DISCIPLINA ESCOLAR CIÊNCIAS: ABORDAGEM HISTÓRICA NAS DISSERTAÇÕES E TESES BRASILEIRAS NO PERÍODO 1981-1995

Marcia Serra Ferreira
Faculdade de Educação da UFRJ

Resumo

    O artigo aborda a história da disciplina escolar ciências na produção acadêmica brasileira entre 1981 e 1995. Analiso nove dissertações e teses cujo foco é o ensino fundamental e que possuem um viés histórico. Tomando por base os estudos de Ivor Goodson em história das disciplinas escolares, argumento que o entendimento sócio-histórico de uma determinada disciplina exige a consideração de fatores internos e externos. Nesse sentido, defendo que ainda há muito a ser investigado sobre a história da disciplina escolar ciências, uma vez que boa parte dos trabalhos são mais descritivos e focalizam especialmente os primeiros fatores. Os estudos históricos não têm sido privilegiados no ensino de ciências e, de modo geral, podemos identificar uma aparente estabilidade tanto nessas análises internalistas quanto nas macro-análises. Todos os estudos, apesar de não desconsiderarem a existência de conflitos, acabam por minimizar suas influências no quadro geral de constituição das disciplinas escolares científicas.
Palavras-chave: currículo, ensino de ciências, história das disciplinas.

Summary

    The article focuses on how the school discipline science has been discussed in the Brazilian theses and dissertations between 1981 and 1995. It analyses nine dissertations and theses that investigate elementary school teaching and that adopt a historical approach. Drawing on Ivor Goodson’s history of the school subjects, the article argues that internal and external factors are necessary to understand the steps followed by a school subject. It suggests that there is much left to be researched on the development of science as a school subject, since most of the studies carried out are very much descriptive and rely only on internal factors. Historical studies have not been a concern of science education researchers. In a certain way, an apparent stability can be identified in the analyses that emphasize either internal or external factors. In spite of not ignoring the existence of conflicts in the evolution of the discipline, the studies tend to understress the influence of these conflicts in the general context of the constitution of scientific school disciplines.
Key-words: curriculum, science education, history of school subjects.
 

Contextualizando a temática

    O objetivo deste artigo é efetuar uma análise da produção brasileira no que se refere à história do ensino de ciências. Para tanto, recorro às dissertações e teses produzidas entre 1981 e 1995 que possuem uma abordagem histórica. O levantamento dos trabalhos foi realizado a partir do catálogo de resumos organizado por Megid Neto et al. (1998) e, especialmente, na tese de Lemgruber (1999). A idéia é entender como esses estudos tratam a história da disciplina escolar ciências e como a inserem no contexto mais amplo de cada pesquisa.

    Tomando por base os trabalhos em história das disciplinas escolares, argumento que a compreensão dos processos de construção e reconstrução de uma determinada disciplina exige a consideração não só de fatores internos à sua própria comunidade, bem como de fatores sócio-históricos mais amplos. Nesse sentido, defendo que ainda há muito a ser investigado sobre a história da disciplina escolar ciências, uma vez que os trabalhos aqui analisados focalizam especialmente os primeiros fatores.

    Os estudos históricos não têm sido privilegiados no ensino de ciências, e isto se expressa em uma quase ausência de discussões teórico-metodológicas sobre esse tipo de pesquisa na área. Como conseqüência, a história do ensino de ciências assume caráter descritivo e apenas se mostra útil para contextualizar o momento presente. Os fatos e documentos são pouco problematizados e acabam sendo tratados como fotografias, cenas estáticas de uma realidade passada.

    Para Foucault (apud Le Goff, 1996), no entanto, a tarefa do historiador não é mais a de decifrar os traços escondidos das várias fontes históricas; na verdade, cabe ao pesquisador a própria seleção e organização de um conjunto de elementos cuja relação não se dá a priori, mas é construída na própria investigação. Isso significa dizer que as fontes históricas não são inócuas, são produtos de contextos sócio-históricos específicos, e devem ser analisadas de modo a desmistificar os seus significados aparentes. Afinal, como afirma Le Goff (1996: 548),

"O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade. Todo o documento é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo."
 
