EDUCAÇÃO CONTINUADA ‘IN LOCUS’: Encontros em desencontros


Nora Ney Santos Barcelos
Faculdade de Educação- USP-SP e UFU-Uberlândia-MG

Alberto Villani[1]
Instituto de Física, USP-SP
 
 

Resumo

    O texto analisa um caso de formação continuada 'in locus'. Para tanto contextualiza a realidade de uma escola do ensino fundamental no cenário das reformas educacionais instituídas desde 1996, na qual foi realizada uma pesquisa com a finalidade de investigar o saber docente de seus professores e simultaneamente promover uma mudança em suas práticas didáticas compatível com esse saber. A pesquisa focaliza as contribuições da Assessoria realizada pela pesquisadora, junto aos professores, através da participação nos episódios escolares e a problematização das amarras implícitas nas situações repetitivas. Este trabalho possibilitou algumas inovações na prática pedagógica, articulando o saber da Experiência e o saber Acadêmico no processo de reconstrução do saber Docente, via projeto transversal e pluritemático. A reconstrução e interpretação da interação entre a pesquisadora e os atores da escola será feita, privilegiando algumas categorias de origem psicanalítica
Palavras-chave: Educação Continuada; Assessoria Pedagógica; Saber Docente; Psicanálise e Educação
 
 

Abstract

    This text analyzes a case of ‘in loco’continued edcation. To do so, it sets the reality of a high shool (first to eighth grade) in the context of educational reforms established since 1996, where research has been carried out to investigate teachers’ teaching knowledge while promoting change in their teaching practice compatible with such knowledge. This research work focuses on contributions from pedagogical assistance performed by the researcher among teachers through participation in school events and the inquiry of implicit constraints in recurrent situations. This work has allowed some innovations in the teaching practice, articulating experimental and academic knowledge in the process of reconstructing teaching knowledge through a cross-sectional and multidisciplinary project. The reconstruction and interpretation of interaction between the researcher and the school actors will be carried out favoring some categoories of psychoanalytic origin.
Key words: Continued education; pedagogical assistance; teaching knowledge; psychoanalysis and education.


Introdução

    Um dos problemas da escola pública brasileira é constituído pelas dificuldades dos professores atualizarem suas práticas docentes introduzindo mudanças em suas intervenções didáticas tanto as planejadas quanto as eventuais. Isso é devido, fundamentalmente, à força de algumas crenças e valores que norteiam e permeiam sua prática e que, por sua vez, dependem muito dos seus conhecimentos e experiências.

    Resultados de várias pesquisas - como relatado por Tardif, Lessard e Lahaye apud Fiorentini et al. (1998:311) - indicam que "os saberes adquiridos através da experiência profissional constituem os fundamentos de sua competência. É a partir deles ...que julgam tanto sua formação anterior ou sua formação ao longo da carreira....que julgam a pertinência ou realismo das reformas". Barth (1981) apud (ibid:321) qualifica o saber como sendo, "ao mesmo tempo, estruturado, evolutivo, cutural, contextualizado e afetivo", esclarecendo que estes são apenas alguns aspectos da natureza do saber.

    Consequentemente, para promover mudanças na prática docente, é necessário atingir esses saberes e orientá-los a partir de uma reflexão teórica " que permite ao professor perceber relações mais complexas da prática" ( Fiorentini et all: 319). Na perspectiva de Santos (1996:.55-57) "A ciência pós-moderna procura reabilitar o senso comum... , ao sensocomunizar-se, não despreza o conhecimento que produz tecnologia, mas entende que, tal como o conhecimento se deve traduzir em auto-conhecimento, o desenvolvimento tecnológico deve traduzir-se em sabedoria". Trata-se da inversão do que se propunha na ciência moderna.

    As inúmeras experiências de formação de professores do Ensino Fundamental e Médio que os docentes universitários têm promovido, por iniciativa institucional ou própria, têm revelado a extrema complexidade da tarefa, devido principalmente à distância entre o contexto da formação e os acontecimentos reais dessa escola.

    Em particular, parece consenso que a intervenção externa é possível somente "a partir de troca de experiência e de reflexão coletiva". Hernández & Ventura (1998:191) relatam que o professorado da escola na qual realizaram sua pesquisa, considerava que "para realizar uma inovação deveria-se contar com a ajuda de algum assessor...sem ajuda de nenhum elemento exterior, terá muita dificuldade em fazer uma inovação...considera que deva haver um profissional externo que articule todos os aspectos que gera uma inovação, que aporte referências teóricas, que estabeleça novas propostas concretas na prática e que dê, sobretudo, elementos de análise para a continuidade à reflexão da equipe de professores"...

    É possível estabelecer uma ‘via de mão dupla` entre Universidade e Comunidade Escolar que atenda melhor a expectativa de ambas as partes no processo de formação continuada? Como levar os formadores e os professores à reconstrução permanente de sua prática docente? Existem condições contextuais que favorecem esse trabalho?

    Para tentar responder a essas perguntas bastante gerais, foi realizada uma pesquisa junto a uma escola estadual do Ensino Fundamental, com a finalidade de investigar o saber docente de seus professores e simultaneamente promover uma mudança em sua prática didática que respeite e explore esse saber. Trata-se de uma pesquisa de tipo Qualitativa, uma "Pesquisa-Ação" na qual, na perspectiva de Barbier ( 1996:34), o problema "nasce na comunidade que o define, o analisa e o resolve". "Pesquisa –Ação emancipatória" que, na perspectiva de Carr e Kemmis apud Fiorentini et all (1998 : 328-9), "pode promover avanços tanto no âmbito teórico como no prático" e na qual a responsabilidade é do grupo que desenvolve seu próprio trabalho. Em nosso caso os professores assumiram progressivamente uma participação mais ativa no enfrentamento dos problemas pesquisados. Este trabalho refere-se à primeira parte de uma pesquisa que foi desenvolvida no período de março de 1999 a dezembro de 2000, com os professores do segundo e terceiro ciclos do Ensino Fundamental, em uma escola pública da rede estadual em Uberlândia-MG. Este período abrange desde a entrada da pesquisadora na escola até a elaboração, com os professores, de um Projeto Pedagógico Transversal e Pluritemático denominado- Vida em Sociedade, com o estabelecimento de uma efetiva colaboração entre pesquisadora e professores do "locus" de trabalho. Os dados da pesquisa consistem de registros das intervenções e de Entrevistas específicas com alguns dos professores participantes. O desenvolvimento da segunda fase da pesquisa que corresponde à execução do referido projeto está acontecendo em 2001 e será objeto de outro trabalho.

