Sibele Cazelli
Fátima Alves
Guaracira Gouvêa,
Martha Marandino
Douglas Falcão
Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST)
Resumo
Este trabalho apresenta os resultados do estudo da transposição do saber de referência para o saber a ser apresentado em duas exposições científicas do MAST, no que se refere aos conceitos dias e noites e estações do ano. Para tal foram cotejados os dados relativos a descrição das exposições e questionários respondidos pelos idealizadores acerca da concepção das exposições com os registros do saber de referência contidos em manuais e publicações de divulgação científica Ainda foram entrevistados grupos familiares de visitantes, buscando informações sobre o entendimento e os fenômenos em foco na exposição. A análise dos resultados mostrou que a forma de articular os momentos de produção determinam o processo de transposição do saber de referencia para as exposições facilitando ou dificultando a compreensão do saber exposto pelo público visitante.
Abstract
This paper presents the results of a study of the transposition of the concepts of days and nights and seasons from reference knowledge to the knowledge, presented in two MAST scientific exhibitions. Thus the data obtained from the exhibition description and the idealisers' answers, about the conception of the exhibition, were compered with the reference knowledge originating from manuals and popular science publications. However family visitor groups were interviewed with the aim of collecting information about the visitors' understanding of the phenomena focused in the exhibitions. The analysis of these results showed that the way the steps of the exhibition production were articulated determine the process of transposition of reference knowledge to the exhibition facilitating or complicating the comprehension of the exhibition knowledge.
Introdução
A literatura que trata da educação não formal, quando voltada para a temática da ciência e tecnologia, identifica, como instituições que promovem esse tipo de educação, os museus, certos meios de comunicação de massa, redes informatizadas e outros centros de cultura e lazer. Em geral, esses locais proporcionam atividades, organizam eventos de diversos tipos (exposições, cursos livres, feiras, encontros etc.) para um público heterogêneo, sem distinção de faixa etária ou formação especializada, com propósitos relacionados à ampliação, aperfeiçoamento da cultura científica e alfabetização científica (Lucas, 1991; Bradburne, 1998; Beetlestone et al., 1998).
No museu, de maneira geral, a clientela é livre para visitá-lo. A educação não formal aí desenvolvida é basicamente guiada pelos desejos dos indivíduos, em um ambiente especialmente concebido pelos seus idealizadores para proporcionar uma experiência estimulante e agradável, que consiga aproximá-lo da temática científica e tecnológica. Para isso, é preciso levar em conta as especificidades dessa instituição que tem como núcleo central a articulação dos elementos lugar, objeto e tempo (VanPraët, 1993), observados, principalmente, sobre as exposições, meios peculiares de comunicação dos museus.
Nesse sentido, este estudo teve por objetivo analisar a transposição do saber cientifico para duas exposições montadas no Museu de Astronomia e Ciências Afins – MAST – localizado na cidade do Rio de Janeiro: uma denominada Ciclos Astronômicos e a Vida na Terra e a outra Estações do Ano: a Terra em Movimento. Procurou-se abordar os processos de transposição museográfica dos conceitos científicos concernentes aos fenômenos dias e noites e estações do ano usados, na elaboração das referidas exposições. A análise visou caracterizar as etapas da transposição nas exposições indicando os pontos considerados importantes para a realização de estudos que levem em conta esse processo. A investigação foi desenvolvida a partir das seguintes questões: Quais são as etapas do processo de transposição museográfica? Como se estabelece a relação entre o saber a ser transmitido e os recursos comunicacionais no processo de transposição museográfica?
Para tal registramos como os conceitos selecionados são tratados no saber de referência, contidos nos manuais e publicações de divulgação científica e, como esses se apresentam, por meio dos recursos museográficos, nas exposições. Nesse sentido foram cotejadas duas propostas: a dos idealizadores e das próprias exposições. Os responsáveis pela organização e elaboração das exposições responderam um questionário estruturado com questões relativas à concepção da exposição, ao tema, às estratégias pensadas e aos recursos utilizados e às mudanças ocorridas durante a montagem.
Ainda foram entrevistados grupos familiares, escolhidos randomicamente, em visita às exposições (6 grupos para cada exposição), segundo um roteiro tendo por base perguntas que procuravam obter informações sobre o entendimento da temática e os fenômenos em foco na exposição. Essas entrevistas eram gravadas.
