ENSINO DE CIÊNCIAS E MATEMÁTICA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: marcas da diferença



Terezinha Valim Oliver Gonçalves.
Universidade Federal do Pará. Belém/Pa.



Resumo

    Este trabalho trata de uma pesquisa narrativa - organizada em função de cinco princípios formalmente estruturados - através da qual se configura como tem se dado a formação de professores de Ciências e Matemática no Clube de Ciências/Núcleo Pedagógico de Apoio ao Desenvolvimento Científico da UFPa, quer no âmbito da formação inicial de professores, quer no âmbito do desenvolvimento profissional de formadores de professores, ao atuarem nos programas de educação continuada daquele Núcleo em parceria com outras instituições locais. Para tanto, analiso documentos do grupo, como projetos, relatórios e outros documentos que guardam a história do grupo, e busco tratar de aspectos não-documentados nas histórias de vida profissional e entrevistas de oito docentes, sete dos quais ingressantes no processo quando estudantes universitários. Configuro modalidades de formação inicial antecipada assistida e em parceria, que se processam com alunos concretos no Clube de Ciências, independentes de promoção curricular, e que são marcadas por outras estratégias de formação partilhada, como leituras, seminários e grupos de trabalho, e do ensino com pesquisa. Nesse âmbito, vai ocorrendo a um só tempo a formação e o desenvolvimento profissional do sujeito, na interação com o outro - seus pares e o aluno. A formação dos sujeitos-formadores se inicia durante a formação inicial, ao se tornarem parceiros mais experientes de novos universitários, continua a se desenvolver ao serem assumidas situações desafiadoras que deliberadamente são enfrentadas ou durante as zonas indeterminadas do trabalho docente como formador ou em situações de interação com a comunidade, como em eventos de disseminação de conhecimentos, ou sejam, as Feiras de Ciências. Os sujeitos reconhecem o seu desenvolvimento acadêmico-profissional, percebem a autonomia que vão progressivamente obtendo, ao tempo em que percebem a (trans)formação e a incompletude de sua trajetória.




Abstract

    This work is about a narrative research that was built over five formally structured principles that show how both Science and Mathematics Teachers had their educational formation at the Science Club/ a pedagical support to promote the UFPa’s Cientific development – either on the teachers’ inicial formation or on their professional improvment as teachers formers, whenever they worked for the Continuing Education Program in partenership with some other local institutions. For that, I came to check every document of that Teachers’ workgroup – projects, reports and all the kind of document which could reveal the very history of the group, while I chose to remark those non-registered aspects of their lives’ professional history as well as some interviews of eight teachers, when seven of them had become part of the whole process by the time they were having their undergraduation degrees. I disposer of some types of their assisted teachers’ inicial formation as well as the partnerships which were taken by envolving some students of the Science Club, no matter any curricular promotion but as being imprintings, as partnerships, of any other strategy on the shared educational formation like readings, seminars, workshops on researching teaching. This way, it happens the same time one’s educational formation and its professional improvment whenever teachers are interacting with the others – both their mates and students. The formation of the former teacher is began during their very inicial educational formation, wheever they become experienced partners of the new undergraduated students meanwhile they’re searching for instigative situations and even when they’re facing them on the worktime teachers’ "twilight zone" as a former teacher or on community interacting situations – events of outspreading knowledges as the Science Fairs. Such teachers can recognize their own professional development, they can notice their own new-conquered autonomy meanwhile they are aware of their (trans)formational and unaccomplished professional trajectories.



Introdução

    Este artigo apresenta de modo bastante sintetizado minha tese de doutorado – de mesmo título – defendida na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/SP/BRASIL), em fevereiro de 2000 e realizada sob a valiosa orientação da Profª Dra. Rosália Maria Ribeiro de Aragão.

    Trata-se de uma pesquisa narrativa (CONNELLY & CLANDININ, 1995) sobre a prática docente de formação de professores e de ensino de Ciências adotada no Clube de Ciências (CCIUFPA) / Núcleo Pedagógico de Apoio ao Desenvolvimento Científico (NPADC) da Universidade Federal do Pará, no período de 1979 a 1995[1].

    Busco reconstruir e analisar o pensamento pedagógico do grupo nessa trajetória e configurar as práticas de formação inicial e continuada de professores. Para isso, analiso documentos oficiais do grupo, como projetos e relatórios e minha dissertação de mestrado, cujo trabalho deu início ao Clube de Ciências, em 1979. Entretanto, busco também o "não-documentado" (EZPELETA & ROCKWELL, 1989), e a "diversidade na unidade" (MORIN, 1995). a partir de entrevistas semi-estruturadas e das histórias de vida profissional de oito professores do NPADC, que tiveram durante o período analisado participação no trabalho, sete dos quais iniciados como estudantes e um como professor recém-graduado.

    Organizo a investigação por meio de princípios ou teses formalmente elaboradas que afloram das histórias de vida e das entrevistas dos sujeitos da pesquisa, participantes do CCIUFPA/NPADC, reconstituindo ao mesmo tempo a história do grupo. A história pretende ser contexto para a investigação e história, propriamente dita, pois trata da trajetória construída por um grupo no seu processo de formação, enquanto grupo e enquanto sujeitos dessa história. Tudo isso é atravessado por categorias interativas, quais sejam: o ideário de formação e de ensino de Ciências e Matemática; a prática pedagógica; as utopias[2] que foram sendo construídas e os sentimentos manifestados pelos sujeitos estudados em suas falas por meio de entrevistas semi-estruturadas. Além da história oral dos sujeitos, examino produções do NPADC, tais como projetos e relatórios e uma dissertação de mestrado (GONÇALVES, 1981), buscando analisar os fundamentos teóricos sobre ensino de Ciências e formação de professores em diferentes momentos do período estudado.


