ENSINO DE CIÊNCIAS: UMA PEDAGOGIA DO CORPO HUMANO


Ortenila Sopelsa[1]



Resumo

    A presente investigação parte de uma pesquisa desenvolvida com alunos considerados "portadores de dificuldades de aprendizagem" cujos resultados revelam práticas usuais de dogmas existentes na escola, em relação ao ‘saber’ e ao ‘aprender’ do sujeito. Em decorrência disto, busco investigar concepções de alunos e professores tomando o ‘corpo humano’ como ‘pretexto’ ao considerar abordagens de ‘Ensino de Ciências: Uma Pedagogia do Corpo Humano, uma vez que entendo que a compreensão do ‘corpo’se imbrica e/ou subjaz ao ensino e à aprendizagem que se quer pedagógica.




Abstract

    The present research comes from a former investigation concerning with students as considered "bearer of difficulties of learning" by their teachers, that comes to results showing usual bad schooling practices and beliefs related to the individuals’ ‘Knowing’ and ‘Learning’ processes. By the way, I decide to investigate the students and teachers’ conceptions toward ‘thinking’ and ‘knowledge’ taking a real theme such as ‘The Human Body’, like a "piece of resistance" if I consider a necessary approach to the Science Teaching related to A Pedagogy of the Human Body. Nevertheless, it is my concern the comprehension that ‘our human body’ is specially related to the learning process we expect to be achieved in ‘a pedagogic way of teaching’.
 
 

    A origem dessa investigação foi uma pesquisa realizada com um grupo de sete alunos, na faixa etária de 12 a 18 anos, cursando a 4ª e 5ª séries do Ensino Fundamental, na periferia de Porto alegre.

    Por ocasião dessa investigação, constatei que, para compreender e poder lidar com o "fenômeno" Dificuldade de Aprendizagem é necessário concentrar esforços no sentido de fazer emergir o ‘ser aprendente’, vinculando sua história de vida, ressignificando o papel do professor, levando o aluno a poder saber fazer.

    Como considerações resultantes do trabalho inicial, emergiram dois eixos interligados : 1) o quanto a escola, de maneira geral, se configura como espaço de ambiências pedagógicas e 2) o processo de mediação significativa – professor-aluno – que se relaciona ou imbrica à situação anterior.

    Tais considerações fizeram aflorar, também, a necessidade de acreditar na capacidade dos alunos tidos e havidos como "portadores de Dificuldades de Aprendizagem". No entanto, acredito ser preciso persistir na busca de subsídios e estímulos que favoreçam à construção do conhecimento dos alunos. Esta situação faz/fez emergir a necessidade de investigar processos de aprendizagem que objetivem mediação significativa na construção de ambiências[2]pedagógicas que envolvam conceitos científicos - no Ensino de Ciências da 4ª série do Ensino Fundamental - mais especificamente, aqueles que dizem respeito ao corpo humano.

    A escolha pela área de Ciência, e especificamente, da temática do corpo humano, deve-se ao fato de eu acreditar na possibilidade de uma maior compreensão e/ou prevenção das dificuldades de aprendizagem, se incluirmos, nos nossos procedimentos de ensino, um meio da exploração positiva do próprio corpo – em termos da consideração de seu (da criança/do aluno) desenvolvimento físico, social e psicológico -, uma vez que a criança/o sujeito não tem um corpo, ela/ele é um corpo.

    Dessa forma, compreendo que tanto por parte do professor quanto por parte do aluno constitui-se uma concepção histórica de corpo cheia de sentidos e significados em relação à idéia de construção de seu próprio corpo como único e inigualável.

    Em função disso, pretendo, em interação com os sujeitos da minha pesquisa, visualizar ‘fatores’ que possam ser configurados em termos ‘contributivos’, isto é, que contribuem efetivamente para a criação de um contexto pedagógico propício à mediação significativa do professor, quando da introdução de conceitos científicos referentes ao ‘corpo humano’, no Ensino de Ciências, em séries do Ensino Fundamental.

