A FALTA QUE UMA "BOA" INTERAÇÃO COGNITIVA FAZ AO PROFESSOR DE QUÍMICA

Mara Sílvia Cesário da Mota
Rosália Maria Ribeiro de Aragão



Resumo

    Neste estudo, "eu vou contar o que me fez falta", especialmente considerando o que eu aprendi a denominar de dificuldades de elaboração do meu pensamento teórico’. Busco redimensionar a relação, considerada fundamental - professor-aluno-conhecimento - no contexto do ensino de Química. Relato e analiso o que falta a professores de Química especialmente em termos cognitivos, no âmbito de seu trabalho docente. No curso da investigação e da narração, mantenho como contraponto, ou como ‘fio condutor’ da minha narrativa, a minha experiência pessoal, a minha visão e mesmo as minhas dificuldades pessoais como professora.
 


Abstract

    In this study, "Iam going to tell about what I have missed", mainly considering what I have learned to name as difficult of elaborating my "theoretical thought". I try to redefine a fundamental relationship –teacher- student- knowledge – considering Chemistry teaching. I will report and analyse what is missing to Chemistry teachers, mainly about cognitive abilities, concerning his/her teaching functions. During the investigation and narrative, I keep myself as a counterpoint, as if I were "the wire" of my narrative, my personal experience, my point of view and even my personal difficulties as a teacher.
 
 

    Ao interagir com os meus colegas professores e com alunos, compreendi, em função de minha própria experiência, que o homem constitui-se como tal nas suas interações sociais, por isso é visto como alguém que transforma e é transformado nas relações produzidas em uma determinada cultura (REGO,1996 :93).

    Não pude deixar de ter presentes estas idéias ao abordar nessa pesquisa, os meus processos de aprendizagem cognitiva e acadêmico-cultural deflagrados pelos meus estudos pós graduados.

    As angústias e as decepções que passei, ao ingressar no Magistério, me prepararam, de certo modo, para discutir/trocar idéias/interagir com outras pessoas que estavam vivenciando estes mesmos sentimentos de que eu me apossara, ou que já tinham vivido situações semelhantes, e ainda, com aqueles que, mesmo ainda estando em um curso de Licenciatura, já projetavam que sentimentos como os meus fariam parte de suas vidas, quando eles fossem efetivamente assumir-se como professores.

    Essa experiência pessoal me fez intencionar definir como objeto de investigação as experiências de sujeitos vários ao ingressar no magistério como professores de Química quer no ensino médio quer no ensino superior. Busquei investigar, portanto, as evocações e lembranças de dificuldades e de "lacunas" de conhecimento e de informações de Química e sobre a Química que, por sua vez, acarretaram dificuldades e insatisfações na prática de ensino da Química. Isto tudo tendo como ‘pano de fundo’ um tipo de formação fundada no ensino como "transmissão de conhecimento", isto é, um tipo de formação que não nos possibilitava/possibilita pensar, apenas e tão somente repetir, nem tão pouco tinha idéia de nosso pensamento em formação como profissionais docentes de Química que seríamos.

    Tendo estes propósitos em mente, tomei como sujeitos de minha pesquisa os meus pares do presente(2); meus pares do passado, colegas da Licenciatura que são professores de Química no ensino médio em escolas públicas e particulares (5);alunos licenciandos do presente, envolvidos com a Prática de Ensino da Química ainda em âmbito universitário, no curso final de sua formação docente (17); professores-formadores preocupados com a redimensão da formação docente de Professores de Química do presente/futuro (3).

    As manifestações desses sujeitos foram por mim obtidas por diversos meios e instrumentos, em situações diversas, tais como :
 


    As manifestações, os depoimentos, as transcrições das gravações e os textos por mim recolhidos, à guisa de dados coletados advindos de sujeitos diversos, foram por mim lidos e relidos e destacados em função de núcleos de significação atinentes à temática/problemática, bem como às questões colocadas principalmente em termos da relação experiência de formação docente X experiência de ensino de Química.