1. Contexto inicial da constituição do trabalho e alguns aspectos do pensamento científico-pedagógico do grupo.

    O trabalho de formação de professores de Ensino de Ciências e Matemática no Clube de Ciências, na perspectiva analisada, tem início em 1979, com o desenvolvimento do projeto de minha dissertação de mestrado (GONÇALVES, 1981), no qual propunha um trabalho pedagógico – prática docente e discente – em ambiente democrático, segundo LEWIN (1973). Essa preocupação se justificava àquela época não só pelo contexto político brasileiro que se situava em um regime ditatorial, embora já se ensaiasse a "abertura pelo alto", de Geisel (WEFORT, 1984), como pela necessidade de se formar novos/outros valores para o ensino de Ciências, diferentes daqueles vividos pelos estudantes universitários em sua história de vida estudantil. Era necessário superar a compreensão de um Ensino de Ciências e Matemática meramente livresco, teórico e descontextualizado e para isso era necessário que juntos propuséssemos, discutíssemos, decidíssemos sobre todos os encaminhamentos, inclusive metodológicos de trabalho, buscando a formação de novos valores e concepções sobre o ensino de Ciências, para que eles fossem realmente assumidos como seus (LEWIN, 1973). Isso se tornava uma exigência ainda maior ao se considerar o fator de que a maioria da turma já exercia o magistério.

    Com FREIRE (1979), entendia que precisava superar os limites das condições objetivas existentes, buscando mudanças que meus alunos e eu considerávamos importantes para a sua formação de professores de Ciências e Matemática. Configurava-se essa abordagem como algo inusitado para a época, não só pelo contexto político que ensejava a compreensão de compromisso político como manifestações públicas e discursos políticos mesmo não acompanhados de ações concretas, como pelo fato de nosso trabalho docente não conter o teor desses discursos, mas muito mais ações políticas, evidenciadas por tomadas de decisão e busca das condições necessárias para que a mudança pretendida ocorresse, mesmo no âmbito grupal. A subversão da ordem estabelecida ocorria muito mais pelo fazer acontecer o que parecia inviável, como foi a própria criação do Clube de Ciências[3], do que por discursos. Entretanto, o próprio fazer pedagógico daquele momento, naquela turma de alunos universitários, entendo, ainda apoiada em FREIRE (1979;1999), como um ato político porque comprometido com a mudança, no bojo da proposta, em si. Creio, entretanto, que a busca de um ambiente democrático de formação é, ainda hoje, algo em processo de conquista e não-hegemônico nas instituições brasileiras de formação de professores.

    Com esse compromisso político, entendíamos o processo de formação como um processo de reeducação quer para o estudante que não tem nenhuma experiência de magistério, quer para o que já a possui, porque, se por mais não fosse, as experiências anteriores da maioria dos indivíduos, em sua vida escolar, foram no sentido de uma ciência puramente descritiva, acadêmica, muito diferente dos princípios que devem nortear o ensino atual de Ciências... (GONÇALVES, 1981:30). Ou seja, o termo trazia em si uma carga semântica do que hoje se entende como construção permanente, como um processo constante e não como algo que ocorre uma única vez e fica aí concluído, pronto, concluso. Neste sentido, GUNSTONE e NORTHFIELD (1994: 524), dizem que

o estudante professor é um aprendiz que está ativamente construindo visões de ensino e aprendizagem baseadas em suas experiências pessoais e fortemente influenciado por concepções/ percepções/ atributos/ habilidades previamente construídas e agora trazidas para o curso.
 
