FORMAÇÃO EM SERVIÇO DE PROFESSORES DE CIÊNCIAS NO BRASIL: CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE



Sergio de Mello Arruda[1]
Departamento de Física, Universidade Estadual de Londrina, Brasil

Alberto Villani[2]
Instituto de Física, Universidade de S. Paulo, Brasil



Resumo

    Esse trabalho procura fornecer alguma explicação satisfatória às diferentes condutas adotadas por professores de Física do ensino médio durante a formação em serviço e, mais especificamente, interpretar porque alguns se sensibilizam e outros são indiferentes aos problemas que enfrentavam cotidianamente. Para isso, estamos utilizando alguns conceitos da psicanálise de orientação lacaniana, a partir dos quais estabelecemos a hipótese de que os professores se encontram capturados por discursos diversos, os quais estruturam sua fala, seu desejo e sua satisfação (seu "gozo"). Em particular existiria uma tensão entre o discurso da "burocracia’, dominante em muitas escolas públicas, que tende a favorecer a inércia, e o discurso do "conhecimento", que, ao capturar o professor, o mantém em um circuito em que predominam atitudes mais ativas.

Abstract

    This work tries to supply some satisfactory explanation to the different conducts adopted by physics teachers of middle school during in service training and, more specifically, to interpret why some are concerned and others are indifferent to the problems that face daily. To do this we are using some concepts of lacanian psychoanalysis, from which we established the hypothesis that the teachers are captured by several discourses, which structure its speech, its desire and its satisfaction (its "juissance"). In particular a tension would exist among the "discourse of bureaucracy", dominant in many public schools, that tends to favor the inertia, and the "discourse of the knowledge", that maintains the teacher in a circuit in which more active attitudes prevail.



Introdução

    A pesquisa aqui analizada foi conduzida na Universidade Estadual de Londrina, no estado do Paraná, entre 1998 e 1999 e consistiu em acompanhar um grupo de 30 professores de Física do ensino médio, da região de Londrina, que estavam realizando um projeto vinculado ao programa Pró-Ciências da CAPES. O grupo, denominado Grupo de Física Moderna (GFM), tinha como tarefa geral, além da sua atualização no conteúdo em questão, discutir e planejar atividades para a introdução da Física Moderna e Contemporânea (FMC) na escola média. Para tanto, as diversas equipes em que os professores do grupo foram separados (designadas pelas letras A, B, C, etc.) foram solicitadas a realizarem várias tarefas, tais como, a definição e discussão em grupo de um plano de trabalho, sua execução nas respectivas salas de aula, a gravação e análise das atividades didáticas desenvolvidas e, finalmente, a apresentação de resultados parciais desse trabalho em alguns eventos.

    À parte as dificuldades decorrentes da formação acadêmica insuficiente da maioria dos professores, que representaram, como pudemos observar, um sério problema para a elaboração de propostas de introdução da FMC no ensino médio, foi possível perceber que os professores do grupo demonstraram, ao longo do tempo, uma conduta intrigante. Vários professores, embora reconhecessem que muitas coisas estavam erradas na sala de aula e esboçassem, às vezes, algum movimento para a superação dessa situação, agiam como se, de fato, não desejassem mudança alguma. Isso ficou visível pela maneira como a maioria se relacionou com os planos de trabalho definidos pelas suas equipes, ou seja, como uma tarefa estabelecida externamente pelo coordenador do curso e que tinha de ser minimamente cumprida. A implementação dos planos de trabalho, quando ocorreu, foi de forma lenta, restringindo-se somente a uma parte inicial. Além disso, a realização de alguma tarefa relacionada ao desenvolvimento do plano, dependeu mais da iniciativa isolada de um professor do que da disposição de todos os membros da equipe.

    Em resumo, a introdução da Física Moderna nas suas aulas não se constituía, aparentemente, em um problema real para a maioria dos professores. Como então explicar a participação assídua dos mesmos nos encontros do grupo, se deslocando alguns mais de 200 km até o local do curso? O que eles estariam realmente buscando?

    A partir de diversas entrevistas, foi possível localizar as seguintes razões para essa questão: muitos professores alegaram que tinham vindo aos cursos de atualização para melhorar a sua formação que, na área de Física, é geralmente insuficiente; outros disseram que estavam à procura de uma nova metodologia que despertasse o interesse dos alunos nas aulas; alguns declararam, simplesmente, que queriam participar de um grupo. Em outros casos ainda, era visível que o professor estava comparecendo aos encontros mais para dar satisfação à direção de sua escola, do que por vontade própria; além disso, para alguns professores, era possível afirmar que eles estavam participando do grupo principalmente em virtude da pequena bolsa que o programa oferecia. O comparecimento dos professores aos cursos de atualização parecia refletir, portanto, múltiplos interesses. Se adicionarmos, ao conjunto apontado acima, os professores que nem mesmo compareceram aos cursos, teremos um quadro mais ou menos geral dos diferentes posicionamentos que eles estabeleceram frente aos desafios e possibilidades que a atividade didática lhes colocava.

    O problema a ser tratado no presente trabalho é, portanto, dar uma interpretação satisfatória às diferentes condutas adotadas pelos professores durante a formação em serviço. Por que alguns são indiferentes aos problemas que enfrentam cotidianamente? Por que outros revelam uma insatisfação com sua situação, mas permanecem dominados por uma incapacidade de mudar? Porque outros enfrentam suas dificuldades e procuram alguma solução?

    Para refletir sobre tais questões estamos utilizando alguns conceitos da psicanálise de orientação lacaniana (Fink, 1998), a partir dos quais estabelecemos a hipótese de que os professores se encontram capturados por discursos diversos, os quais estruturam sua fala, seu desejo e sua satisfação inconsciente. Em particular existiria uma tensão entre o discurso da ‘burocracia’, dominante em muitas escolas públicas no Brasil, que tende a favorecer uma postura imobilista, e o discurso do ‘conhecimento’, que, ao capturar o professor, o mantém em um circuito em que predominam atitudes mais ativas. Ao especificar e discutir a hipótese da captura por discursos, apresentaremos alguns exemplos de professores, cujas falas e ações parecem sustentá-la. Concluiremos discutindo como essa hipótese aponta para possibilidades e modos de desenvolver uma formação rumo ao professor ‘reflexivo’ e pesquisador (Nóvoa, 1992; Schön, 1992; Zeichner, 1993).


