FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE FÍSICA E A INTERDISCIPLINARIDADE(*)
 
 

José de Pinho Alves Filho
Terezinha de Fátima Pinheiro
Maurício Pietrocola
Grupo de Pesquisa em Ensino de Física
Departamento de Física – UFSC
Florianópolis / SC
jopinho@fsc.ufsc.br
 
 

Resumo

    O trabalho apresenta um relato parcial de uma pesquisa que tem por objetivo verificar as perspectivas e possibilidades de aplicação da proposta de elaboração de ilhas de racionalidade propostas por Fourez, como alternativa ao enfoque disciplinar, nos cursos de formação de professores de Física, através da disciplina Instrumentação para o ensino de Física.
 
 

Abstract

    This paper presents a partial report of a research that has for objective to verify the perspectives and possibilities of application of the proposal of elaboration of islands of rationality proposals for Fourez, as alternative to the focus to discipline, in the courses of teachers' of Physics formation, through the discipline Instrumentation for Physics teaching.
 
 

Introdução

    A dificuldade de trabalhar com projetos, metodologias ou técnicas interdisciplinares em qualquer grau de ensino tem suas raízes na formação disciplinar dos professores. A forte predominância e valorização conteudística se reflete em um ensino também disciplinar com eventuais relações ao cotidiano e, mais raro ainda, com aspectos interativos às demais áreas do saber. A importância determinada por uma tradição se não impede, limita em muito, as incursões das matrizes disciplinares (não no sentido kuhniano) dos cursos de licenciatura em outras disciplinas, não permitindo ao licenciando analisar aspectos mais amplos do conhecimento, que é objeto de sua formação, no espectro do contexto social.

    Além disso, os problemas propostos como exercícios, as atividades desenvolvidas nos laboratórios didáticos, os textos utilizados e outros materiais instrucionais, se prendem na especificidade disciplinar não oferecendo correlações externas ao conteúdo específico, o que contribui ainda mais na ênfase de domínio conteudístico. Investigações sobre a predominância de ênfases ou concepções curriculares em currículos de graduação em Física, entre elas a de Pinho Alves (1990:223), ao analisar o currículo de graduação de Física da UFSC, afirma em suas conclusões que o mesmo "... se caracteriza como um currículo predominantemente conteudista e, por conseqüência, de orientação pedagógica reprodutivista e politicamente conservador." Certamente este indicador pode ser estendido, sem muitas ressalvas, a maioria dos cursos de formação de professores de Física, visto serem frutos de um processo histórico instalado há décadas, cujas razões não são objeto desse trabalho.

    No momento em que aspirações educacionais mais abrangentes se fazem presentes no ensino médio, onde a formação do cidadão ou pleno exercício da cidadania passa a fazer parte do discurso pedagógico atual, há a necessidade de revisão de alguns aspectos do currículo de formação de professores. Isto não significa uma revisão curricular radical, mas pequenas ações pedagógicas que, se inseridas, diminuiriam em muito a componente de pensamento disciplinar de nossos futuros professores. Nesta perspectiva, foi realizado um exercício coletivo com alunos licenciandos de Física na disciplina de Instrumentação B da UFSC[1], adotando como linha metodológica à da representação teórica de uma situação – a Ilha de Racionalidade. Neste exercício, os estudantes são atores de um processo de investigação que busca a solução de um problema utilizando conhecimentos oriundos da diversas disciplinas.

    Nossa intenção é descrever o uso desta metodologia na elaboração de um projeto interdisciplinar, sua a amplitude e abrangência, cujas tarefas e pensamentos se opunham, em certa maneira, ao pensamento disciplinar exigido pela Física.
 