    Por outro lado, baseada em ROGERS (1977), entendia que seria importante o universitário assumir progressivamente a sua própria educação, à medida que se assumisse enquanto elemento ativo de sua construção pessoal e profissional. O subjetivo passava a ser elemento importante nessa construção, na busca da auto-realização, num processo de vir-a-ser contínuo. Mais tarde, os fundamentos desse inacabamento vão situar-se em Paulo Freire. Para que a reeducação pretendida ocorresse seria necessário, entretanto, um processo de constante questionamento, num ambiente democrático, que permitisse aos alunos discutir, refletir, questionar e posicionar-se (...) (GONÇALVES, 1981:32) de modo sistemático. Para isso seria necessário um ambiente em que houvesse um interrelacionamento grupal tão bom que todos se sentissem aceitos e importantes. O questionamento se dava também no plano da prática e das concepções individuais, em diferentes momentos do trabalho. Em termos atuais, poderia dizer que a dinâmica de aula se configurava numa dinâmica construtiva, o que significa tratar, em termos processuais, não só de questões que implicam respeito a(o) aluno(a) e à necessidade de propiciar espaço – na aula – para suas idéias e representações; mas também de questões que implicam a ajuda pedagógica imprescindível a cada aluno(a) para que ele (ela) possa assumir-se, progressivamente, como sujeito de suas ações frente à possibilidade de criar/recriar o mundo em que vive – para que ele (ela) venha a sentir-se capaz de desenvolver reflexões sobre si próprio, suas idéias ou pensamentos, sobre a ciência, o ponto de vista científico, e as relações ciência-sociedade. (ARAGÃO,1999: 1)     Parece-me possível relacionar a prática/concepção acima narrada com a idéia de formação contínua, hoje defendida como um processo de formação que não se inicia no curso superior, propriamente dito, mas que traz consigo toda a experiência de vida e de escola anterior, quer como sujeito-aluno, quer como sujeito-professor e que tem sido denominada de formação incidental ou ambiental por vários autores, dentre os quais, CAMARGO (1998), FRIZZO (1999) e MALDANER (1999).Por outro lado, a ruptura pretendida nesse processo de reeducação implicava leituras e discussões freqüentes em grupos, propondo questionamentos constantes, visando aquisição, fortalecimento, desenvolvimento e evolução de valores do ensino de Ciências. O questionamento e, principalmente, as reflexões escritas individuais ocorriam no sentido de olhar, cada qual, para a sua prática docente anterior ou de nossa experiência no Clube de Ciências, naquele momento sendo vivida. Embora se tratasse de um processo bastante complexo e não usual no âmbito universitário, encontrei receptividade nos estudantes, indicando-me que queriam assumir comigo o trabalho proposto. Encontrava apoio teórico principalmente em LEWIN (1973), tratando da atmosfera de grupo, da necessidade de se discutir e decidir juntos, favorecendo a tomada de decisões e o envolvimento pessoal dos alunos. Em DEWEY (1976), encontro a importância da experiência e da dualidade rotina-reflexão na formação do professor. Com esses aportes teóricos, dentre outros, estabelecemos uma dinâmica de formação que já envolvia, de certo modo, a discussão e a reflexão sobre a própria prática também defendida por ZEICHNER (1993) e SCHÖN (1992)[4]. A formação do professor, chamada naquele período de reeducação, atendia a um princípio triádico, por estabelecer relações interdependentes, formando uma unidade: um envolvimento pessoal tão grande que o próprio indivíduo seja capaz de sugerir e decidir sobre a sua aprendizagem, num ambiente pleno de confiança, de relacionamento interpessoal aberto, onde todos se sintam parte integrante do sistema, ou seja, num ambiente democrático. Um envolvimento pessoal pleno exige um ambiente democrático e ambos favorecem o aprender a fazer, fazendo, de modo consciente, dinamicamente, com o indivíduo decidindo o que fazer, porque, para que e como fazer (...) provocando uma mudança de atitude (GONÇALVES, op.cit:179).
 
    Havia, claramente expressa, a visão da não-existência de receitas para a formação, da não-doutrinação e da solidariedade grupal. Essa solidariedade grupal era praticada, também intencionalmente, por meio do uso da "Janela de Johari" (FRITZEN,1978), na prática de dar e receber feedback, o que se constituiu numa relação-de-ajuda muito importante para o desenvolvimento individual dos participantes - na relação com o outro - e do grupo como um todo. Com isso, a interação social no grupo constituía-se forte elemento de formação profissional com autonomia progressiva.

    Essas concepções extrapolaram os muros da universidade, quando o trabalho se estendeu à formação continuada de professores. De outros modos, buscava-se o desenvolvimento triádico do envolvimento pessoal do professor, do aprender, fazendo a renovação de sua própria prática docente e do estabelecimento de negociações com seus próprios alunos.

    O ensino de Ciências pretendido era o de iniciação do aluno à pesquisa em aula A busca do desenvolvimento do ensino por projetos de investigação - em um primeiro momento apoiados em BRUNER (1978) e em cursos de formação de professores por mim realizados no CECIRS, Centro de Ciências do Rio Grande do Sul, passa a ter apoio em HENNIG (1986) - configurava-se como uma utopia em construção. Víamos como importantes os caminhos de redescoberta e problemas, criando condições, tornando-se transição entre o ensino tradicional e o ensino denominado hoje com/por/como pesquisa, conforme propõem CARVALHO e GIL-PÉREZ (1993); GERALDI (1993); PORLÁN (1997), dentre outros.

    Entendia-se, com a posição de PIAGET em suas obras, queo sujeito humano é um sujeito ativo, que organiza sua aprendizagem de modo racional e, a partir da experiência com todos os aspectos básicos que caracterizam um sistema organizado é que se pode formar a compreensão do conceito desse sistema. (UFPa/NPADC, 1991:6)

    A equipe buscava se orientar, portanto, por pressupostos básicos do construtivismo de Piaget, propondo a interação do sujeito com o objeto a ser estudado, embora aí já se configurassem as interações entre os sujeitos como elemento importante para a aprendizagem, como propõe Vigotski em suas obras. Com essa visão de ensino, pretendia-se que alguns dos problemas fossem eleitos, com a participação do professor e do aluno para serem estudados, buscando compreender suas origens, suas razões, suas conseqüências sociais, econômicas, ambientais... Pretendia-se com isso que alunos e professores se tornassem mais críticos, aguçados em perceber as condições em que vivem e os problemas existentes no ambiente físico e social, que influem na qualidade de vida da população, que precisa deles conscientizar-se para buscar alternativas de solução. Em outras palavras, estávamos buscando formar um cidadão capaz de perceber questões e participar da transformação de seu meio.

Nesses cursos, a gente procurava estabelecer uma relação entre a Matemática trabalhada na sala de aula e a Matemática vivenciada fora (...) Nosso grande objetivo era esse. E como fazer isso? Nós procurávamos orientar os professores para trabalhar projetos de investigação, de modo que os alunos pudessem enxergar determinadas situações e encontrar solução para isso, através dos conteúdos de Matemática. Esse é um trabalho que até hoje eu continuo acreditando nele, nunca abri mão desse trabalho, porque eu acho que é um trabalho que vai subsidiar sempre o aluno, tanto de 1º, quanto de 2º, quanto de 3º graus. (Georg, 1997)
 
    A construção de um ensino com/por pesquisa co-existia, entretanto, com os procedimentos de redescoberta, entendida como etapa de transição pessoal, para o professor que estivesse buscando sair de aulas exclusivamente expositivas, como um degrau a ser percorrido em busca de uma prática mais autônoma. A experimentação era entendida como uma das possibilidades de trabalho em classe, não se constituindo abordagem única.