    Vale a pena retomar aqui a ‘teia de sentidos e significados’ que a palavra corpo tem adquirido através da história. O termo corpo está impregnado de conotações em e de discursos, enunciados e anunciados há milênios, em diferentes línguas, em diferentes culturas e sociedades. Conseqüentemente, este termo já se encontra incorporado ao discurso falante, que precisa ser escutado, percebido, a partir do momento em que foi criado o logos (FOUCAULT, (2000).

    O corpo para Platão era ‘a prisão da alma’. Foi Platão quem introduziu a idéia de ruptura entre o mundo sensível e o inteligível, dissociando os aspectos humanos e criando a dicotomia dos dois mundos : o ‘mundo finito e material’, e o outro ‘o mundo das idéias, eterno e imutável’ (GONÇALVES, 1994).

    Com Aristóteles, observa-se que a matéria - corpo - é vista como necessária à forma - alma - tanto quanto a forma é necessária a matéria. Aristóteles via o homem como um ser pensante, racional, que devia conduzir as suas ações somente pela razão (VASQUEZ, 1977).

    Com o cristianismo o corpo é elevado à condição especial. O homem passa ser visto à imagem e semelhança de Deus. Santo Agostinho via o homem como     mistura de duas substâncias : corpo e alma. (ORTEGA y GASSET, 1984).

    Na idade média, até o século X, registra-se certo retrocesso cultural e pouca valoração do corpo. Nesta época, a igreja era detentora ou mediadora do poder econômico e político. O corpo ocupava lugar de subordinação, sendo alvo de punição e regulação (ROMERO, 1993).

    No final do século XVIII, início do século XIX, na idade contemporânea, o corpo supliciado e esquartejado deixa de existir, mas não se extinguem as punições e o domínio sobre o corpo. FOUCAULT (1987), enfatiza que o corpo deixa de ser alvo de suplícios para ser colocado em um tipo de sistema de coação, de privação e de confinamento, acarretando ao homem perdas de bens ou de direitos. As punições atuais, para este autor, não afetam apenas o corpo, mas a vida.

    Como componentes dessa rede, podem-se enunciar várias questões referentes a educação, ao contexto do trabalho e da família, a alimentação, o desamor, a solidão, as condições ambientais e o estilo de vida. Questões como essas exigem um novo olhar, novas metodologias e ‘novas pedagogias’, que preconizam, por sua vez, não só novas terapias mas também novas formas de consideração para valorização do corpo.

    Merleau-Ponty abre nova discussão que dá novo direcionamento à compreensão do homem. Percebe-se no seu pensamento um novo sentido e novos significados do/ao mundo das sensações. Com ele acontece uma ruptura com a visão cartesiana que descartava a relação ‘corpo-alma’, para assumir uma melhor explicação da ‘totalidade corpo-alma’. Para este autor, o homem é ambigüidade, é corpo e é espírito, é sujeito e objeto, interioridade e exterioridade, natureza e cultura. É um conjunto de caminhos já traçados, de poderes já constituídos, é um solo dialético adquirido... e a alma é o sentido que então se estabelece...

    Através de toda essa história, posso compreender o "por quê" e o "como" a grande maioria dos sujeitos percebe seu próprio corpo. Corpo esse que vem carregado de vivências culturais, de crenças, de dogmas, e que, na maioria das vezes, é percebido apenas como um agregado de ‘cabeça-tronco-membros’, sem que se perceba um todo significativo... Uma maneira de ser de cada um, única... diferente... mas... comum!

    Parece importante expressar aqui, um pouco do que tenho vivenciado hoje, em relação à abordagem do ‘corpo humano’ no âmbito e no contexto dessas considerações anteriores. Optei por desenvolver minha investigação com um grupo de alunos, da 4ª Série do Ensino Fundamental, em uma Escola Pública Estadual, de Piracicaba, São Paulo.

    Meu primeiro encontro com a Diretora e uma das professoras da referida escola foi muito receptivo, mas, ao apresentar minha proposta de trabalho, a professora fez uma ressalva dizendo-me que ela trabalharia o conteúdo do ‘corpo humano’, apenas no segundo semestre. Segundo ela, na segunda parte do ano letivo, ‘os alunos estariam mais à vontade’, uma vez que já se conheceriam melhor, para tratar, principalmente, da ‘questão da sexualidade’.