A captura por discursos

    Segundo Lacan, o sujeito passa a se constituir a partir do que ele denominou de grande Outro, ou simplesmente Outro (com "O" maiúsculo), que não deve ser confundido com o pequeno outro, o nosso semelhante, as pessoas com quem interagimos. O Outro é uma ordem anterior e exterior ao sujeito, um discurso universal estruturado como uma linguagem, que sanciona tudo o que tentamos comunicar através da nossa fala. O Outro poderia ser representado como o conjunto de todas as palavras e expressões que formam uma língua, a qual nos foi conferida por séculos de tradição (Fink, 1998), ou como um "fluxo discursivo", ou seja, tudo o que foi se articulando através da linguagem oral ou escrita, no quadro de uma determinada cultura (Calligaris, apud Kupfer, 1999). Nesse sentido, o Outro seria constituído como uma superposição de discursos, já que socialmente estamos inseridos em grupos, instituições, ideologias e sub-culturas diversas, cada uma delas apresentando características próprias e um particular dialeto, cada qual girando ao redor de significantes[3] específicos. O importante é ressaltar que uma vez capturado por um discurso o sujeito vai desempenhar certos papéis que são atribuídos por aquele discurso, sendo por ele definido e por ele demandado. Quando capturado, mais do que falar ou pensar por "si mesmo", o individuo é falado e pensado pelo Outro. Ele está alienado na linguagem, no discurso desse Outro. Até mesmo o desejo do sujeito é estruturado a partir desse Outro, tal que também poderíamos dizer que o desejo do sujeito é o desejo do Outro. O Outro, entretanto, não existe como uma entidade abstrata, mas se materializa na nossa vida através dos outros, dos semelhantes com quem convivemos. Inicialmente nossos pais, depois os nossos professores, os nossos mestres ou ídolos ou qualquer autoridade, cada um desses sujeitos assume periodicamente a função de grande Outro, de modo que seu discurso e desejo flui para nós através desses indivíduos.

    Além disso, quando capturado por um discurso, o sujeito tende a desenvolver ações repetitivas, pois o aprisionamento por um determinado discurso envolve uma satisfação inconsciente, ou, como se diz em psicanálise, um gozo[4]. Nesse sentido, é importante frisar que, embora a captura por um discurso possa se apresentar, às vezes, de modo consciente, não é a sua verbalização que nos interessa, mas o investimento inconsciente que ela representa. A ação, verbal ou física, ocorre a partir de uma escolha subjetiva, de uma opção do sujeito.

    Quais seriam as conseqüências dessa idéia ao ser aplicada ao ensino de ciências?

    Os educadores têm apontado que até bem pouco tempo a autoridade do professor era sustentada pela força que emanava da rede simbólica, cultural e discursiva, de uma tradição avalizada por atores sociais relevantes, como os pais e o Estado. Como que personificando os valores de uma escola tradicional, a fala do professor explicitava um discurso, que ainda possuía o poder de capturar o estudante e era centralizado no significante educação, provavelmente entendido como transmissão de conhecimentos.

    Hoje, essa autoridade não existe mais, pois sua rede de sustentação está corroída. A escola mudou numa direção correspondente à transformação do grande Outro: o fluxo cultural se deslocou no sentido da desvalorização do conhecimento e da valorização dos bens materiais e o discurso da escola também seguiu essa trajetória. Vivendo atualmente em um mundo fragmentado, num mundo de aparências, ou em uma "sociedade do espetáculo" (Debord, 1997), que não lhe dá a mínima e que valoriza sobremaneira o superficial e a acumulação de bens materiais, o mestre se encontra desamparado. A todos está evidente sua pequenez, impotência e insuficiência econômica, ou, como dizem os psicanalistas, sua castração imaginária. (Kupfer, 1999). Principalmente nos grandes centros urbanos, a maioria dos professores de ciências da escola média apresenta o que poderia ser chamada, talvez, de uma dupla castração imaginária. Por um lado, encontram-se castrados pela sociedade que lhes impinge um discurso desfavorável retirando-lhes o poder e, por outro, a castração os interdita por meio de uma formação insuficiente, pois lhes retira o saber. Não conseguem, pois, assumir o papel do mestre que sabe, porque não sabem, nem o papel do mestre que pode, porque não podem.

    Em suma, um contexto articulado e, portanto, um discurso desfavorável ao professor condiciona bastante sua atividade profissional. Também existem outros discursos circulando na sociedade, mais favoráveis ao professor, porém mais restritos, quanto a sua divulgação. Nossa hipótese é que os professores estão submetido a estes discursos, deixando-se capturar por cada um deles em maior ou menor grau. Cada discurso carrega uma determinada visão da atividade profissional e implica num determinado tipo de envolvimento na docência, porque cada discurso estrutura de uma determinada maneira o desejo de saber dos professores e sua relação com a profissão. Isso explicaria sua disponibilidade em se envolver mais ou menos em mudanças. Quais seriam os principais discursos com os quais nossos professores estariam envolvidos?

    Nos eventos que caracterizaram o processo de formação por nós analisado pudemos identificar 7 diferentes discursos, cada um com seu conjunto de significantes do desejo e do gozo dos professores: do consumo, da burocracia, do conhecimento científico, do conhecimento metodológico, do conhecimento reflexivo, da pesquisa orientada e da pesquisa autônoma. Passaremos a descrever cada um deles exemplificando através da história e das falas de alguns dos professores que participaram de nosso projeto.

    Discurso do Consumo. O discurso ou o Outro do consumo inclui diversos discursos que circulam em nossa sociedade capitalista, tais como, o discurso do dinheiro, da violência, das drogas, do espetáculo, sendo assumido por colegas, amigos, figuras importantes do local onde o sujeito mora, televisão, etc.. Tal discurso introduz demandas que nada têm a ver com a procura do conhecimento científico, da cultura e dos valores que definem a escola como o lugar de uma educação emancipatória e civilizatória. Os interesses e ações do professor capturado por esse discurso não se casam completamente com os privilegiados efetivamente na escola. Ele permanece nessa instituição na medida em que ele consegue evitar os desencontros mais graves com as exigências do discurso dominante na escola.