    As idéias advindas de e contidas em esses ‘núcleos de significação’ que agruparam/agrupam as idéias apresentadas/manifestas pelos meus ‘sujeitos de pesquisa’ são usadas, em função da oportunidade e da necessidade, como contrapontos e, por vezes, pontos de vista diferenciados em relação à minha experiência pessoal refletida, tomada, por sua vez, como fio condutor desta investigação-narrativa.

    À guisa de organização, expresso as minhas análises nos termos por mim já usados anteriormente, quais sejam, os de assertivas expressivas das idéias geralmenteapresentadas, agora na feição de princípiosou generalizações oriundos de experiências relatadas pelos sujeitos por mim definidos, indistintamente considerados. Isto quer dizer que eu apenas identificarei as várias manifestações pela referência sucinta à categoria de sujeito manifestante, sem privilegiar, em nenhum momento, tais manifestações apresentando-as ‘em bloco’, em termos massivos, mas em termos representativos, expressivos de uma dada visão ou ponto de vista. As formas de referência por mim definidas para os sujeitos, no curso de minha análise, são as seguintes :

    As minhas assertivas advêm da "análise de conteúdo" das manifestações de meus ‘sujeitos de pesquisas’, quero dizer, dos meus interlocutores, principalmente dos meus pares no curso da Graduação e da Pós Graduação. Essas assertivas, construídas em função de manifestações e depoimentos por mim obtidos, me levaram a constituir um conjunto de proposições sobremaneira significativo a propósito do que "falta" e do que se tem "distorcido" nos conteúdos e abordagens presentes na formação docente dos dias atuais.

    Tal conjunto é por mim apresentado a seguir, como disse na feição de assertivas, mas pode também ser considerado à guisa de ‘pressupostos’ de uma nova/outra possibilidade de formação docente de Química.

    Põem-se nesse sentido algumas das manifestações apresentadas por alunos licenciandos, os quais, via de regra, expressam o que pensam sobre sua preparação cognitiva e docente, nos seguintes termos: Estou no último ano do meu curso e acho que não estou nem apta nem preparada para encarar o mercado de trabalho de ensino.(FP)     Confrontando depoimentos como esses, que mutatis mutandis constitui o modo de pensar da maioria, dos egressos e dos licenciandos, pude recordar que, de início, eu pensava que as pessoas com as quais eu me relacionava, não viriam a entender se eu dissesse que estava cursando ‘Licenciatura em Química’, um curso universitário de formação de professores e, mesmo assim, externasse ter sérias dúvidas quanto a muitos conteúdos químicos que usualmente se ensina no ensino médio. Certamente haveria, ao meu ver, um tipo de interpretação que é usual em relação ao aluno, posto que sempre se considera que "ele" é o "fraco" na aprendizagem, é "ele" que não consegue aprender quando o professor ensina, independentemente da ação de ensinar que seja procedida. Por isso eu tendia a nada revelar do que percebia e sentia por receio de ser considerada "má" aluna, uma aluna "fraca" que, no fim do seu curso de formação, ainda não conseguira aprender nem o suficiente para ser professora de escola pública!

    Vale ressaltar que os cursos de formação docente são considerados "pouco nobres" ou de "segunda categoria" posto que permanece, em nível ideológico, matizes do que é expresso no refrão popular que diz : quem sabe faz, quem não sabe ensina... Por isso tudo, aliado ao aviltamento salarial usual de países subdesenvolvidos, é de se imaginar a impressão que causa aquele que não sabeensinar mesmo tendo estudado quatro anos para isso!

    A insistência na racionalidade técnica (CARVALHO E GIL-PÉREZ, 1995, SILVA,1999) em nível da formação de professores formou, forma e continua formando profissionais, ao meu ver, com nenhum preparo pedagógico, e grandes lacunas e principalmente advindas da ausência de compreensão em relação à visão de Química usualmente tratada no âmbito do ensino.