    Estes modos de ver e compreender o ensino de Ciências e a formação de professores foram também ampliados, como referi anteriormente, para o trabalho de formação continuada de professores e de formação de lideranças no ensino de Ciências no Estado do Pará.


2. Princípio 1: A prática docente antecipada assistida, visando inovação do processo ensino-aprendizagem-conhecimento, promove desenvolvimento profissional no licenciando, mesmo durante o curso de formação inicial, permitindo o desencadear da constituição do sujeito-professor, com autonomia profissional.

    A prática docente é complexa, envolvendo múltiplos aspectos sociais, políticos, econômicos, ecológicos, culturais, epistemológicos... É de natureza prática, o que significa dizer que dada a complexidade e a singularidade de seus problemas, o professor não dispõe de soluções técnicas previamente previstas que possam ser simplesmente aplicadas. (SCHÖN, 1992; PÉREZ-GOMES, 1995; MALDANER, 1997; GONÇALVES E GONÇALVES, 1998). Daí a importância de se oportunizar a formação de saberes da prática profissional pelos estudantes universitários dos cursos de licenciatura através de uma prática docente antecipada assistida e da formação de grupos de trabalho, favorecendo discussões, estudos, leituras... Isso, sem dúvida, significa a formação de uma nova cultura de formação de professores e, como conseqüência, de uma nova cultura da profissão docente e do processo ensino-aprendizagem-conhecimento, especialmente se a prática antecipada for desenvolvida numa perspectiva inovadora, que permita ao sujeito em formação fazer rupturas/transformações/mudanças... com/em sua formação incidental, advinda de suas experiências educativas desde o início de sua escolaridade, como compreendem MORAES (1991); MALDANER (1999); FRIZZO (1999), CAMARGO (1998), dentre outros.

    Na experiência do Clube de Ciências/NPADC, essa nova cultura de formação vem se constituindo há 21 anos, numa perspectiva, ainda, de opção espontânea de alunos universitários, que se definem pela pesquisa na área de Ensino de Ciências e Matemática, assim como outros optam por pesquisa em Genética, em Biofísica, em Química de Produtos Naturais, em Matemática Aplicada, etc

    A prática antecipada assistida com perspectiva de ensino com/por pesquisa, por ser uma prática complexa, não se desenvolveu de modo linear, tendo altos e baixos e se modificando ao longo do percurso. Evoluiu de uma proposta de "Didática Prática" embora nunca tenha sido assim denominada, mas pelo lugar que a proposta ocupava – para uma Iniciação ao Ensino com pesquisa, a partir de um movimento voluntário de estudantes atendendo anúncios de inscrição para estágio no Clube de Ciências, à semelhança de outros estágios oferecidos por outros setores da Universidade. Essa opção voluntária implica uma tomada de decisão de se dedicar ao ensino-aprendizagem-conhecimento, enquanto pesquisa, assim como outros optam pela pesquisa em outras áreas.

    A formação de duplas com colegas igualmente iniciantes ou parceria com outro mais experiente, bem como as diferentes práticas formativas interativas parecem indicar a essência de formação no âmbito do Clube de Ciências, pois foram altamente valorizadas pelos sujeitos da pesquisa. A interação com o outro constituiu-se em oportunidades formativas de constituição do sujeito-professor, durante todo o percurso. Essa interação – desde o início da década de 80 ‘perseguida’ e entendida como ‘busca de uma cultura comum’ no grupo – está tão presente nas práticas evidenciadas/assumidas/valorizadas que parece se constituir, de fato, uma cultura de formação de professores e de formadores de professores para o ensino de Ciências e de Matemática dentro do Clube de Ciências/Núcleo Pedagógico de Apoio ao Desenvolvimento Científico na UFPa.

    Parece possível, pois, dizer que a prática antecipada assistida em parceria pode ser entendida como uma formação compartilhada, em que os sujeitos se formam na interação com seus pares e seus alunos (FRIZZO, 1999), com a oportunidade de refletir sobre a sua própria prática, recebendo feedback não só de seu parceiro, como do professor-formador responsável pelo grupo e pelo próprio grupo de que participa. Outros elementos de formação contribuem para a constituição do profissional com autonomia progressiva, tais como a ‘liberdade para aprender’ (ROGERS, 1977), proporcionada pelo ambiente democrático (LEWIN, 1973), pelas discussões e tomadas de decisão conjuntas e pelo aprender-fazendo, sob orientação do parceiro mais experiente (SCHÖN, 1992). Ilustro o significado formativo dessa vivência, com a fala a seguir:

Eu me sinto (...) em um certo ponto privilegiado (...) quando eu entrei no Clube de Ciências, porque eu iniciei fazendo um trabalho com duas pessoas, dois profissionais que eu respeito muito (...). Então, elas me deram um grande apoio, um grande apoio mesmo. Elas me deixaram à vontade. Até mesmo porque essas duas pessoas são biólogas. E geralmente tinham alunos na turma que queriam fazer trabalhos de Exatas. Trabalhos de Química, Física. E eu por ser da área de Exatas - na ocasião eu fazia o curso de Química - já ficava com esses alunos. Tinha o acompanhamento delas e ao mesmo tempo elas me deixavam à vontade para trabalhar com os alunos. E isso (...) fazia com que eu me sentisse mais à vontade (...) Tanto é que quando eu retornei (...), no 2º semestre de 82, eu ainda trabalhei com elas. Era um trabalho que acontecia de uma forma que eu era estagiário mas ao mesmo tempo orientava o grupo de aluno menor do que o grupo de alunos (...) [que] elas orientavam (...). Mas com isso já iniciava, já era um trabalho de iniciação. Claro, sempre buscando apoio nelas. (...) Depois fui me soltando e não teve grandes problemas. (Vicente, 1997)     Resultados como esses apontam para a formação de uma nova/outra cultura de formação no Clube de Ciências/Núcleo, caracterizada pela prática docente antecipada assistida de professores, através de parcerias e de grupos de trabalho, concorrendo para a autonomia profissional PROGRESSIVAdos professores, como nos diz FREIRE (1999:121): A autonomia (...) é processo, é vir a ser. Não ocorre com data marcada. É nesse sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas de liberdade.     As práticas formativas, entretanto, não se esgotam aí. Os programas de Educação Continuada desenvolvidos pelo Núcleo também são apontados pelos membros do grupo – sujeitos da pesquisa – como importantes para a sua formação como professores e formadores ao tempo em que formam outros professores (FREIRE, 1999).



3. Princípio 2: Práticas formativas de interação com o outro, através de atividades coletivas de discussão e compartilhamento de experiências, contribuem para a constituição quer do sujeito-professor quer do sujeito-formador.

    A participação nos grupos de trabalho possibilita o desenvolvimento de elementos outros de formação, tais como relações de ajuda (FRITZEN, 1978), desenvolvimento de atitudes de solidariedade(GONÇALVES, 1981), discussões, estudos, leituras espontâneas e compartilhadas, produção coletiva, exercitando a escritura de textos e de materiais didáticos.

    A solidariedade ocorria de vários modos, que podem ser sintetizados no compartilhar saberes da experiência e conhecimentos. Ao relatar uma experiência vivida, os narradores "revivem a experiência" ao narrá-la (CONNELLY e CLANDININ, 1995) e os ouvintes, ao ouvi-la, resignificam-na com base em suas próprias experiências anteriores, re-vivendo, ou seja, vivendo-a uma outra vez, vivendo-a de um outro modo. É nesse sentido que a experiência vivida contém um saber próprio de quem a viveu (LARROSA, 1998). Contudo, no meu entender, ao narrar uma experiência, de modo geral, quem a viveu traz, junto com o relato, uma série de saberes produzidos, que são compartilhados com o outro. Em vários momentos de nosso trabalho isso parece ocorrer, principalmente na relação de parceria entre os componentes do grupo. Essa ‘troca de experiências’ ocorria em outros níveis, mesmo com sujeitos compreendidos como ‘menos experientes’, porque recém ingressos no Clube de Ciências ou porque bastante jovens. Refiro-me a trocas no âmbito de áreas diferentes de conhecimento, como foi o caso de certas aprendizagens com as bolsistas de Artes, de Pedagogia, de Psicologia, de Letras... Eram experiências diferenciadas de vida, propiciadas por todo um arcabouço teórico próprio de outras áreas do conhecimento, que se relacionavam com o ensino de Ciências e Matemática em desenvolvimento no Clube de Ciências, ajudando a construí-lo.

    A participação em congressos, seminários e encontros são percebidos pelos sujeitos da pesquisa como elementos de formação profissional no plano das relações da iniciação científica, do reconhecimento e da valorização pessoal e profissional, bem como tempo-espaço de reflexão sobre o seu próprio trabalho.

    Todos esses elementos de formação concorrem para a formação do sujeito-professor-reflexivo-pesquisador (ZEICHNER, 1993: SCHÖN, 1992, dentre outros). Para isso, o sujeito precisa ser, inevitavelmente, um profissional crítico, singular (CLARKE, 1995) e autônomo. Esse, entretanto, é um estado em contínua construção, num vir-a-ser constante, jamais plenamente atingido (FREIRE, 1999).

    A produção coletiva se configurava, no meu entender, como momentos de constituição do professor-formador na interação com o outro, numa perspectiva de autonomia, à medida que como sujeito passava a dar idéias, a escrevê-las ou a tomar decisões sobre a sua própria formação, a partir de percepções de limites e possibilidades dos próprios colegas do grupo.

    Outras interações significativas ocorreram no âmbito de leituras e discussões de textos, e também a participação em congressos. Os sujeitos valorizam essas experiências formativas como elementos importantes de formação e desenvolvimento profissional, na perspectiva da singularidade (CLARKE, 1995) individual e do coletivo.


4. Princípio 3: Situações desafiadoras efetivas constituem-se experiências profissionais-formativas e concorrem para o desenvolvimento diferencial do sujeito-professor-formador como profissional reflexivo, singular e autônomo.