A realização deste estudo, que tem enfoque qualitativo, apoiou-se, principalmente, em quadro teórico proveniente de duas áreas de conhecimento: uma da educação, referente ao conceito de transposição didática/museográfica e outra da museologia, sobre a produção de exposições. Primeiramente trataremos das questões relativas à transposição didática do saber de referência ao saber exposto para posteriormente explorar aspectos do objeto de pesquisa deste trabalho, que é a exposição de museu. Posteriormente será apresentada a análise dos dados obtidos na pesquisa.
Do conceito da transposição didática a museográfica
O saber científico não é ensinado nem divulgado da mesma forma que é produzido no âmbito das universidades e centros de pesquisa. Ao ser socializado em diferentes espaços sociais, o conhecimento científico sofre uma série de modificações. Estudos como o de Cicillini (1997, p. 6), apontam para a existência de diferentes padrões de produção de conhecimento, representados pelo trabalho de pesquisadores, professores, divulgadores da ciência, assim como pelos produtores de materiais didáticos.
Os processos de mudança do conhecimento científico são analisados por vários autores. No âmbito da escola, Forquin (1993, p.14) discute o tema da produção de conhecimento e afirma que a cultura escolar possui uma especificidade e seletividade e, assim, não se pode deixar de perceber que (...) toda educação, e em particular toda a educação do tipo escolar, supõe sempre na verdade uma seleção no interior da cultura e uma reelaboração dos conteúdos da cultura destinados a serem transmitidos às novas gerações. O autor ressalta que a educação escolar não se limita a fazer essa seleção entre os saberes e materiais culturais, mas ela deve torná-los efetivamente transmissíveis e assimiláveis. Isso porque o pensamento do teórico não é diretamente comunicável ao aluno, sendo necessário a criação e a utilização de dispositivos mediadores.
Pesquisas na área de educação têm defendido a idéia de que o conhecimento escolar e o conhecimento científico são instâncias próprias de conhecimento e as disciplinas escolares possuem uma constituição epistemológica e sócio-histórica distinta das disciplinas científicas (Lopes, 2000, p. 150). Essa idéia resgata, entre suas várias implicações, o reconhecimento da existência de uma "cultura escolar", uma vez que a escola passa a ser considerada como um locus de produção e criação de saberes específicos e originais.
O conceito de transposição didática difundido por Chevallard (1991, p. 17) apresenta a idéia de que os conteúdos de um saber designados como aqueles a ensinar são verdadeiras criações didáticas, suscitadas pelas necessidades do ensino e sofrem um conjunto de transformações adaptativas. Segundo o autor, o saber-tal-como-é-ensinado, o saber ensinado, é necessariamente distinto do saber-inicialmente-designado-como-o-saber-que-deve-ser-ensinado, o saber a ensinar. Outros autores têm trabalhado com o conceito de transposição didática e algumas críticas vêm sendo propostas. Nessa perspectiva, há indicações de que outros elementos, além do saber sábio, como, por exemplo, as práticas sociais, são referências e interferem na construção do saber escolar (Astolfi e Develay, 1990; Caillot, 1996).
A questão da transposição do conhecimento científico para outros espaços sociais, diferentes do local de origem desse saber, tem sido cada vez mais tema de estudo na área do ensino e da divulgação científica. Assim, observa-se que o conceito de transposição didática, nos últimos anos, está sendo apropriado por outros fóruns como, por exemplo, os que estudam as exposiçõe de museu. Nesse sentido, destaca-se o trabalho de Simonneaux e Jacobi (1997), que propõe a noção de transposição museográfica, para descrever o processo que um determinado conhecimento passa ao ser transposto para uma exposição.
Como os museus são espaços diferentes da escola, possuem uma cultura própria. Essa afirmação tem por base o conceito antropológico de cultura de Geertz (1989, p.15), que apresenta o termo sob o ponto de vista semiótico, entendido como teias de significados, bem como a sua análise. Segundo o autor, a cultura não é compreendida como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa à procura do significado.