    Muitos professores, precariamente competentes para lecionar, acabam entrando numa rotina na qual o trabalho de professor é visto como uma mera "complementação salarial". O diálogo abaixo, ocorrido em um dos encontros do GFM, parece apontar para a existência de colegas capturados pelo discurso do consumo e da ausência de compromisso com a profissão.

    PROF E2 – (O professor.) que pega (aulas ) para complementação de carga horária, que pega para fazer bico, ele não dá aula, ele empurra com a barriga, mesmo sabendo que não está desenvolvendo um bom trabalho...

    PROF C4 – O salário cai todo mês, para quê?

    PROF F2 – Tem gente ensinando coisa errada. Conceitos errados... A gente percebe, né. Os alunos reclamam.

    Esse tipo de professor nem mesmo se preocupa em seguir o programa. Também são freqüentes os casos nos quais alguém tem sempre que ficar fiscalizando determinados professores, senão eles não dão aula ou não comparecem ao colégio. Em casos desse tipo, aparentemente o professor pouco se importa com valores, tais como, educar o aluno, dar uma boa aula ou transmitir algum conhecimento. No final do mês "o salário cai" e é isso que interessa. Esse professor provavelmente encontra-se capturado por um discurso do tipo ‘consumo’, onde o mote "levar alguma vantagem" pode ser dominante. Ele não se interessa em frequentar cursos de capacitação, pois nem mesmo salvar as aparências parece lhe importar. Provavelmente sua relação com o conhecimento científico é de indiferença ou mesmo de rejeição. Não é de se estranhar, portanto, que diretores, como na fala abaixo, considerem que o "maior problema da escola" é mesmo o professor:

    DIRETOR (PROF B2) - Você acredita que o que causa maior problema na escola não é o aluno, é o professor? O professor que não tem aquele domínio de turma, que qualquer coisinha está mandando o aluno na direção, pra gente conversar com o aluno, ele é carente em conteúdo!

    Discurso da Burocracia. É o discurso dos sistemas administrativos, da massificação e da conseqüente obediência ao regulamento. A burocracia transforma o indivíduo em um objeto, em um número. Esse discurso demanda o cumprimento dos ritos burocráticos que garantem as aparências e leva o sujeito a não se posicionar frente aos problemas reais (da escola ou de outras instituições). Importa mais preencher as pautas do que ensinar de fato o aluno. O burocrata "não pode deixar de agir como age, nem sentir como sente, porque acredita que sem a máquina, não tem como agir, sentir ou, digamos de imediato, ter satisfação ou gozar", ou seja, ele está "sempre pronto a abrir mão de pensamentos próprios, em função da máquina" (Costa, 1991:43, 45). Ou seja, haveria um gozo no rito burocrático.

    O Outro da burocracia escolar não demanda que o professor se torne um pesquisador, nem que produza conhecimento. Não demanda, ainda, que o professor procure, de fato, implementar modificações efetivas no ensino, como, por exemplo, adequar a prática diária do professor aos pressupostos educacionais dos novos Parâmetros Curriculares. Ou mesmo, mais especificamente, inserir a Física Moderna e Contemporânea no ensino médio. O sistema escolar regido pelo discurso da burocracia tampouco dá condições para que o professor reflita minimamente sobre o que faz; pelo contrário, implicitamente faz circular a idéia de que todas essas propostas novas não são para serem implantadas realmente, ou para serem levadas a sério:

    PROF C3 - Você analisou que a coisa foi planejada (na esfera administrativa) e automaticamente ela foi cumprida. Só que nós estamos do outro lado e nós sabemos que isso não acontece. Em momento algum você vai conseguir fazer com que aquilo que foi projetado e colocado no papel seja cumprido. Em todo momento, em todo lugar nós vamos ter essas deficiências e mesmo com essas deficiências o ensino vai continuar.

    Ou seja, o discurso burocrático, presente em muitas escolas, tem dois efeitos: em primeiro lugar favorece a permanência do professor em uma situação em que predomina o que passaremos a denominar de inércia. Em segundo lugar dificulta todas as tentativas de mudança. Na fala dos professores abaixo é possível perceber situações nas quais o discurso da burocracia tornou-se dominante, tanto no sentido de, ao ser incorporado pelo indivíduo, abafar seu desejo de saber e de modificar, quanto no sentido de criar um clima que tende a bloquear e sabotar eventuais iniciativas, convencendo a todos de que tudo o que se faz fora da rotina cria problemas e está destinado ao fracasso.

    PROF F2 - Uma mudança não é de uma hora para outra. É difícil você mudar. Por mais que você tente, às vezes você se pega voltando ao modo que você estava acostumado a trabalhar. Principalmente o pessoal há 15, 20 anos trabalhando dessa maneira não vai mudar de uma hora para outra.

    PROF F4 – Eu comecei fazer um trabalho desse na escola, trabalho com os alunos, parte de laboratório, pesquisa, sair fora da escola. Me chamaram na escola. A direção me chamou e falou que os pais dos alunos estavam ligando na escola porque eu não estava dando os conteúdos que eles queriam.

    Como resposta às demandas do Outro da burocracia basta ao professor participar regularmente dos cursos de atualização, capacitação. Ele não precisa se implicar realmente com mudanças. Entretanto, ao aderir ao discurso da burocracia realizando as tarefas rotineiras ou participando de eventos programados, está exposto à eventualidade de se envolver neles, mesmo que parcialmente. Mas se ele começar a refletir realmente e a introduzir inovações, o sistema tenta demovê-lo, colocando dificuldades e dando poucas condições de trabalho. Assim, com o tempo, as iniciativas tendem a morrer se não forem sustentadas por outros discursos.

    O discurso da burocracia aproveita de todas as chances para solapar qualquer compromisso, como aponta a fala do professor ao se referir à eleição do diretor da escola

    PROF F2 – Desde que entrou a política, esse negócio de eleição para diretor, ... O diretor acaba ficando igual a um político sem vergonha. Ele agrada o aluno, porque ele precisa de voto daqui a 2 anos, entendeu? Não tem aquela seriedade... Fica levando tudo em banho maria. Não tem uma postura.