    Um outro ponto a ser destacado na pequena produção histórica no que se refere ao ensino de ciências é o pouco diálogo com as teorias e autores do campo do currículo, especialmente com a história das disciplinas escolares. Tal fato faz com que os mecanismos de seleção e organização do conhecimento escolar sejam abordados de modo naturalizado, como se as decisões nesse campo tivessem origem apenas nos aspectos relacionados à produção do próprio conhecimento científico. As disciplinas escolares acabam sendo vistas como disciplinas científicas adaptadas para fins de ensino, não se considerando os processos de recontextualização do conhecimento escolar.

    De acordo com Santos (1990), a história das disciplinas escolares busca compreender a emergência e a construção das diferentes disciplinas curriculares, investigando tanto a predominância de determinadas tendências quanto as transformações ocorridas nos mecanismos de seleção e organização de conteúdos e métodos de ensino. Entretanto, tais investigações não têm por objetivo apenas a reconstrução sócio-histórica de currículos hegemonicamente posicionados. Na verdade, tais estudos buscam principalmente resgatar posições que perderam as disputas por hegemonia, procurando entender as razões e os efeitos sociais das várias inclusões e exclusões nos currículos, definindo o que é ou não é escolar num dado momento histórico. Compreendidas deste modo, estas pesquisas podem contribuir para "dar visibilidade a narrativas e atores menos conhecidos" (Goodson, 1997: 10), desnaturalizando as disciplinas escolares e submetendo-as, então, ao entendimento e à crítica dos profissionais que a elas se dedicam nos vários níveis de ensino.

    Além desses objetivos, Goodson (1995) aponta os estudos em história das disciplinas como elucidativos dos mecanismos curriculares de criação e manutenção de padrões socialmente legítimos de estudantes e professores. Segundo esse autor, as formas hegemônicas de conhecimento não são simplesmente mantidas por estruturas macrossociais, mas fazem parte de um sofisticado mecanismo que combina a busca por recursos e status social. No caso específico da Grã-Bretanha, por exemplo, os estudos de Goodson (1995) nos informam que, quanto mais os professores procuraram os incentivos materiais oferecidos pelo Estado, mais o conhecimento profissional se tornou abstrato e descontextualizado. Isso significa dizer que esses profissionais definiram seus currículos em termos eruditos, abstratos e formais – de acordo com objetivos formulados no campo universitário –, em troca de recursos e status social.

    Santos (1990) aponta que, de modo geral, os estudos em história das disciplinas escolares surgem como uma reação aos trabalhos em sociologia do currículo que interpretam as questões educacionais baseando-se somente nas questões estruturais. Além disso, Goodson (1995) também aponta a predominância de abordagens "revisionistas" nos estudos em história da educação produzidos nas décadas de 60 e 70. Assim, para esse autor, o principal valor dos estudos em história das disciplinas escolares está na sua capacidade de investigar a realidade e a autonomia relativa da escolarização. De acordo com Goodson (1995: 120),

"A história curricular considera a escola algo mais do que um simples instrumento de cultura da classe dominante. Ela põe a descoberto as tradições e legados dos sistemas burocráticos das escolas, ou seja, fatores que impedem homens e mulheres de criar sua própria história em condições de sua própria escolha. Ela analisa as circunstâncias que homens e mulheres conhecem como realidade, e explica como, com o tempo, tais circunstâncias foram negociadas, construídas e reconstruídas."
 
    Isso significa entender que a construção das disciplinas escolares não se dá de modo tranqüilo, mas é fruto de disputas que "envolvem poder, controle, coalizões, negociações e compromissos entre grupos e indivíduos, operando dentro e fora do sistema escolar" (Cuban apud Santos, 1994: 159). Buscando corroborar tal afirmação, apóio-me em Goodson (1997: 43) para afirmar que as disciplinas escolares são construídas "social e politicamente e os atores envolvidos empregam uma gama de recursos ideológicos e materiais à medida que prosseguem as suas missões individuais e coletivas".