Nesse sentido, Herrero (1998, p. 151) propõe que o museu seja considerado como uma casa da cultura científica, uma vez que engloba fatores como a história de criação do conhecimento científico, seu contexto acadêmico-político e a seleção e priorização do conteúdo científico por uma comunidade que tem um marco interpretativo particular, constituindo o discurso museográfico, pelo qual o conhecimento científico é transmitido.
Ao tratar do principal meio de comunicação dos museus Davallon (1988) ressalta os desafios encontrados na elaboração de exposições científicas, partindo da hipótese de que nesse momento, ocorre um processo de representação, de figuração que acompanha a passagem do discurso científico (a fonte) ao discurso da divulgação (o alvo).
O autor analisa o processo de representação com base na interpretação semiótica do espaço onde ocorre a divulgação, indicando que a passagem do "texto-fonte" para o "texto-alvo" não pode ser compreendido como uma simples tradução, mas sim como uma transformação. O "texto-fonte" e o "texto-alvo" diferenciam-se, uma vez que no processo de representação do primeiro para o segundo ocorre a produção de um objeto – a exposição –, na qual os elementos do texto científico serão a matéria-prima para o processo. Davallon analisa, a partir do processo de representação, o espaço nas exposições científicas e técnicas, que pode, em uma perspectiva instrumental, ser considerado apenas como um simples suporte funcional dos objetos. Entretanto, nas perspectivas comunicacional e semiótica o espaço é um elemento participante na produção de efeitos, sendo, nesse caso, considerado uma mídia que fala aos visitantes, ou seja, que produz sentido. Para compreender melhor como ocorre a transformação do saber científico em saber exposto, será aprofundado a seguir o conhecimentos sobre as exposições em museus.
A exposição: do saber a visita
A idéia de exposição supõe um modo de recepção por parte de um indivíduo daquilo que é exposto, seja uma obra de arte, objetos etnográficos, um texto científico ou uma máquina. Entretanto, a exposição não se limita a mostrar. Ela indica também como olhar. Nessa perspectiva, pode ser abordada como uma mídia, por se caracterizar pela apresentação simultânea de um conteúdo e de uma técnica de produção propondo uma forma de apreensão do que é exposto. A colocação de um conjunto de objetos, supostamente referentes à um tema, em um espaço não garante sua compreensão. Por isso, é importante perceber, ainda, que a exposição é essencialmente um fato de linguagem.
A disposição dos objetos e elementos expositivos (fotos, painéis etc.) precisam ser apresentados de forma que façam sentido. Observa-se, portanto, que a relação simbólica da ação de expor vai além de um simples ato de tornar público os objetos. A exposição é um produto resultante da execução de uma técnica e responde a um objetivo, o de produzir um efeito, ou seja, uma intenção. Assim, em sentido amplo, pode ser definida como resultante do agenciamento de coisas em um espaço a partir de uma intenção, envolvendo estratégias técnicas, comunicacionais e atores sociais, e capaz de atrair o público. A produção da exposição articula, ainda, padrões de participação dos visitantes, inserindo-se assim em um campo de relações complexas, de tal modo que torna-se um produto que reúne elementos semióticos, pedagógicos, estéticos, científicos entre outros, caracterizando-se por uma heterogeneidade de componentes.
Neste trabalho ao se discutir o que é essencial em uma exposição, tomou-se como referência a concepção de Eco (1985, apud Davallon, 1999, p.14) sobre o texto como entidade comunicativa, mecanismo que demanda ser atualizado por um destinatário dentro de um processo interpretativo. Considerando-se que pode ocorrer discrepância de competência entre o emissor e o destinatário, o tipo de interpretação (do texto) deve fazer parte de seu próprio mecanismo gerativo, gerar um texto significa executar uma estratégia da qual fazem parte as previsões acerca do movimento do outro.
