Irene Carniatto[1]
Rosália M.R. de Aragão[2]
Resumo
Buscar nos espaços da sala de aula compreender
como acontecem os processos de ensino-aprendizagem-conhecimento tem sido
um desafio a professores pesquisadores. Neste artigo apresentamos referenciais
teóricos que possibilitam âncora a pesquisa em Educação
em Ciências cujo foco central seja a oralidade, a fala de alunos
e professores, buscando estudar para compreender como ocorrem os processos
de interação aluno-professor-conhecimento e desta forma avançar
na prática pedagógica docente. Também, como a Investigação
Narrativa pode estar em consonância com as atuais teorias da Ciência,
tais como a Complexidade e a Física Quântica numa abordagem
holística, multidisciplinar com adoção de um paradigma
holístico social e ecológico e intrinsecamente dinâmico
do universo.
HEILBRUN 1988:37, Writing a Woman’s Life apud LAROSSA, 1995: 11.
As histórias de vida de cada um são vividas através de textos. Podem ser textos falados, lidos, cantados, experimentados eletronicamente ou através de nossas próprias vidas.
"Deixa-me que te conte"[3]... O que terão para dizer os alunos e professores como sujeitos de uma investigação narrativa? Que sentido têm suas vozes, suas interações, suas concepções expressas em suas falas? Como suas falas podem desvelar e revelar o processo de formação inicial de futuros professores?
Numa investigação narrativa oportuniza-se enfatizar e valorizar vozes de pessoas envolvidas em uma experiência docente, tendo por contexto e referência, as interações de ensino-aprendizagem-conhecimento, ocorridas em aulas. Ouvi-las e, a partir delas, procurar compreender e apreender o sentido de suas falas. Assim, as questões podem ser tratadas na forma de episódios narrativos, isto é, de "vozes" imbricadas em falas, relatos e experiências.
Dito de outra forma, investigar aspectos da formação inicial de Professores, no contato direto com os alunos — futuros professores — e de seus Professores, através da investigação narrativa é possível desvelar aspectos nas interações, ocorridas em sala de aula entre esses sujeitos, sujeitos reais de uma história construída. História em que se entrecruzam vidas dos seus sujeitos, vida de vários alunos, vida de uma professora, de outros professores que estão, também, presentes no curso, na realidade viva da Universidade.
Já se disse que cada um de nós, por natureza, levamos vidas relatáveis e, em geral, conta as histórias dessas vidas, ou de fragmentos e partes delas. Entretanto, o que os investigadores narrativos buscam, no âmbito da educação, é descrever essas vidas, recolher episódios e contar histórias sobre elas, escrevendo relatos de suas experiências em aulas e em interação pedagógica, neste caso.
Possivelmente, porque está focalizada sobre a experiência humana e, talvez, porque é uma estrutura fundamental da experiência humana vivida, porque tem a qualidade holística, a narrativa ocupa um lugar importante em várias disciplinas. Expressa-se como uma forma de caracterizar os fenômenos da experiência humana e, portanto, seu estudo é apropriado em muitos campos das ciências sociais. Esse campo de estudo, em sua globalidade, chama-se, normalmente, de "narratologia", que é um termo que atravessa diversas áreas de conhecimento... (CONNELLY & CLANDININ, op. cit., p.11-13).
CONNELLY e CLANDININ entendem que a narrativa é, tanto o fenômeno que se investiga, como o método de investigação. Assim, é igualmente correto falar de "investigação sobre a narrativa" ou de "investigação narrativa". Narrativa pode ser tanto o nome da qualidade que estrutura a experiência a ser estudada, como, também, o nome dos padrões de investigação que vão ser utilizados para seu estudo.
Com respeito à voz expressa pelos sujeitos e as relações estabelecidas em uma investigação, CONNELLY e CLANDININ se apóiam em diversos autores. Entre eles, citam HOGAN, quando diz que, numa investigação, as relações entre investigadores e participantes abrem espaço, para que suas vozes sejam ouvidas e, ainda, alertam para a relação de desigualdade que, muitas vezes, tem sido estabelecida...
MACINTYRE, também, é citado, quando diz: As relações se estabelecem, através das unidades narrativas de nossas vidas. (MACINTYRE 1981:281 in CONNELLY & CLANDININ, op. cit., p.19).
Na mesma perspectiva, segundo os autores, o que Hogan e Noddings destacam é a necessidade de tempo, de espaço e de voz, quando se estabelece uma relação de colaboração. Uma relação em que investigadores e participantes têm voz, no sentido de permitir sua participação em uma comunidade. Neste sentido BRITZMAN escreveu:
Ainda, citando COLES, os autores apontam para a possibilidade de aprendizagem, quando se abre espaço, para que o participante ouça a si mesmo, ou seja, podemos aprender, enquanto nós mesmos estamos falando...
Quando um pesquisador se ocupa da investigação narrativa, o processo se converte em algo mais complexo, posto que, como investigadores, nós nos convertemos em parte do processo. As duas narrações, a do participante e a do investigador, convertem-se, em parte, graças à investigação, em uma construção e re-construção, narrativa compartilhada. (CONNELLY & CLANDININ, op. cit., p. 22-23).
