotos, imagens, etc. A seqüência da entrevista exige que o entrevistado faça previsões (com justificativas) a respeito do evento em questão e, após observar o que acontece "de fato", ele é incitado a rever suas explicações, caso seja necessário. A vantagem desse tipo de entrevista para o estudo de modelos mentais é a de permitir que o entrevistado faça previsões e as explique. A partir da análise destas previsões e explicações ou dos modelos expressos pelas pessoas, podemos obter informações relevantes sobre as características principais dos possíveis modelos que poderiam dar suporte a estas previsões. É relevante frisar que não temos acesso direto aos modelos mentais das pessoas e que o pesquisador também raciocina usando modelos mentais. Portanto, na pesquisa em modelos mentais, os modelos apresentados são construídos pelo pesquisador a partir da análise das entrevistas, ou seja são modelos dos modelos das pessoas. Razão pela qual os chamo de possíveis.
Aqui nos referimos aos possíveis modelos mentais utilizados pelos estudantes ao falarem de atmosfera, quando inserido na explicação de algum evento. Por exemplo: "Um astronauta flutua no espaço pois está fora da atmosfera". Caso esse termo (atmosfera) não fosse empregado espontaneamente pelo entrevistado, questões adicionais eram propostas pelo entrevistador para tornar mais claro o significado que o entrevistado atribuía a ele.
A partir da análise das entrevistas foi possível categorizar as idéias dos alunos em quatro modelos mentais. Destes, três estão diretamente relacionados com modelos de Terra esférica, na qual vivemos na superfície. Ou seja, os alunos categorizados nestes três modelos apresentam uma compreensão razoável de que a Terra é esférica e que moramos na sua superfície. Os alunos categorizados no quarto modelo apresentam a idéia de que moramos dentro da Terra e não na sua superfície, e têm dificuldade em definir o que seja atmosfera. Estes modelos estão descritos a seguir.
Modelo 1 (Modelo Escolar)
Este modelo foi assim chamado por representar um modelo aceito normalmente por professores e veiculados em livros-texto de Ciências. Foram classificados dentro deste modelo os alunos que apresentaram concepções relacionadas com o entendimento da atmosfera com as seguintes características:
Um dos entrevistados categorizados neste modelo não empregou o termo atmosfera espontaneamente e nem conseguiu definir o termo quando perguntado, dizendo que não se lembrava, mas que poderia ter "algo a ver com o ar". Mesmo assim ele foi categorizado aqui pois descreveu a camada de ar ao redor da Terra com todas as características citadas acima, a despeito do nome "atmosfera".
Apesar deste modelo ser chamado de escolar, não foi possível observar de maneira inequívoca, em nenhuma entrevista, a idéia de que a atmosfera se rarefaz progressivamente com a altura, até desaparecer. Ao contrário, todos os entrevistados parecem pensar em termos de um final, abrupto, da camada atmosférica.
Modelo 2 (Modelo de Camadas)
Os alunos categorizados neste modelo apresentaram o seguinte conjunto de idéias:
Figura 2 Figura 3
Um caso particular dentro deste modelo foi apresentado por um dos entrevistados. Nesse caso a atmosfera foi descrita inicialmente como uma camada que envolve a Terra, diferente do ar, pois nela não seria possível respirar. Nesta concepção a atmosfera estaria acima da camada de ar e ocuparia todo o universo. A seguir está um trecho da entrevista:
Aluno: Ah, acho que não.
P: Qual é a diferença?
A: É.. porque eu acho... que um dá para respirar e o outro não.
P: Você acha que a atmosfera então é outra substância?
A: É, é outra substância diferente.
P: Até onde você acha que vai o ar?
A: Ah, mais ou menos até as nuvens.
P: Mais ou menos até as nuvens?
A: Não, até uns vinte quilômetros pra cima das nuvens.
P: E a atmosfera, você acha que vai até onde?
A: Ah.. até o resto do universo.
Modelo 3 (Modelo da Camada Final)
Este modelo parece ser um refinamento ou uma evolução do modelo de Camadas, pois é explicitada uma função para a camada atmosférica. Suas principais características são:
... a atmosfera gera uma camada de ozônio ou uma coisa parecida assim... serve para proteger a gente dos raios ultra-violetas, do sol.