1. A herança disciplinar

    "O ensino de Física tem-se realizado freqüentemente mediante a apresentação de conceitos, leis e fórmulas, de forma desarticulada, distanciados do mundo vivido pelos alunos e professores e não só, mas também por isso, vazio de significado. Privilegia a teoria e a abstração, desde o primeiro momento, em detrimento de um desenvolvimento gradual de abstração que, pelo menos, parta da prática e de exemplos concretos. (....) Insiste na solução de exercícios repetitivos, pretendendo que o aprendizado ocorra pela automatização ou memorização e não pela construção do conhecimento através de competências adquiridas."(PCN -Conhecimento de Física, 1999:32). Esta crítica explícita no documento dos Parâmetros Curriculares Nacional deixa bem claro como é concebido, de modo geral, o ensino de Física no país. O documento também não se furta de apontar responsabilidades quando afirma que "Esse quadro não decorre unicamente do despreparo dos professores, nem das limitações impostas pelas condições escolares deficientes. Expressa, ao contrário, uma deformação estrutural, que veio sendo gradualmente introjetada pelos participantes do sistema escolar e que passou a ser tomada como coisa natural".(PCN-Conhecimento de Física, 1999:32 -grifo nosso)

    A leitura da afirmação acima deve ser tomada com cuidado, na medida em que aponta como uma das causas o despreparo dos professores para logo a seguir declarar sua redenção com base em uma deformação estrutural do sistema. A partir daí o documento assume um discurso crítico-analítico no que se refere aos conteúdos de Física e sua alienação ao mundo vivencial dos estudantes para, logo a seguir, passar ao discurso crítico-prescritivo. Não é nosso objetivo criticar o documento citado, mas buscar, em sua retórica pedagógica, elementos que fortaleçam algumas de nossas posições e apontam para a viabilidade de nossa proposta. Entendemos, portanto, que uma releitura do mesmo permitirá esclarecer nossa linha de argumentação.

    Já comentamos acima que a formação de professores de Física é centrada em currículos com grande ênfase nos conteúdos de suas disciplinas, não permitindo movimentos muito além daqueles previstos em seus programas. Esta pouca "flexibilidade disciplinar", por sua vez, é fruto de uma tradição histórica que, sem muito medo de errar, começou a se consolidar com a publicação do primeiro livro didático. A estrutura organizacional do discurso científico didatizado que se estabelece com a literatura didática, vai excluindo gradativamente elementos "estranhos" à Física. A exclusão de relações e correlações mais próximas entre o cotidiano vivencial do leitor (estudante) e o corpo teórico da Física tornam-se cada vez mais acentuada e, com o passar do tempo, este corpo teórico demonstra uma aparência quase que totalmente desligada de sua realidade.

    Se fizermos uso da Transposição Didática (Chevallard, 1991) como instrumento de análise dos conteúdos ensinados, fica clara a existência de um processo transformador que, de certa forma, já se manifesta entre o processo de construção do conhecimento pelo cientista e a estrutura literária de sua comunicação. Processo transformador que não se esgota nesta etapa, mas que se faz presente quando o conhecimento do cientista tem sua estrutura literária desmontada. Este desmonte implica em etapas que levam à construção de objetos de ensino que se reorganizam em uma escala linear crescente, isto é, dos mais simples aos mais complexos apresentados através de um discurso literário dogmático e disciplinar.

    Ao mesmo tempo este processo transformador do conhecimento, reforça o alijamento de outras áreas do conhecimento, fato já presente na comunicação da produção do cientista. O resultado é um texto didático, cujo discurso literário se justifica em si mesmo, transferindo aos enunciados dos exercícios e problemas propostos, a responsabilidade de propor situações que se assemelham àquelas do mundo vivencial do estudante. Em suma, o discurso literário de um livro didático oferece um conhecimento desvinculado de uma realidade próxima ao estudante, insinuando uma forma de pensar estreita e disciplinar.

    De outro lado, também não é falso afirmar que as estruturas curriculares se valem dos livros didáticos para se organizarem. A opção de tal ou tal livro didático determinará, a principio, a constituição das disciplinas que assumem seu espaço curricular, demarcado pelo tempo (número de aulas) e profundidade. Mesmo que o discurso didático do professor seja amplo, abrangente e traga toda uma carga de contextualização, ele fará uso de exercícios e problemas do livro didático e sua avaliação terá como base referencial a literatura disciplinar do livro adotado.