    A reconstrução e interpretação da interação entre a pesquisadora e os atores da escola será feita privilegiando algumas categorias de origem psicanalítica: a insatisfação inconsciente (o desejo)[2], a satisfação inconsciente (o gozo)[3], a referência implícita (o Outro)[4], o conhecimento explícito e o implícito (o saber). Essas categorias podem ser melhor entendidas, por exemplo, em Fink (1998), Mrech (1999) e Villani e Barolli (2000). O trabalho está dividido em três partes: -Inserção da pesquisadora na escola; - Colaborando nas ações educativas dos professores – Mudando os rumos da escola com o Projeto Pedagógico Transversal e Pluritemático. Para finalizar o trabalho concluiremos com algumas considerações sobre as questões levantadas no início.


Inserção da pesquisadora na escola

    A pesquisadora, cuja competência específica diz respeito à formação de professores e educação para sexualidade, afetividade e prevenção, tinha como objeto de pesquisa inicial obter informações sobre a disponibilidade dos professores assumirem um ensino compatível com a nova orientação curricular e sobre as dificuldades para colocarem em prática as mudanças. Assim esperava que poderia explorar em conjunto com os professores o tema Orientação Sexual, uma sugestão introduzida pelos Parâmetros Curriculares Nacionais-PCN’s, em 1997.

    Para tanto, apresentou e comentou com a Diretora e, posteriormente, com os professores seu projeto de trabalho que consistia de Assessoria Pedagógica geral. Ela esperava tornar essa assessoria mais específica no sentido da Educação para a Sexualidade, na medida que essa demanda aparecesse na escola.

    As primeiras semanas foram ocupadas na tentativa de uma escuta atenta para perceber os significantes ao redor dos quais se articulavam as falas dos professores e, eventualmente, para desencadear reflexões e problematizações correspondentes. Vejamos o relato da pesquisadora:

    "Na sala dos professores, cada um chegava no seu ritmo, falando o menos possível sobre o seu fazer docente. Um fazer que evidenciava para a maioria rotina, obrigação e angústia, enquanto para a minoria significava expectativa e/ou compromisso. Eu procurava ter cuidados na condução das situações que emergiam naturalmente nos curtos diálogos e trabalhar com a sensibilidade, as repetições e as resistências dos professores. Por exemplo, uma professora colocou que foi interpelada por um aluno: "professora por que a senhora nunca sorri?" Uma outra professora perguntou: "Aí você atendeu seu aluno?" "Não, esse é meu jeito". Outra professora comentou " Os professores precisam cuidar de seu visual, de sua expressão, os alunos gostam". Meus comentários eventuais sempre passavam pela dimensão da reflexão teórica desses problemas. Para tanto buscava nas teorias, o aporte para elucidar as questões vivenciadas nos encontros e desencontros.

    Essa rotina foi rompida pela chegada de propostas de mudanças pedagógicas decorrentes das políticas educacionais e também de propostas específicas da escola. Dois projetos chamaram minha atenção: Anjos da Esperança e Retratinho da turma. O primeiro projeto foi proposto por um professor, que, visando enfrentar as dificuldades dos alunos em relação à escola, família, trabalho, sociedade e a situação financeira, sugeriu a criação de um professor/a ‘conselheiro’ para cada turma. Alguns professores não se sentiram comprometidos e seguros com a proposta. Enquanto outros não foram aceitos pelos alunos. Enfim, a minoria que conseguiu desempenhar bem a função de ‘conselheiro’ da turma, se dispondo a escutar os alunos e estabelecendo uma relação de confiança , obteve ótimos resultados, modificando as inter-relações entre professores e alunos na sala de aula. Porém faltava alguém , um Outro, que coordenasse o projeto, ajudando os professores nas dificuldades; o próprio professor que propôs o projeto, não conseguiu sustentá-lo. Assim, aos poucos, o projeto Anjos da Esperança foi colocado de lado e mesmo os professores que conseguiram resultados efetivos, quando se viram sozinhos na tarefa, abandonaram a idéia.

    O segundo projeto: Retratinho da Turma foi proposto pela Orientadora Educacional, que se dispôs a conversar com alunos e professores, individualmente, em grupo ou em classe, para levantar os aspectos positivos e negativos da sala de aula e da escola e iniciar a abordagem de temas de interesse dos alunos. Este projeto foi de curta duração, uma vez que a Orientadora foi transferida para outra escola. Alguns professores reconheceram, mais tarde, que, enquanto o projeto foi desenvolvido, os alunos começaram a apresentar melhoria no comportamento e a ter mais interesse pelas aulas.

    Esse relato nos informa sobre várias características da comunidade escolar, importantes para quem pretende promover mudanças na prática docente. Havia indícios de movimento da comunidade escolar, apesar da rotina cotidiana sugerir, por parte dos professores, uma fuga das dificuldades da prática docente e, por parte dos alunos, uma falta de investimento na aprendizagem. A proposta de sucessivas iniciativas revela que havia ao mesmo tempo o gozo de alguns e desejo de outros de saírem das queixas lamento para melhorar o cotidiano da escola, porém faltavam outros saberes para reconstrução da prática, tanto dos professores como da pesquisadora. Barth apud Fiorentini et all (1998:320), aponta que é fundamental conhecer as teorias implícitas na prática dos professores e dar conta de mediar ou promover condições para que estes profissionais modifiquem suas concepções, posturas, crenças e ações na ação educativa.