Importante é destacar que, numa investigação narrativa, o sentido de "totalidade, verdade, precisão e objetividade" é algo construído graças a uma fonte de dados rica e elaborada, de forma que enfoque as particularidades concretas da vida, a partir das quais se possam criar relatos poderosos. (Ibid., p.23).
Diferentemente das concepções de investigação, que aportam em suas bases conceituais visões mecanicistas, reducionistas e compartimentadas, assumir uma investigação narrativa significa estar assumindo uma visão epistemológica diferenciada, atualizada e contemporânea.
É nesta perspectiva que a Física Atômica,
em contraponto com o mito da verdade científica, independente dos
preconceitos que o cientista possui, pressupõe e afirma a importância
do papel do observador, que é imprescindível, não
só para que as propriedades de um fenômeno atômico sejam
observadas, mas para que os modelos, que os cientistas observam, estejam
intimamente relacionados com os modelos de sua mente, seus conceitos, pensamentos
e valores, seus compromissos políticos e sociais.
A teoria quântica incumbiu-se de evidenciar
que o mundo não pode ser analisado, somente, a partir de elementos
isolados e independentes. É o todo que afinal determina o comportamento
das partes.
Foi a partir da Revolução Quântica[8] que surgiu uma nova visão de mundo para a Ciência Ocidental, em contraste com a concepção mecanicista cartesiana. O universo passa a ser descrito como um todo dinâmico, indivisível, cujas partes estão, essencialmente, inter-relacionadas e só podem ser entendidas como modelos de um processo cósmico.
Uma investigação, segundo esta visão epistemológica contemporânea atualizada, busca estar em consonância com o paradigma atual da ciência que, segundo CAPRA, a ciência, hoje, avança para uma estrutura conceitual de abordagem holística, multidisciplinar e intrinsecamente dinâmica do universo. A adoção de um paradigma holístico social e ecológico, exigirá uma mudança conceitual em que se reconheça que fazemos parte de um sistema vivo composto de seres humanos em contínua interação e com seus recursos naturais, a maioria dos quais, por seu turno, constituída de organismos vivos. (CAPRA, 1987).
E, também, como MORIN (1990) que, refutando o pensamento reducionista e simplificador, elabora a teoria da Complexidade, na qual apresenta proposições, afirmando que o conhecimento científico é, freqüentemente, concebido como tendo, por missão, dissipar a aparente complexidade dos fenômenos, afim de revelar a simples ordem a que obedecem. Porém, se somos incapazes de definir, de maneira simples, com ordem e clareza o real, a palavra complexidade viria exprimir nossa incapacidade de expressão e compreensão da realidade.
É complexo o que não pode resumir-se numa palavra mestra,
o que não pode reduzir-se a uma lei ou uma idéia simples.
O complexo não pode resumir-se na palavra complexidade. A complexidade
não poderia ser qualquer coisa que se definisse de maneira simples
e tomasse o lugar da simplicidade. A complexidade aparece onde o pensamento
simplificador falha, mas integra nela tudo o que põe ordem, clareza,
distinção, precisão no conhecimento. Enquanto o pensamento
simplificador desintegra a complexidade do real, o pensamento complexo
integra o mais possível, os modos simplificadores de pensar, mas
recusa as conseqüências mutiladoras, redutoras, unidimensional,
e ilusórias de uma simplificação que se toma pelo
reflexo do que há de real na realidade. A ambição
do pensamento complexo é dar conta das articulações
entre domínios disciplinares, que são quebrados pelo pensamento
disjuntivo. O pensamento complexo aspira ao conhecimento multi-dimensional.
E reconhecendo que o conhecimento completo é impossível,
um dos axiomas da complexidade é a impossibilidade, mesmo em teoria,
de uma onisciência. (MORIN, 1990:8 e 9).
Tal visão encontra-se, de certa forma, em consonância com a pesquisa qualitativa e, especialmente, com a investigação narrativa, como configuração de um espaço, onde se fundem as vozes e as vidas de pesquisador e participante, para tentar viver e re-viver suas histórias, a fim de não só explicitá-las, mas, também, explicá-las.
Sendo, assim, a investigação narrativa deve ser entendida como...
Por isso, uma investigação, atenta a estas "particularidades concretas da vida", viria "revelar, desdobrar, explicar o movimento de uma totalidade, de onde aquelas particularidades foram abstraídas" (p.38).
De outra forma, a pesquisa qualitativa, segundo LUDKE e ANDRÉ (1986), constitui-se no estabelecimento de ... confronto entre os dados, as evidências, as informações coletadas sobre determinado assunto e o conhecimento teórico acumulado a respeito dele. (p. 1).
Em termos correlatos... a narrativa está situada em uma matriz de investigação qualitativa, posto que está embasada na experiência vivida e nas qualidades da vida e da educação. (CONNELLY & CLANDININ, op. cit., p.16).