    Queremos agora chamar atenção a dois pontos que, sob certa ótica, um é conseqüência do outro. Pode até ser discutível um curso de formação com forte ênfase no conteúdo disciplinar, mas este tipo de curso tem apresentado, como resultado geral, licenciados com um grau de conhecimento disciplinar no mínimo, bom. Este resultado mesmo não sendo aquele cujo nível de conhecimento em Física seria o desejado pelos professores universitários, não registra muitas desconformidades, pois ainda cumpre a expectativa da sociedade. Este sentimento de "dever cumprido" retroalimenta a comunidade de formadores universitários na manutenção de currículos conteudistas. Se de um lado tem-se um licenciado com boa formação acadêmica em Física, o que é desejável, esta formação é resultado de uma estrutura disciplinar e linear na qual estes conteúdos foram tratados ao longo do curso. Isto de certa forma imprime uma maneira de pensar e enfrentar problemas de modo muito particular e restritivo, isto é, de forma disciplinar e pouco abrangente no que refere a outras áreas do conhecimento. A boa formação em Física inibe, na solução de problemas, a inclusão de outras variáveis que não sejam aquelas ligadas alguma área da Física, o que caracteriza um pensamento disciplinar.

    Além da formação disciplinar do licenciado, é importante lembrar que os livros didáticos dirigidos ao ensino médio também refletem o mesmo aspecto disciplinar dos livros universitários, levando aos professores a consolidarem, na sua prática pedagógica, o estilo reprodutivista e disciplinar adquirido em sua formação. A insistência em situar esse aspecto conteudístico é para mostrar a dificuldade desses mesmos professores em discutir, trabalhar conteúdos ou propor atividades que envolvam um perfil interdisciplinar. Os grandes movimentos inovadores no ensino de Ciências ocorridos no passado, também transmitiram este mesmo espírito disciplinar com grande valorização do conteúdo.

    Sem grandes compromissos de análise, basta lembrar dos grandes projetos como o PSSC, o projeto Harvard, o Nuffield e o Projeto Piloto da Unesco, dentre os estrangeiros, e os nacionais, FAI, PEF e o PBEF, todos tinham como objetivo maior o ensino da Física como eixo mestre sem nenhum, ou quase nenhum compromisso com aspectos interdisciplinares. O Harvard exercita uma certa interdisciplinaridade ao fazer uso da História da Ciência em sua estratégia discursiva. É claro que o momento histórico era outro e que a diretriz político-ideológica da época configurava a importância da valorização do conteúdo. No entanto, torna-se importante registrar que esta concepção de ensino solidifica a imagem disciplinar no ensino da Física que por sua vez ainda é mantida nos diferentes livros didáticos de Física no Brasil.
 

2. Uma perspectiva : a Alfabetização Científica e Técnica

    Apesar desta acentuada herança, a necessidade de tornar os conteúdos dotados de significado e menos fragmentados, bem como de discutir o papel das ciências e das tecnologias na sociedade contemporânea oportunizou a apresentação de alternativas ao ensino disciplinar. Dentre elas, a proposta de Gerad Fourez (1994), o qual apresenta os objetivos gerais da Alfabetização Científica e Técnica (ACT) e trata, de forma concreta, algumas estratégias pedagógicas e epistemológicas para a viabilizar a proposta desta natureza.

    A ACT pressupõe o estabelecimento de condições nas quais os diversos saberes científicos possam dotar o estudante de alguma autonomia, de modo que adquira capacidade de negociar suas decisões, capacidade de comunicação e tenha algum domínio e responsabilidade diante das mais diversas situações da vida cotidiana.

    Um dos aspectos que caracteriza uma pessoa como alfabetizado científica e tecnicamente é sua capacidade de compreender e/ou inventar uma representação teórica de um contexto e de um projeto específicos, ou seja, que ele seja capaz de construir uma "Ilha de Racionalidade". Construir uma ilha de racionalidade é inventar uma modelização adequada de uma situação, de modo que seja possível comunicar ou agir sobre o assunto tratado. Tendo como referência um contexto e um projeto particulares, são utilizados conhecimentos provenientes de diversas disciplinas e de saberes da vida cotidiana. A eficiência e o valor de uma ilha de racionalidade dependem da capacidade dela fornecer uma representação que contribua para a solução do problema a que se propôs.

