INDÚSTRIA E EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS: COMO SE CONSTRÓI ESTA RELAÇÃO?



Maira Ferreira[1]



Resumo

    Neste estudo, realizado na perspectiva dos Estudos Culturais, analisei os programas/projetos com fins educativos organizados por uma empresa e procurei mostrar que essas práticas são culturais e têm diferentes dimensões: são políticas, econômicas, ecológicas e pedagógicas. São práticas que se dão pelos e nos discursos e constroem as visões e ações associadas à educação escolar, à educação ambiental, à soberania nacional e ao desenvolvimento tecnológico, entre outros. Examinei materiais produzidos e divulgados pela Empresa e, também, ouvi o que dizem a esse respeito os técnicos responsáveis pela organização e aplicação dos programas/projetos dirigidos às escolas [estudantes e professores/as] da comunidade onde está instalada. Busquei informações, ainda, em jornais locais que traziam a divulgação de um projeto de preservação ambiental desenvolvido por esta Companhia. Trabalhei com as noções de discurso e poder compreendidas por Michel Foucault e fui procurando lidar com essa noção, localizando nos textos situações em que se davam confrontos/concordâncias, buscando localizar nos textos enunciados que compõem os discursos que instituem as ações da Companhia, bem como, o modo como esses enunciados se integram a redes discursivas que colocam em evidência algumas questões relevantes para a comunidade educativa, como a preservação ambiental, como a importância em aplicar-se conhecimentos escolares às necessidades cotidianas e, principalmente, o modo como a relevância social das práticas desenvolvidas pela Empresa é mostrada.
 
 

Abstract

    Within this study, realized based on the Cultural Studies perspective, I analyzed the education oriented programs/projects organized by one company and tried to show that this kind of practice are cultural and have different dimensions: they are political, economical, echological and pedagogic. They are practices occurred in and by the speeches and build the visions and actions associated to school education, echological education, national sovereignty and technological development, among others. I analyzed material produced and published by the Company and, also, heard what is said about it the technicians responsible for the organization and application of programs / projects directed to the schools (students and teachers) of the community where it is installed. I searched for information, also, in the local newspapers that brought the publishing of one project of environment preservation developed by this Company. I worked with Michel Foucault’s notions of speech and sense and tried to deal with this notion, looking within the texts for situations of confrontation/accordance that compose Company’s actions leading enunciation, as well as, the way theses enunciations are integrated to discursive networks that put in evidence some relevant questions to the education community, like environment preservation, the importance of to apply the scholar knowledge to the quotidian necessities and, mainly, the way that the relevance of the social practices developed by the Company are shown.
 

Introdução

    A partir do entendimento de que a educação em ciências se dá em diferentes instâncias do social, não restringindo-se apenas ao ambiente escolar, interessei-me em estudar as ações com fins educativos desenvolvidos por uma empresa estatal de grande porte que, já há algum tempo, realiza, com certa freqüência e intensidade, atividades que constituem programas/projetos de ensino dirigidos a estudantes e professores/as do nível fundamental e médio. Estes programas/projetos são considerados, tanto pelos seus proponentes quanto pelos professores [ou por alguns deles], como "alternativas" diferenciadas e mais eficazes do ponto de vista educativo do que aquelas contidas nos livros-texto e nas explanações usuais das aulas de ciências sobre as fontes de energia, sua utilidade, aplicabilidade (produtos e serviços), bem como acerca do uso ecologicamente correto das mesmas. Enfim, eles contém "orientações" de como valorizar a produção industrial e, ao mesmo tempo, respeitar o meio ambiente.

    Analisar as ações empreendidas por essa empresa no âmbito da educação me permitiu compreender de que forma tais ações se constituem como "auxílio" para resolver problemas de aprendizagem que a escola e os/as professores/as parecem não dar conta, ou como métodos "modernos e avançados" de ensino, ou, ainda, como possibilidades de ação de preservação ambiental. Tal análise também me possibilitou entender como as propostas/projetos desse tipo têm sido organizadas e como elas circulam nas escolas e nas comunidades educativas.

    Com relação aos programas dirigidos às escolas, observei que a empresa vem ao encontro daquilo que circula como um modo bastante "eficaz" de promover a aprendizagem dos/as estudantes: propõe atividades que tornam o trabalho com os conhecimentos científicos associados à produção da Empresa mais dinâmico e realiza procedimentos que visam despertar nos alunos e alunas o gosto pela pesquisa e pelo campo de conhecimento no qual a empresa atua.