    Os registros dos caminhos percorridos por meus pares atuais eram/são muito parecidos com os meus.

    Considero sobremaneira importante termos consciência de que estamos em constantes transformações e enfrentamos desafios em todos os momentos de nossa atividade docente, sem perder a perspectiva de sermos amanhã muito melhores do que éramos ontem e do que estamos sendo hoje (invocando o teor de um ditado chinês), principalmente em função das oportunidades de interação com outros epistemologicamente mais qualificados.

    Uma das questões mais relevantes, de início, ao meu ver, é relativa à idéia que geralmente temos, ou deixamos de ter, de o que é ser professor de Ciências/Química, independentemente do tempo que dista de nossa formação, bem como das condições institucionais em que essa formação possa se ter dado.

    Tanto eu quanto os meus pares atuais levamos muito tempo para entender o nosso papel enquanto professores, principalmente, em termos tais que pudéssemos admitir que dificilmente chegaríamos a um momento considerado ótimo, a um patamar de segurança e otimização profissional. Assim, foi a compreensão da dinâmica da formação docente que nos explicitou que ser professor é assumir que precisamos estar em constantes transformações, que não podemos parar no tempo, tendo em vista que a ciência se mantém em constantes avanços... Por isso ou frente a isso, temos de reconhecer e compreender que, em âmbito de ensino e de aprendizagem, não é mais possível parar no tempo.

    Nessa perspectiva, lendo e relendo idéias contidas nos textos de algumas das entrevistas através das quais foram expressos pontos de vista de professores de Química, que já se tornaram reflexivos, pude ter clareza que professores diferenciados como aqueles, que estão sempre pensando em proporcionar aos seus alunos um ensino diferenciado, não podem deixar de perceber, como dizem a importância de estar sempre transformando a sua prática de ensino, sempre em mudanças para aperfeiçoar o enfoque epistemológico e pedagógico de suas aulas, de suas ações docentes.

    As primeiras aulas de qualquer professor são, certamente, inesquecíveis. Quer por serem novidades, quer por sentirmos, todos nós, nessas ocasiões, a responsabilidade que nos é posta, que está à nossa frente, ou mesmo a insegurança de não ter clareza do que ensinar ou de não saber como tratar certas questões epistemológicas no âmbito do conhecimento de nossa área/disciplina. Enfim, não temos claro o que precisamos fazer como professores porque, como já assinalei, não sabemos o que é ser professor.

    Não saber ser professor neste início de um novo século, em um mundo diferente que pretende ser "globalizado", em um tempo referido como o da "revolução informática", significa muito mais e nos preocupa muito mais do que há alguns anos ou há algumas décadas atrás.

    Muitos dos meus pares – que, como eu disse, tornaram-se meus sujeitos de pesquisa porque se situaram como meus interlocutores mais próximos no curso de minha trajetória profissional na graduação e na pós graduação - manifestaram preocupações com as suas dificuldades, principalmente em lidar com a linguagem da Ciência/Química, com as teorias e, conseqüentemente, com o pensamento teórico, nos termos em que um deles expressa :