    A adesão parcial de professores e alunos às iniciativas e suas resistências a instaurar um diálogo refletem uma divisão interna na escola, que consumia boa parte das energias de todos. Essa divisão recortava o próprio querer da maioria dos professores. O desempenho da maioria dos professores e a própria proposta do projeto Anjos da Esperança revelam uma oscilação entre o desejo de mudar para criar um novo ambiente de aprendizagem e o apego à tradição baseada na disciplina, ordem e silêncio.

    Por outro lado, as iniciativas do professor proponente e da Orientadora Educacional revelam suas capacidades de perceber a realidade escolar, que incomodava a todos, principalmente no que se refere ao relacionamento entre professores e alunos. Talvez houvesse a percepção que este ponto poderia ser efetivamente enfrentado, pois na escola havia profissionais capazes de executarem a função de conselheiro ou, ao menos, de realizarem um diálogo criativo com os alunos.

    Em Minas Gerias, desde 1996, a Secretaria Estadual de Educação-SEE está propondo Reformas Educacionais para a Educação Básica (Ensino Fundamental e Médio). Especificamente, no Ensino Fundamental, as reformas foram propostas nesta seqüência: -Nova organização curricular- Conteúdos disciplinares e Temas Transversais-PCN’s; -Novos dos Conteúdos na Educação: Procedimentais-Fazer e Atitudinais-Ser; -Nova Organização do Ensino: Ciclos:Básico, Intermediário e Avançado; -Novo paradigma de Avaliação -por conceito e com Progressão Continuada.

    A Superintendência Regional de Ensino (SRE) pressionava para que as reformas fossem realizadas rapidamente, introduzindo as mudanças necessárias. Por outro lado a Diretora transferia, somente em parte, essa pressão para o professorado, talvez acreditando que o tempo resolveria o problema. Também tinha uma relação oscilante com os professores e com a pesquisadora, às vezes, incentivando as iniciativas, às vezes, retirando o espaço para levá-las adiante. Nesse sentido, a Diretora não estava conseguindo liderar, nem no sentido exigido pela SEE, nem em outras direções, o processo de mudança que parecia estar em gestação. Provavelmente, as respostas fragmentadas da maioria dos professores eram uma forma deles dizerem que estavam precisando de uma liderança organizadora de uma construção coletiva, a partir de interesses comuns.

    Quanto à presença da pesquisadora, o primeiro desafio foi ser reconhecida como Assessora Pedagógica sem ocupar uma função institucionalmente reconhecida. O caminho foi participar, sistematicamente, dos eventos comuns, introduzindo eventuais elementos teóricos durante as discussões e troca de experiências. O entrosamento foi lento. Por um lado, os professores ainda se sentiam inseguros em relação a ela e, por isso, não revelavam suas práticas e nem solicitavam sua ajuda, pois, como explicitaram mais tarde, ainda não estavam entendendo sua função e, até, desconfiavam dos pesquisadores universitários que vinham para escola, tomavam seus dados e nunca mais apareciam. Por outro lado, a Pesquisadora vivia a angústia que a própria inércia causava, pois assistia, sem poder intervir na hora, a situações que mostravam as dificuldades dos educadores em relação à educação dos alunos e às mudanças na própria prática docente. Também percebia que a introdução do tema Educação para a sexualidade, afetividade e prevenção não seria simples, pois os professores pareciam evitar o assunto. Muitas vezes ela ficava em silêncio, sem conseguir dizer e fazer nada, porque os problemas pareciam envolver uma rede complexa de interesses e necessidades.

    Para ela estava ficando claro que na escola estava faltando alguém que viabilizasse maior aproximação entre os professores, quebrando as paredes que estavam bloqueando essa interação. Talvez, fosse o isolamento da sala de aula que estivesse bloqueando a ação integrada, sendo que uma ação extra-sala de aula poderia proporcionar maior facilidade para um fazer comum. Sem abandonar a idéia inicial da pesquisa, ela começou ampliar sua perspectiva de intervenção, pois estava ficando claro o desencontro entre as exigências da SEE e a ação dos professores, dos alunos e dos pais. A prática atual desagradava a todos e isso exigia a busca de encontros.

    Assim a pesquisadora resolveu estabelecer uma colaboração mais concreta com os professores, aproveitando de todas as oportunidades, participando das reuniões, dos conselhos de classe, dos dias comemorativos. Era uma Assessoria Pedagógica permanente, ouvindo os professores em suas queixas e as suas experiências de sala de aula, compartilhando com eles algumas teorias e auxiliando-os a enfrentarem, com mais otimismo, as turbulências diárias. Enquanto pesquisadora procurava investigar estas ações intercruzando os dados com as teorias sobre a formação e ação docente.


Colaborando nas ações educativas dos professores

    Os professores, nesta fase, começaram a queixar-se muito e de tudo. Eles já conseguiam tornar públicas situações diversas da sala de aula que se enquadravam em diferentes campos: afetividade na relação professor–aluno, problemas na aprendizagem, dificuldades na comunicação, comportamentos problemáticos em relação a sexualidade vivenciada na escola. Finalmente, o ponto de maior ameaça em sua prática era a retirada da nota no processo de avaliação dos alunos a qual vinha garantindo, para muitos, referência, apoio e segurança na sala de aula.

    Decorridos, aproximadamente, três meses de pesquisa, algumas falas informavam um pouco mais sobre os professores, alunos e diretora explicitando, simultaneamente, Impotência, Desejo de mudança e Busca do Outro num processo de Transferência.

Impotência: "É muito difícil dar aula para muitos alunos, eles não respeitam ninguém, não têm interesse por nada e conversam muito. Agora que retirou a nota os alunos não vão estudar mesmo"(prof/a.). " Nós não estamos aqui para falar de teorias. Falta-me motivação para dar aula" (Prof/a).