    Ao se construir uma ilha de racionalidade surgirão questões específicas ligadas à determinados conhecimentos que poderão ser respondidas ou não, conforme o caso. Estas questões são denominadas de caixas pretas. A decisão de abrir ou não estas caixas, ou seja, de aprofundar ou não determinado conhecimento, cabe à equipe executora, que pode ser constituída por profissionais de uma empresa, um grupo de professores de uma escola, grupo de alunos e professores – ou um indivíduo. A abertura de caixas-pretas significa a obtenção de modelos, geralmente disciplinares, que contribuam para a explicação de algum aspecto da situação-problema.

    Ao adotar os problemas de situações do cotidiano como fio condutor ao trabalho de teorização, fica determinada uma transposição que não tem o conhecimento disciplinar como referência. O que determina os critérios sobre o corpo de conhecimento a ser trabalhado é o projeto, para o que e para quem ele se destina. Para que o projeto e o contexto fiquem claramente definidos é recomendável que a situação para a qual se deseja construir uma representação seja expressa por meio de uma questão ou da descrição da situação.

    A construção de uma Ilha de Racionalidade se realiza por meio de etapas[2], nas quais o grupo envolvido toma decisões sobre a extensão e a profundidade com que os assuntos serão abordados. Elas permitem que o trabalho vá sendo delimitado para que atinja sua finalidade e pretendem mostrar um método para aprender a pensar de maneira semelhante como pensam os partidários da corrente de pensamento científico orientada por projetos, como os engenheiros, arquitetos, médicos e, até como as pessoas comuns pensam para resolver os problemas do dia-a-dia.Embora apresentadas de maneira linear, estas etapas são flexíveis e abertas, em alguns casos podendo ser suprimidas, ampliadas e revisitadas. Elas servem como um esquema de trabalho, de modo a evitar que ele se torne tão abrangente que não se consiga chegar ao final.

    Fourez propõe inicialmente oito etapas. A primeira delas, denominada clichê, é constituída pelo levantamento de perguntas que a equipe tem a respeito da situação-problema. O refinamento das questões levantadas, a definição do caminho para buscar as respostas, a definição dos participantes e o levantamento de normas e restrições relativas ao problema, se dá no panorama espontâneo, que é a segunda etapa. A partir das decisões tomadas, a terceira etapa (consulta aos especialistas) é realizar a consulta a pessoas que possam auxiliar a responder as dúvidas da equipe. No quarto passo, a abertura de equipamentos, visitas a locais que tenham relação com a situação, permitem que o grupo deixe de pensar apenas teoricamente, indo à prática. Com o amadurecimento das questões que devem ser respondidas para resolver a situação, o grupo passa para a etapa seguinte, que corresponde ao momento dos conteúdos, da abertura aprofundada de algumas caixas-pretas, para buscar princípios disciplinares. Um momento de avaliação parcial do trabalho, ocorre na sexta etapa, na qual o grupo realiza uma esquematização da situação, buscando verificar os avanços e a correções necessárias. Isto propicia que a equipe possa então dar o passo seguinte, que é avaliar a sua capacidade de autonomia pela possibilidade de abertura de caixas pretas sem consulta a especialistas. Realizadas as correções necessárias, a equipe passa à elaboração da síntese da ilha de racionalidade, por meio da qual é apresentado o resultado da atividade, na forma de um texto, cartaz, vídeo, software, contemplando os elementos analisados ao longo do trabalho.
 