Quando comecei a dar aulas, percebi que, ao prepará-las, tinha muita dificuldade em entender a teoria ... e assim realizar uma boa aula, despertando em meus alunos o pensamento teórico.(MPP).     Em situação correlata, lembro-me que, no meu primeiro dia de aula, eu escrevi na lousa o tempo todo, sem abrir qualquer espaço para os alunos, evitando enfrentar, confrontar ou mesmo conversar com eles. O cerne de minha preocupação era não saber responder às perguntas que poderiam surgir... Então, por ‘segurança’, resolvi "mantê-los ocupados", sem chances de qualquer questionamento, de apresentarem dúvidas ou mesmo ‘curiosidades’ em relação ao ‘conteúdo’ que eu abordava, em relação àquilo que eu supostamente ensinava. Essa, contudo, como vim a saber muito depois, não era característica minha ou um ‘defeito’ meu, mas se configurava como decorrência do que haviam feito ou deixado de fazer comigo, no curso de minha formação profissional na universidade. Outro dos meus pares dá conta disso quando, de forma sobremaneira expressiva, relata : Nas minhas primeiras aulas, essencialmente expositivas, eu me sentia insegura e ansiosa, ao ponto de não conseguir interagir com meus alunos.Praticamente eu não os via na minha frente, não me comunicava com eles, minhas falas eram dirigidas para uma espécie de vazio, como se eu estivesse ‘dando aula para as paredes’ (MPA)     Contar sobre nossas experiências, não é uma tarefa muito fácil, principalmente as que nem consideramos boas nem dignas de ser relatadas, porque são as que nos dizem que não estávamos sabendo ser professores, que não éramos - e talvez nem sejamos ainda – professores capazes de ensinar Química aos nossos alunos.

    Isto a escola fez conosco, dotou-nos de critérios de valores tais que acreditamos que só podemos ou devemos falar, expor, externar aquilo que se enquadre em uma "forma" maniqueistamente aprovável. Falar ou dizer do que não sabemos, das nossas dificuldades é geralmente tido como consentir, registrar ou admitir fracassos. Muitos dos relatos dos meus pares, principalmente daqueles que vou estar introduzindo em minhas discussões, apontam para esta nossa dificuldade sempre manifesta tal como :

Me enxergar em minha prática é colocar-me em ‘suspense’, é transformar-me à medida que transformo minha prática num momento cíclico que não tem fim. Não é algo simples, nem fácil, nem automático ou trivial, face ao percurso regular da rotina da vida.(MPA).     Temos muitas dúvidas sobre como este processo ou este ato de contar o que fez falta pode ajudar...

    Se esta pergunta norteadora da presente investigação chegava a me desconcertar, por vezes, uma indagação se manteve sempre presente no curso do meu processo posterior de educação continuada, justamente quando era muito difícil, no meu caso pessoal, entender de que maneira refletir sobre a prática, sobre o que se fazia – de errado! - poderia ajudar os professores no seu dia-dia em sala de aula. Poucas vezes entendi, de primeira, considerações como as de um dos meus pares atuais, que apresento a seguir, posto que me parecia uma espécie de distorção, uma manifestação de uma personalidade rara, de alguém destemido e "disposto a enfrentar qualquer coisa", que parecia não ser o meu caso, considerando o meu "temperamento tímido".

Gosto de me ver em mudança, normalmente eu sou movida a repensar o como sou, quem sou, porque sou, e onde estou em meus processos de mudança. Ao me ver, sinto como isso é constitutivo de mim mesma, de minhas concepções, idéias, crenças, posicionamentos, e de formas como me organizo em minhas ações/tarefas rotineiras.(MPA)     Tais revelações me pareciam incríveis, mas eu levei muito tempo para vir a ser capaz de expressar algo semelhante. Quando consegui superar "os meus traumas" nesse sentido, assumi que esse tipo de vivência, este tipo de exercício de "olhar de cima" é, com certeza, uma experiência profissional que todos deveriam experimentar no curso de sua trajetória docente.

    Falar, relatar e discutir sobre a prática, buscando melhorias na interação, comigo mesma e com os outros, passou a integrar as minhas ações cotidianas : passei a sempre querer relatar, tratar , analisar com outros as minhas ações e reações bem como de meus alunos.