Desejo de mudança: "O que você acha? Estou querendo trabalhar com os alunos do terceiro ciclo um livro que aborda a vida de uma adolescente portadora de AIDS"(prof/a).

    "O professor deve conversar com os alunos sobre o modo de ensinar e tentar entrar no mundo dos alunos... É bom aprender quando a gente discute e pesquisa"( Aluno/a). "Não sinto nenhum apoio legal para colocar normas em execução. A indisciplina dos alunos começa com a falta dos professores, falta de motivação, segurança e profissionalismo, por parte de alguns professores" (Diretora)."Precisamos de conhecimento de Psicologia. Muitos professores não sabem comunicar com os adolescentes de hoje. O sucesso de alguma coisa na escola depende de quem a propõe. Com essa reforma os alunos estão perdidos, assim como nós"( Prof/a). "Estamos sentindo inseguros, sem preparação para enfrentar os alunos de hoje, sem chão e em conflito com tantas propostas de mudança, principalmente em relação à avaliação"( Prof/a).

Busca do Outro "Você (assessora) poderia falar com os alunos, sala por sala. A escola não dispensa os alunos para os professores se prepararem" (Prof/a).

    Algumas vezes a pesquisadora participava ativamente assumindo determinadas tarefas que os professores tendiam a recusar. Ela visava transformar as queixas em desafios possíveis de serem superados, propondo alternativas concretas que poderiam reconstruir o Saber da Prática. De alguma forma ela conseguiu, em várias circunstâncias, transformar as faltas, que eles apontavam e das quais se queixavam, em problemas que eles desejavam resolver, experimentando uma autonomia inicial. Com sua participação em três atividades/projetos conseguiu tornar sua posição de Assessora-Pesquisadora amplamente reconhecida pelos atores da escola: educadores e alunos. Vejamos seus relatos sobre sua intervenção mais sistematizada nas três atividades/projetos:

    Primeiro: A partir da solicitação de alguns professores e da Orientadora Educacional, por ocasião do projeto Retratinho da turma, desenvolvi uma atividade denominada pelos alunos de Educação e Vida, por classe de alunos. Me acompanharam dois estagiários, licenciandos do Curso de Ciências Biológicas da Universidade. Os alunos foram convidados a pensar sobre si e suas relações com o outro ao longo de dinâmicas, debates, jogos, brincadeiras, simulações e filmes. No início do encontro, alguns alunos preferiam mais ouvir do que falar, por vários motivos: repressão sofrida anteriormente e/ou vergonha de se exporem em público, etc.. Aproveitamos, também, para falar sobre isso. Aos pouco, a maioria dos alunos começou a participar, naturalmente, colocando dúvidas e opiniões sobre situações vivenciadas com os professores e os colegas, com a família, com os amigos e com o/a namorado/a. No final, vários alunos disseram que a Diretora precisava planejar outras atividades como aquela, sendo que alguns deles e duas professoras manifestaram interesse em formar Grupo de Estudo sobre Adolescência e Sexualidade. Porém, a maioria dos professores não mostrava-se interessada em colaborar nessa iniciativa: reclamavam que não tinham tempo e mostravam preocupação com a disciplina dos alunos .

    Segundo: Houve uma Excursão ao Parque Ecológico, projeto sugerido pelos professores de Ciências para repor as aulas não ministradas em protesto contra medidas do governo estadual. Convidei os professores de todas as disciplinas a fazerem um planejamento Multidisciplinar, que seria desenvolvido mediante um Roteiro de questões integradoras, as quais deveriam ser comentadas, após a excursão, em salas de aulas. Para ajudar os educadores na realização desta atividade convidamos alguns pais e quatro estagiárias do Curso de Ciências Biológicas da Universidade. Apesar de algumas dificuldades, pois alguns professores não acompanharam os alunos e outros não conseguiram atuar como guias-orientadores, a Excursão aconteceu e houve contribuições riquíssimas de professores de todas as áreas disciplinares. Porém, nas duas semanas seguintes, o projeto parecia ter desaparecido, pois professores e alunos só pensavam e falavam sobre provas bimestrais, apesar do esforço empreendido por alguns alunos, professores e Orientadora Educacional para cumprir a parte final do planejamento integrado: elaboração de textos dissertativos, jornalístico ou, descritivo sobre a Excursão. Até onde foi possível avaliar, o projeto integrado-multidisciplinar do Parque, mesmo sem ter sido concluído, produziu resultados positivos pois, passado o período de provas os alunos sempre comentavam sobre a Excursão dizendo que gostaram muito. Os alunos que fizeram a avaliação por escrito deste evento confirmavam os comentários dos colegas.Um deles escreveu: "O Parque serviu como fonte de muitos conhecimentos, Tinha uma placa na entrada que falava de sua história. Pensava que no Parque a gente aprendia apenas sobre os bichos. Daí percebi que tinha condição para aprender Geometria, Geografia..... Muitos colegas também interessaram muito. Aprendi também sobre batimento cardíaco, respiração do jacaré e que a defesa usada pelo peixe elétrico é a descarga elétrica, pois ele é cego."

    A partir desses dois relatos, vários pontos já podem ser comentados. O primeiro é a grande disponibilidade dos alunos em participar de atividades educativas que se afastavam da rotina, tanto dentro da sala de aula, quanto fora dela. Não somente havia aceitação das novas propostas, mas também havia diálogo e envolvimento criativo, surpreendendo os professores mais próximos.

    Um segundo ponto é a confirmação de alguns traços desta instituição, como a falta de persistência e conclusão das ações educativas. As iniciativas novas são, em geral, bem aceitas pela maioria, mas logo elas são abandonadas em prol da velha rotina de sala de aula. Nos comentários informais já aparecia a idéia de que as possibilidades de sucesso dos projetos aumentariam significativamente caso houvesse realização de ações coletivas. Parecia que as mudanças esperadas dificilmente poderiam ser realizadas explorando competências isoladas, cada um investindo à revelia na sala de aula, de acordo com suas crenças e possibilidades.