    Nos países de língua inglesa, Ball (1988), Goodson (1990, 1995, 1996 e 1997) e Popkewitz (1987) têm se dedicado ao estudo das transformações ocorridas nas várias disciplinas escolares ao longo do tempo, suas emergências e evoluções tanto no nível conceitual como metodológico. No caso das disciplinas Ciências e Biologia, autores como Layton (1973), Rosenthal & Bybee (1987) e Goodson (1995 e 1997) têm lançado um novo olhar sobre elas na Grã-Bretanha e nos EUA, entendendo que suas construções envolveram disputas não apenas acadêmicas, mas também morais e econômicas. Neste sentido, suas preocupações residem muito mais na compreensão dos fatores que levam à valorização de determinados conteúdos e métodos em detrimento de outros, do que em reforçar uma verdade ou validade epistemológica destes.

    Os trabalhos de Goodson que buscam compreender a história de diferentes disciplinas escolares tomam por base o modelo criado por Layton (1973). Neste, freqüentemente, as disciplinas escolares obtêm um lugar no currículo a partir de justificativas como pertinência e utilidade, sendo ministradas por professores não-especialistas. A partir daí, seus mecanismos de consolidação envolvem a emergência e constituição de uma tradição acadêmica e de um conjunto de especialistas formados nesta tradição (Goodson, 1990). Nesse processo, as disciplinas escolares se afastam de seus objetivos primeiros, passando a ensinar conteúdos abstratos e distantes da realidade e dos interesses dos alunos. De acordo com Goodson (1990), todo esse movimento em direção à abstração e ao academicismo deve ser entendido como uma busca por status, o que possui estreita relação com as disputas por recursos materiais e por um interesse na constituição de uma carreira profissional de maior prestígio. Afinal, as disciplinas não são entidades monolíticas, mas amálgamas mutáveis de subgrupos e tradições (Goodson, 1995).

    Compreendendo as disciplinas escolares como estruturas que especificam as condições e os contextos de sentido em que o ensino terá lugar, autores como McKinney e Westbury (apud Goodson, 1996) nos ajudam a pensar para além dos conteúdos, métodos e objetivos de ensino. Na verdade, percebemos que essas estruturas são construídas social e politicamente por comunidades disciplinares que, na busca de recursos e de apoio ideológico, são diretamente influenciadas também por grupos ou facções externas a elas. Como tanto as comunidades disciplinares como os grupos externos não necessariamente compartilham idéias, interesses e objetivos comuns, são gerados conflitos que, segundo Goodson (1996 e 1997), acabam produzindo uma grande estabilidade nos currículos escolares. Assim, torna-se mais fácil compreender porque muitas das propostas curriculares que são construídas a partir de objetivos menos acadêmicos acabam por se estruturar também de modo disciplinar, não se constituindo como alternativas concretas de mudança curricular. Isso se deve, em grande parte, a uma grande estabilidade desse modelo de organização curricular, que foi produzida a partir dos vários conflitos que vêm se estabelecendo entre as comunidades disciplinares e os grupos sociais externos a elas.

    De acordo com Santos (1990), os fatores que interferem nas mudanças curriculares podem ser classificados em internos e externos. Os fatores internos dizem respeito às condições de trabalho na própria área, tais como: o surgimento de diferentes grupos de liderança intelectual, a criação de centros acadêmicos de prestígio atuando na formação de seus profissionais, a organização de associações profissionais e a política editorial na área. Já os fatores externos estão relacionados à política educacional e aos contextos econômico, social e político mais amplos.

    O peso de todos esses fatores depende da tradição da disciplina – prestígio acadêmico e tempo de existência – e do nível de organização de seus profissionais. Tal organização se expressa tanto nas associações acadêmicas quanto nas publicações e política editorial da área. Depende também das condições objetivas do lugar ou país, tais como o seu regime político e a estrutura de seu sistema educacional. Assim, podemos dizer que quanto maior a maturidade de uma disciplina, maior o peso dos fatores internos. Esse peso também aumenta em proporção direta com a descentralização do sistema educacional. Por outro lado, o peso dos fatores externos pode ser mais significativo em países que passam por processos acelerados de transformações.