    Por isso,vale ressaltar a esse respeito, manifestações analíticas como a que se segue:

Esse desafio que é reolhar o vivido no ontem com os olhos de hoje, buscando o que está por detrás da prática e sobre isso refletir como forma de engrandecê-la, é rever, descrever explicitar a história/trajetória de vida profissional.(MPA) (Os grifos são meus)
 
    Nos currículos de cursos de licenciatura, geralmente se incluem no seu elenco de disciplinas formativas a prática de ensino, contudo, tais cursos em tais disciplinas, na maioria das vezes, não conseguem contribuir para que os alunos, futuros professores, adquiram conhecimentos e saberes pedagógicose epistemológicos imprescindíveis para que se sintam seguros nas suas ações de ensino. Isto significa que cada um que abraça a carreira docente aprende a se constituir professor de Química em interações eventuais, dependentes exclusivamente do ‘acaso’ ou de seu esforço pessoal e/ou do seu tirocínio, da sua agudeza ou mesmo de sua sensibilidade para perceber/saber buscar aquilo que lhe falta. Uma manifestação nesse sentido é sobremaneira expressiva e eu a apresento a seguir : ... Me formei professora, vivendo/sendo professora... Através da vivência/prática, não através de uma formação acadêmica ou formal... no próprio projeto de vida que construí.(MPA).(os grifos são meus)
 
    Qual seria a razão dos alunos, os atuais professores, não se sentirem preparados para assumir sua função de educador químico? Por não terem se apropriado devidamente dos conhecimentos e saberes interativos que se põem no âmbito da ação de ensinar ?

    Quando conversei com vários profissionais diferenciados e diferentes pude, descobrir, primeiramente, que todos nós, de modo geral, tendemos a considerar o lugar, a instituição onde fomos ensinados, mas deveríamos manter a atenção no jeito’... Percebemos que nada muda, que não há diferença na nossa formação posto que fomos formados/ensinados "do mesmo jeito", isto é, nos mesmos termos e sujeitos aos mesmos procedimentos didático-pedagógicos e epistemológicos. As manifestações de meus pares expressam isso muito bem, tal como a seguinte:

    Nas aulas teóricas o modelo de ensino continuava cada vez mais familiar, o que hoje chamo de T/R. Os professores faziam a exposição dos conteúdos, explicavam, alguns usavam transparências, outros usavam apostilas, outros usavam o (um) livro didático e - a mim, como aluna, assim como aos meus colegas - cabia-nos estudar muito...para poder reproduzir nas provas.(MPA). (O grifo é meu)

    A ausência de interação, ou mais propriamente, a baixíssima interação que se faz presente neste tipo de ensino, que foi o ensino de todos nós – e continua sendo o de quase todos neste país – evidencia o privilégio a memorização e não a explicação/compreensão dos fatos...

    Mas,como mudar? Como ensinar diferente?Como discutir possíveis significados dos conteúdos, e as relações com a nossa vivência, em sala de aula?Como levar em conta a interação entre os elementos e aspectos que constituem as relações compreensivas de aula?

    No depoimento seguinte, relativo a vários aspectos do ensino na relação com a formação que temos/tivemos, podemos ver claramente as mudanças que ocorreram com esta professora e que servem de exemplo e de ilustração das questões que estamos considerando sobre ‘formas de interação’... A reflexão sobre a própria prática em função da interação com outros sempre proporcionaram à professora, como se pode ver, a aprendizagem que ela não havia podido obter no curso de sua formação profissional considerada "regular". Nesse sentido, ela diz :

Meu papel era repassar a eles. Lembro de quantas horas/dias de estudo eu gastava para ‘preencher’ o tempo de aula que demorava a passar. Minha ‘segurança’ estava no livro, me agarrava no estudo de cada capítulo como um pacote precioso a ser conquistado e superado a cada semana. (MPA) (Os grifos são meus)
 
    Em uma manifestação de dois tempos, o discurso da professora muda completamente, tornando-se mais complexo e redimensionado como se pode ver a seguir : Não me passava pela cabeça pensar sobre tantos aspectos que hoje fazem parte ‘naturalmente’ da forma como sou professora, coisas do tipo intermediar/relacionar os conteúdos com contextos de vivência sejam fatos criados ‘no laboratório’, sejam fatos trazidos do cotidiano; contextualizar,trazer antecedentes, conseqüentes, implicações de tais conteúdos; abordar os conteúdos ou as teorias como construção/criação humana, historicamente situados, como tentativa de explicação do real; discutir sua provisoriedade, enquanto modelos teóricos ou formas através das quais os químicos e a gente pode representar e pensar acerca da realidade; enfim, tantas coisas que hoje fazem parte corriqueira das abordagens que desenvolvo com meus alunos em sala de aula.(MPA)
 
    Para esta professora, como para outras que se põem como meus sujeitos de pesquisa, ensinar passou a ser, é, na verdade, um ato complexo.