    Meu desejo era que o conteúdo desenvolvido para investigação das ações e reações pedagógicas de professora e alunos, estivesse relacionado com os conteúdos usuais da escola pois, dessa forma, os alunos poderiam inserir os "conteúdos trabalhados", em suas próprias histórias de vida, isto é, em seu cotidiano, em sua ‘vida diária’.

    Nessa perspectiva, o conteúdo é trabalhado por meio de questionários, respondidos por pessoas que fazem parte do cotidiano dos alunos, e, inclui para consideração o nosso corpo em termos biológicos, físicos, químicos, psicológicos, sociais, afetivos, espirituais, intelectuais e cognitivos, na perspectiva de que buscamos não apenas compreender o que nos faz viver, e o que nos faz aumentar a nossa sobrevida, mas também (e quem sabe principalmente!) o que precisamos compreender em relação ao nosso corpo vivo para buscar uma nova/outra qualidade de vida, como cidadãos/cidadãs do século XXI que serão nossos alunos e alunas (ARAGÃO, 2000).

    A partir da exposição de uma visão como essa, resolvemos, então - eu e a professora - observar quais as relações existentes entre os conteúdos selecionados por mim e aqueles conteúdos usuais "selecionados pela escola", quer dizer, pela professora. Juntas, percebemos que era possível desenvolver o "meu" conteúdo de pesquisa, imbricado com os conteúdos "da escola" assumidos pela professora e relativos a Ciência, Matemática, História e Língua Portuguesa. Assim, ficou claro para ela que poderíamos deflagrar "nossas ações" - de ensino e de pesquisa - ainda no primeiro semestre.

    Meu propósito era desenvolver a pesquisa concomitantemente com o ensino para todos os alunos da 4ª Série B, mas como trabalharia mais detidamente – observando ações e reações específicas e continuadas - com seis desses alunos. Para mim, a escolha dos alunos seria casual, "aleatória". Contudo a professora sugeriu que eu evitasse escolher "três determinados alunos" por ela assinalados, porque ‘eles não sabiam ler nem escrever’ e, segundo ela, como poderiam fazer pesquisa se não sabiam sequer ‘anotar os dados’?

    Trocamos algumas idéias sobre ‘a abordagem pedagógica da pesquisa’ no contexto escolar de sala de aula e ela, ao final, concordou comigo que aqueles ‘alunos defasados’ podiam participar porque era necessário incluí-los entre os sujeitos "da pesquisa" que receberiam, supostamente, novos e outros estímulos pela nova e outra mediação docente e forma de interação com a professora e com seus pares ( seus colegas), uma vez que, como eu havia enfatizado... ‘nem todos os alunos encontrarão, em sua história e projeto pessoais, chaves para imaginar situações nas quais possam mobilizar o que aprendem hoje. No entanto, podem, pelo menos em parte, entrar na história e nos projetos dos outros alunos ou do professor’ (PERRENOUD, 2000:66).

    No meu primeiro encontro com os alunos para introduzir e desenvolver as "atividades programadas" por nós , pedi que... eles e elas desenhassem seu corpo, por dentro e por fora. A grande maioria queria saber se devia fazer um... ou dois desenhos... Deixei-os/as à vontade, dizendo que podiam desenhar seu corpo como o viam, como o sentiam, por isso a opção era de cada um/uma, cada um/uma decidiria sobre a maneira de fazer o desenho do seu corpo.

    Alguns alunos tentaram fazer um desenho só, mas ao observar os desenhos dos demais, terminaram todos fazendo dois desenhos separados por um traço no meio da folha de papel.

    No desenho do corpo interno, de modo geral "apareciam os órgãos" segundo a visão e o conhecimento dos alunos. Por isso, grande parte dos alunos desenhou somente o coração e o cérebro, justificando que eram as "duas partes mais importantes do corpo", pois, segundo eles, o coração (nos) dá a vida e o cérebro (nos dá) a inteligência.