    Sabe-se que essa ênfase dada ao ensino, de ser mais aplicável, útil e relacionado ao cotidiano, passou a ser um "sinal" – ele estava nas capas dos livros, em seus textos, nas aulas de ciências – que alertava a sociedade, principalmente a partir da década de 80, para a necessidade de valorizar o conhecimento popular e as práticas corriqueiras dos sujeitos. Essa direção passou, então, a ser tomada como sinônimo de um ensino mais "moderno", mais interessante e proveitoso, passando inclusive a constituir um argumento importante para o desenvolvimento de ações educativas por instituições não-escolares como as empresas, as fundações, as associações comunitárias etc.

    O discurso pedagógico presente nesses programas/projetos educativos indicam a importância da aplicabilidade dos conteúdos escolares na resolução de problemas práticos do dia-a-dia; ao mesmo tempo - em seu discurso - a empresa se coloca como colaboradora das instituições oficiais de ensino, oferecendo "treinamento" aos/às professores/as em sua tarefa de ensinar e mostrando recursos materiais (como os filmes e as visitas aos laboratórios, à planta industrial e à biblioteca) que possibilitam uma melhor compreensão dos/as estudantes sobre os conteúdos escolares.

    Realizar este trabalho de pesquisa na vertente teórica dos Estudos Culturais, implicou em colocar a cultura em uma posição privilegiada nas práticas que busquei analisar. Assim, as ações promovidas por essa empresa – suas práticas sociais – estão ligadas ao político, ao econômico, ao ecológico, enfim, participam de processos mútuos de constituição que se dão pelos e nos discursos: "...toda prática social tem condições culturais ou discursivas de existência. As práticas sociais, na medida em que dependem do significado para funcionarem e produzirem efeitos, se situam ‘dentro do discurso’, são discursivas" (Hall,1997a, p. 34).

    Problematizar o "sucesso" da relação empresa-escola, bem como, a naturalidade com que esta relação é vista como necessária para a "melhoria da qualidade do ensino escolar em ciências", passou a ser o foco central deste estudo, pois foi necessário olhar para as práticas desenvolvidas nos programas educativos da Empresa como construções culturais processadas nos discursos. Assim, também, passei a compreender como construção social e cultural as noções de "qualidade e excelência" da Empresa, bem como, o seu "compromisso social com a comunidade".


A proposta metodológica

    O eixo de análises que empreendi neste trabalho foi em torno dos discursos que constituem os programas/projetos. Analisei os enunciados que compõem esses discursos em materiais produzidos pela Empresa e distribuídos para os professores/as e estudantes e, também, por relatos de pessoas que participaram da elaboração/execução das ações desenvolvidas nessas práticas educativas.

    Creio que seja importante, nesse momento, explicar com que compreensão de enunciado e de discurso realizei minhas análises. Examinei o papel dos enunciados na "teoria do discurso" de Michel Foucault tentando compreender o processo de produção de algumas práticas educativas que têm sido aceitas pela escola. Procurei situar alguns enunciados no discurso pedagógico que, juntamente com outros enunciados e discursos, formam a rede discursiva que constitui os materiais que examinei. Para tanto, compreendi o enunciado como funcional, como "atravessado" por diferentes discursos e em constante transformação. Minha intenção foi, assim, a de trabalhar com os textos atentando para a complexidade das relações entre esses enunciados. Foucault (1997, p 128) afirma que os enunciados não se encontram escondidos nas entrelinhas; eles estão nas linhas, pois são, a partir de um modo de existência, tomados como um ponto de uma vasta rede que por si só não tem significado, mas que compõe um discurso que vai instituir "verdades". Isso faz com que alguns enunciados se façam "presentes" em determinados períodos e não em outros.

    Percebi, também, que não é qualquer instituição que pode falar "com propriedade" sobre o conhecimento científico associado à utilização de fontes energéticas. Normalmente, enunciados desse tipo fazem parte do discurso pedagógico associado à escola, no entanto, em determinadas épocas, eles podem ser elementos dos discursos que constituem as ações educativas de determinada empresa, desde que o que está sendo dito seja reconhecido como "verdadeiro". Em meu estudo, tratei as práticas como constituídas discursivamente e vinculei as minhas análises à produção das ações, dos conceitos, dos objetos que se dão nos discursos.