Com base nessa concepção é possível entender a exposição como um texto dotado de uma intenção. Eco (1993) defende que, mesmo partindo de uma semiótica ilimitada (a qual permite leituras abertas que levam a vários significados), existem critérios e modus (limites, fronteiras) que orientam a interpretabilidade. Para demarcar esses critérios, sublinha que entre a intenção do autor (intentio auctoris) e a intenção do leitor (intentio lectoris) existe uma terceira possibilidade: a intenção do texto (intentio operis). O que importa é saber o que o texto diz. Desse modo, um visitante (leitor) ao interagir com uma exposição-texto não vai captar a intenção do idealizador e sim a intenção do texto. De acordo com as palavras de Eco (1993, p. 75): como a intenção do texto é basicamente a de produzir um leitor-modelo capaz de fazer conjeturas sobre ele, a iniciativa do leitor-modelo consiste em imaginar um autor-modelo que não é o empírico e que, no fim, coincide com a intenção do texto. Ao introduzir uma contraposição entre a intenção do leitor e a intenção do texto, o autor em questão dilui a intenção do autor empírico. Portanto, é a intenção do texto interagindo com a intenção do leitor que vai definir as margens de interpretabilidade o que quer dizer que, apesar de o texto possuir inúmeras possibilidades de interpretação, o leitor não pode interpretar qualquer coisa.
Para compreender a transformação de um saber de referência a partir do funcionamento semiótico da exposição, o mais simples é seguir essa transformação até a visita. Dessa forma, este estudo partirá da concepção de exposição como linguagem. De maneira geral podemos distinguir três lógicas de linguagem na produção da exposição. São elas: lógica do discurso; lógica do espaço e lógica do gesto que correspondem a momentos da transformação: a preparação da exposição, a execução e a visita. Cada momento, entretanto, não usa uma só lógica da linguagem. O que nos interessa é poder captar as fronteiras da passagem de uma lógica para a outra (Davallon, 1999).
O primeiro momento corresponde a fronteira entre um dado saber e a estratégia de colocá-lo em exposição (procedimentos de expor), a passagem da lógica do discurso para a do espaço. Essa passagem é o ato de instalação do saber no espaço – ato de criação da exposição como objeto cultural, que, em certos casos, pode se dar quando a exposição é projetada. Em outros casos quando a exposição está sendo executada, em um trabalho de equipe entre o idealizador e os realizadores, no próprio espaço. O segundo momento é marcado pela chegada do visitante. Para ele a compreensão da exposição é subordinada a uma atividade e uma lógica gestual (percurso, aproximação, olhar, etc.).
Esses recortes - modelos de análise - permitem descrever uma tendência que deve ser adaptada a cada caso. Esses momentos variam segundo o saber tratado, o tipo de exposição, o tamanho, a estrutura institucional de produção, etc. A dinâmica da cadeia de operações da é transformação organizada entre o tratamento do discurso científico pelos cientistas, para o saber a ser exposto e a sua colocação espacial pelos arquitetos, designers e realizadores. Essa organização pode marcar fortemente, o produto final. Apresentaremos a seguir cada uma das lógicas presentes nas etapas da produção de uma exposição.
· Lógica do discurso está relacionada com a operação de linguagem que envolve aspectos da produção da estrutura textual. Nesse caso duas operações estão presentes: 1) a definição da idéia da exposição, dos objetivos que a fundamenta e a sua inserção em um programa da instituição. Esse discurso muitas vezes é visto parafraseado e reproduzido em partes da exposição ou em seu catálogo; 2) o texto científico, que constitui originalmente o conteúdo e o assunto da exposição, passará, ao ser reescrito, por muitas operações de escolha, de recorte e de comparação.
A delimitação dos objetivos de uma exposição e a reescrita do discurso científico, por meio da escrita de um programa, dão início ao que será a exposição, definindo uma estratégia que lhe dará um estilo. Essas duas operações têm como efeito semiótico extrair um saber do campo científico e reduzi-lo a um conteúdo sob o olhar do programa expositivo.
· Lógica do espaço, esta pode ser dividida de acordo com as diversas operações de linguagem a ela relacionada: as concernentes à concepção e as concernentes à realização. Essa divisão segue, apenas um posicionamento lógico e temporal, não significando que essas operações sejam, na prática, impermeáveis.
Com relação à concepção, pode-se distinguir dois tipos de operações: a conceptualização e a cenarização. A primeira refere-se à elaboração do conceito de exposição, ou seja, ao conceito do produto e eventualmente ao conceito de comunicação. Já a cenarização corresponde às operações de corte da exposição nas suas diversas seqüências de encadeamento da temática e que pré-figuram a visita. Essas operações são organizadas de forma a dar sentido ao conjunto de elementos que serão expostos.