    Goodson (1996 e 1997) nos alerta, por exemplo, para o papel dos sistemas educacionais na produção de padrões socialmente legítimos de professores, alunos, temas e atividades. As comunidades disciplinares se apropriam desses padrões para a construção de retóricas que visam a obtenção de apoio ideológico e de recursos materiais dos grupos externos. Assim, ao mesmo tempo que os sistemas educacionais limitam as comunidades disciplinares – que não são autônomas em suas decisões curriculares e profissionais –, também promovem e sustentam determinadas visões sobre as disciplinas escolares. Quanto maior a capacidade de uma determinada retórica em associar interesses idealistas, materiais e morais, mais estabilizadas e naturalizadas estarão os discursos e práticas curriculares.

    Buscando compreender os mecanismos de estabilidade e de mudança curriculares em diferentes disciplinas escolares, Goodson (1996 e 1997) defende uma análise simultânea dessas questões internas e externas às comunidades disciplinares. Apesar de em seus estudos não tratar de fatores externos muito amplos – como o regime político do país, por exemplo – suas idéias sobre as inter-relações entre os vários fatores é bastante interessante. Analisando os processos de estabilidade e de mudanças curriculares, o autor afirma que estas últimas são mais lentas e graduais quando os fatores internos e externos estão em conflito. Uma das causas da estabilidade curricular a que estamos acostumados seria, portanto, a usual falta de harmonia entre estes fatores.

Investigando a produção brasileira

    Conforme já assinalado, as pesquisas no ensino de ciências não têm privilegiado um enfoque histórico (Ferreira, 1999; Lemgruber, 1999). De acordo com Lemgruber (1999), dos 288 resumos de dissertações e teses produzidas na área entre 1981 e 1995, apenas 23 abordam a história do ensino de ciências. Para esse autor, a principal característica dessa pequena produção "é a de ser de viés, ser uma história de passagem" (p. 28), na qual a história é muitas vezes apenas um capítulo, e não o objeto central a ser investigado.

    A partir do estudo de Lemgruber (1999), e visando compreender a história de uma disciplina escolar específica – a disciplina ciências –, optei também por analisar as dissertações e teses brasileiras defendidas entre 1981 e 1995. Tomando por base a seleção dessa produção já realizada pelo autor, analisei os resumos e, posteriormente, os textos de seis dissertações de mestrado – Saad (1981), Carvalho (1981), Junqueira (1988), Machado (1990), Marandino (1994) e Lazzarotto (1995) –, duas teses de doutorado – Gouveia (1992) e Fracalanza (1993) – e uma tese de livre docência – Krasilchik (1987).

    A história contada nesses estudos segue, em linhas gerais, três orientações teóricas: os trabalhos de Saad (1981) e Junqueira (1988) estão, em maior ou menor grau, explicitamente filiados às teorias reprodutivistas; Carvalho (1981) utiliza a história da ciência para a compreensão de seu ensino; e, por fim, os demais estudos são mais descritivos e se apoiam nas próprias pesquisas realizadas na área. Desse modo, os trabalhos de Gouveia (1992), Fracalanza (1986) e, principalmente, Krasilchik (1987) são grandes referências para Lazzarotto (1995), Machado (1990) e Marandino (1994).

    A principal referência na própria área são os trabalhos de Myriam Krasilchik (1980; 1987), autora citada na bibliografia de oito dos nove estudos analisados. Seu texto mais utilizado é a tese de livre docência, publicada no ano seguinte pela editora da Universidade de São Paulo. No primeiro capítulo da obra, Krasilchik (1987) aborda a história das disciplinas Ciências e Biologia entre 1950 e 1985 a partir de oito fatores: as situações mundial e brasileira, os objetivos gerais do ensino e as influências teóricas preponderantes, os objetivos do ensino de Ciências, a visão curricular da Ciência, a metodologia recomendada e, por fim, as Instituições que influenciaram essas mudanças.