    Assumir tais compreensões sobre enunciado, formação discursiva e discurso na "teoria" de Foucault, possibilitou-me perceber o quanto é produtivo fazer a análise das coisas "ditas". A compreensão de que os enunciados compõem diferentes discursos, sendo todos eles apoiados em seus respectivos sistemas de formações discursivas, permitiu-me ver, tanto os trabalhos produzidos pelos professores/as nas escolas, quanto os programas desenvolvidos pelas empresas, como constituídos em discursos articulados, nos quais as ações - sobre as quais desenvolvi minhas análises - se instituíram como legitimas em uma determinada época. É possível, então, nessa perspectiva, compreender como alguns indivíduos - professores/as, cientistas, autores/as de livros didáticos, técnicos/as de uma indústria - sentem-se autorizados a dizer o que é necessário ensinar/aprender e qual é a "melhor" maneira de fazer isso. Para tanto, é necessário que eles/as se disponham a "mostrar" o quanto suas informações são "confiáveis" e o quanto o seu saber é, também, "científico".

    Então, esses programas e projetos de cunho educativo organizadas pela Empresa contém enunciados que compõem os discursos que instituem suas ações. Um exemplo disso são os enunciados que falam da "necessidade de manter-se a área industrial em total equilíbrio com a natureza"[2]. Enunciados desse tipo compõem o discurso ecológico, mas, também, o pedagógico e o político, entre outros. Esses discursos se integram a redes discursivas que constroem as visões e ações associadas à educação escolar, à educação ambiental, ao desenvolvimento tecnológico e à soberania nacional.

    Um outro conceito em que ancoro minhas análises é a noção de poder de Michel Foucault. Foucault (1992) afirma que o poder não emana de um centro (trago aqui o caso da empresa estatal), mas é visto como ações sobre outras ações, direcionando-se a diferentes "lugares" do campo social. Por isso, ao analisarem-se as ações educativas da empresa, é preciso ver o poder, não como oriundo da companhia, mas sim como sendo exercido em seus projetos e programas. Esse poder circula, não somente nas práticas da Empresa, mas também, na "aceitação/uso" dessas práticas por professores/as, estudantes, diretores/as de escola, órgãos públicos de proteção ambiental etc.

    Desenvolvi as análises a partir da pesquisa que fiz em informativos, revistas, folders e filmes, bem como dos dados coletados em entrevistas com os técnicos responsáveis pelos programas, de dados levantados em jornais locais que continham informações sobre os projetos da Empresa vinculados ao meio ambiente. Além disso, acompanhei as atividades de um desses programas em uma escola da região[3].

    Nos materiais produzidos pela Empresa e distribuídos para as escolas é enfatizado a importância de reconhecer-se as fontes de energia e os produtos comercializados a partir dessas fontes. Esse enunciado, como outros semelhantes a esse, constitui o discurso pedagógico que circula nas escolas entre professores/as e alunos/as [mais especificamente no ensino de química], instituindo verdades como aquela que afirma ser o conhecimento químico - a química do cotidiano - uma condição para o desenvolvimento da cidadania. Nas seções que seguem, apresento uma análise mais detalhada de programas/projetos da Companhia e dos discursos que constituem essas ações.


A Empresa ensinando ciências

    Ao buscar as ações educativas (aquelas que considerei ligadas ao ensino de ciências/química) constatei que a Empresa desenvolvia muitos outros programas; alguns mais ligados à educação escolar, outros ao desenvolvimento tecnológico e outros, ainda, ao bem-estar social. O modo como os projetos e programas são construídos como educativos me fez olhar com maior atenção para as práticas educativas realizadas na escola e a valorização que a escola dá a estas iniciativas. Tal valorização se dá não apenas em função da produção de um ensino de ciências "melhor", mas também ao modo como a Empresa apresenta suas ações e a rede que estabelece em torno delas. São ações voltadas para a educação ambiental, para a formação de atletas, para a reforma de prédios escolares, para as exposições artísticas e para as atividades de lazer no litoral, entre outras. Percebi que, em determinados momentos, essas ações fogem da relação empresa-escola e se estendem a outros públicos com a utilização de outros meios de difusão além das palestras de técnicos e do encaminhamento de materiais impressos às escolas. Algumas práticas chegam à mídia e aí é possível perceber o alcance dessas ações no sentido de "lembrar" o papel que a Empresa assume na sociedade consolidando sua imagem.