Nas operações concernentes à realização, observa-se que as diferentes formas de fazer exposições estão relacionadas tanto ao tipo do saber tratado quanto ao tamanho ou gênero da exposição em questão. Por exemplo, atualmente, uma exposição que trata de um tema sensível aos cientistas tornou-se secundária em função da atenuação da separação entre disciplinas, ocasionada, em certa medida, pelo efeito das imposições diretamente ligadas à mídia, bem como pelas características técnicas, custos e/ou simplesmente pela pressão da moda de um determinado estilo ou técnica de exposição. Nesse caso, a concepção da exposição tende a esquecer a lógica do discurso científico para privilegiar a lógica visual e espacial. A linguagem espacial parece fazer cada vez mais a união da concepção com a realização em um momento específico: o da produção.
Essas diversas operações têm por efeito semiótico fazer suportar um tratamento figurativo e um tratamento narrativo para o saber que serve de conteúdo à exposição. Trata-se de um processo de simbolização, pois os significados dados pelo visitante à exposição não são disponibilizados a priori, mas eles dependem do contexto que constitui a exposição no seu conjunto.
· Lógica do gesto, esta é caracterizada pela mobilização do comportamento do visitante, colocando seu conhecimento em interação com a exposição pronta. Na lógica do gesto dois tipos de operação semiótica estão presentes: a temporalização e a leitura. A temporalização corresponde ao período do percurso da visita, no qual o visitante tem contato com a forma e os elementos apresentados. Já a leitura ou interpretação conforma o percurso pelo qual o visitante lê e reconhece os textos, os objetos e as imagens. Além disso, segue e utiliza a organização estrutural da exposição elaborada segundo aspectos espaciais e simbólicos. Para o visitante, essas operações funcionam como marcas de intencionalidade e de reconstrução do conteúdo da exposição, facilitando-lhe a (re)significação dos dados que recolhe ou traz com ele.
Essa leitura individual, supostamente espontânea e não direcionada, na verdade foi moldada e guiada pelas operações que pertencem à lógica do discurso e à lógica do espaço, ou seja, desde a escrita do programa expositivo até a sua simbolização, processo pelo qual foi submetido o saber científico original.
A organização dos dados
· Saber de referência
Nas duas exposições enfocadas neste estudo são abordados os ciclos das estações do ano e dos dias e das noites. Em um primeiro momento, buscamos identificar como esses conteúdos são apresentados nos manuais do saber de referência. Eles têm uma densidade histórico-social que os tornam objeto de estudo de diversas áreas do conhecimento. Dessa forma, realizamos uma busca no saber de referência da astronomia, como também em áreas afins, por exemplo, a geografia e a biologia.
Na astronomia, recorremos aos manuais de ensino superior largamente difundidos e utilizados na formação de astrônomos. Por serem manuais, uma transposição didática está implícita. Os tópicos escolhidos (estações e dias e noites) são apresentados no capítulo referente à construção da equação de tempo, que significa medir a noção de tempo clássico e considerar as correções devido aos movimentos da Terra. Para tanto são introduzidos os conceitos de dia sideral, dia solar, ponto vernal, ponto de equinócio e solstício, eclíptica, tempo local, sideral e aparente, ano trópico, eixo inclinado da Terra, movimento aparente, latitude e longitude. Nos manuais de várias áreas do conhecimento, uma estratégia para a elaboração do modelo explicativo é considerar alguns pressupostos básicos que possibilitem, além da simplificação do aparato matemático, introduzir os iniciantes na forma de produção de conhecimento daquela área. Para a astrometria, a Terra é um corpo rígido, homogêneo, sem atmosfera, sendo portanto, substituível por qualquer corpo cósmico com essas características físicas. Além disso, o Sol é considerado uma fonte de raios paralelos, embora isso não seja explicitado no modelo. Dessa forma, os conceitos de estações do ano e dia e noite não são utilizados dentro de uma perspectiva histórico social, mas sim na matematização da noção de tempo, não se discutindo a noção de claro e escuro.