    Sua história descritiva segue ordem cronológica e é dividida em décadas. Em cada década, a história do ensino de ciências e biologia assume um caráter evolutivo e linear, como se cada situação ou evento desse origem a outros de modo quase que direto e contínuo. Assim, em uma espécie de reação em cadeia, o contexto mundial influencia a situação brasileira que, por sua vez, atinge a educação e, conseqüentemente, o ensino de Ciências. Por outro lado, embora a autora reconheça "que os processos foram contínuos e em alguns casos superpostos, não servindo os limites estabelecidos como marcos nítidos de transição" (p. 05), a estrutura de seu texto nos leva a pensar em rupturas entre as várias décadas. É como se a cada período tudo se modificasse, não restando nada das concepções anteriores. Não se trabalha com a possibilidade de diferentes concepções curriculares e pedagógicas co-existirem.

    O segundo autor que se tornou referência no ensino de ciências foi Hilário Fracalanza. Alguns de seus textos produzidos nos anos oitenta foram citados em cinco dos nove trabalhos realizados, já que a sua tese de doutorado é bem mais recente do que a livre docência de Krasilchik.

    Buscando analisar a produção acadêmica e didática sobre o livro didático de ciências no Brasil, a tese de Fracalanza (1993) também aborda a história do ensino de ciências a partir dos anos 50. O autor argumenta que a situação atual da área é reflexo tanto do nível "de propósito" – composto por trabalhos acadêmicos e documentos técnico-pedagógicos produzidos por pesquisadores e órgãos governamentais – quanto do nível "de fato", ou seja, daquilo que se desenvolve nas escolas. Para Fracalanza (1993), o primeiro nível possui relação direta com os movimentos de inovação que ocorreram a partir da década de 50, e sua história acaba por privilegiar as ações mais diretamente relacionadas a formação da própria comunidade de profissionais ligados ao ensino de ciências.

    Os trabalhos de Krasilchik (1987) e Fracalanza (1993) são, de certo modo, complementares, já que tratam do mesmo período, possuem estrutura semelhante e focalizam principalmente os aspectos internos à própria comunidade disciplinar. Além disso, possuem o grande mérito de terem sido produzidos por pesquisadores que vivenciaram profundamente todo o período investigado, representantes de uma geração de profissionais que influenciaram de modo marcante os rumos da disciplina escolar ciências no país. Vale ressaltar, entretanto, que o trabalho que realmente atingiu nacionalmente a área foi o de Krasilchik (1987); a tese de Fracalanza (1993), uma produção mais recente, só foi citada por Lazarotto (1995).

    Machado (1990) e Marandino (1994) retomam a história contada por Krasilchik (1987), percorrendo as mesmas décadas em textos com estruturas similares. Apesar disso, as duas autoras não realizam estudos históricos, e a história do ensino de ciências serve em ambos os casos para contextualizar o leitor na área em questão. A partir daí, cada autora se dedica ao seu próprio objeto de estudo, inclusive com referenciais teórico-metodológicos distintos.

    Machado (1990), por exemplo, realiza seu estudo no interior da perspectiva fenomenológica, e a história do ensino de ciências é utilizada para compreender o contexto no qual se desenvolve a visão de ciência dos alunos. Marandino (1994), no entanto, busca ampliar a história de Krasilchik (1987) por meio de "uma síntese das tendências recentes no Ensino de Ciências e suas relações com a perspectiva da Didática Crítica" (p. 39). Apesar de explicitar que "esta história não é fragmentada e que tais períodos se interpenetram" (p. 41), seu estudo não atende ao objetivo de ampliação proposto e permanece muito próximo da história contada por Krasilchik (1987).