    Discurso do Conhecimento Científico. Um discurso que contrasta com os anteriores é aquele que privilegia o conhecimento científico e, portanto, os manuais (livros-texto). No discurso do conhecimento científico a escola deve transmitir esse conhecimento e o papel do professor é tornar-se a fonte dele. Nesse caso, o conteúdo a ser transmitido e suas implicações constituem o que importa. Quando a captura do professor por esse discurso é dominante, o professor tende a se identificar com o mestre-todo, o mestre que detém o conhecimento a ser ensinado. Faz parte da função do professor, em alguns momentos, dar espaço para a elaboração pessoal do aluno ao propor exercícios e resolução de problemas exemplares. O discurso do conhecimento científico parece coincidir com o que Thomas Kuhn denominou de "aprendizado científico", ou seja, como a aquisição de um vocabulário ou de uma linguagem, por meio da exposição do estudante aos exemplares - inclusive as situações experimentais - e suas soluções (Kuhn, 1990). A satisfação do professor está em ser o centro das atenções, ter os alunos ouvindo ou observando encantados; é o gozo do palco.

    Embora grande parte dos professores do GFM, pelo menos durante o ano de 1998, tenha permanecido capturado pelo discurso da inércia (ou da burocracia), foi possível observar que havia algo a mais. Não obstante a dificuldade em se envolver em tarefas de longo prazo, as quais demandariam bastante esforço, muitos professores também demonstraram em suas falas e ações estar inconformados com essa situação. A princípio, suas falas revelavam a insatisfação com a falta de domínio do conteúdo, com a metodologia tradicional do ensino de Física e/ou com o desinteresse dos alunos. Em seguida, apareceu também uma busca mais genuína, por exemplo, por melhorar tanto os seus conhecimentos e com isso aumentar sua segurança como professor, quanto sua prática e com isso despertar o interesse do aluno.

    Fundamentalmente, parece que essa busca constituía a tentativa de resgatar a autoridade perdida. Quando era perguntado diretamente ao professor do GFM por que ele comparecia aos cursos, muitas respostas foram do tipo:

    PROF D1 -De uma forma geral o que a gente está buscando é formação mesmo. Porque a gente tem muita deficiência nessa parte de conceitos

    Falas como "vontade de saber mais"; "curiosidade"; "busca de informação", "correr atrás do conhecimento", revelam a preocupação dos professores com sua formação, pelo menos em Física. De fato, a demanda pelo conteúdo era central na fala dos professores do grupo. Para muitos, essa situação causava aborrecimentos, movendo-os na direção de uma busca por recuperar a posição do mestre-todo saber, pois isso pelo menos lhes resolveria, ainda que parcialmente, a castração imaginária. Portanto, a busca para melhorar a sua formação pode ser interpretada como a procura de uma solução para a castração imaginária via conhecimento.

    Mas onde o professor podia encontrar um discurso que sustentasse sua busca por esse conhecimento? Na universidade. Por conseguinte, ao buscar conhecimento, o professor demonstrava um desejo de ser capturado por esse Outro discurso regido pelo significante conhecimento científico. Ele queria ser falado pelo Outro do conhecimento. Na verdade, queria o desejo desse Outro, que circulava nas suas demandas. Vejamos a fala abaixo:

    PROF A1 – (Quando aluno) eu analisava o professor meu, que vestia a camisa da sua disciplina, que realmente demonstrava que amava o que fazia. Ele era aquele professor que pesquisava, trazia coisas novas. Então, pra mim como aluno naquela época, aquilo era o máximo. Porque eu falava: ‘realmente, olha, esse professor aí... ele gosta, ele consegue transmitir...’ Você fez isso aí, eu tenho certeza que você vai conseguir... o aluno. E... aí você consegue levar ele aonde você quiser. Você consegue fazer ele viajar... porque você conquistou ele.

    A1 parece focalizar mais o aspecto de conquista de seu professor, de mestre-todo saber, aquele que é falado não a partir do discurso da burocracia ou de discursos do consumo, mas pelo Outro do conhecimento. É esse Outro que o professor A1 supunha estar na universidade e que ele procurava. A sua busca era ser falado por esse Outro para que ele próprio pudesse falar da posição de quem sabe. Em maior ou menor grau, parece-nos que esse tipo de busca era o mais comum e estava na raiz da procura pela universidade demonstrada por diversos professores do grupo pesquisado.

    Discurso do Conhecimento Metodológico. Um dos problemas principais do ensino, não só de Física, é a falta de motivação dos alunos para as atividades escolares e para o estudo em particular. Por isso existe uma grande procura de instrumentos e inovações que possam ajudar a enfrentar esse problema. Em particular, a procura maior refere-se às metodologias que prometem resultados quanto à motivação dos alunos, fornecendo detalhes quanto às estratégias correspondentes. Os professores parecem procurar um método a prova de suas próprias falhas, ou seja, que funcione pelos seus méritos intrínsecos. O sucesso das metodologias comportamentalistas da década de sessenta e setenta foi devido a essa expectativa: bastava achar os reforçadores adequados e o ensino se tornaria uma tarefa simples e gratificante. O gozo do professor capturado por esse discurso está no controle da sala de aula, na percepção da disciplina dos alunos, na organização das atividades.

    Mencionamos acima que a demanda por conteúdos era uma das principais razões para o professor comparecer aos cursos de capacitação. Entretanto, a disposição demonstrada pela maioria dos professores em participar do Grupo de Física Moderna, parecia brotar da procura também por uma "nova maneira de ensinar". Com freqüência os diálogos apontavam para a busca por alternativas metodológicas de ensino:

    COORD - E o que leva o professor a fazer cursos, a se deslocar 200 ou 300 km?

    PROF D1 - Acho que todo mundo está meio descontente com a própria forma de ensinar. Todo mundo está querendo buscar uma coisa nova.