Na biologia, as referências foram os textos de divulgação científica produzidos por especialistas da área da cronobiologia (ritmos biológicos), pois nesse tópico é abordado a relação dos conceitos escolhidos (estações e dias e noites) e a vida na Terra. No estudo dos ritmos biológicos considera-se que os organismos estão organizados no espaço-tempo e que, ao longo do processo evolutivo, se adaptaram, a partir de modificações anatômicas e bioquímicas, à dimensão temporal do ambiente, não somente ao espaço. Dessa forma, os animais possuem osciladores internos que estão sincronizados com determinados ciclos ambientais – as estações do ano e os dias e as noites – denominados marcadores de tempo. Na biologia o que importa é a noção de periodicidade implícita nesses conceitos para estruturar seu conhecimento acerca dos ritmos biológicos.
As fontes de consulta utilizadas para caracterizar o saber de referência da geografia foram os manuais de formação de profissionais na área. Na geografia os ciclos das estações do ano e dos dias e das noites também estão enquadrados na noção de tempo. Entretanto, a matematização, tão característica da astronomia, está ausente. Os conceitos envolvidos são: esfera celeste, pontos de solstícios e equinócios, eclíptica, ponto vernal, latitude e longitude. A medição de tempo, para a geografia, relaciona-se com a construção de conceitos característicos desse campo de conhecimento, como a hora legal, fuso horário e tempo legal. Desse modo, aproxima-se mais de uma visão civil de tempo, ou seja, resultado de uma necessidade social de organizar as horas de acordo com a longitude.
· Intenção da exposição: Ciclos Astronômicos e a Vida na Terra
- Proposta Conceitual
O projeto dessa exposição, do ponto de vista dos idealizadores teve por objetivo apresentar a relação entre os fenômenos astronômicos e a vida na Terra, em uma perspectiva interdisciplinar, de forma a incentivar uma leitura da natureza. Para isso, foram selecionados alguns fenômenos biológicos que guardassem relação com determinados fenômenos astronômicos familiares ao visitante. São eles: aquário de água de salgada; o comportamento de abelhas em uma colméia e a relação entre a sua posição e o Sol; os ritmos biológicos e a influência dos dias e noites e das estações do ano em animais; a incidência de luz e calor na Terra determinando a ocorrência de fenômenos como a fotossíntese e respiração dos seres vivos e a realização dos ciclos de gases e energia. Em relação a existência de atmosfera na Terra foram mostrados alguns fenômenos como o arco-íris e porque o céu é azul. Em contraposição, sem atmosfera, mostrou-se, por meio de um aparato, o eclipse do sol visto da Lua e usando modelos apresentou-se uma cronologia dos foguetes espaciais.
- Caminhos e Descaminhos
No processo de elaboração da exposição houve, entre os membros da equipe, momentos de discordância e concordância. Convergiam no sentido de propor uma exposição que enfocasse questões básicas de astronomia e a sua relação com a vida. No entanto, foram as divergências que interferiram e determinaram como alguns fenômenos foram abordados. A utilização de textos, tão característica da exposição, foi um ponto de conflito entre os membros e foi o recurso museográfico escolhido para dar conta das ligações entre os fenômenos apresentados:
(...) Não deveria, ao meu ver, ter muito texto ou conceitos ou explicações. Queria mostrar que o conhecimento do universo serve ao homem. (outro idealizador)
(...) foi-me encomendado a construção de um experimento já definido que proporcionasse a fusão de imagens. (idealizador – o fazer)
· Intenção da exposição: As Estações do Ano: a Terra em movimento
- Proposta Conceitual
Essa exposição, segundo seus idealizadores, foi pensada a partir da avaliação da exposição Os Ciclos Astronômicos e a Vida na Terra e por demandas oriundas da escola, que em geral aborda os ciclos das estações do ano e dos dias e das noites de forma errônea.
A exposição é composta por aparatos interativos que apresentam os elementos constitutivos dos conceitos envolvidos, auxiliando na construção dos modelos explicativos, principalmente na compreensão dos mecanismos causais. Assim, um deles, por exemplo, relaciona o aquecimento de uma superfície em função da inclinação da mesma; outro mostra a diferença de quantidade de raios luminosos chegando nos hemisférios da Terra quando ela está com seu eixo na posição vertical ou inclinada em relação ao plano de sua órbita; outro ainda propõe o exercício de transladar a Terra ao redor do Sol com a inclinação correta. Esses aparatos apresentam entre si um caráter de complementaridade. Além desses, existem dois modelos sínteses que procuram simular os ciclos dos dias e das noites e das estações do ano.