    Ao propor-me a investigar a constituição do sujeito-professor-formador no exercício de projetos de educação continuada de professores propostos/desenvolvidos pelo Clube de Ciências/NPADC da UFPa, encontro nas vozes dos sujeitos uma série de referências a situações desafiadoras, que os marcaram, reforçando/modificando/superando práticas formativas, concepções, visões anteriores, abrindo perspectivas. Porque essas situações marcaram de algum modo esses professores (tanto que as colocam em evidência na narração espontânea de suas histórias de vida) e estou me referindo a elas como "experiências formativas desafiadoras" no transcurso dos projetos de educação continuada do Clube de Ciências/Núcleo, mesmo compreendendo o pleonasmo que possa estar contido na expressão, ao se considerar a compreensão de experiência de LARROSA (1996). Para o autor, a experiência é algo pelo qual o sujeito passa e do qual, de modo singular, subjetivo, pessoal, idiossincrático, retira uma lição, um saber que é finito, particular, que revela ao homem singular sua própria finitude (23). Em razão das diferentes subjetividades, uma mesma situação, vivida por pessoas distintas produz experiências distintas. Para LARROSA (1996), a experiência carrega consigo o desafio, o risco, o perigo. Por isso, o que pode ser experiência para alguém, pode não ser para outra pessoa.

    MORAES (1991), ao tratar do "impulso permanente para a frente", próprio de bons professores, buscando estágios mais avançados de qualidade profissional, conclui que

Os desafios são uma das formas em que essas oportunidades se apresentam aos professores. São oportunidades de avançar, de crescer, de melhorar na profissão. Têm entretanto, sempre associados riscos, implicando enfrentar a insegurança do desconhecido, exigindo a coragem de aceitar a realização de ações para as quais não se tem segurança de poder sair bem sucedido. (p.225)     Ao analisar o significado dos programas de educação continuada desenvolvidos pelo Clube de Ciências/Núcleo na perspectiva da formação/desenvolvimento do sujeito-professor-formador ficam evidenciadas situações desafiadoras como deflagradoras de experiências profissionais-formativas que concorrem para o desenvolvimento do sujeito, à medida que cada professor:     Os desafios são também mobilizadores do grupo, que os compartilha com os integrantes da equipe e com os professores e grupos de professores com os quais trabalha. As relações de formação se dão também na interação com a comunidade, na perspectiva da formação do professor e cidadão críticos e na busca progressiva do autodesenvolvimento profissional.

    O ensino como pesquisa está presente nos projetos de investigação que buscam o conhecimento da realidade para nela intervir com vistas à melhoria da qualidade de vida. Os grupos de professores existentes, no interior do Estado, desempenham papel importante na congregação de esforços locais e regionais para a formação de professores. O compromisso político-social, frente às relações de ensino-aprendizagem-conhecimento, se revela como marca do trabalho, quer do formador, quer do professor ou da criança que se insere no processo.


5. Princípio 4: As Feiras de Ciências constituem-se oportunidades formativas para professores-formadores como situações integrativas avaliativas do processo de ensino-aprendizagem-conhecimento-comunidade, com vistas à educação para a cidadania.

    Eventos comunitários, como as Feiras de Ciências servem para apresentação dos trabalhos - de alunos, de professores, de instituições - à comunidade, servindo como meio de divulgação e disseminação de conhecimentos, bem como de momento de denúncia de problemas existentes no contexto sócio-político-econômico-ambiental.

    As Feiras de Ciências passam a ter um caráter formativo de professores e formadores, à medida que se constituem como processos-produtos indissociados, por integrar processos de trabalho com a criança durante o ano letivo e srepresentar momentos de culminância dos trabalhos por ela realizados. Possibilitam a integração e avaliação do processo pedagógico, constituindo-se em fóruns de aprendizagem e discussão, através de oficinas aí realizadas, dos debates e discussões sobre ensino-aprendizagem-conhecimento e da avaliação sobre o caráter investigativo dos trabalhos apresentados. Ao formador, permite avaliar o processo como um todo, auto-avaliar-se e também desenvolver-se, na interação com o professor, com as crianças, com a comunidade...

    Na perspectiva de formação e de ensino acima colocadas, o compromisso político e social do trabalho docente está posto, quer na relação formador-professor, quer na relação professor-criança e, mesmo, formador-professor-criança, na perspectiva de um vir-a-ser contínuo.

    Os sujeitos-professores-formadores investigados parecem contribuir para a formação de uma nova/outra cultura de formação de professores e de prática de ensino de Ciências, ao valorizar em sua prática de formação elementos formativos que estão presentes em seu próprio processo de constituição docente.


6. Princípio 5: A compreensão do desenvolvimento profissional como processo-produto de múltiplas relações e como manifestação da autonomia profissional se dá na consciência da (trans)formação pessoal e na percepção da incompletude.

    Os sujeitos manifestaram, de um ou de outro modo, uma autonomia profissional que implica em tomadas de decisão frente a situações novas, muitas vezes desafiadoras. Com FREIRE (1999), entendo que tomar decisões implica o sujeito assumir-se como tal e como profissional, se as decisões ocorrem no âmbito da profissão. As tomadas de decisão passam a situar-se em desafios pessoais que se complexificam à medida do grau de experiência profissional dos sujeitos, mas que sempre requerem reflexão na ação (SCHÖN, 1992) para serem efetivadas.

    Os sujeitos compreendem o seu próprio desenvolvimento profissional como processo-produto de múltiplas relações, situando-o, de algum modo, nas experiências vividas no Clube de Ciências/Núcleo. Entretanto, os sujeitos que já desenvolveram outras atividades profissionais estabelecem relações de desenvolvimento também com elas, fazendo conexões com as atividades desenvolvidas no Clube de Ciências/Núcleo. Também estabelecem relações entre as diferentes atividades formativo-formadoras aí desenvolvidas, tais como o trabalho com os estudantes do ensino fundamental e médio, os programas de educação continuada, as leituras e discussões/reflexões teórico-práticas e sobre a prática, o compartilhar de conhecimentos e experiências, os projetos de investigação, a avaliação contínua, a produção coletiva e a participação na organização das Feiras de Ciências.