    Nessa perspectiva, pude perceber que as aulas desta professora e das outras que vou relatar, diferenciam-se de aulas tradicionais, pelo modo como elas abordam os conceitos, como investigam sobre o que os alunos já sabem e sobre como trabalham a partir de e sobre pré-concepções dos alunos, para ajudá-los a perceber o valor de suas idéias e ensiná-los a trabalhar as idéias que estão surgindo.

    Vejamos o que uma das professoras formadoras diz nesse sentido :

Eu tenho procurado, ao planejar uma aula, trabalhar com temas como pontos de partida ao invés de partir de conceitos, porque os temas já abrangem conceitos... Então, a partir de determinado tema que eu esteja trabalhando, eu vou investigar quais são as explicações que os meus alunos dão para os fenômenos que estão envolvidos naquele tema. Eu vou procurar desenvolver atividades que façam com que eles tenham espaço para explicitar essas idéias que eles trazem e também que dêem espaço para euentrar com o conhecimento científico, negociando com eles qual seria a explicação mais plausível, mais convincente para eles, ao tratar do fenômeno que estamos estudando. (PF) (Os grifos são meus)
 
    As abordagens de ensino, geralmente utilizadas pelas professoras que já se apresentam em um nível docente qualitativamente diferenciado, situam-se muito distantes daquelas constantes ou consideradas nos cursos de formação de professores tal como ainda ocorrem no presente.

    É sabido que os cursos de Licenciatura estão com sua estruturação comprometida, pois se trata de um curso que visa formar professores - e por isso leva o nome de ‘licenciatura’ - mas termina deixando lacunas profissionais de tal ordem que nem o professor nem o químico, pode-se dizer, são efetivamente formados. Além de a maioria dos conteúdos ser ensinada de forma fragmentada e descontextualizada, infelizmente os alunos, muitas vezes, não conseguem perceber as lacunas que são deixadas na sua formação. A razão primordial disso é uma só : eles nada percebem justamente porque sempre foram ensinados dessa maneira usual, portanto é esta a maneira que fica parecendo ser a única e a mais correta de se ensinar.

    Em suma, o que aconteceu foi que tanto eu quanto os meus pares do passado, bem como os futuros professores, ora recém egressos da Universidade, saímos do curso como profissionais despreparados em uma dupla formação que talvez só possa duplicar o despreparo químico e pedagógico. Confrontando os depoimentos de alunos licenciandos de último ano, recém formados nos dias atuais - como os seguintes - fica claro que a situação dos profissionais do presente em nada muda/mudou, posto que o despreparo continua... se não vejamos :

® Vimos até o quinto semestre, disciplinas ministradas de forma tradicional. Começamos a ter contato com este "novo paradigma" há pouquíssimo tempo, nas aulas de Estágio Supervisionado e, por esta razão, não é suficiente para garantir uma boa performance ao lecionar.(FP)

® Tenho muitas dificuldades em trabalhos, tenho muitas dúvidas em Química, as aulas de prática [de ensino] vêm para comprovar que eu não aprendi muitas coisas.(FP)

As queixas do passado e do presente, bem como os anseios e as esperanças parecem seguir na mesma direção, dados os núcleos de significação das manifestações dos meus sujeitos.
 
    Como se pode observar, os futuros professores tanto quanto os meus pares do passado, pelo menos, parecem dotados de algum espírito crítico, posto que atribuem suas dificuldades à falta de seriedade na abordagem de conteúdos que geralmente são apresentados nos programas das disciplinas denominadas específicas.