    Analiso alguns programas que se configuram em ações ligadas diretamente ao trabalho escolar e que são usados como auxiliares para o ensino de ciências. Ao transitar nessas ações educativas procurei entender como elas passaram a ser vistas como necessárias e importantes para a escola, já que muitas vezes ela integram as atividades de culminância de um determinado ano letivo[4].

    Chamou-me a atenção, nos textos de folhetos e revistas e, também, nas falas dos técnicos a ênfase em mostrar a utilidade dos conhecimentos e a aplicabilidade dos conceitos aprendidos na escola, sendo esses enunciados sempre presentes nos discursos [pedagógico e publicitário] que instituem os programas. O tratamento que dou a questão do cotidiano no ensino de ciências como enunciado de um discurso, mostra-me que esse enunciado não aparece apenas no discurso das empresas. Ele está presente na fala dos professores/as no discurso pedagógico que circula nas escolas, nos textos da mídia, nos programas oficiais de ensino, enfim, fala-se disso em uma rede discursiva que inclui a questão da utilidade e aplicabilidade dos conhecimentos escolares como enunciado de outros discursos, como o discurso publicitário, o político e o ecológico que, articulados, constituem um modo de ver a educação em uma determinada época.

    Na década de 80 as atenções se voltaram para a seleção/organização de conteúdos e para a ênfase na experimentação, como forma de dar sentido ao ensino de ciências [química]. Os projetos de ensino voltados para o dia-a-dia, para a realidade dos alunos e para o seus interesses visavam a formação de cidadãos críticos e comprometidos socialmente. Era destaque, também nesses programas, a necessidade de motivar os/as estudantes para que tivessem maior interesse em estudar as ciências.

    Os programas cujas ações examinei, abordam questões que vão desde a importância do petróleo para o desenvolvimento tecnológico do Brasil e de sua soberania, como, também, a preocupação da empresa em harmonizar a indústria do petróleo e seus derivados com o meio ambiente. Em um desses programas, os/as alunos/as são recebidos em um auditório onde assistem a filmes, circulam por uma exposição de painéis e acompanham uma palestra na qual esta previsto um momento para que estudantes e professores/as façam perguntas ao palestrante sobre o assunto, esclarecendo dúvidas e levantando questionamentos. Estas atividades possibilitam, entre outros esclarecimentos, o acesso a informações sobre o petróleo e seus derivados, tais como a composição química, as propriedades e as aplicações.

    Em um outro programa desenvolvido pela empresa e o técnico vai às escolas. Ele leva filmes, transparências e folhetos contendo informações sobre processos de extração e refino do petróleo, apresenta kits para testes de propriedades físicas dos combustíveis e enfoca aspectos referentes à distribuição e ao controle dos derivados de petróleo – principalmente dos combustíveis automotivos. Neste programa, também, são exibidos filmes que tratam da origem, da extração e refino do petróleo e, também, da questão ambiental. A palestra se refere aos derivados de petróleo - seu destino, suas utilidades e suas propriedades - mostrando os equipamentos utilizados e os testes realizados para verificar a qualidade dos combustíveis (testes de densidade, aspecto e composição).

    Todas essas questões, de uma ou outra maneira, são levantadas nas salas de aula das escolas. Isso leva professores/as a buscarem maiores esclarecimentos em instituições "legitimadas" para falar sobre o assunto. Nesse sentido, reconhecer na Empresa uma colaboradora das escolas passa a ser uma prática não só da própria Empresa, como também da comunidade na qual ela está instalada. Assim, as escolas recebem bem os programas, pois eles são uma atividade "diferente" das atividades escolares e são oferecidos por uma empresa que tem credibilidade para desenvolver essas ações. Percebi que existe um certo consenso entre os técnicos da empresa e os professores/as, de que tais programas sejam um auxílio às explicações teórico-práticas desenvolvidas em sala de aula. Assim, considera-se que na Empresa seja possível "mostrar" a relação teoria-prática dos assuntos em questão, como se a indústria fosse um grande laboratório que possibilitaria o "acompanhamento" dos processos pelos/as estudantes, enquanto a escola que, normalmente, não conta com recursos materiais nem espaço físico adequado, não conseguiria trabalhar satisfatoriamente a associação entre teoria e prática.