    Essas relações ocorrem no plano da testagem/confirmação das possibilidades de utilizar em outras situações concretas aquilo que fizeram/fazem, leram/lêem, discutiram/discutem, pensaram/pensam no Núcleo ou em outros níveis de ensino, como constata Georg, ao se desafiar a trabalhar projetos de investigação com professores e com estudantes do ensino fundamental, médio e superior. Ocorrem também no plano da consolidação e reforço de fundamentos de ensino-aprendizagem-conhecimento, como ocorreu com Fernando que, à medida que assumia outros compromissos – o Colégio X, o ensino superior – ia confirmando sua filosofia de ensino de matemática, de algum modo iniciada quando estudante no Clube de Ciências. Todas as experiências pelas quais passou, incluindo cargos administrativos na Universidade em que trabalha, contribuem para algum desenvolvimento profissional e para ampliar a percepção do processo de ensino-aprendizagem-conhecimento, compreendendo-o como parte de um todo sócio-político-econômico-cultural-ecológico. (GONÇALVES & GONÇALVES, 1998) mais amplo do que os limites da sala de aula ou da instituição escolar em que ele ocorre.

    Os sujeitos, de modo geral, tendem a destacar relações de origem de suas (trans)formações, situando-as, de algum modo, no Clube de Ciências/Núcleo. Geraldo diz que o que foi mais difícil em seu processo de desenvolvimento pessoal foi se despojar daquela formação incidental impregnada como uma segunda pele em seu corpo, pois só ali, no Clube de Ciências, vira uma proposta diferenciada de ensino, nunca antes imaginada por ele.

    Os sujeitos percebem sua (trans)formação pessoal de diferentes modos, desde uma ampliação da visão do processo ensino-aprendizagem-conhecimento, passando de ‘uma visão bem pobre’ para ‘uma visão mais rica’ – como ocorre com Beth - até a consciência de ser modelo para alunos e professores, como ocorre com Vicente, Anita e Fernando evidenciada de modo explícito em suas falas e, de modo implícito, com Georg e Geraldo. As visões se ampliam e se fortalecem, à medida que novos desafios vão sendo assumidos e novas experiências, vividas ao tempo em que mantém a unidade de um ensino-aprendizagem-conhecimento para a formação do cidadão, numa perspectiva da ciência e do dia-a-dia do sujeito, de uma percepção crítica e transformadora da realidade.

    As experiências formadoras que os sujeitos assumem, proporcionam transformações de múltiplos sentidos em sua prática docente, segundo eles. As mudanças apontadas vão desde maior segurança profissional, de modo geral, maior segurança nos conteúdos de sua área de conhecimento, até a formação de uma postura profissional.

    Mudanças na prática pedagógica propriamente dita ocorrem em todos os entrevistados e se diferenciam em termos de complexidade de riscos assumidos entre os que estão se iniciando e os que tem mais experiência, pelo menos para quem olha de fora, pois é possível que para aqueles que estão se iniciando como sujeitos-professores-formadores os riscos tenham uma dimensão e uma complexidade até maior do que para quem já tem muito mais conhecimentos construídos durante uma experiência mais longa e intensa.

    As mudanças vão desde a consideração às diferenças e peculiaridades dos alunos, não se permitindo deixar guiar pelos que tem maior facilidade em acompanhar a matéria, como seus professores faziam, a dar um tratamento histórico e discutir aspectos de natureza ecológica, política e social em aulas de química – como diz Carlos, recém-formado – até a orientação de projetos de investigação a partir de situações concretas locais, realizando etnomatemática ou modelagem matemática com os alunos universitários e professores, como faz Georg. Percebem desenvolver habilidades várias como sujeitos-professores-formadores, tais como maior criatividade, habilidade em mudar as coisas durante o processo, a partir das necessidades dos professores e das realidades locais, como diz Fernando (Entrev.1997).

    Os sujeitos consideram que uma postura pessoal não se alterou desde o início de sua formação, felizmente, foi o jeito de lidar com o aluno e o professor, considerando-o, chegando próximo a eles, tendo uma atitude humilde junto a eles, colocando-se em pé de igualdade, como afirmam Vicente e Fernando e outros manifestam de diferentes modos. FREIRE (1999) também considera que ensinar exige humildade.

    A autonomia progressiva parece ir sendo construída pelos sujeitos pesquisados ao longo de sua trajetória e evidenciada de modo tal que as manifestações dos sujeitos parecem guardar em si ‘graus de desenvolvimento profissional’. Assim, quando Carlos e Beth tomam decisões sobre temas e abordagens de trabalho no âmbito de seu grupo de alunos, já manifestam alguma autonomia profissional. Em outro sentido, Sara manifesta conquistar progressivamente autonomia, quando diz que hoje já tem convicções do que quer, já faz citações sem medo e tem auto-determinação nas leituras que realiza.

    Manifestações outras evidenciam outros níveis de autonomia profissional atingidos progressivamente pelos sujeitos ao longo de sua formação profissional, como é o caso, por exemplo, de coordenar eventos... tomar iniciativas no âmbito da Escola, do Clube ou do Núcleo... aceitar/impor-se desafios... partir de situações locais... partir do conhecimento prévio dos professores...

    A autonomia também se manifesta, como nos coloca FREIRE (1999), por sentimentos e impulsos de busca, de querer mais, de não se considerar com um futuro determinado e, por isso, poder construí-lo, apesar dos obstáculos sociais, econômicos, culturais, políticos, epistemológicos... que o condicionam. É a certeza da inconclusão, da incompletude (MORIN 1995), pela própria natureza humana, mas nem sempre consciente nas pessoas, nem sempre por elas reconhecida.