    Quando eu perguntei aos alunos licenciandos – a propósito de sua preparação epistemológica, cognitiva e pedagógica - se eles conseguiram desenvolver seu ‘pensamento teórico’ em Química de forma que consideravam satisfatória, alguns deles me disseram o seguinte :

    Alguns alunos só admitem ter conseguido desenvolver o seu pensamento teórico em Química porque, antes do curso de Graduação, fizeram curso técnico em Química. Esse curso, pelos dizeres desses alunos, me dá a impressão de terem sido eficientes para quem pretende trabalhar em laboratório. Tal destaque, no entanto, torna-se possível porque, desconcertantemente, o curso de Licenciatura Plena em Ciências acaba por priorizar a ‘química industrial’, visto que eles até admitem uma certa eficiência neste aspecto. Tais idéias são expressas pelos alunos da seguinte maneira:     O modelo usual de ensino por ‘transmissão–recepção’ fica muito marcado para os alunos, principalmente porque, como já disse, este é o único modelo de ensino por eles conhecido. Isto pode ser observado quando os alunos tentaram dizer, de forma semelhante ao que ocorreu comigo, como sabiam que haviam desenvolvido – ou não – o seu pensamento teórico em Química. A resposta de um dos alunos aparece como uma resposta típica, nos seguintes termos :     Assim, nós os professores tendemos a superpor a idéia de transmissão de conhecimento à idéia de desenvolvimento do pensamento, em uma forma esdrúxula de consideração. Os matizes mecanicistas se encontram presentes de tal forma que se torna, realmente, muito difícil evidenciar e convencer, a nós professores, de que há possibilidade de desenvolvimento de um pensamento docente autônomo, construído "sem receitas", bem como estabelecer relações cognitivas implica imprescindivelmente operações de pensamento, isto é, atos de pensar.

    Essas distorções advêm das lacunas que são ocasionadas quando se busca, em termos de formação profissional, "servir a dois senhores", quer dizer, justapor uma vertente de formação profissional eminentemente técnica com uma outra vertente que precisa ser compreensiva e significativa para o profissional a ser formado, o professor. Daí, se conclui, tardiamente, que não se pode servir a dois senhores, que não se pode servir a "Deus" e ao "diabo" ...

    Uma das premissas que nos é apresentada, de início, em qualquer nível de escolaridade é a de que "a Química é uma ciência experimental", no sentido de alertar-nos para o fato de esta ter a haver com a experiência, ‘empírica’ principalmente, insinuar – por mais surpreendente que possa parecer - que há critérios "de verdade" em tal ciência porque esta se relaciona experimentalmente à realidade. Assim, o ‘mundo químico’ é e funciona como se diz ser e funcionar... mesmo que se possa distorcer, por essas idéias, o sentido e o significado de teorias e modelos no âmbito da ciência Química. Tais distorções decorrem justamente de nos distanciamos demasiadamente do status representacional, simbólico, que as teorias e modelos assumem no seio da Ciência, uma vez que se tornam sobremaneira relevantes tanto para explicar quanto para compreender e/ou ensejar compreensão, em termos de ensino e de aprendizagem, do mundo em que vivemos.

    Quando trato de questões como essas, não posso deixar de me sentir feliz de já ter, de certa forma, superado o emaranhado de idéias que nos leva a crer, como professores de Química, que o trabalho prático, as atividades ou aulas em laboratórios, a experimentação, têm o poder de garantir um tipode aprendizagem diferenciada porque exige que os alunos – e o professor – venham a usar os seus vários sentidos para aprender, para adquirir conhecimento científico, cultivando a visão aristotélica de que "tudo o que conhecemos efetivamente passa necessariamente pelos nossos sentidos".