 

3. O exercício

    Adotando as concepções de Fourez relativas à Alfabetização Cientifica e Técnica e sua proposta metodológica de Ilhas de Racionalidade, realizamos um exercício junto aos licenciados de Física da UFSC, matriculados na disciplina de Instrumentação para o Ensino B (sexto semestre do curso) no segundo do ano 2000. É importante localizar o leitor que esta era a primeira vez que esta disciplina seria oferecida. Anteriormente, as disciplinas de Instrumentação eram duas com 6 aulas semanais. Uma revisão curricular transformou as duas disciplinas antigas em três disciplinas (A, B e C) seqüenciais com 4 aulas semanais. O novo conjunto de disciplinas de Instrumentação teve seus programas modernizados e adequados às novas concepções de ensino de Física. O programa de Instrumentação B prevê a elaboração de projetos de ensino com base nas novas concepções de ensino.

    No semestre anterior, ainda utilizando o antigo programa, o professor da disciplina iniciou o exercício de construção de uma ilha de racionalidade com sua turma, com o objetivo de elaborar um projeto de ensino (produto final). Alguns equívocos de interpretação e encaminhamentos por parte dos alunos, além de ser a primeira tentativa de uso de uma metodologia nova para a realização da tarefa, não lograram o êxito que se esperava. Todo o processo, bem como o resultado do trabalho foi nitidamente marcado por um ponto de vista disciplinar, ou seja da Física. Entretanto, foi de extrema riqueza, pois ao realizarmos uma avaliação informal foi possível identificar a necessidade de procedimentos que antecedem a realização do exercício e outros durante o próprio exercício, para que de fato se alcance o sucesso desejado ao final do exercício.

    As etapas propostas por Fourez para a realização de uma IR, não são estanques, isto é, podem ser ampliadas ou reduzidas, de acordo com a situação-problema proposta e/ou decisão dos alunos. Mesmo que ofereça esta flexibilidade, é importante determinar o período que será utilizado para o exercício, isto porque a tendência dos alunos é ampliar o tempo destinado à tarefa, seja pelo entusiasmo e/ou motivação, seja pela oportunidade de "fugir" das aulas tradicionais (isto especialmente no ensino médio). Portanto, um dos pontos que a avaliação indicou ser fundamental em um sistema de ensino com calendário restrito é o número de aulas, o período em semanas ou meses que será ocupado pelo trabalho proposto.

    Outro aspecto é o enunciado da situação-problema, pois "É necessário que o projeto e o contexto seja claramente definido. Assim, é recomendável que a situação problema seja expressa por meio de uma questão ou situação." (Pinheiro et al, 2000). Na proposição original de Fourez, ele aponta esta necessidade, apenas com o intuito de deixar claro aos alunos a situação problema a ser resolvida. Entretanto, verificamos que a elaboração da situação não deve ser, a priori, proposta pelos alunos, mas sim planejada pelo professor em uma etapa que antecede sua proposição à turma. Esta seria a etapa zero realizada pelo professor para planejar uma situação-problema motivadora, determinar o grau de abrangência e explicitar a forma de apresentar a solução desejada (produto). Em suma, precisa ficar bastante clara a situação-problema e como deve ser apresentada a resposta elaborada. Admitindo uma dada situação-problema a resposta (produto) solicitada pelo enunciado pode ser um texto explicativo, pode ser uma "cartilha", pode ser um lista de prescrições, etc. Como se observa, a forma como a resposta deve ser oferecida ao final do trabalho, auxilia a tomada de decisões da turma e equipes ao longo do exercício, evitando desvios ou discussões inócuas sobre a maneira de apresentar a resposta final elaborada pelos alunos. Em nosso caso particular de realizarmos o exercício da IR com alunos universitários, já com certa vivência universitária e profissional, é extremamente importante o planejamento da situação problema e do cronograma disponibilizado para sua realização, pois outras atividades (escolares e profissionais) tendem, por vezes, a deixarem de lado o compromisso assumido com suas equipes.