    Nas palestras os técnicos expressam a necessidade da aplicação dos conhecimentos escolares como condição para melhorar a vida dos sujeitos, destacando que esses conhecimentos são importantes já que muitos/as alunos/as são "quase" motoristas e que o fato disso ter relação com as suas vidas cotidianas faz com que eles [os/as estudantes] tenham um interesse especial em conhecer melhor os combustíveis e suas aplicações/propriedades. Enunciados como este mostram a importância atribuída à utilidade e à aplicabilidade dos conhecimentos, podendo, portanto, ser associados aos do discurso pedagógico que enfatizam a importância do cotidiano e do uso [prático] que as pessoas fazem daquilo que aprendem na escola.


A empresa ensinando a preservar o meio ambiente

    O discurso ecológico aparece nos programas da Empresa ora atravessado pelo discurso pedagógico, ora sendo reforçado pelo discurso político. De qualquer forma, ele está sempre presente, se faz visível nos filmes, nas imagens, parecendo-me, muitas vezes, ser o aspecto mais enfatizado nos programas voltados à educação escolar. Nessa direção, busquei compreender as relações de poder e as lutas por imposição de significados que fazem com que uma refinaria de petróleo se institua como "defensora" do meio ambiente mesmo que, algumas vezes, ela possa ser causadora de efeitos danosos ao mesmo.

    Além dos programas citados anteriormente, busquei ver nos projetos voltados especificamente para as questões ambientais o modo como eles adquiriram importância e visibilidade, superando, inclusive, a ênfase dada ao seu processo industrial: extração, refino e distribuição dos derivados de petróleo, que, em princípio, é o que justifica o interesse de professores/as e estudantes das escolas a tais programas. Para realizar essa análise dediquei-me, também, ao estudo de um projeto que busca conscientizar a população para a preservação de um rio da região[5].

    Identifiquei nessas ações jogos de poder que resultam na criação de um regime de verdade que institui a "excelência" da empresa – ela é "mais" competente que a escola para trabalhar com o conhecimento científico, ela promove o desenvolvimento do país, ela é premiada por "cuidar" do meio ambiente. Suas ações educativas são, assim, produzidas em disputas de poder, cuja dinâmica de funcionamento produz ações e práticas.

    Pude constatar que os programas, além de se dirigirem a mostrar como os conteúdos que enfocam são úteis e ligados à vida dos sujeitos, também apresentam à população uma imagem da empresa que qualifica sua responsabilidade com o bem-estar das comunidades: cuida do ambiente preservando e cuidando da água; tem programas de coleta e reciclagem de lixo; dá condições para o desenvolvimento da fauna e da flora; enfim, realiza ações que beneficiam a sociedade em múltiplas direções, mas que colocam o seu "nome" e a sua "marca" sempre em evidência. Isso não deixa de caracterizar um trabalho de Marketing, principalmente, no que se refere à preservação ambiental. Os técnicos expressam esse trabalho em suas falas quando afirmam que todas as empresas poluem, mas que algumas poluem e nada fazem para tratar os efeitos, enquanto que a empresa que eles "representam" trata efluentes hídricos e atmosféricos e promove avaliação da qualidade do ar em algumas regiões. Percebi que esta não é uma fala particular dos técnicos, é o discurso da própria empresa, eles falam em nome dela.

    No entanto, a ênfase à proteção ao ambiente "natural" estendida às falas dos técnicos responsáveis pelos programas/projetos, não coloca esses sujeitos no papel de submetidos ou subjugados ao que a Companhia afirma, eles não estão repetindo o "discurso" da Empresa ingenuamente sem possibilidade de discordar ou discutir sobre o assunto. No referencial teórico em que me apoio para realizar as análises, as relações de poder não pressupõem relações de violência, e sim relações onde o "outro" reconheça-se como sujeito participante de ação, com possibilidades variadas de respostas, reações, articulações e efeitos. Então, essas falas estão conectadas a uma rede discursiva que circula em outras instâncias e que reforça a necessidade de que "todos" - instituições e indivíduos - sejam responsáveis pela preservação ambiental. É claro que, ao mesmo tempo, pelo lugar que ocupam, esses técnicos não poderiam falar qualquer coisa, eles estão inscritos em um regime de verdade e é dessa posição que falam. Assim, mesmo que afirmem coisas que não sejam estritamente aquilo que a empresa "ensina", eles estão falando em nome dela.
 