    Nessa perspectiva, quando buscamos redimensionar a idéia de ‘experimentação’ em função do tipo de formação profissional que tivemos, não posso deixar de evocar Aragão (1993: 5) quando expressa – e também o faz geralmente em suas aulas na pós graduação em Educação em Ciências - alguns aspectos de uma visão filosófica considerada atual da ciência, que me parecem relevantes, a saber : Concepções são uma pré condição da experiência. Ver é algo que fazemos tanto com idéias quanto com sentidos. Não podemos ver aquilo que não concebemos. Além disso, as pessoas que usam concepções diferentes ao abordar o mundo, vêem o mundo de forma diferente.

    Talvez, por razões como essas, já se saiba que o trabalho realizado no laboratório não mais é tido como eficaz. O laboratório parece ser apenas um local onde os alunos entram e saem – e até passam o tempo e se divertem! - sem saber realmente como poderiam relacionar os experimentos que lá fizeram, com o que estão aprendendo em sala de aula. Isto porque, via de regra, se cumpre roteiros ‘fixos’ de experimentos, se põe em prática as instruções para se obter os resultados esperados e se relatam os resultados obtidos. Contudo, não existe nem uma discussão sequer sobre o resultado de uma experiência nem, muito menos, das relações que esta possa vir a ter com os conteúdos ensinados anteriormente. Uma das professoras formadoras relata, de forma curiosa e interessante, como foi que ela percebeu a deficiência dessas aulas no curso de sua prática de ensino de Química :

    ...Percebi que não era suficiente apenas realizar atividades práticas, ir ao laboratório, descobrir coisas, mas era preciso construir um pensamento conceitual... As atividades tinham que conduzir à construção de conceitos, o aluno e o professor tinham que "dialogar com o experimento"... não era só colocar substâncias em contato e observar se a cor era a desejada ou não, se formava ou não um precipitado...

    A professora recorda como eram suas aulas na Graduação atribuindo-lhes, agora, um novo/outro sentido e significados sobremaneira importantes para a redimensão pela compreensão de sua prática docente, nos seguintes termos :

    ...Nas nossas antigas [como nas atuais] aulas de Química Analítica, no meu curso de formação o professor nos deixava a tarde toda e toda a noite para descobrir o que estava errado no experimento, que não dava a cor que ele desejava. Não discutia isso! Ficávamos lá horas e horas tentando descobrir... Não aprendíamos nada com isso...(MPA).

    Como poderiam, então ser as aulas de laboratório? Uma professora - à guisa de atribuição de um novo/outro sentido à prática experimental de Química - diz como é que ela costuma fazer, explicitando que é preciso explorar o fenômeno que está sendo estudado e ver as várias explicações que irão surgir- de preferência algo que o aluno ainda não tenha pensado.Não é a teoria nem a prática separada, mas admite que isso não é fácil de fazer.

    A acomodação ao que sempre foi feito, com certeza, não pode gerar avanços porque não pode causar mudanças. Não concordar com o modelo de ensino que me ensinaram na Graduação mas, mesmo assim, reproduzi-lo, de nada adianta. Tenho certo que a interação com meus pares, com meus alunos, com materiais diferenciados, me fez ver que existe, sim, "jeitos diferentes" de ensinar e que é possível ensinar algo que seja significativo para mim, e para os meus alunos se pudermos fazer escolhas em função do que seja passível de compreensão por "um cidadão comum" no mundo atual.
 

Bibliografia

ARAGÃO.R.M.R. Reflexões sobre Ensino, Aprendizagem, e Conhecimento, Revista de Ciência e Tecnologia, pp.15-17,1993.

CARVALHO,A.M.P e GIL-PEREZ, D. Formação de Professores de Ciências; São Paulo: Cortez 1995 - (Coleção Questões da Nossa Época).

REGO,T.C, Uma Perspectiva Histórico- Cultural da Educação, 3ª ed.Petrópolis, RJ: Vozes, 1995

SILVA,L.H.A. Buscando o Caminho do Meio: Construindo uma Parceria entre Professores e Formadores de Professores de Ciências,Dissertação de Mestrado, FE/UNIMEP, Piracicaba:1999.