    Um terceiro ponto muito significativo é a abertura da escola à colaboração com o exterior, no caso alguns estagiários da Universidade. Isso permitiu um início de circulação de novas idéias e um reforço da posição da pesquisadora. Ficava confirmada a possibilidade de ajudas externas em colaboração com a Universidade, com benefício recíproco de professores e estagiários. Essa abertura complementou, por assim dizer, a novidade mais importante desse período, ou seja, a disponibilidade de vários professores em aceitar e até sugerir a colaboração da pesquisadora. Suas intervenções mudavam a dimensão da prática e tornavam mais evidente a divisão no interior da escola: os que queriam mudanças começaram a se agrupar ao redor da pesquisadora aceitando sua liderança nessa tarefa. Pelo contrário, uma minoria, ainda, preferia permanecer na inércia, utilizando suas queixas lamento para justificar a impossibilidade de se mover.

    A nova proposta de Avaliação da aprendizagem exigida pela Reforma Educacional veio reforçar a possibilidade de contribuição da pesquisadora. Os professores estavam preocupados e angustiados, pois precisavam elaborar uma Ficha de acompanhamento dos alunos. A pesquisadora aproveitava, também, todas as oportunidades para reforçar o questionamento que alguns professores faziam sobre a validade das aulas expositivas tradicionais e para introduzir nas discussões a possibilidade de ensinar também por meio de projetos integrados. A ocasião para um avanço nesse campo foi a Feira de Ciência. Com ajuda dos educadores e dos alunos foi possível construir uma proposta inovadora, transformando-a em Feira Científico-Cultural. Vejamos o relato da pesquisadora:

    Terceiro: Propus para os professores que os alunos escolhessem os temas, a partir de uma lista que seria feita pelos professores. A idéia inovadora foi um desafio para toda a comunidade escolar. No entanto, na medida em que os professores foram percebendo que sua participação era imprescindível para o bom desempenho e aprendizado dos alunos, decidiram escolher os temas eles mesmos. Os alunos, em princípio, não gostaram dessa decisão, porém quando as classes foram orientadas satisfatoriamente, se envolviam nos trabalhos apesar do pouco tempo disponível, pois a escola estava em campanha para eleição da diretora e as apresentações estavam marcadas para a véspera das provas bimestrais finais. As apresentações foram um sucesso pela participação de alunos, professores e pais e, também, pela originalidade das atividades desenvolvidas. A título de exemplo, o grupo envolvido com o tema Educação e Sexualidade, que eu coordenei, criou e representou um texto sobre a vida de dois adolescentes; o grupo de Culinária, Educação Alimentar e Etiqueta Social, ofereceu um jantar para alguns convidados no qual passaram algumas dicas para convivência em sociedade e os cuidados que se deve ter com a alimentação. Os outros temas, cada um, de forma particular, atingiram os objetivos propostos.

    Em resumo, naquele final de 1999 o movimento havia tomado conta da escola: primeiro com a Avaliação e depois com a Feira. Esta última, com temas do cotidiano e com sua nova metodologia contribuiu para fazer esquecer, um pouco, o fantasma da Avaliação. De fato, a iniciativa conseguiu mobilizar toda a comunidade escolar em torno de um projeto: alunos, professores, especialistas, pais, diretora e funcionários. Educadores e alunos experimentaram a satisfação de dar mais sentido social aos trabalhos, de tomar decisões em conjunto e de realizar ações coordenadas. O saber docente estava sendo atingido e, ao menos em parte, reconstruído. Além disso, uma nova relação era estabelecida com a pesquisadora. A convivência agora, quase que diária, fortaleceu a atitude de espera dos professores, sustentada pela fantasia que eles criaram de que ela ia dar conta de "resolver os problemas" que aparecessem. Assim, ela poderia explorar a autoridade que os professores lhe atribuíam para trabalhar sistematicamente o lado do confronto entre a demanda externa, o problema real e as potencialidades deles. Sua ação consistia em sugerir, implicitamente, ou mostrar, explicitamente, que o combustível para o avanço estava na permanente reflexão sobre a prática deles, em conexão com as teorias que eventualmente eram introduzidas, as propostas da SEE e a demanda dos alunos. Também ficava cada vez mais evidente que os conteúdos sobre o tema Educação para a Sexualidade ainda não tinham sido reconhecidos e incorporados na prática dos professores.

    Atendendo às solicitações dos educadores da escola, a pesquisadora organizou uma série de reuniões rápidas com os alunos, pais e professores, em momentos diferentes, sobre o sentido das Reformas Educacionais, procurando salientar as possibilidades da proposta. Conhecendo as necessidades teóricas dos professores para legitimarem tanto as próprias potencialidades como reconhecerem outras práticas, montou e distribuiu mini-textos sobre Avaliação e ensino por projeto. Com relação à Avaliação sugeriu que eles definissem um esquema de transição que fosse compatível com suas possibilidades estabelecendo conceitos, a partir de uma escala de valores, para avaliar conhecimentos, procedimentos e atitudes. Essa inovação foi abrindo caminhos para a busca de solução para outros problemas, agora relacionados com o ensino propriamente dito.


Mudando o rumo da escola com o Projeto Transversal e Pluritemático:

Vida em Sociedade

    Após um ano de pesquisa as instâncias educacionais superiores estavam pressionando as escolas, em geral, para que os PCN’s fossem adotados e os temas transversais fossem colocados em prática na forma de projeto. Foi a partir dessa nova pressão que a pesquisadora sugeriu uma nova maneira de atuar.