    PROF D2 - Uma outra maneira...(de ensinar). Tentar fazer alguma coisa, quem sabe uma coisa diferente... ver como a gente tem que trabalhar...(em sala de aula)

    Das entrevistas com as diversas equipes e pelas falas dos professores desde os primeiros encontros, foi possível perceber que essa busca por alternativas metodológicas estava relacionada a uma certa insatisfação com a maneira tradicional com que a Física é ensinada, ou seja, com a predominância de cálculos, em detrimento de uma discussão mais conceitual e mais relacionada à realidade:

    PROF H2 – Talvez, se eu entendi, assim para ser curto e grosso, (o que nós queremos é) mudar da visão tradicional de ensino, embora tenha muita coisa boa, para uma visão mais avançada.

    Onde por tradicional eles estavam entendendo, segundo suas palavras, "trabalhar a Matemática da Física", "ensinar formulinhas" e "aquilo que a maioria dos vestibulares cobra", "seguir o livro" ou "usar apostilas". Essas falas indicavam uma busca não pelo conteúdo, mas por uma metodologia que resolvesse principalmente o problema do desinteresse dos alunos.

    PROF B2 - Talvez a maior dificuldade do professor hoje seja atrair o interesse do aluno. Despertar esse interesse.

    Discurso do Conhecimento Reflexivo. Observa-se, em geral, que somente depois de ter dado conta dos problemas com o conteúdo ou com a disciplina o professor tende a se preocupar com a aprendizagem efetiva dos alunos (Pacca & Villani, 1996). Essa seria uma fase posterior da captura pelo discurso do conhecimento, que corresponderia, nos casos analisados nesse trabalho, à adesão ao conhecimento teórico e prático sobre a aprendizagem em ciências, que enfatiza a necessidade de participação ativa do aluno em sua realização. Atualmente, o paradigma dominante é o construtivismo, que coloca como mote central desse discurso uma construção pessoal do conhecimento. Tem como meta o domínio do conhecimento previamente definido, por isso ainda mantém a dependência do sujeito em relação ao mestre. Focaliza a atividade reflexiva do professor, para que ele possa acompanhar a evolução da aprendizagem de seus alunos. Entretanto, também vislumbra em seu horizonte a possibilidade de uma certa originalidade do aprendiz em relação ao caminho de aprendizagem ou à elaboração de detalhes específicos. Nesse discurso, o gozo do professor está em conduzir os alunos para uma determinada meta, mas com o esforço deles próprios. Ou seja, ter um controle final da aprendizagem, mas com a participação ativa dos alunos.

    A efetivação de uma mudança na maneira de ensinar não é uma tarefa fácil, como indicam nossos dados, pois o discurso burocrático, presente em muitas escolas, não dá sustentação para o professor nesse processo. Em nosso curso, alguns professores puderam encontrar condições para que ocorresse alguma mudança na sua ação. Foi o caso do professor B1.

    Formado em Agronomia, o professor B1 fez, em 1998, uma complementação pedagógica, que lhe dava o direito de lecionar Física. Desde o início das reuniões do grupo até setembro de 98, data da realização da primeira entrevista, a participação desse professor se reduzia ao comparecimento regular aos encontros e a algumas intervenções nas discussões em sala, que não se distinguiam da demonstrada por vários outros professores. Não havia definido ainda qualquer plano de trabalho e nem havia assumido explicitamente a investigação de qualquer problema. A sua ação no grupo, antes marcada pela inércia e por uma participação aparentemente eventual nos encontros do grupo, mudou radicalmente no decorrer de um processo que pode ser caracterizado a partir em dois movimentos.

    Em um primeiro momento, no período de setembro a dezembro de 1998, o professor executou diversas ações, como a realização de entrevistas com professores da sua cidade e a apresentação do seu plano de trabalho aos colegas, realizada de uma forma criativa e dinâmica. O ponto central das preocupações do professor era a motivação dos colegas, mas trazia como pano de fundo a questão de melhorar suas aulas, para motivar os alunos. Diferentemente de outros professores do grupo, no seu caso não havia uma demanda explícita por conteúdo, mas por novas metodologias para o ensino de Física. A partir dessa fase, o professor B1 passou a demonstrar uma intensa participação e motivação para trabalhar nas questões que havia elegido para seu plano de trabalho.

    Posteriormente, já em 1999, ele também executou diversas ações, como a leitura de artigos, a elaboração de um texto e a apresentação de trabalho em alguns eventos, que convergiram para o aperfeiçoamento de seu planejamento. A questão de melhorar sua prática centralizou suas ações nessa fase; ele fez uma análise sobre o seu próprio desenvolvimento como professor, localizando várias etapas. Na primeira, na qual tinha procurado se "enquadrar no sistema", pautava suas aulas a partir das informações e sugestões de seus colegas. Na segunda fase ele realizou duas experiências importantes: a elaboração de uma monografia sobre liderança na sala de aula, que o introduziu na pesquisa em educação, e a participação em um curso de capacitação, na qual parece ter aprendido novas formas de trabalhar o conteúdo em sala de aula. Finalmente, quando já fazia parte do Grupo de Física Moderna, ocorreu a etapa, que ele próprio denominou de etapa "reflexiva", na qual, segundo o professor, ocorreram mudanças significativas em sua maneira de dar aula:

    PROF B1 - O que eu acho o que mudou mesmo foi ver as aulas de vocês aqui (referindo-se ao GFM). Quando eu vi aí, que você jogou aquele apagador no chão lá... (mostrando o deslizamento de um objeto no chão)... Os alunos têm que pensar... Eu comecei a gostar...Os textos também, que você me passou,… me ajudaram barbaridade. ... O que eu estava fazendo? Então você falou do professor e da reflexão. Por isso que aquela parte teórica que eu apresentei lá...ficou centrada nessa questão reflexiva.

    Ao analisar sua trajetória como professor, B1 ressalta a leitura de textos e as reflexões provocadas pelos encontros do grupo como elementos marcantes da mudança de sua prática. Esses elementos parecem ter encontrado eco nas suas preocupações anteriores, que se centravam mais no aluno e em sua motivação para pensar. Ou seja, o foco da busca do professor B1 poderia ser colocado como estando no conhecimento reflexivo, que ele necessitava para se aproximar de sua meta geral e operar uma mudança em sua prática.