    Nos desenhos do corpo externo, cada um se identificou, por um lado, a partir das roupas que estavam vestindo e, por outro lado, com suas características externas tais como o tipo de cabelo, o seu tamanho e se era gordo ou magro...

    Nestes desenhos retrata-se, todavia, a ruptura proposta por Platão. Nas palavras de POLAK (1997:26)... ‘é mister a ruptura com o modelo antropológico tradicional; cumpre voltarmo-nos para uma antropologia do corpo e perceber o homem na sua totalidade. Essa percepção implica a adoção de outra abordagem, de novo discurso’...

    Após o término da feitura dos desenhos, resolvi realizar entrevistas semi-estruturadas com alguns alunos. Nossa conversa girou em torno do próprio corpo.

    Denominei os envolvidos nesta primeira investigação mais específica pelos nomes fictícios de, Rubi, Ametista e Granada. Assim, passa-se a entender a referência que faço a cada um deles e delas.

    Rubi é um dos alunos que não sabe ler nem escrever, segundo a professora. Durante nossa entrevista dizia-me ele: Quando chego na classe, não sinto nada, não sinto meu corpo. Não sinto nada... nem pé... nem mão... só sinto cabeça. Quando estou em casa... aí... eu sinto meu corpo! Eu assisto TV... aí chega meu tio e eu digo: você está bem tio? Ele diz: estou e você?... Ai é bom... eu sinto meu corpo...[porque se sente feliz ou agindo espontaneamente, sem controle ou censura] ... me sinto bem... vou jogar bola... brincar... Todos dizem que sou esperto, mas não aprendo a ler e escrever. Meus colegas sempre caçoam de mim. Dizem: você não sabe ler nem escrever, mas eu repondo: vai ver quando eu acabar a 4ª Série, pra ver se não sei ler e escrever!!! Queria muito aprender a ler e a escrever

    Ao meu ver, Rubi relacionava "sentir o corpo" com o saber fazer. Na escola onde ele não consegue interagir, isto é, não acompanha seus colegas na escrita e na leitura, não sente o corpo, apenas a cabeça... ‘A cabeça’ porque, para a grande maioria da classe... é o cérebro que faz com que eu desenvolva, ou não, o saber. Muitas vezes, durante as atividades de ensino, desenvolvidas pela professora, percebia/percebo este menino passando a mão na cabeça... batendo de leve na nuca... como que se esforçando para usar a cabeça... para pensar... a fim de alcançar seu desejo de ler e escrever. Por outro lado, em casa sente-se bem, sabe/pode interagir com aquele contexto... talvez porque se sinta valorizado, de forma absolutamente diferente do que é na escola!...

    O ‘caçoar’ dos colegas, em relação ao ‘não saber’ de Rubi parece mutilar seu corpo, em sala de aula, uma vez que... se observa sempre que o gesto ou a palavra transfiguram o corpo, mas todos se limitam a dizer que ambos desenvolviam ou manifestavam uma outra força, pensamento ou alma. Não se via que, para poder exprimi-lo, o corpo deve em última análise tornar-se o pensamento ou a intuição que significa para nós...(Merleau-Ponty, 1994:244).

    Em uma das nossas conversas, perguntei à professora o que ela estava fazendo para ajudar Rubi na leitura e na escrita, uma vez que ele, ao que parecia, desejava muito isso. Ela respondeu-me afirmando idéias ou pontos de vista que configuram "meras excusas" posto que, segundo a equipe pedagógica, ‘nada poderia ser feito’ uma vez que... por si só, ele teria que aprender, caso contrário, se poderia prejudicar o menino (sic)....

    Tais justificativas entravam/entram em confronto direto com o meu ponto de vista, e mais, com o que se considera na atualidade sobre tais questões na literatura disponível, uma vez que se tende a considerar que o acesso a esse saber – ler e escrever, no caso - depende também dos fatores de ordem social, política e econômica, da qualidade de ensino oferecido, pois "a criança só poderá aprender a ler e escrever, se tiver acesso à informação sobre esse objeto de conhecimento e participar de situações planejadas de leitura e escrita. Não tem sentido esperar que primeiro ocorra o desenvolvimento para que só então seja permitido que a criança aprenda" (REGO, 1999:107). Além disso, não pode haver interação efetivamente pedagógica do professor com o/a aluno/a criança que – mantendo-se o respeito devido à criança ou ao aluno – possa, de alguma forma, vir a prejudicá-la/lo.