Na busca de alternativas que possibilitem o avanço na prática docente, os professores formadores de professores, podem buscar nos processos em sala de aula, elementos que evidenciem CONTRIBUIÇÕES E LIMITAÇÕES emergentes de sua PRÁTICA DOCENTE, vinculadas à formação inicial de professores.
Através de dados expostos pela narrativa de episódios, de situações processuais do ensino, de reflexões sobre e, na ação pedagógica, é possível buscar compreender, explicar e explicitar elementos que se apresentem como indicadores que possam contribuir, para melhor conhecer como vem ocorrendo a Formação Inicial, em função de alguns aspectos que estão imbricados em um curso de Licenciatura, à luz de referenciais teóricos atuais.
Dessa forma, a fim de buscar métodos para o recolhimento de dados, tendo em vista a realização de um estudo - narrativo investigativo, — pode-se objetivar estudar aulas de disciplinas de formação docente, utilizando-se os seguintes procedimentos de investigação para o recolhimento dos dados:
Na maioria das vezes, requer colocar em destaque os relatos, as falas do Professor, ou de outros professores e as falas dos alunos, ao narrar vários episódios, objetivando proceder à análise e procurar a compreensão necessária do ocorrido em processo de formação dos Professores. Atribuindo clara importância à fala dos seus alunos como fundamental para a construção/negociação de significados na relação ensino-aprendizagem-conhecimento.
Ainda é oportuno esclarecer que os episódios são abordados, segundo a concepção de que: um episódio se configura como um recorte da prática, que, dada a sua importância, trazemos para a teoria, para iluminá-lo por uma análise teórica. (ARAGÃO, 1998, orientação individual verbal a esta autora).
Portanto, investigar para narrar o processo ensino-aprendizagem-conhecimento, no âmbito da formação inicial de professores de Ciências/Biologia, requer colocar, mesmo em uma narrativa investigativa, uma lente de aumento na teia de suas relações sociais e, daí procurar desvelar, iluminar os fatos constitutivos que ocorrem nos vários momentos interativos de aula. Conceber o estudo dessa forma, significa olharmos, através de nossos "óculos conceituais", isto é, mediante o conjunto das teorias de que nos apropriamos e procurar investigar, para compreender os sentidos e os significados, atribuídos pelos sujeitos às suas ações, reações, emoções.
Isto porque, como diz Boaventura de Souza SANTOS (1997),
Referências
BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. 1ª ed. Paris: Presses Universitaires de France,1972.
BOHM, David. A Totalidade E A Ordem Implicada. Trad. M.de C.Silva. São Paulo, Cultrix, 1980.
CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. São Paulo: Ed. Cultrix, 1987.
CONNELLY, F. Michael; CLANDININ, D. Jean, Relatos de Experiencia e Investigación Narrativa. In LARROSA, Jorge (et.all.) Déjame que te Cuente– Ensayos sobre Narrativas y Educación. Barcelona: Ed. Laertes, 1995.
LAROSSA, Jorge. et al.(Org). Déjame que te Cuente: Ensaios sobre Narrativas y Educación. Barcelona: Laertes Editorial, 1995.
MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Lisboa: Inst. Piaget, 1990.
POPPER, Karl R. A Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix, 1978.
LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E.D.A. PESQUISA EM EDUCAÇÃO: Abordagens Qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.
SANTOS, Boaventura S. Pela mão de Alice- o social e o
político na pós-modernidade. 3°
ed. São Paulo: Cortez Editora, 1997.
[1] Professora de Metodologia e Prática
de Ensino de Ciências/ Biologia na Universidade Estadual do Oeste
do Paraná - UNIOESTE - Cascavel - Pr. (45-224-3142 – carniatto@unioeste.br).
O presente trabalho é derivado de: Carniatto, I. A Formação
Inicial do Sujeito Professor – Investigação Narrativa na
Prática do Ensino da Didática das Ciências/Biologia.
Faculdade de Educação, Universidade Metodista de Piracicaba
– UNIMEP. Piracicaba, SP, Brasil, 1999. Dissertação de Mestrado.
[2] Docente do Programa de Pós-Graduação
da UNIMEP- Piracicaba – SP.
[3] Referência à obra
de LAROSSA (et. all.) intitulada “Déjame que te cuente”.
[4] HOGAN, P. (1988) A community
of teachers researchers. A story of empowerment and voice. Manuscrito inédito.
University of Calgary.
[5] NODDINGS,N. (1986) “Fidelity
in teaching, teacher education, and research for teaching”. Harvard Educational
Review, 56, 496-510.
[6] Britzman, D. (En prensa). Practice
makes practice: A critical study of learning to teach. New Yord. Suny Press.
[7] COLES, R. (1989) The call of
stories. Teaching and the moral imagination. Boston. Houghton Mifflin.
[8] Pela importância que o
período tem na história, e a mudança que proporcionou
em nossa visão de mundo. Assim resolvi denominar este período.
Se nenhum autor ainda não o fez.
[9] O grifo é meu.