    Discurso da Pesquisa Orientada. Este discurso é o primeiro de uma dupla que se coloca como sucessiva ao discurso do conhecimento, pois sua ênfase é a crítica ao conhecimento estabelecido e a produção de novo conhecimento. Chamamos de pesquisa orientada aquela que surge sob orientação de um pesquisador mais experientes, ou seja num contexto de prestar conta para alguém e/ou para um determinado referencial que não está sujeito à contestação. Mesmo assim implica na produção de um novo conhecimento, e portanto aponta para o encontro com possíveis conflitos, angústias, dúvidas. O gozo do pesquisador iniciante é o gozo de arriscar sob proteção. De não saber para aonde irá, mas saber que terá ajuda. Trata-se, evidentemente, de um discurso que dá conta de lidar com o provisório, pois o pesquisador iniciante, aos pouco vai se tornar experiente ou vai abandonar a pesquisa. É a situação do professor que está realizando uma dissertação ou um trabalho de especialização. Depois disso ele poderá continuar ou parar. Se ele for capturado por esse discurso, sua relação com a prática docente torna-se mais fluida. Alguns resultados de suas pesquisas certamente a influenciam e de alguma forma são nela introduzidos, mas ainda ele não tem a autonomia para orientar-se totalmente a partir do conhecimento produzido. Digamos que seu gozo como professor é semelhante ao seu gozo como pesquisador: introduzir inovações locais, realizar tentativas parciais. Por isso experimentará também o conflito e a angústia de não enfrentar os problemas de maneira global.

    No grupo analisado, o caso que mais parece corresponder a essa captura é o do professor C1. Em 1999, ele estava concluindo uma licenciatura plena em Física; já havia feito um curso de especialização em Metodologia e uma Iniciação Científica, o que lhe trouxe algum contato com o conhecimento pedagógico e com atividades de pesquisa. O professor C1 era considerado pelos seus colegas do grupo como aquele que, dentre eles, tinha maior domínio sobre o conteúdo e maior interesse na introdução da Física Moderna e Contemporânea na escola média. Entretanto, sua equipe pouco realizou a esse respeito durante todo o ano de 1998. A situação mudou a partir de 1999, quando C1 teve que planejar, junto com um colega C2, um mini-curso como tarefa da disciplina de Prática do Ensino de Física, que ele estava cursando. Com a ajuda do coordenador do GFM planejou, gravou e analisou algumas aulas ministradas para um grupo de 12 alunos do ensino médio, sobre um conteúdo relacionado a luz. As três primeiras aulas foram tradicionais, com muita fala e alguns experimentos. Essas aulas foram discutidas com o coordenador do grupo, onde ficou claro para os professores a pouca participação dos alunos. Aparentemente, segundo os comentários realizados durante a análise das aulas, a falta de envolvimento dos alunos não pareceu ter causado impacto em C1, que ainda estava preso à questão de que o importante para uma aula era um bom texto e uma boa articulação do conteúdo.

    Para a quarta aula, um questionário sobre óptica geométrica, sugerido pelo coordenador e adaptado de um artigo, pareceu sensibilizar o professor, que resolveu incorporá-lo ao planejamento. Essa aula foi um sucesso, do ponto de vista da participação dos alunos. Houve muitas discussões, a partir das quais foi possível analisar algumas das concepções espontâneas que surgiram. Essa atividade marcou bastante o professor C1. Segundo ele, a experiência de ouvir os alunos, bem como a transcrição das fitas fez com que ele mudasse sua visão de ensino e se envolvesse mais com a questão da pesquisa em educação. De fato, o professor C1 passou a acompanhar o coordenador do GFM nas gravações de algumas entrevistas que foram realizadas naquela época em cidades vizinhas a Londrina, demonstrando interesse em atuar em uma investigação. Posteriormente, escreveu e apresentou em dois eventos educacionais trabalhos sobre os resultados do mini-curso. Mais ao final desse ano, o professor C1 manifestou interesse em continuar com as reuniões do grupo em 2000, o que de fato acabou ocorrendo, dando continuidade ao planejamento, gravação e análise de suas aulas sobre tópicos da Relatividade Especial. Seu envolvimento parece ter se estabilizado na busca de participação em atividades de pesquisa. A mudança em sua ação didática foi uma consequência de seu envolvimento em atividades de investigação. Nelas, sua satisfação se deslocou para querer saber sempre mais e sua procura se estabilizou.

    Discurso da Pesquisa Autônoma. É o discurso que capturou quem está envolvido, sozinho ou com um grupo, na resolução de problemas originais, a partir de alguma tradição de pesquisa. É o discurso da criação, da elaboração de algo original, sem a necessidade de prestar conta para uma instância superior. Isso implica que as eventuais instâncias julgadoras de sua produção são constituídas por pares. O gozo associado a esse discurso está em ultrapassar sempre toda construção previamente feita, em ir além de toda conquista anterior, em não chegar, na verdade, a nenhum lugar definitivo. É o gozo de se autorizar por si mesmo a percorrer um caminho. Quando esse discurso captura a ação docente, o professor torna suas próprias aulas e sua prática didática objetos de pesquisa e as organiza de maneira global. O ponto importante é que sua busca sem fim marca implicitamente seus alunos, contagiando alguns deles para a pesquisa.

    No caso do GFM, quem mais se aproximou dessa captura foi o coordenador, que estava realizando simultaneamente sua pesquisa de doutorado, tendo como objeto a própria experiência. Ele já havia atuado na formação em serviço de professores de Física do ensino médio através de cursos de curta duração, especialização e outros. Nos primeiros meses de atuação no GFM, ele confiou que a própria estrutura por ele organizada, colocando um problema para os professores, se incumbiria de promover a mudança esperada. Entretanto não foi isso que aconteceu até a metade do segundo semestre de 1998. Os primeiros indícios de mudança dos professores coincidem com a mudança do processo de busca por parte do coordenador, que começou efetivamente a se preocupar tanto em encontrar explicações para a inércia praticamente geral dos professores, quanto em elaborar atividades que facilitassem o envolvimento deles.