    Nos materiais distribuídos às escolas a Empresa sempre enfatiza o cuidado que têm com o meio ambiente. Isso não deixa de ser curioso quando se considera as dimensões da poluição ambiental causadas por refinarias de petróleo. Pude constatar que, também, em outras produções - na mídia, por exemplo - a imagem de empresa como atenta e preocupada com a preservação do meio ambiente, é bastante marcada.

    Para que tal cuidado com a natureza se torne uma "verdade naturalmente aceita" se faz necessário a articulação de estratégias para a produção e para a aceitação desta imagem. As estratégias envolvem lutas que não estão limitadas a uma determinada empresa ou a algum meio de comunicação, elas são lutas transversais a ações e práticas sociais. Não existe, portanto, um discurso "poderoso" que, emane da empresa e "obrigue" as instituições e as pessoas a reconhecerem o seu "valor"; esse poder está disseminado nas relações sociais. Percebi que nem sempre a aceitação da empresa pela comunidade se dá de forma pacífica, essa aceitação pode se dar em meio a resistências ocorridas em diferentes níveis - desde a movimentação pública contra a empresa (em casos de acidentes ambientais, por exemplo) até o mais simples "resmungo". De qualquer modo, em algumas situações, passa a ser normal que a comunidade "agradeça" os benefícios que a empresa oferece ao lugar onde se insere.

    Ao destacar as ações que empreende para proteger o meio ambiente em folhetos, palestras e filmes, a Empresa marca a atenção que dá ao meio ambiente, construindo nessas práticas uma imagem que passa a fazer sentido para uma determinada comunidade: professores/as e alunos/as da região. Em um artigo publicado[6], a Empresa enfatiza que plantas e animais convivem harmoniosamente com o processo industrial, tanto que existe a manutenção de um parque ecológico no local. Assim, torna-se público a harmonia possível entre tecnologia e natureza, não havendo a mínima referência a possibilidade de "quebra" dessa harmonia pela decorrência de um acidente ambiental, se não ali em outro local, e é nessa dimensão ambígua e até contraditória na qual estão inseridos os programas e projetos. Assim eles são divulgados e trabalhados com a comunidade escolar.

    Pareceu-me que o programa de visitas de escolas à refinaria foi utilizado, por muito tempo, para mostrar que não se justificariam preocupações por parte da população local com a implantação/funcionamento da empresa, já que em seu meio há um parque ambiental equilibrado, testemunha do cuidado e dos trabalhos que a companhia faz para proteger o ar, o solo e as águas, bem como para minimizar o efeito do impacto ambiental que o seu processo industrial trouxe àquela comunidade.


A mídia auxiliando a empresa a ensinar como preservar o meio ambiente

    É importante registrar que o setor da Companhia responsável pelo desenvolvimento dos programas voltados às escolas é o mesmo que produz boletins informativos e que acompanha o trabalho de divulgação de projetos/programas na mídia. Isso pode justificar, pelo menos em parte, porque em algumas épocas a empresa tenha deixado um pouco de lado a divulgação de suas ações através de algum programa voltado à escola (ocasiões em que um ou outro programa é extinto, sendo que alguns voltam a serem implementados mais tarde) e passado a se ocupar mais com a divulgação da imagem da Empresa na mídia, pois, certamente, a divulgação de seus projetos através da mídia atinge um publico muito maior do que aquele das escolas que visitam a empresa.

    Pode ter sido isso que ocorreu quando a mídia passou a divulgar a produção de um combustível menos poluente por esta companhia[7]. E, também, quando passou a dar destaque ao projeto ambiental que esta empresa desenvolve na promoção de um trabalho de despoluição de um rio da região na qual está instalada. O projeto desenvolvido através de um convênio mantido com vários órgãos e entidades[8], conta com ações de educação ambiental direcionadas para várias escolas da Região Metropolitana de Porto Alegre e do Vale dos Sinos e, também, com ações voltadas para a segurança em casos de acidentes (como vazamentos de óleos e combustíveis, por exemplo). Os eventos previstos no projeto são realizados anualmente em cidades próximas ao local onde a Empresa está instalada e tenta promover, segundo a Empresa, a conscientização da população no sentido de preservar a natureza, não poluindo o Rio com lixo.