    É preciso, a meu ver, que os processos educativos não se desvinculem das condições históricas e conjunturais próprias da sociedade, pois, além de serem partes integrantes de cada sociedade ou grupo social, têm também servido historicamente para justificar e fundamentar diferenças de rendimento escolar de alunos, especificamente em termos de particularidades individuais. Compreendo, também, que "o caminho doobjeto’[ler e escrever, no caso] até a criança e desta até o ‘objeto’ [ler e escrever] passa através de outra pessoa [a professora, no caso]. Essa estrutura humana e complexa é o produto de um processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas ligações entre história individual e história social" (VYGOTSKY, 1984:33).

    PESSOAS SÃO PESSOAS ATRAVÉS DE OUTRAS PESSOAS... diz um ditado XHOSA, língua africana materna de Nelson Mandela... Por isso, gostaria de enfatizar que esta ‘outra pessoa’, geralmente, na aprendizagem escolar só pode ser o professor, uma vez que, ‘aprender a ler e familiarizar-se com obras está no programa; porém, a maneira de fazê-lo e a relação com a leitura dependem mais do professor do que dos planos de aula’(PERRENOUD, 2000:77). Para Rubi, "não saber ler e escrever" já faz parte de sua ‘pequena/curta’ história, pois está na 4ª Série, e a leitura e a escrita ainda não fazem parte de sua vida.

    Ametista é uma aluna inquieta. Freqüentemente, durante as aulas, a professora chama sua atenção. Sobre sua carteira há um guardanapo de renda, onde a menina expõe objetos pessoais, trazidos de casa. Por isso, a professora também lhe chamava atenção. Conforme vai tirando os objetos da Mochila, a professora os recolhe e os guarda no armário da classe. Segundo ela, a menina não presta atenção nas aulas porque se preocupa apenas em brincar e conversar, em conseqüência disso, não aprende e... atrapalha suas aulas!

    Durante sua entrevista pessoal comigo, Ametista dizia: Gosto da escola, mas gostaria que a professora não brigasse tanto comigo... Sinto que ela implica comigo, com minhas coisinhas... Eu gosto de enfeitar minha carteira, do jeito que arrumo as coisas no meu quarto. Minha mãe também gosta disso. É difícil para mim ficar parada na cadeira. Sempre tenho vontade de levantar e conversar com minhas amigas, olhar como elas estão fazendo a lição. Ficar sempre paradinha na cadeira, no mesmo lugar me deixa agoniada. Minha mãe é mais querida que meu pai... me dá mais carinho... presta mais atenção em mim... Meu corpo fica triste quando meu pai briga com minha mãe. Se ele não briga fico[ meu corpo fica] feliz. Gosto muito de ficar em casa, com minha mãe.

    Para mim, a toalha e os objetos que Ametista expõe sobre sua carteira, estão carregados da presença da mãe, representa o desejo de estar com ela. O desejo também, de sentir seu carinho e sua presença... que representam o que a valoriza... Segundo a aluna, seu corpo sofre com as atitudes do pai e, ela gosta de ficar ao lado da mãe, como ... para protegê-la!

    A meu ver, quando a criança vai à escola, carrega no seu corpo toda a sua história de vida e, por isso... "durante as atividades em sala de aula, ela focaliza as relações interpessoais em ocorrência e também orienta a atenção para outras vivências, não restritas ao ‘aqui-e-agora’. Mesmo diante de situações em que se elabora sobre objetos instrucionais, a criança busca inserir suas experiências anteriores, recorrendo a uma abordagem eminentemente narrativa, apoiada na memória." (GÓES, 1997:17).