    Como já foi dito nosso exercício de IR foi realizado com os 13 (treze) alunos de Instrumentação para o Ensino de Física B no segundo semestre de 2000. Antes de iniciarmos o exercício foi lido e discutido com os alunos o artigo "As Ilhas de Racionalidade e o saber significativo: um ensino de ciências através de projetos" (Pietrocola et al., 2000). A discussão foi direcionada para o papel da interdisciplinaridade e para a viabilidade da metodologia proposta, tanto do ponto de vista geral, como o de se fazer uso da disciplina de Física no ensino médio para sua execução. De maneira geral a proposta foi bem aceita e considerada factível a priori, apenas ressalvas relativas aos programas a serem cumpridos, planejamentos escolares muito fechados com nenhuma flexibilidade, etc., mas que seria válida a experiência e a tentativa.

    Na aula seguinte o professor, sem mencionar nada sobre IR ou interdisciplinaridade faz a leitura de um oficio encaminhado por uma empresa (fictícia) solicitando os préstimos da turma para solucionar um problema e oferecer a solução na forma de um relatório técnico científico (vide anexo, a proposição da situação problema). Durante a leitura do ofício feita pelo professor, os alunos não perceberam de imediato que estávamos propondo uma situação fictícia, admitindo ser verdadeiro o solicitado, fato confessado por eles mais tarde. A ficção somente foi esclarecida na leitura dos nomes dos presidentes da companhia. Aqui percebemos ser importante a forma como o problema é proposto e a linguagem como é apresentado, mesmo carregando uma dose de humor não deixa de ser desafiador, além de precisar assumir um aspecto "formal" para a apresentação da resposta, configurando a necessidade da etapa zero para produzir um bom enunciado e planejar o período de sua execução. A situação problemas apresentada pelo professor foi a determinação da(s) causa(s) de 50 óbitos na Bolívia decorrentes de choques elétricos durante banho com chuveiros elétricos de várias marcas produzidos no Brasil.

    O período para resolver o problema já estava contemplado no próprio enunciado, pois este informava que dentro de um mês deveria estar pronto o relatório final para ser apresentado à "Comissão". Com duas aulas duplas semanais, em um mês foi possível cumprir as oito etapas sugeridas na metodologia. Para acompanhar o exercício outro professor foi convidado para ficar como observador do processo. Sua função foi registrar o comportamento do grupo nas diferentes etapas e tarefas, a participação individual, a contribuição de cada aluno, o "trânsito interdisciplinar" dos alunos etc. Estas observações foram registradas para estabelecermos procedimentos de rotina em futuros exercícios e instrumentos de observação/avaliação para os professores quando da aplicação sozinhos em sala de aula. Estes últimos ainda estão em discussão e não totalmente definidos.

    Na primeira etapa (Clichê) foi acertado que haveria um "livro de atas" onde seriam registrados todas as atividades realizadas, material coletado e decisões tomadas. Foi negociado que a cada etapa um aluno iria secretariar, para evitar acúmulo de trabalho para um só. O objetivo desta etapa é solicitar aos alunos que ofereçam possíveis razões ou causas da situação-problema, sem entretanto buscar justificativas ou entrar no mérito das mesmas. "Nesta etapa é bom distinguir as idéias compartilhadas (definidas como fatos) e aquelas que são objeto de debates ("hipóteses ou suposições") ou julgamento de valor."(Pietrocola et al, 2000:112). Um cuidado a ser tomado pelo professor é a discussão do mérito das hipóteses ou suposições apresentadas nesta etapa. Os alunos querem de imediato, após a proposição de uma suposição ou hipótese, iniciar um debate de valor sobre a mesma. Esta discussão, preferencialmente, deve ser prorrogada para a segunda etapa. Na elaboração do panorama espontâneo é revisto o clichê com possibilidades de ampliação ou redução das proposições apresentadas durante o clichê.

    Durante o panorama espontâneo, a turma decidiu agrupar as questões similares em seis blocos, determinando a divisão do trabalho em seis equipes, cada uma com 2/3 elementos, que atuariam como "especialistas" responsáveis em encontrar as respostas das questões, ou procurariam os especialistas competentes para responder as questões. As equipes formadas foram: equipe sócio/política - responsável pelos aspectos sociais, políticos, históricos e econômicos da Bolívia; equipe biofísica - responsável por aspectos microscópicos ligados à influência de choque nas células; equipe jurídica - responsável por legislação, normas e representação das empresas fabricantes; equipe geologia/química - responsável pelos aspectos geológicos e geográficos da região e influências químicas; saúde - médicos (legista e cardiologista) que fazem investigação das mortes e efeitos de choque elétrico sobre o organismo; engenharia - Aspectos ligados à instalação elétrica e hidráulica e de componentes do chuveiro e das ligações.