    Este projeto surgiu após um acidente ecológico num dos afluentes do Rio. Segundo a informação de um dos técnicos, a ocorrência de um vazamento de óleo no arroio deixou a empresa em uma situação bastante difícil, mas que o projeto de despoluição do Rio "conseguiu" melhorar sua imagem diante da opinião pública, principalmente, por envolver tanto a comunidade escolar dessa região, como a comunidade de modo geral.

    Quanto a repercussão do projeto, é importante salientar que em todas as suas fases o evento foi divulgado através das rádios locais, jornais e televisão. No ano de 1999, houve divulgação e reportagens elogiosas a esse tipo de iniciativa em diversos programas de TV. Também os jornais locais fizeram ampla divulgação do projeto, em chamadas de capa, em reportagens e em pequenas notas de esclarecimentos sobre datas, horários e locais de realização do evento. Sabe-se que as ações de proteção ambiental são obrigações legais, mas a empresa toma essas obrigações como se fosse por sua inciativa e disponibilidade em proteger o ambiente, enfim, passam a ser estratégias de divulgação de sua imagem. Marca, imagem e ação ambiental "ganharam" a mídia.

    Os discursos que circularam nas matérias constituíram as ações organizadas pela Empresa como adequadas, interessantes e como uma forma de minimizar o problema de poluição dos rios. Frisava-se, todo o tempo, que o lixo poluiu os rios, que as crianças não poderiam colocar lixos em locais inapropriados e que as populações ribeirinhas eram as grandes causadoras da deposição de lixo nos rios. É interessante observar que não existiu destaque ou discussão sobre os riscos de acidentes ambientais causados pela própria empresa ou pelas indústrias de modo geral.

    O que me pareceu importante, é que mesmo ao falarem em poluição química (e sabemos que ela decorre principalmente dos resíduos industriais, podendo provocar mudança na coloração das águas, formação de correntes tóxicas, envenenamento de peixes, aves, e outros animais, inclusive do homem), se referiam à disposição de lixo doméstico nas margens e a contaminação bioquímica das águas pelo chorume (líquido resultante na decomposição do lixo). Assim, é desse modo que a comunidade se vê envolvida. Ou seja, a Empresa passa a enfocar, quase que exclusivamente, o lixo como fator de comprometimento da qualidade das águas, desvinculando, nessa operação, a sua parcela de responsabilidade na poluição das águas.

    Esse discurso [ecológico] não é especificidade das empresas. Ele é atravessado por outros discursos [publicitário, por exemplo] e marca a responsabilidade e o compromisso da Companhia prover o ambiente de condições adequadas para manter e dar qualidade à vida da população. Isso ocorre mediante estratégias de aceitação das "fontes de poluição" (uma refinaria, por exemplo), da "formação de imagens" (a sacralização da marca que funciona para o Marketing) e da "inversão de significados" (transformação de um acidente ecológico em um projeto de educação ambiental). Assim, de certo modo, ela [a empresa] estabelece uma relação de "cumplicidade" com a comunidade que, em outras situações (em alguns casos de acidentes com vazamento de óleo), torna-se mais difícil. No processo de legitimação de suas ações pela comunidade, a Empresa coloca o seu nome na "parceria comunitária" que se estabelece visando resolver questões caras à sociedade, tal como é a necessidade de proteger/cuidar do ambiente.


Considerações finais

    A idéia de que é necessário assumir-se compromissos com a educação e com o meio ambiente é bastante disseminada nas escolas, nas indústrias, nas organizações não governamentais, nas associações comunitárias e na mídia. Enfim, na sociedade como um todo os discursos pedagógico e ecológico constroem a relação entre educação e equilíbrio do sistema ambiental como condições para o bem da vida. Talvez isso já tenha sido assumido como um elemento importante da cultura.

    Os programas desenvolvidos pela Empresa são mais do que educativos, eles são instâncias em que a Empresa também se promove. Nesses programas ela desenvolve um trabalho de Marketing de sua imagem, associando o seu nome e a sua marca às ações educativas/ambientais. Não percebi nesses programas/projetos um "discursos poderoso" que fizesse com que a população se "convertesse" as boas ações da Empresa. Essas ações, muitas vezes são contraditórias, mas o funcionamento das práticas sociais se dá desse modo: em meio a disputas que não são "coerentes" no sentido de assumirem uma única direção. O risco de a Empresa ser causadora de acidentes ambientais, de certo modo, é atenuado pelo fato dela ser uma fonte de emprego, de prover a sociedade de recursos energéticos, de ser importante para a economia nacional, de realizar projetos de cunho educativo etc. Isso supõe relações de força que estabelecem os significados que a Empresa passa a ter para a escola e vice-versa.