No processo de elaboração da exposição, a equipe compartilhou, desde o início, de alguns pressupostos que guiaram, não somente a concepção museográfica como também o estabelecimento de relações de trabalho mais homogêneas. A distribuição das tarefas se fazia pela especificidade profissional dos membros e não por questões hierárquicas.
Pode-se destacar os principais consensos da equipe: a visão educacional que conduziu a construção de aparatos e quais elementos deveriam conter, a escolha por acentuar o caráter interativo da exposição, resultando na utilização de texto somente como instrução de uso dos aparatos e a inclusão de aspectos sociais vinculados ao ciclo das estações do ano, por meio de recursos visuais (painéis e slides).
O debate entre os membros da equipe foi estruturado no sentido de resolver as formas pelas quais seriam apresentados os elementos constitutivos dos fenômenos em cada um dos aparatos.
Nessa exposição, a transposição didática/museográfica do ciclo dos dias e das noites e das estações do ano foi realizada a partir da estratégia de apresentar, em vários aparatos, os elementos constitutivos do modelo explicativo. Enfatizou-se principalmente, a questão do eixo inclinado da Terra como mecanismo causal dos fenômenos. O paradigma educacional norteou a transposição didática tendo como principal referência questões voltadas para a aprendizagem, ou seja, dirigidas para a área da cognição.. A exposição foi pensada para que o visitante ao interagir com os modelos, repensassem suas concepções acerca dos fenômenos, proporcionando o questionamento sobre modelo mental e auxiliando na elaboração de modelos mentais próximos ao modelo consensual adotado (saber científico de referência).
· Intenção do visitante na exposição: Ciclos Astronômicos e a Vida na Terra
- Decodificando a intenção do texto
Na leitura feita pelo visitante para essa exposição, fica evidenciado que em virtude da quantidade de assuntos/fenômenos tratados, os visitantes detêm-se em ressaltar aqueles assuntos que são mais próximos de suas histórias de vida. Como é o caso de um menino de 14 anos que destacou a parte da astronáutica em função de seu interesse em seguir a carreira militar.
Os visitantes em geral não apreendem a temática central da exposição, ou seja, a relação entre os aparatos/recursos museográficos apresentados. Eles comentam sobre os conceitos referentes a cada um dos aparatos de forma isolada construindo um texto fragmentado.
Entrevistadora: Os hemisférios de Magdemburgo... Depois desse o que mais vocês viram?
Homem: O arco-íris e o eclipse.
Entrevistadora: O eclipse está em terceiro lugar e depois disso?
Homem: Abelhas... A gente não achou a rainha.
Os visitantes identificam o papel dos textos utilizados como fontes para fornecer explicações acerca dos fenômenos apresentados, mas não os utilizam como forma de estabelecer as ligações entre os aparatos.
- Identificando o objeto exposição
Depoimentos dos visitantes, contidos nas entrevista, indicam que esses dão ao museu um caráter complementar à escola no que se refere a apresentação dos conteúdos científicos, caracterizados neste lugar por um valor de importância. Identificam ainda como uma vivência nova o uso dos recursos disponíveis na exposição, como por exemplo, os objetos tridimensionais e os aparatos interativos, que reproduzem situações experimentais, conhecidas por muitos apenas pela descrição oral de um professor ou escrita em livros.
Menina: O tubo, que quando a gente fala demora para escutar.
Entrevistador: Dessas coisas que vocês viram, o que vocês acham que elas estão fazendo juntas.
Menina: São as ciências, as coisas que se aprende na escola.
Mãe: Antigamente o aluno tinha as experiências só no livro não ia experimentar para descobrir as coisas, hoje ele pode. Pena que não é muito divulgado (o museu).
Menino (2): todas essas coisas mostradas são para dar cultura as pessoas.
- Decodificando a Intenção do Texto
A análise das entrevista mostra que a maioria do público compreende tanto a temática geral da exposição – as estações do ano e os dias e as noites – quanto a estratégia utilizada pelos idealizadores de disponibilizar, nos aparatos interativos, os elementos constitutivos dos fenômenos em questão. A idéia de complementaridade dos aparatos também é percebida pelos visitantes:
Tem um que... ele tem uma bola de luz representando o Sol e a Terra a uma certa distância. E você ao movimentar a Terra está fazendo o movimento de translação da Terra em relação ao Sol. E tem o que a pessoa coloca um capacete com uma luz. Aí a pessoa fica sendo o Sol em relação a Terra. Aí você aperta o botão e a Terra começa a girar. Aí, mostra o movimento de rotação da Terra e como o Sol funciona no movimento de rotação... como o Sol ilumina a Terra no movimento de rotação. (adolescente que visitou o museu com o irmão)
Criança: estações, não. Só dias e noites. Mas a gente sabe... que quanto mais longe do Sol mais frio, quanto mais longe...