Este modelo foi apresentado por apenas dois estudantes que achavam que estavam dentro da Terra. Além disso, tinham dificuldade em definir o termo atmosfera. Ele foi chamado de modelo misto pois as pessoas categorizadas aqui apresentavam várias dúvidas durante a entrevista e expressavam idéias escolares misturadas a outras mais simples, baseadas na percepção comum. As características deste modelo são:
Figura 4
Vale lembrar que esse estudante cursava o 3o ano do ensino médio quando foi entrevistado. Isto pode ser uma evidência de que ensinar ciências não é uma tarefa simples e de que exige bem mais do que a costumeira reprodução de informações encontradas em livros didáticos e listas de exercícios repetitivos. Sugere, também, que os alunos são capazes de produzir as respostas consideradas corretas por seus professores nos exames, mesmo sem compreender os tópicos tratados.
A outra aluna classificada neste modelo apresentou uma modelo semelhante ao descrito anteriormente. Algumas das diferenças percebidas foram a de que, para ela, o ar só poderia estar dentro da Terra e a Lua estaria do lado de fora. Define vagamente atmosfera como sendo algo (não explicado) que está fora da Terra.
Apesar da semelhança entre as idéias apresentadas por estas pessoas, podemos notar também várias diferenças. Estes dados, acrescidos do fato de serem apenas dois estudantes, não nos permite traçar um modelo de atmosfera bem definido nesta categoria.
Distribuição dos modelos pelos grupos entrevistados
A amostra utilizada neste trabalho contava com oito
alunos do grupo 1 (6a série do E.F.) e dez alunos do
grupo 2 (3o ano do E.M.), totalizando dezoito pessoas. Devemos
acrescentar que as pessoas entrevistadas estavam dentro da faixa etária
considerada correta para estas séries. As entrevistas foram feitas
com alunos de escolas públicas e particulares de Belo Horizonte.
A tabela a seguir mostra distribuição dos quatro modelos
apresentados pelos dois grupos de alunos pesquisados.
(Escolar) |
(Camadas) |
(Camada Final) |
(Misto) |
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Nossos resultados mostram uma forte predominância do modelo 1, o modelo escolar, com mais da metade dos entrevistados. Os outros entrevistados estão distribuídos por três outros modelos, sendo que seis alunos adotam modelos onde existem camadas (modelos 2 e 3). Isso pode ser entendido em face da população do estudo: dez dessas pessoas cursavam a 3a. série do ensino médio. O modelo 2 é usado por uma maior fração dos estudantes da 6a. série do ensino fundamental. Um hipótese possível é a de que o modo como a atmosfera é apresentada nos livros-texto de ciências e geografia parece estar presente, de maneira significativa, nos modelos apresentados pelos alunos, especialmente os modelos 2 e 3. Em tais livros a atmosfera é apresentada, geralmente, dividida em várias camadas (troposfera, ionosfera, estratosfera, etc.).
Considerações finais
Queremos destacar que a distribuição dos modelos pelos dois grupos, indica uma clara influência do nível de escolarização (há um predomínio do modelo escolar nos alunos de 3o série do ensino médio). Não disponho, entretanto, de elementos para discutir possíveis efeitos de outros fatores, dado o tamanho da amostra. Por outro lado, não era objetivo desse trabalho discutir tais efeitos, mas de apenas identificar os modelos de atmosfera possíveis de ser usados por estudantes da educação básica, que participavam da minha pesquisa de mestrado.
O termo "atmosfera" é muito usado em livros-texto de Física e de Ciências e está relacionado com vários conceitos e processos importantes (respiração, pressão atmosférica, regulação térmica do planeta, etc.), e também na mídia, relacionado com problemas ambientais atuais (poluição atmosférica, efeito estufa, buraco na camada de ozônio, etc.). Uma especulação razoável é a de que o entendimento desses e de outros processos ou conceitos podem depender, de alguma forma, dos modelos mentais de atmosfera que as pessoas adotam. Obviamente este trabalho não fornece evidências de que essa proposição seja correta mas, no mínimo, levanta isso como uma questão pertinente para investigação.
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