    A partir do exposto, compreendo porque Ametista traz os referidos objetos para a sala de aula e, passa a maior parte do tempo, envolvida com eles. O ambiente preparado por ela, na sala de aula, lhe dá o prazer do seu corpo sentir-se na própria casa, pois "...a criança, ao querer, realiza seus desejos. Ao pensar, ela age. As ações internas e externas são inseparáveis: a imaginação, a interpretação e a vontade são processos internos conduzidos pela ação externa".(VYGOTSKY, 1989:114).

    Ametista, na minha concepção, age de forma autônoma e coerente, pois é naquele faz-de-conta que seu corpo se sente bem. Acredito que poucos alunos têm a segurança e a coragem de fazer da sala de aula um ambiente prazeroso e pessoal, por conta própria. Compreendo que a escola não pode "exercer sobre os alunos uma pressão constante, para que se submetam todos ao mesmo modelo, para que sejam obrigados todos juntos ‘à subordinação, à docilidade, à atenção nos estudos e nos exercícios, e à exata prática dos deveres e de todas as partes da disciplina’. Para que, todos, se pareçam" (FOUCAULT, 2000:152)... a despeito da diferença de seus corpos e de seus contextos... Com suas atitudes, em sala de aula, Ametista tem a coragem e a audácia de ser ela mesma... Diferente dos outros...

    Em contextos como esses, compreendo que o papel do professor é fazer uma mediação significativa com esta aluna, isto é, envolver significados dos conteúdos trabalhados em sala de aula, com o significado de seus objetos pessoais, trazidos para a escola.

    Lembro-me bem, do dia em que percebi Granada, na sala de aula. Tímida, silenciosa, cabisbaixa. Só participava quando solicitada, quando ‘perguntada’ e, assim mesmo, com grandes dificuldades.

    Ficava claro, para mim, diante de suas poucas manifestações, que a maioria dos alunos, seus pares, a ridicularizam, e este, ao meu ver, seria um dos motivos que a deixava em silêncio. Contudo, esta é uma menina muito bonita, mas parece esconder sua beleza "amarrando o cabelo de qualquer jeito" e usando roupas que não combinam com sua idade. Seu olhar tristonho parece estar ausente do contexto da sala de aula...

    Durante uma de nossas conversas, a professora sugeriu que eu entrevistasse Granada, de nove anos, para observar o que se passava com ela, uma vez que a conhecia pouco e tinha interesse em saber o porquê de suas atitudes, a causa de suas dificuldades em sala de aula.

    Quando a menina sentou-se ao meu lado para a entrevista, seu corpo tremia inteirinho... A princípio respondia minhas perguntas com monossílabos, sempre desviando os olhos dos meus. Aos poucos, no entanto, foi se libertando da timidez e nosso diálogo fluiu. Dizia ela: Eu não percebo muito meu corpo. Percebo só por fora. Gosto dos meus olhos (ela usa óculos) porque eles me ajudam ver as coisas bonitas... Já pensou se eu não enxergasse!?!? Não gosto muito do meu corpo. Não me olho no espelho... porque não tenho tempo... trabalho bastante...Tenho sempre que ajudar minha madrasta... (Breve silêncio)... À noite janto e tenho que cuidar dos meus irmãos e ajudar minha madrasta... Meu corpo fica bem quando tomo banho... Eu nunca toco meu corpo, mas gosto quando tocam minha pele... O único que toca minha pele é meu pai... Gosto quando ele me abraça... O carinho que mais gosto é de meu pai... mas ele tem pouco tempo... fica pouco em casa... precisa trabalhar... E quando está [em casa, disponível], precisa atender meus irmãos. Se tivesse que pedir alguma coisa, pediria mais carinho. Meu corpo fica triste quando fico doente... parece quando minha mãe morreu... Queria ter mais inteligência para aprender mais. Tenho dificuldade, na escola... não entendo bem as coisas...

    A meu ver, na linguagem de Granada não há traços de uma aluna que apresente problemas de aprendizagem. Pelo contrário, tem boa oralidade, coerência nos pensamentos e sabe discernir o que é, ao seu ver, melhor para ela. O que transparece, para mim, é mais... um pedido de carinho, de afeto, próprio de sua idade. Tudo isso ainda é reforçado pela responsabilidade de cuidar dos irmãos e pela falta que ela sente do carinho do pai.