Algumas considerações finais

    A hipótese teórica da captura por diferentes discursos parece poder ser estendida para a caracterização das evoluções individuais ou coletivas dos alunos durante o processo de aprendizagem. Assim a captura pelo discurso do Consumo implica numa situação em que o conhecimento escolar é rejeitado ou desprezado pelos alunos. Analogamente o discurso da Burocracia sustenta a oscilação dos estudantes na sua aproximação com o conhecimento e na entrega ao professor. A satisfação nesse caso está em evitar o comprometimento com alguma coisa. Na captura pelo discurso do Conhecimento Científico, os alunos têm total confiança que o conhecimento seja transferido com pouco ou nenhum esforço, bastando que, para isso, prestem bem atenção à fala do professor. O gozo está em escutar o professor e os colegas são outros espectadores. Na captura pelo Conhecimento Metodológico os estudantes demonstram maior participação e aceitam mostrar o seu conhecimento. Entretanto, isso se dá mais pelo gozo em se fazer notar pelo professor do que em querer se apropriar do conhecimento. No caso do discurso do Conhecimento Reflexivo os aluno já aceitam procurar pelas respostas e o conhecimento é algo que se deve adquirir através do esforço, em um processo que comporta alguma satisfação. Ao ser capturado pelo discurso da Pesquisa Orientada os alunos já rompem em parte com o esquema institucional oscilando entre duas metas inconscientes: serem reconhecidos pelo professor ou satisfazerem seu próprio desejo de saber. Finalmente no discurso da Pesquisa Autônoma, os alunos procuram resolver os problemas de forma autônoma, assumindo a paternidade do conhecimento produzido. O gozo, agora, está na produção de conhecimento orientada por um desejo de ultrapassar o conhecido.

    A análise pela captura do professor ou do aprendiz por diferentes discursos focaliza sua ‘alienação’ em cada um deles e seu aprisionamento a uma corrente de significantes. Tanto na captura pelo discurso do consumo, quanto na captura pelo discurso da pesquisa o indivíduo entra numa sequência que tende a se repetir, por causa da satisfação envolvida. Ele está preso num determinado horizonte. Entretanto, do ponto de vista educacional, ser capturado por um ou outro discurso não é equivalente, pois os discursos permitem uma contribuição diferente para o processo de formação e o exercício da cidadania e, sobretudo, para a implicação subjetiva. Na interpretação que é aqui fornecida, o lugar principal da presença subjetiva estaria nos eventos efêmeros que marcam a passagem de um discurso a outro, ou seja na separação de um e na aceitação de outro. Cabe sinalizar que a densidade dessa participação varia, dependendo da passagem que está sendo realizada. Certamente abandonar as implicações do discurso da burocracia e deixar-se implicar no discurso do conhecimento científico implica uma escolha implícita e, portanto, a emergência da subjetividade ou da liberdade (bem como da imprevisibilidade, que caracteriza o processo de aprendizado), mesmo que em ambas as situações a dependência do Outro seja ampla. Entretanto, passar da captura pelo discurso do conhecimento reflexivo para a captura pela pesquisa envolve uma emergência da subjetividade muito mais plena, pois abre para a possibilidade de renovar continuamente a originalidade e a criatividade.

    De fato, ser capturado pelo discurso da pesquisa implica que em se alienar num esquema, aceitar ser moldado pelo conhecimento científico existente, mas para negá-lo e ultrapassá-lo; ou seja, no próprio exercício da pesquisa haveria momentos de ruptura, com o aprisionamento, por exemplo, juntando elementos que outros separam ou separando elementos que outros identificam, nos quais o sujeito, isto é, a individualidade básica, emergiria com plenitude. A criatividade nesses momentos seria plena e não uma simples adesão, como no caso da passagem da captura de um discurso para outro.

    Como conseqüência, consideramos que a função mais importante do professor é fazer com que o aprendiz seja capturado por discursos ‘menos alienantes’ e que deixam mais espaço para suas iniciativas subjetivas. Por exemplo, como fazer para que o aluno abandone a inércia de ouvir o professor e aceite se esforçar até entender plenamente? O que a interpretação de alguns casos tem nos mostrado é que a saída de um circuito inercial pode se dar, inicialmente, por uma demanda externa que aponta para o desejo do Outro e causa alguma insatisfação ou oferece algum gozo alternativo. Trata-se de explorar a relação transferencial pedagógica (Villani, 1999), ou seja, a dependência do aluno, introduzindo uma demanda que facilitará a experiência de uma satisfação diferente.

    Vejamos, por exemplo, o caso do professor que é colocado na posição de mestre- todo por seus alunos. Nesse caso podemos falar de uma situação caracterizada pela instalação de uma transferência imaginária, caso em que os alunos, supondo que o professor possui um certo saber que lhes falta, imaginam que este tenha a chave para resolver seu problema. Ao pedir que estes aprendam efetivamente e dominem um determinado conteúdo, o professor cria automaticamente uma insatisfação e aponta para uma nova satisfação. Nesse momento o sujeito, ou seja, sua liberdade, pode emergir aceitando romper com a repetição de escutar o professor e com a correspondente satisfação implicada. Alunos podem aceitar entrar numa nova maneira de aprender, mesmo que isso implique em sacrifícios e perdas. Mas é preciso que a nova posição seja sustentada pelo professor através da exploração do que se denominou de uma transferência simbólica, que ocorre quando o aluno opera uma mudança na sua relação com o saber, se implicando na busca pela solução dos seus problemas, ainda que com ajuda do professor. Ou seja, com sua autoridade o professor deve 'garantir' o resultado da operação iniciada pelo aluno, sustentando-o para não desistir do esforço.

    Um ponto importante a ser salientado, no caso do professor querer influenciar a passagem para um discurso novo é que seja respeitada sua gradualidade, ou seja: para se deixar capturar por outro discurso é preciso que esse novo discurso esteja localizado em uma zona de saber proximal. Essa expressão aqui utilizada foi inspirada pela idéia de zona de desenvolvimento proximal de Vygotsky[5]. Segundo esse autor, o professor precisaria criar zonas de desenvolvimento proximal, pois se o que está se querendo ensinar estiver muito distante do que a criança consegue fazer por si só, ela não aprenderá, mesmo com a assistência de alguém (Rego, 1994:75).