    De um lado, para atender um documento da SRE, que trazia a Lei No. 13.411, pelo qual tornava-se "obrigatória a inclusão, no programa de disciplina do Ensino Fundamental e Médio, de estudos sobre o uso de drogas e dependência química", ela elaborou um projeto sobre Adolescência, Sexualidade Humana e Prevenção que seria realizado aos sábados, contando com a participação de 12 estagiários, alunos do Curso de Ciências Biológica da Universidade , e uma psicóloga. Tal projeto causou um certo movimento na comunidade escolar, mesmo sendo aos sábados, e, de alguma forma, contribuiu evidenciando comentários numa área ainda pouco explorada. Conseguiu envolver 20% dos alunos que cursavam de 5a a 8a série na escola, 120 alunos, apesar de todas as dificuldades encontradas no caminho: interrupção em virtude da greve dos professores, feriados e falta dos alunos

    Por outro lado iniciou a construção, em colaboração estreita com os professores, de um pré-projeto pedagógico com ênfase na transversalidade dos conteúdos sobre a Ética :formação de valores e atitudes, a partir de uma abordagem Pluritemática. Os professores se organizariam ao redor de temas, cada qual tratando de conteúdos afins de cada área ou grupo disciplinar como: Prevenção e Consumo (Ciências e Matemática); Corpo e Gênero (Educação Física e Artes); História de Vida, da Educação, da Família e do trabalho (História); A água e o Lixo no cotidiano, o Trânsito e Globalização (Geografia); Vida em Sociedade no Brasil e em outros países (Português e Inglês); e Direitos e Deveres (Educação Religiosa). Este desafio foi, naturalmente e amplamente, acatado por todos os professores e parecia estar de acordo com as possibilidades dos professores.

    Vejamos o relato da pesquisadora sobre o projeto: Continuei mapeando o espaço da escola, aproveitando todas as ocasiões para introduzir reflexões referentes ao fazer do professor e relacionar este fazer com o Currículo. O ponto importante era a forma como os professores seriam capazes de trabalhar com os temas em questão e o efeito que esta proposta poderia causar na sua prática e no seu saber. Para garantir a realização, ao menos parcial, de um ensino integrado na escola, primeiro averiguei o que cada professor/a e/ou área disciplinar gostaria de trabalhar, sem preocupar-me com os temas propostos pelos PCN’s. O caminho do novo Currículo e da reconstrução do Saber começava a ser percorrido. Conversei, inicialmente, com o grupo de professores de História, em seguida com os da Geografia. Perguntas e idéias foram encaixando em blocos disciplinares, de acordo com as possibilidades dos professores, e depois articulados com o resto. Daí por diante os grupos se tornaram multidisciplinares, ora para compreender como era um Projeto Integrado, ora para fazer sugestões, ora para mudar uma idéia anterior.

    O título do projeto:Vida em Sociedade foi sugerido pelo professor de Ciências, o proponente do projeto Anjos da Esperança que surgiu durante uma discussão sobre Temas Transversais. Fui percebendo que o tempo dos professores para conversar e elaborar o projeto era limitado. Então precisei criar uma oportunidade para conversar mais tempo com estes professores. Paralelamente, introduzi a História de Vida oral como instrumento colaborador da assessoria na coleta de dados. Esperava criar na escola um grupo de professores-multiplicadores, a partir de um processo mais reflexivo da prática profissional e de um maior envolvimento com o projeto. Foi assim definida a amostra dos professores para participar da Entrevista: seis professores, escolhidos por sorteio, um de cada disciplina, ou grupo de disciplinas afins, na opinião deles. O período de Entrevista foi de junho a setembro de 2000.

    A pesquisa, em 2000, tomou um novo rumo, pois ao invés de uma assessoria operante como 'corpo de bombeiro', que ajuda a apagar ‘incêndios em pontos isolados’, ela passou a sustentar um projeto pedagógico do qual todos os professores deveriam participar. Além disso abria espaço para uma participação especial dos educadores e alunos na "Pesquisa-Ação colaborativa e emancipatória". Mediante a História de Vida, não somente as reflexões individuais permitiram introduzir mudanças no Saber Docente e na ação didática, mas também foi possível uma análise coletiva das mesmas na elaboração dos pré-projetos dos grupos.

    Nesse momento, implicitamente, a pesquisadora estava interpretando que o desejo dos professores, em maioria, estava orientado para aderir às reformas curriculares, criando propostas alternativas e não para resistir; ela estava também apostando que o trabalho com as Histórias de Vida criaria espaço para lideranças locais se fortalecerem e assumirem o projeto.

    Esses relatos estavam beneficiando também a ação da pesquisadora na universidade, pois ela conseguia introduzir em sua disciplina de formação de professores uma reflexão mais ligada à vida real da escola. De fato, alguns professores entrevistados contavam experiências da vida familiar, enquanto outros, a maioria, contavam mais experiências da formação escolar e da vida profissional. Assim a História de Vida possibilitou à pesquisadora conhecer melhor os professores naquilo que sentiam, pensavam e faziam e, também, levou-os a se envolverem mais na pesquisa, tornando realidade a Pesquisa-Ação, num processo de colaboração mútua.

    Por exemplo, uma professora falou: "Eu vejo assim, tenho mudado muito meu jeito de encarar o aluno como pessoa... mais espontânea, até nos gestos. Eu fico atenta com o que os colegas fazem e funcionam bem...Às vezes eu chegava em sala de aula e não falava qual era meu objetivo, hoje faço diferente. Eu mudei muito depois daquele dia que conversamos". Outra professora: "Quando vejo uma fita de vídeo educativa percebo que alguma coisa eu já fazia antes. Fui ficando mais flexível e me soltando das regras e normas da escola. Gosto de usar giz colorido, poucas palavras no quadro ou frase curtas que causam impacto. Fui descobrindo que algumas coisas funcionam. Faço a prática, não sei como isso se chama na teoria. Deixei de falar: ‘Eu sabia que você não iria trazer a tarefa feita!’ Deixei de dar aula pedindo os alunos para lerem trechos, não funciona, porque apenas um ou dois conseguem explicar o que leram."