    Assim, na análise que fiz, vi o poder como constituidor das ações educativas realizadas pela Empresa, dando significado às práticas que instituem as ações ligadas ao meio ambiente e à educação escolar. Constatei a existência de um oferecimento e de uma aceitação da comunidade às práticas da Empresa, mesmo que não consensual, pelos/as professores/as e estudantes. Ao mesmo tempo, a Companhia se mostrou como uma instância que "acolhe e protege" as comunidades como dever de sua função social.

    Nesse campo de lutas para estabelecer soluções e receber credibilidade, estão imbricados os meios e estratégias para formular queixas, manifestar opiniões, exigir soluções, demonstrar iniciativa e competência, justificar métodos e técnicas, e isso não está centrado, apenas, nas comunicações internas da empresa, nas matérias dos jornais ou nas denúncias públicas de órgãos de proteção ambiental. Está, também, circulando em outros lugares, fala-se a esse respeito nas escolas, nas universidades, nos centros de pesquisa, no departamento de transportes das prefeituras, nos postos de gasolina, nos hospitais, enfim, o discurso ecológico "combinado" a outros discursos (ao pedagógico, ao econômico, ao político etc) constitui as "verdades" sobre quais as práticas seriam "adequadas" para proteger o meio ambiente e, também, sobre quais seriam as instituições "legitimadas" para resolver problemas ambientais.

    Especialmente nas indústrias essas questões são bastante discutidas, mesmo porque, em se tratando de meio ambiente, existem normas e leis que obrigam as empresas a terem planos de tratamento de efluentes e de proteção ambiental. Se antes eram apenas os ecologistas que discutiam questões ambientais, é possível dizer que hoje essas questões entraram também no mundo dos negócios e nas suas estratégias de Marketing (funcionando inclusive para o esvaziamento da discussão ecológica, já que esse passou a ser um discurso incorporado à marca das empresas). As empresas seguidamente prometem (em comerciais) garantir bons produtos sem se descuidar do meio ambiente.

    No estudo que fiz, percebi que o trabalho de divulgação das ações desenvolvidas pela Companhia nas questões ambientais, tornou-se uma estratégia importante justificando, inclusive, que se deixe "de lado" (por alguns períodos) os programas voltados para as escolas. Pois os procedimentos, métodos e estratégias vão funcionando e envolvendo disputas de poder que produzem saberes (escolares ou não) como aqueles que compõem as "descobertas" de um combustível menos poluente; de um rio menos contaminado por lixo e de crianças que falam sobre a mata ciliar, sobre as bactérias e sobre o peixe dourado com bastante desenvoltura.

    Muitas empresas realizam práticas variadas que chegam a diferentes locais em diferentes momentos como, por exemplo, a realização de projetos e atividades culturais, o financiamento de exposições e campeonatos, o desenvolvimento de projetos pedagógicos ou a "adoção" de uma determinada área ou região com o intuito de preservá-la. Elas podem, também, desenvolver programas/projetos de cunho educativo e ecológico dirigidos à comunidade como os apresentados neste trabalho, pois essas são, nessa virada de século, práticas de "auxílio" à escola e à educação tidas como legítimas.
 

Referências

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[1]Professora do Curso de Licenciatura em Química no Unilasalle - Canoas/RS.
[2] Esse enunciado aparece em um vídeo produzido pela Empresa.
[3] Região metropolitana de Porto Alegre/RS.
[4] É o caso, por exemplo, da solicitação de participação no programa para alunos do 3º ano do ensino médio, pois nesta série são trabalhados conteúdos de química orgânica, o que permite estabelecer relações com o que é produzido nesta empresa.
[5] Projeto Mutirão do Rio dos Sinos.
[6] Revista da Petrobras, Ano II, n.21, p.21, out-nov/1995.
[7] Refiro-me a "descoberta" do Diesel Metropolitano no início da década de 90.
[8] Entre eles, a Fepam, a Brigada Militar, as prefeituras das cidades de Canoas, Esteio, Sapucaia do Sul, São Leopoldo, Novo Hamburgo e Nova Santa Rita.