    O trabalho de Gouveia (1992) é a terceira referência interna à própria área. A autora realiza um pesquisa histórica que aborda a formação continuada dos professores da disciplina escolar ciências no estado de São Paulo. Sua análise, embora também dividida em décadas, aborda o período de 60 a 90 e insere a história do ensino de ciências em um contexto político, econômico e educacional mais amplo que os trabalhos de Krasilchik (1987) e Fracalanza (1993). Visando entender o papel dos cursos de ciências no seu contexto histórico, a autora argumenta que estes não foram suficientes para melhorar a qualidade do ensino, especialmente porque não tomaram como referência o próprio cotidiano escolar. Desse modo, busca na história que constrói os elementos para pensar a formação continuada de maneira mais abrangente e eficaz.

    Lazzarotto (1995) trilha o mesmo caminho de Gouveia (1992), sua orientadora e principal referência teórica. A adoção dessa perspectiva se baseia na hipótese de que as conclusões de Gouveia (1992) sobre a formação continuada dos professores de Ciências no Estado de São Paulo são compartilhadas "em todo o país, Mato Grosso inclusive, em maior ou menor grau, mais ou menos simultaneamente" (p. 25). Assim, analisando as ações da Universidade Federal de Mato Grosso voltadas para os docentes da disciplina ciências entre os anos de 1979 e 1994, Lazzarotto (1995) também procura elementos históricos que permitam propor novas ações futuras.

    As pesquisas de Saad (1981) e Junqueira (1988) incluem-se claramente na perspectiva denominada por Goodson (1990) de sociológica, e se destacam por estarem explicitamente filiadas, embora em graus distintos, às teorias da reprodução.

    O trabalho de Saad (1981) é o que assume de forma mais contundente o referencial teórico acima mencionado. Assim, narra eventos e circunstâncias que marcaram a evolução do ensino secundário desde as reformas pombalinas até a Lei 5692/71, buscando comprovar a hipótese central de que "a disciplina Ciências, do currículo de primeiro grau, serve de veículo para a inculcação da ideologia dominante, visando à reprodução das relações de produção e da estrutura de classes vigente no Brasil" (resumo).

    Apesar das críticas que faz a uma divisão consensual da história brasileira em "períodos balizados por eventos políticos", Saad (1981) não avança na tentativa de compreender "a História como um todo" (p. 26). Profundamente influenciado pelos teóricos da reprodução, acaba por substituir a divisão política por uma história econômica homogênea, na qual tudo o que é narrado só reforça a tese de que "o ensino secundário brasileiro, encaminhando para os cursos superiores e, consequentemente, para as carreiras e profissões de prestígio, não é senão um instrumento de manutenção de status social elevado e de ascensão a este status" (Nagle apud Saad, 1981: 55).

    O trabalho de Junqueira (1988) também se enquadra na perspectiva sociológica, percebendo a escola como um espaço de reprodução das estruturas econômico-sociais mais amplas. Ao contrário de Saad (1981), entretanto, a história do ensino de ciências não é o enfoque central de seu estudo. A abordagem do período entre as décadas de 60 e 80 é meramente descritiva e pretende apenas traçar um breve pano de fundo.

    A autora defende ser "possível relacionar o processo de qualificação diferenciada dos alunos com um processo mais complexo, que é o da reprodução das relações sociais da sociedade brasileira" (Junqueira, 1988: 125). Assim, buscando compreender como o conhecimento científico escolar é distribuído para alunos de diferentes classes sociais, realiza sua investigação em três escolas: duas escolas públicas e uma instituição privada, todas atendendo a públicos com condições econômicas e sociais distintas.

    Suas conclusões apontam para um ensino de ciências que reforça as distinções de classe, preparando melhor aqueles alunos que já se encontram em posição social privilegiada.

"Nesse sentido, o ensino de ciências poderia ser categorizado como um dos mediadores no processo de reprodução das relações sociais. Esta mediação seria concretizada através das concepções de ciência e modelos de prática científica difundidos para alunos de classes sociais distintas." (Junqueira, 1988: 125)
 
    A dissertação de Carvalho (1981) também se utiliza da história para compreender o momento presente. Assim, opta por um descrição da "evolução do ensino de ciências no sistema formal de ensino, localizando a origem do quadro atual" (p. 09). Sua análise, no entanto, embora se centralize nas influências estrangeiras – francesa e, a partir de 1920, americana – sobre a educação e o ensino de ciências, não se utiliza das teorias da reprodução para compreendê-las.