    O esforço fundamental da pesquisadora aparece claro: não deixar o projeto ser abandonado. O efeito dessa insistência já estava provocando efeitos inovadores na escola. E a partir daí os professores começaram a aceitar interiormente que algo lhes faltava e que valeria a pena investir num novo fazer pedagógico. A palavra de ordem no final do ano era Avaliação e Projeto, como pode ser constatado por este depoimento: "Precisamos colocar um Painel nesta sala para os professores informarem os colegas sobre os temas ou projetos que estão desenvolvendo em cada sala ou série". Entretanto não faltavam também os recuos desanimados: "Os alunos fazem muita bagunça e agora? Os alunos não deixam a gente dar aula, não fazem tarefas"

    Em resumo, as dificuldades de compreensão em relação ao objetivo do projeto e ao significado da abordagem metodológica, a resistência para pensar coletivamente, tudo isso foi sendo superado aos poucos. Alguém disse: "Eu acredito que é para fazer alguma mudança". O relato da pesquisadora termina descrevendo o "locus" no final de 2000:

    Ao retornar à escola, após uma ausência para participar de um congresso, fui recebida com mais entusiasmo, primeiro pela Orientadora educacional, depois por um Professor e por último pela Diretora. Todos eles passavam-me sempre a mesma mensagem. "Sabe aquele Projeto Pedagógico sobre Vida em Sociedade, aquele que você está construindo junto com os professores. Ele tem que ser desenvolvido de verdade no próximo ano". Surpresa, questionei: por quê? Responderam-me alegres: "Em reunião na Superintendência Regional de Ensino fomos informados de que a partir do próximo ano o Planejamento deverá ser feito por série, na forma de projeto, e não mais por disciplina". Compartilhei com eles a minha satisfação com a repercussão que o projeto estava ganhando na instituição uma vez que atendia a demanda das atuais reformas educacionais. A questão seguinte foi: "Você vai estar conosco nos dias de Planejamento?" Confirmei, com muita veemência minha disponibilidade e interesse em fazer parte deste Planejamento que poderá marcar um novo caminhar para esta comunidade escolar.

    Educadores, alunos e funcionários estavam satisfeitos por terem antecipado as demandas da SRE, confirmando a aposta da pesquisadora em relação a esta hipótese. Para a SRE a Escola tornava-se uma referência para outras escolas. Para o professorado uma ilusão grupal: "somos uma escola exemplar" operava um efeito aglutinador[5]. Os professores não eram mais um ‘agiuntamento’ de pessoas que não se envolviam com os projetos propostos por colegas e queixavam-se de seus alunos: estavam sendo convocados e aceitando, pelo menos inicialmente, de tornar-se um grupo. Claramente, o futuro reservaria um caminho mais complicado e difícil, no qual cada um deveria contribuir com suas possibilidades e iniciativas, para que o projeto se viabilizasse. Entretanto, o balanço naquele momento, era muito positivo e animador. Já estava longe o clima pesado de dois anos antes, quando a Diretora e a Orientadora experimentavam muitas dificuldades na articulação das ações docentes e os alunos pouco se envolviam nas atividades. Também a escola já estava saindo do período desgastante decorrente do impacto causado pelas reformas educacionais. O que teria cooperado para a efetivação dessa mudança?


Algumas Conclusões Parciais

    Ao sintetizar o processo de formação ‘in locus’ apresentado neste trabalho, podemos salientar a dupla mudança dos professores e da pesquisadora e tentar articulá-las. A pesquisadora tinha uma meta inicial: entender as possibilidades efetivas e as dificuldades da comunidade escolar para introduzir e desenvolver no segundo e terceiro ciclos do Ensino Fundamental da escola, um projeto de Educação para a Sexualidade, afetividade e prevenção que envolvesse todos os professores. Isso seria uma contribuição social importante, pois é um tema que aborda aspectos bio-psico-sócio-cultural da vida desde a infância, porém emerge com mais intensidade na adolescência. Ao entrar na escola, ela deixou o projeto em suspenso e tentou perceber o clima e os problemas fundamentais que estavam atingindo a comunidade. Em particular, o ponto que mais chamava a atenção era a presença de iniciativas isoladas que, quando colocadas em execução, não tinham continuidade. Havia um desencontro entre a ação mínima da Diretora que não sustentava as iniciativas, o desejo dos alunos, que se traduzia em indisciplina, o desejo da maioria dos professores, que se expressava em queixas e desânimo e o desejo da SEE que se concretizava em exigências de mudanças curriculares. Existiam, então, saberes que não se traduziam em ações correspondentes. por falta de uma coordenação. A presença assídua da pesquisadora na escola, com as conversas eventuais e as sugestões competentes lhe permitiu capturar a confiança da maioria dos atores escolares e ser reconhecida como uma Assessora. O plano inicial começou a ser modificado para um tipo de intervenção que permitisse exercer, inicialmente, uma liderança desejada por muitos e que apontasse em duas direções: introduzir a Educação para a Sexualidade, afetividade e prevenção nas formas possíveis e, simultaneamente, sustentar experiências coletivas. O sucesso dessas experiências e as exigências perturbadoras da SRE quanto a implantação das reformas curriculares foram vistas pela pesquisadora como complementares, ou seja como possíveis de serem articuladas.

    Assim, no segundo ano de atividade na escola ela investiu tudo na preparação de um projeto Transversal, que seria a resposta à demanda da SRE e que prepararia o surgimento de lideranças locais. O projeto Transversal e Pluritemático está ancorado nas possibilidades dos professores: os eixos temáticos foram escolhidos por eles para facilitar seu próprio trabalho didático. O desenvolvimento de uma reflexão paralela a partir das Histórias de Vida de vários professores foi a fonte de uma troca de experiências capazes de revelar lideranças. A Sexualidade, a afetividade e prevenção apareceram como conteúdos ou temas em mais de um grupo disciplinar. O final dessa preparação revelou uma mudança evidente de clima de trabalho e de perspectiva por parte dos professores: em sua grande maioria tinham se mobilizado a ensinar pelo método de projeto. Os desencontros haviam, finalmente, produzido um lugar para encontros, no presente e no futuro. Experiências eram trocadas nos pequenos grupos e entre os grupos: saberes implícitos podiam circular e complementar-se, pelo menos em algumas situações e circunstâncias. No final do segundo ano, houve uma convocação por um Outro externo à escola (a SRE), mas presente nela, para trabalhar com projetos e, implicitamente, para se tornar um grupo. Era o arremate de uma outra convocação, anterior e prolongada, por parte de um Outro interno na escola (a pesquisadora).