    A incompletude se manifesta nos sujeitos desta pesquisa como sentimentos de avaliação da situação de desenvolvimento profissional presente e como projeções futuras, quer a nível pessoal, quer em âmbito do grupo.

    Os entrevistados expressam anseios de avançar mais, crescer mais, buscar mais, mesmo que não sejam recém-graduados. Os avanços vão sendo explicitados, no sentido de avanços mais a longo prazo, de construção de uma carreira docente - buscar uma pós-graduação, buscar um curso de mestrado, buscar um curso de doutorado – de busca mais mediata, como em livros e colegas ou como busca de mais experiências e estudos pessoais, chegando a explicitações de temas como computação e biologia da aprendizagem.

    Pelo menos três dos sujeitos, com tempos distintos de formados e de experiência no Clube de Ciências/Núcleo manifestaram como ‘sonho’ a expectativa de se tornarem professores universitários. Um dos entrevistados recém-graduados espera poder continuar como professor-pesquisador, continuando suas pesquisas e fazendo mestrado em educação em Ciências. Todos, com maior ou menor veemência manifestam interesse em realizar Mestrado e Doutorado e, assim, aprofundar-se em estudos na área de educação em Ciências ou Matemática.

    Pelo menos três dos sujeitos pesquisados manifestam desejo ou movimento de busca de novos pressupostos, no sentido de ampliação da perspectiva epistemológica de trabalho. Geraldo parece estar voltado a compreender o ensino de Ciências de um modo mais amplo e global, dando indícios de que se encaminha para uma compreensão mais holística de homem e educação, considerando em seu bojo questões como espiritualidade e desenvolvimento global. Com ele outros membros da equipe, mesmo entre os não entrevistados, tem discutido temas semelhantes.

    A necessidade de publicação de suas idéias, trabalhos e discussões é reclamada pelos entrevistados, mesmo os mais novos integrante do grupo, cujas razões atribuem a um amadurecimento do grupo e aos cuidados para que não se percam produções da equipe que acabam saindo para cursos, encontros, palestras... e que podem ser apropriadas por outros, perdendo-se a autoria.

    Entendo com os entrevistados que as perspectivas da equipe estão situadas no sentido de pesquisas e publicações, que poderão proporcionar um crescimento conjunto dos sujeitos em particular e do grupo como um todo, como temos feito ao longo de nossa trajetória, na busca do desenvolvimento de uma cultura comum.

    O desenvolvimento do grupo e dos sujeitos é expresso pelos entrevistados através de sentimentos pessoais como ter a percepção de maior equilíbrio profissional, sentir-se respeitado no trabalho que desenvolve no Núcleo, sentir-se mais sóbrio, não se ‘atirando’ sem pesar prós e contras, sente recuperado o prestígio da profissão professor, sente orgulho de pertencer ao grupo e realizar o trabalho que faz.

    Uma forte indicação de reconhecimento de desenvolvimento pessoal, expresso pelos entrevistados de um ou de outro modo, diz respeito a que o trabalho no Clube de Ciências/Núcleo constitui-se um fator importante em seus curricula vitae, sendo muito considerado em concursos públicos, quer de magistério superior ou de ensino fundamental e médio pelas bancas examinadoras, rendendo-lhes também convites para trabalhar em escolas conceituadas da cidade[5]. Os entrevistados referem-se a esse ‘favoritismo’ que desfrutam dizendo que trabalhar no Clube de Ciências/Núcleo lhes tem aberto as portas, lhes enxerta o currículo, propiciando-lhes uma boa pontuação nos concursos...
 

Referências

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[1] Em 1985 o Clube de Ciências foi incorporado por uma estrutura mais ampla de trabalho no organograma da UFPa, chamada Núcleo, por integrar várias áreas do conhecimento e por integrar em seu trabalho ensino-pesquisa-extensão.
[2] No sentido de realidades ainda em construção, conforme MANNHEIM, apud LÖWY, 1995.
[3] O trabalho com o primeiro grupo de estudantes universitários das Licenciaturas da área de Ensino de Ciências e Matemática originou a criação do Clube de Ciências da UFPa como um laboratório pedagógico. Apesar das muitas dificuldades atravessadas para sua sobrevivência, o Clube de Ciências mantém-se em atividade há 21 anos.
[4]  Gilbert, em seus estudos, conclui que ‘o uso do conceito de reflexão na formação de professores surgiu e foi desenvolvido dentro da abordagem de educação libertadora.  A expressão ‘ensino reflexivo’ foi introduzida por Ken Zeichner, Donald Schön e Donald Cruiskshank e todos usaram a distinção entre ação reflexiva e rotina, de Dewey. Ele argumentava que os programas de formação de professores deveriam concentrar-se sobre ajuda ao professor para tornar-se ‘ um estudante de educação cuidadoso e alerta, em vez de ajudá-los a obter uma proficiência imediata’. (Dewey, 1904; citado em Archambault, 1964;) GILBERT, J. The construction in reconstruction of the concept of the reflective practitioner in the discourses of teacher professional development. IN:  International Journal of Science Education UK, vol 16, nº 5, 511-522, set-out 94. (tradução minha).
[5] Temos percebido também que em outras cidades do estado os sujeitos envolvidos com o trabalho de grupos de professores tem sido convidados para cargos municipais de destaque, entre os quais Secretaria de Educação e Meio Ambiente. Além disso, vários já prestaram concursos e se tornaram professores universitários.