    Ao final de cada etapa as equipes apresentavam um pequeno relato de suas atividades, com o objetivo de auxiliar as demais equipes, uma vez que perceberam que as informações oriundas de um dos grupos poderiam auxiliar os trabalhos dos demais. Cada equipe procurou responder as respostas de suas questões consultando livros, internet, entrevistando professores de diversas disciplinas (Química, Anatomia, Medicina Legal, Biofísica).

    Como a proposição da situação-problema definia que deveria ser apresentado um relatório final em uma reunião com os "representantes da empresa", a turma decidiu que cada equipe faria um cartaz de apresentação dos resultados de seu trabalho e que um dos alunos faria a apresentação da solução final.

    No dia da reunião final dois professores conhecedores da proposta foram convidados a representar o papel de "representantes da empresa", para ouvir o relatório da turma e analisar a coerência e plausibilidade da solução apresentada. O resultado apresentado pela turma foi que a possível causa das mortes se deve a problemas de instalação do chuveiro, geralmente realizada pelo morador da residência, uma vez que 66% da população fala a língua nativa, o que indica uma má interpretação do manual de instruções de instalação. Para resolver o problema sugeriram que as indústrias deveriam fornecer manual de instruções bilingüe (espanhol e a nativa).
 
 

5. Conclusões

    Acreditamos que a elaboração de ilhas de racionalidade, possibilita um exercício de interdisciplinaridade para a busca de soluções de problemas concretos e complexos do cotidiano escolar, pois ela possibilita uma reflexão teórica ao mesmo tempo que permite atuar sobre uma determinada realidade.

    Como enfatiza Pinheiro et al.(2000) "não poderíamos deixar de assinalar a importância de se abrir espaço nos cursos de formação de professores de ciências – inicial ou continuada - para dar conhecimento e propiciar espaço de discussão sobre a perspectiva da ACT." Nesta direção, julgamos importante as reflexões e as discussões que podem ser suscitadas por meio do desenvolvimento de atividades como esta aqui apresentada, pois elas possibilitam que os licenciandos entrem em contato com uma possibilidade de atuação em sala de aula, já avaliando o alcance e as dificuldades que um trabalho desta natureza pode propiciar.

    Com relação aos resultados da atividade desenvolvida pelos alunos da turma de Instrumentação para o Ensino de Física B/ 2000, podemos destacar o seguinte:

    A importância de propor uma situação problema bem definida, que propicie a busca de uma solução que utilize conhecimentos oriundos de vários campos do conhecimento humano e que seja adequada ao tempo disponível. A não existência de uma equipe de Física como especialidade a ser consultada, o que nos leva a pelos menos duas conclusões : a situação-problema oportunizou a discussão de outros campos do conhecimentos que poderiam colaborar para a solução, ou, como os alunos de certo modo têm domínio deste campo de conhecimento, não julgaram necessário definir uma equipe específica para tratar dos assuntos relativos a este campo disciplinar. No momento da avaliação do trabalho, os alunos se aperceberam deste fato e concordaram com nossas conclusões.

    O envolvimento dos alunos que se comportaram como especialistas de vários campos do conhecimento, o que propiciou visualizar a solução de um problema de uma maneira que contemple vários aspectos que necessitam ser analisados pois podem interferir em uma situação.
 

Agradecimentos

    Queremos registrar nossos agradecimentos à turma de licenciandos em Física que cursou Instrumentação B conosco no segundo semestre de 2000 e se prontificou a participar do exercício. A participação, o empenho e o entusiasmo dos alunos foi fundamental para o sucesso do ensaio didático.
 