Pai: a posição[da Terra] em relação ao Sol.
Criança: quanto mais perto do Sol é quente.
Como está aqui [refere-se ao módulo Estações
do Ano] (grupo familiar)
De acordo com as entrevistas o público atribui um significado para os museus de ciência como espaços de aprendizagem. Entretanto, também fica evidente que o público identifica diferenças entre os museus e outros espaços de aprendizagem como, por exemplo, a escola:
Achei super interessante, os aparelhos, os instrumentos, porque é mais fácil de você... visualizando é mais fácil de você aprender, do que você só lendo. Assim, é bem mais fácil para aprender. (tia com um grupo de sobrinhos)
Retornando as categorias de Davallon (1999) no que diz respeito às três lógicas de linguagem em exposição: lógica do discurso, lógica do espaço e lógica do gesto, é possível perceber que em cada uma das exposições, essas lógicas se articulam de forma distinta, expressando diferentes processos de transposição museográfica.
No caso da exposição Ciclos Astronômicos e a Vida na Terra o foco da lógica do discurso é a relação entre os fenômenos astronômicos básicos e a vida na Terra. Nessa perspectiva, os recursos museográficos disponibilizados na operacionalização de cenarização – pertencente à lógica do espaço – não ficaram, ao final do processo de transposição museográfica, em sintonia com a lógica do discurso. Em outras palavras, a cenarização não privilegiou a relação, não ficando disponibilizadas as marcas de intencionalidade que potencializassem a interpretação da exposição-texto seguindo a abordagem proposta. A forma como essas lógicas foram operacionalizadas conformaram a lógica do gesto, mais centrada nos conhecimentos do visitante. Sua interação com a exposição foi norteada, não pela re-significação dos dados recolhidos, mas sim pelo reconhecimento desses dados.
Em relação à exposição As Estações do Ano: A Terra em Movimento, o foco da lógica do discurso está na apresentação dos elementos constitutivos para a elaboração do modelo explicativo sobre os ciclos das estações do ano e dos dias e das noites. Entre esses elementos constitutivos destaca-se a importância da inclinação do eixo da Terra como base dos mecanismos causais dos fenômenos apresentados. Esse é o vetor da transposição museográfica.
Constata-se que os recursos museográficos (aparatos interativos, slides, painéis) utilizados na construção da cenarização, estão em consonância com a lógica do discurso desenhada para a exposição. Percebe-se, dessa forma, que os visitantes interagiram com a exposição reconhecendo as marcas de intencionalidade, re-significando os dados recolhidos na visita com os seus conhecimentos prévios.
Cabe ressaltar que existem caminhos distintos no processo de transposição museográfica das duas exposições. Nessa última, aborda-se o conteúdo de um saber de uma área de conhecimento, enquanto que na primeira é abordada uma categoria cognitiva – a relação. Isso implica um processo mais trabalhoso e sofisticado.
A análise das exposições mostra que a interpretação que o visitante faz é determinada pela interseção da intenção da exposição-texto e a intenção do visitante-leitor. Isso confirma que é essa interação que define as margens de interpretabilidade, isto é, apesar da exposição-texto possuir inúmeras possibilidades de interpretação, o visitante não pode interpretar qualquer coisa. Caso a transposição museográfica não considere os aspectos mencionados, a leitura da intencionalidade da exposição ficará comprometida.
Dessa forma, compreender o processo de transposição museográfica significa identificar as marcas de intencionalidade relevantes que deverão estar presentes na exposição, e ainda compreender o contexto no qual ele se desenvolve (o saber, a instituição, os idealizadores, os equipamentos e os visitantes). A situação relacional aí construída permite ao visitante dar sentido à exposição. Esse é o desafio enfrentado pelos museus.
Referências
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