    Para entender nossa idéia de saber proximal, é preciso considerar que o saber elaborado pelo aprendiz envolve conhecimento e gozo, ou seja, o saber é o conhecimento (isto é, conjunto de idéias, conceitos, etc.) amarrado a alguma satisfação (Pacca & Villani, 2000). Para que alguém aprenda de maneira marcante alguma coisa, é preciso que esse novo conhecimento esteja investido de algum gozo, precisa trazer alguma satisfação para o sujeito, ou seja, ser sustentado por algum tipo de discurso. Talvez mais do que ter algum significado, o novo conhecimento, para se tornar saber próprio do indivíduo, tem de estar ancorado a um novo significante e com ele a uma nova satisfação, que é o que faz o sujeito investir na sua compreensão. Nesse sentido, assumimos que a mudança de um discurso a outro se dá de forma gradual, às vezes passando por um discurso intermediário, por algum saber proximal, que pode ter sido construído previamente pelo próprio sujeito ou estar sendo evocado e ampliado pelo professor na sua intervenção.

    Por exemplo, o envolvimento e a mudança (saída da inércia) verificados no professor B1, só foram possíveis porque o discurso trazido nas intervenções feitas pelo coordenador encontrava-se em uma zona de saber proximal. Durante o primeiro momento, a partir dos diálogos estabelecidos com o professor B1, logo ficou evidente que ele já havia tido alguma experiência anterior com atividades próprias da pesquisa em educação, como a realização de entrevistas e questionários, o que era explicado pela experiência na elaboração da monografia. A maneira como sua fala se articulava em torno de questões, muitas levantadas por ele mesmo, também demonstrava a sua captura, ainda que eventual, por um outro discurso, o da pesquisa. Não houve, entretanto, uma tentativa de sistematização dos dados que ele havia colhido, com as entrevistas que realizou, de modo que podemos considerar que não houve uma mudança para o discurso da pesquisa.

    Analogamente, pelas falas do professor C1, gravadas no início de 98, podemos dizer que ele já estava capturado pelo discurso do conhecimento quando se envolveu com o Grupo de Física Moderna. Entretanto, ele se encontrava capturado mais pelo conhecimento do conteúdo. A sua fala era mais técnica e ele gostava de escrever apostilas e considerava o material didático como o elemento mais importante no planejamento de uma aula. Suas aulas, dominadas pela exposição, evidenciavam um gozo da fala. Não havia uma disponibilidade para ouvir os alunos e permitir, assim, o estabelecimento de um diálogo. Entretanto, a contradição entre a fala (muita) e a ação (pouca) foi superada. Ele passou à ação e permaneceu neste patamar, até o final de 2000. A passagem para a ação foi deflagrada na 4ª aula do mini-curso. O que lhe faltava era um passo intermediário, uma oportunidade para exercer, sob assistência, uma atividade de investigação. Considerando que o objetivo do coordenador era, em última análise, levar esse professor ao papel de produtor de um saber pessoal, ele estava destinado a ir perdendo, gradativamente, o controle do processo, conforme C1 fosse se tornando cada vez mais autônomo, como de fato aconteceu, em boa parte, nos meses seguintes.

    Como último ponto gostaríamos de comentar a função exercida pela demanda externa na determinação de uma ação. Vimos, por exemplo, que as ações dos dois professores C1 e C2 só ocorreram em função de um mini-curso que era exigência do Estágio, ou seja, uma situação provocada por uma demanda institucional da formação inicial de professores. Era uma demanda da universidade aos professores do GFM que estavam também concluindo a licenciatura (professores C1 e C2). Não é possível afirmar, mas é bem provável que os professores não teriam tido nenhuma iniciativa se não fosse essa demanda externa.

    A pressão de uma exigência institucional se coloca, de fato, como um fator indispensável, na maioria dos casos para a realização de certas tarefas. Esse fato é bastante conhecido e aplicado na vida cotidiana, principalmente nas instituições de educação, como a universidade. A explicação é que a elaboração de um saber não é um processo que ocorre espontaneamente, mas exige esforço. Em conseqüência, para se despertar o que poderia ser chamado de desejo de saber talvez se tenha de passar, num primeiro momento, pela demanda externa (de uma forma que ainda não está completamente clara para nós, do ponto de vista subjetivo). O contato constante e cotidiano com uma demanda intelectual vinda da instituição pode inserir o sujeito em um outro circuito de gozo. Ninguém nasce pesquisador, mas aprende e é capturado pelo discurso da pesquisa a partir de uma demanda externa, como um doutorado, por exemplo, em um processo sustentado pelo orientador.

    Em um grau menor, porém como um processo semelhante, encontra-se a demanda de iniciação à pesquisa trazida pela exigência de monografia em curso de especialização, que ao colocar um peso na monografia, atribui uma tarefa, que é uma demanda externa muito importante para iniciar a captura de alguns professores pelo discurso da pesquisa. Uma especialização está muito mais amarrada institucionalmente do que um curso de atualização e, por isso, tem mais chances de provocar movimentos nos professores e eventualmente até desencadear mudanças. No Grupo de Física Moderna tivemos vários exemplos de movimentos provocados dessa forma, como o do professor E1, que adotou o tema inicialmente definido para a equipe E como o tema de uma monografia que ele teve de escrever em função de uma especialização em Educação Matemática. O mesmo aconteceu com a professora E2 e o professor A4, cujos únicos movimentos durante os encontros do GFM ocorreram em função da elaboração de monografias para uma especialização em Ensino de Física.


Bibliografia

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VILLANI, A. (1999). O professor é como um analista? Ensaio, 1, 5-26.

ZEICHNER, K. (1993). A formação Reflexiva de Professores: Idéias e Práticas. Lisboa: Educa.
 

[1] Com financiamento parcial da UEL. Renop@uel.br
[2] Com auxílio parcial do CNPq. Avillani@if.usp.br
[3] Poderiamos definir um significante como o elemento de um discurso, a “imagem acústica” de uma palavra, gravada no inconsciente, que representa e determina o sujeito, estruturando o seu desejo e o seu gozo.
[4] Esse termo, na psicanálise não tem a mesma conotação sexual que na linguagem comum.
[5] Esse autor definia o nível de desenvolvimento real  como aquilo que a criança consegue fazer autonomamente e o nível de desenvolvimento potencial ou proximal aquilo que ela consegue fazer apenas com ajuda de alguém.