    Várias questões podem ser levantadas, a partir dessa síntese:

    Qual o papel da pesquisadora? Parece claro que ela percebeu implicitamente a existência de um espaço vazio na escola, que permitia a repetição de vários círculos viciosos. Ao ocupar este espaço, ela permitiu que um novo saber fosse gerado capaz de perturbar as práticas repetidas e introduzir novas práticas, ao menos inicialmente. Saberes sobre avaliação, relações humanas, adolescência e ensino por projeto. A resistência e a impotência, que marcavam as queixas-lamento dos professores, tenderam a se tornar desafios, conflitos e novas idéias, com a ajuda dela. Os professores atualmente estavam pedindo teorias para interpretar e enfrentar os desafios da prática

    Qual o papel efetivo do plano inicial da pesquisadora? Parece que foi sustentar o desejo dela de promover uma mudança na escola, até deslocá-lo e concretizá-lo no projeto integrado. Podemos fazer a hipótese de que os professores percebiam que ela queria algo, investindo para alcançá-lo e que esse querer era fonte de segurança para eles, porque contrastava com a ambigüidade dominante na escola. Provavelmente, essa presença se tornou mais eficiente ainda quando a pesquisadora resolveu apostar no projeto integrado. Isso implicou sustentar esse querer durante todo o segundo ano. Aos poucos, o que ela queria estava se tornando realidade.

    Qual o papel das demandas da SRE? Inicialmente, apenas perturbador, apesar de estar propondo uma visão coerente. Entretanto, quando as perspectivas dos professores se modificaram e se acoplaram à demanda da SRE, o efeito foi muito reforçador e contribuiu fortemente para a criação de um clima final positivo.

    Qual o papel dos Estagiários da Universidade? Os estagiários puderam aproveitar da experiência em ajudar nos projetos escolares para entrar em contato com a realidade de uma escola em transformação e trocar, com seus colegas, esse saber inicial adquirido ‘in locus’. Mas tiveram também o papel de confirmar para os professores a possibilidade de uma colaboração profícua com a Universidade, complementando a ação da pesquisadora. Era a primeira realização de uma colaboração de ‘mão dupla’.

    Qual o papel da formação "in locus"? Parece que uma intervenção na escola pode favorecer uma modificação da realidade dos professores, ou seja, seu saber e seu ambiente. Essa intervenção, naturalmente, deve partir da consideração das reais condições de trabalho, da escuta dos discursos da comunidade escolar, da interpretação dos comentários do professorado sobre suas próprias práticas, bem sucedidas ou não. Além disso, esta intervenção está disponível também para mediar os efeitos dos discursos externos das autoridades educacionais.

    Em síntese, podemos fazer a hipótese de que a ‘via de mão dupla’ entre Universidade e Escola pode tornar-se muito mais larga se for introduzido um terceiro elemento: a demanda institucional de Reforma do Currículo. Naturalmente a situação seria ainda mais confortável se a própria reforma do Currículo contasse com mecanismos de adaptação às situações locais. Isso eliminaria os efeitos altamente perturbadores que essa Reforma exerce na maioria das escolas.
 
 

Referências

BARBIER, R. A Pesquisa- Ação na Instituição educativa. (Trad.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

Fink, B. O sujeito Lacaniano:- entre a linguagem e o gozo. Zahar Ed. Rio de Janeiro, 1998.

FIORENTINI, D. & SOUZA Jr. A.J.de. & MELO, G.F.A. de. Saberes docentes: um desafio para acadêmicos e práticos. In: Cartografias do trabalho docente: professor(a) pesquisador(a), Campinas-SP: Mercado de Letras:Associação de Leitura do Brasil-ALB, 1998.

HERNÁNDEZ, F. & VENTURA, M. (Trad. ). A organização do currículo por projetos de trabalho. 5 ed. Porto Alegre: Artes Médicas,1998.

KAËS, R. O grupo e o sujeito do grupo: elementos para uma teoria psicanalítica do grupo. Tradução José de Souza e Mello Werneck - SP: Casa do Psicológo,1997.

Mrech, L.M. Psicanalise e Educação: Novos operadores de Leituras. Pioneira, São Paulo, 1999.

SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. 9 ed. Porto: Apontamento, 1996.

VILLANI, A. & BAROLLI, E. Interpretando a Aprendizagem nas Salas de Aula de Ciências. ATAS XXIII ANPED, CD-ROM GT-04. ,2000, 13 pp.
 

[1] Com auxílio parcial do CNPq. E-mail: Avillani@if.usp.br
[2] Desejo refere-se ao dinamismo intrínseco à falta introduzida pela separação da condição inicial de fusão entre a criança e a mãe. O desejo é indestrutível, qualquer seja a satisfação alcançada, porém pode se tornar inoperante quando o indivíduo está preso em algum circuito que o amarra.
[3] O Gozo é um conceito psicanalítico que corresponde à hipótese teórica da presença de uma satisfação inconsciente todas as vezes que o indivíduo se amarra em situações repetitivas que não tem uma razão plausível (como o sofrimento, a autodestruição, os riscos desnecessários, etc.). Do ponto de vista psíquico, gozo e prazer se distinguem, pois o primeiro aponta para uma tensão crescente, ao passo que o segundo é sinônimo de relaxamento
[4] Na psicanálise Outro (grande Outro) indica a referência implícita da criança, introduzida quando de sua  entrada na linguagem. Inicialmente seus representantes são os pais, posteriormente qualquer instância social que a capture.
[5] Para uma análise mais detalhada,  do ponto de vista da psicanálise dos grupos, da evolução de um grupo do ajuntamento à constituição de um grupo de trabalho, veja , por exemplo Kaës (1997)