    Compreendo, em função disso tudo, a complexidade do ‘corpo humano’. Granada evita o espelho, evita tocar seu corpo, acha que não é inteligente o suficiente para aprender na escola e, assim, também é percebida pela grande maioria, inclusive pela professora, na sala de aula. A menina tem estatura um pouco acima do padrão de sua idade, mas seu peso é normal e, no entanto, os colegas a chamam de "gorda" e isso a deixa furiosa e triste.

    Diante do exposto, vale ressaltar que... "são os outros que nos dizem quem somos. (...) Pode-se procurar arrancar de si mesmo esta identidade ‘estranha’, com a qual se foi dotado ou condenado, e criar por suas próprias ações uma outra, que se procura forçar os outros a confirmar. Sejam quais forem porém as vicissitudes subseqüentes, a primeira identidade social da pessoa lhe é conferida pelos demais. Aprendemos a ser quem nos dizem que somos...’(LAING, 1986:90). Nesse sentido então, o eu existe e se identifica em função do tu... das ‘outras pessoas’...

    Esses encontros/conversas/entrevistas com os alunos estão sendo sobremaneira significativos - tanto para mim quanto para a professora – porque, após esses momentos, nos reunimos e discutimos o que podemos fazer, no sentido de fazer acontecer uma mediação diferenciada, especialmente para esses alunos ‘diferentes’ porque exigem ajuda pedagógica cuidadosa no âmbito escolar. Gradativamente, no entanto, tenho percebido certas mudanças que emergem não só na interação (para socialização) com o grupo, mas também na participação efetiva de cada um desses nas atividades de ensino.

    Por essas observações de contexto, posso perceber que nosso corpo está ‘carregado de histórias’ e estas histórias revelam-se constantemente... por meio da nossa fala... dos nossos atos... Fazem-me – tais observações - perceber também o significado e a importância da pesquisa em sala de aula. É difícil o professor/a professora compreender as dificuldades de seus alunos sem reflexão, sem conhecer um pouco de sua (deles) história... sem conhecer suas angústias... seus desejos... sem interagir com eles e elas para poder propiciar-lhes a ajuda pedagógica imprescindível para a aprendizagem, a aquisição de conhecimentos em sala de aula.

    No meu modo de ver, a pesquisa me dá subsídios para eu refletir sobre o meu fazer pedagógico, isto é, sobre o que ensino e o que meus alunos aprendem ou deixam de aprender. A pesquisa, dessa forma, precisa estar imbricada (relacionada intimamente) ao ensino. Compreendo, por tais experiências e vivências que... ‘não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino... Esses ‘que-fazeres’ se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade’. (FREIRE, 2001:32).

    Refletindo sobre as palavras de Paulo Freire, pode-se compreender a importância – para mim - desta investigação que se acha em curso, mas que busco já partilhá-la com meu pares. Primeiro porque me fez perceber, que também tenho um corpo. Um corpo que ama, que sofre, que sente, que escuta, que fala, que ensina, que apreende, que se sensibiliza, também/principalmente, com/pelos diferentes corpos. Segundo, porque o aluno/hoje, adulto/amanhã, pode construir seu corpo carregado das minhas marcas, das minhas influências, da minha semente, da minha vida... das marcas do(s) outro(s)... da(s) vida(s) do(s) outro(s). E então me questiono: que marca, que influência, que semente, que vida... que pedagogia... [no sentido de ação(ões) que faz(em) o(s) outro(s) crescer] estou deixando nos corpos dos alunos que digo estar educando...???

    Gostaria de assinalar que esta pesquisa está em continuidade até o final de 2001. Por isso, o que foi exposto aqui, diz respeito aos dados coletados até o presente momento, bem como às minhas primeiras análises.
 

Bibliografia

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[1] Mestre em Educação, Doutoranda em Educação em Ciências da UNIMEP e Docente da UnC  - Concórdia, SC.
[2] Ambiências: ambientes que propiciem vivências de aprendizagem. Ambiente imbricado com vivênciasmais (na educação formal).