Bibliografia

CHEVALLARD, Y. La Transpostion Didactique- du savoir savant au savoir enseigné. La Pensee Sauvage Éditions. Grenoble. 1991.

Fourez, G. Alfabétisation scientifique et tecnique. Essai sur les finalités de l’enseignement des sciences. Belgique: De Boeck Université. 1994.

PCN - Conhecimento de Física. MEC. 1999.

PIETROCOLA M. et al. As ilhas de racionalidade e o sabebr significativo: o ensino de ciências através de projetos. Ensaio – Pesq. Educ. Ciên. Belo Horizonte. Vol. 2, No 1, 99-122, março 2000.

PINHEIRO, T. F et al. Um exemplo de construção de uma ilha de racionalidade em torno da noção de energia. Ata eletrônica do VII EPEF, Florianópolis, março de 2000.

Pinho Alves, J. Licenciatura em Física da UFSC: Análise à luz do referencial de Eisner e Vallance. Dissertação de Mestrado. CED. UFSC. 238 p.1990.

 

Escritório Brasileiro – Brasilia – DF - Brasil
 
Brasília, 28 de agosto de 2000.
Ilmo. Sr.

Prof. José de Pinho Alves Filho e Equipe.

Depto de Física – UFSC

Florianópolis/SC

BRASIL

Senhor Professor e Equipe:

Sabedores quer o Senhor e sua Equipe executam estudos analíticos nos mais diferentes ramos científicos e tecnológicos, vimos pelo presente expor e, ao mesmo tempo, solicitar a prestimosa ajuda dessa Equipe no tocante ao que segue:

Nossa Companhia se firmou no cenário comercial da América Latina na distribuição de aparelhos eletrodomésticos fabricados pelos mais diferentes fornecedores. Particularmente, nossa Companhia representa e distribui chuveiros elétricos para os todos os países latino americanos somente de fabricação brasileira.

Isto posto, cabe-nos registrar que nos últimos anos temos recebido inúmeras queixas de consumidores, particularmente da Bolívia, denunciando problemas com os chuveiros elétricos por nós vendidos naquele país. A predominância das queixas se referem aos "choques elétricos", isto é, ao tomar um banho quente os usuários tem recebido descargas (choques) das mais variadas intensidades registrando, inclusive, casos de óbitos.

Podemos adiantar que nossos registros não se reportam a uma região específica, mas em toda a Bolívia o que, de certa forma, elimina variáveis localizadas. Por outro lado checamos os diferentes Manuais de Instruções e, salvo equívocos, não localizamos erros nos mesmos. Reafirmamos que as descargas referem-se desde as mais amenas (tipo arrepiar pelos) até aquelas mais intensas que resultaram na morte de cerca de 50 pessoas.

Frente ao exposto, vimos solicitar a sua renomada Equipe um estudo que abranja as mais diferentes causas que possam estar provocando estas denúncias em razão da reunião semestral da OMC (Organização Mundial do Comércio) a ser realizada no próximo mês de outubro. Consta da pauta a apreciação e julgamento das referidas denuncias. A decisão da plenária poderá levar ao possível descredenciamento de nossa Companhia para atuar na América Latina, salvo se as causas não forem detectadas e justificadas na plenária da OMC.

Dessa forma solicitaríamos a V. Sa. e sua Equipe, um relatório a ser exposto a nossa Comissão de Auditoria Científica e Tecnológica ao final de setembro em seu Departamento.

Certos de contarmos com o empenho total ficamos no aguardo de sua manifestação.

Atenciosamente,
 
 

Alessandro Faraday                                                 Maxwell Thomson

Diretores Presidentes da

BWI



(*) Versão preliminar para o 3o. ENPEC – Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências.
[1] O presente exercício foi realizado com a Turma de 2000/2ºsemestre da disciplina de  Instrumentação para o ensino de Física B, no Departamento de Física – CFM – UFSC, com um grupo de 13 alunos.
[2] Maiores discussões e exemplos sobre as etapas de construção de uma ilha de racionalidade podem ser encontrados em Fourez(1994), Pietrocola et al.(2000) e Pinheiro et al.(2000)