    Para o autor, o ensino de ciências é condicionado tanto pela evolução da própria ciência quanto dos sistemas de ensino. Buscando descrever esses dois contextos, defende que na escola atual coexistem concepções anacrônicas e modernas de ciência, "cujo conjunto – desconexo e internamente inconsistente – transmitido ao aluno, não o instrumentaliza quanto ao uso do modo de pensar científico para a compreensão crítica da realidade e a descoberta de soluções criativas para problemas práticos" (Carvalho, 1981: 10).

    O trabalho de Carvalho (1981) é o único que possui uma preocupação explícita com os aspectos metodológicos. Nesse sentido, justifica sua opção por um estudo de grande amplitude em detrimento do aprofundamento de um período mais restrito, defendendo que "a falta de uma visão abrangente dificulta a interpretação dos resultados parciais, embora importantes e relevantes, e não dá margem à identificação dos elos explicativos ainda em falta" (Carvalho, 1981: 06).

    O autor defende que os estudos históricos não só nos ajudam a explicar o momento atual como nos fornecem pistas para a solução de nossos problemas.

"O conhecimento de tais confluências no passado permitirá talvez discernir melhor tais momentos no presente, favorecendo opções potencialmente mais fecundas de resultados futuros. É possível também que algumas causas atuantes no passado, em sentido positivo, cuja atuação não esteja de todo extinta, possam ser revitalizadas; e outras, já inativas, possam ser respostas em ação com uma decisão política, com o fim de iniciar um ciclo ascendente no setor de ensino focalizado em nosso trabalho." (Carvalho, 1981: 09)
 
Considerações finais

    Os nove trabalhos analisados constituem importante material sobre a disciplina escolar ciências em nosso país. Isso, entretanto, não esgota o tema, principalmente se modificarmos a visão histórica utilizada, incorporando aspectos teórico-metodológicos tanto da história das disciplinas escolares quanto dos estudos históricos. Tais referenciais nos permitirão elaborar novas questões e analisar as fontes históricas de modo distinto, compreendendo as disciplinas escolares como distintas das ciências de referência e construídas a partir de fatores internos e externos.

    De modo geral, podemos identificar uma aparente estabilidadetanto nas análises internalistas de Carvalho (1981) – que toma por base a história da ciência –, Krasilchik (1987), Machado (1990), Gouveia (1992), Fracalanza (1993), Marandino (1994) e Lazzarotto (1995), quanto nas macro-análises de Saad (1981) e Junqueira (1988). Todos esses estudos, apesar de não desconsiderarem a existência de conflitos, acabam por minimizar suas influências no quadro geral de constituição das disciplinas escolares científicas.

    Um exemplo pode ser encontrado na Introdução do livro de Krasilchik (1987: 02), no qual a autora afirma que:

"No Brasil, no plano das intenções, aparentemente não ocorre conflito, pois pesquisas na área de educação indicam que cientistas e educadores concordam sobre os grandes objetivos do ensino das Ciências – pensar lógica e criticamente. Embora não haja discordâncias evidentes sobre o papel das disciplinas científicas na educação dos jovens, os resultados estão longe das aspirações compartilhadas por todos que influenciam as decisões curriculares. Tal situação suscita questões para as quais não há resposta fácil: – Por que, na sala de aula, o ensino continua como sempre, e incoerente com as metas aceitas por consenso? – Se o problema não reside na diferença de concepções, qual a explicação para a discrepância entre o que se acredita e o que acontece?"     Essa idéia de consenso mostra-se bastante problemática, visto que não considera o significativo papel dos conflitos entre os vários grupos que constituem a comunidade de profissionais ligados à disciplina ciências. Tais grupos não constituem de modo algum uma comunidade homogênea, e os discursos que pensamos serem compartilhados são, na verdade, aqueles que venceram as disputas e se tornaram hegemônicos. A própria autora, ao buscar responder suas questões, problematiza esse consenso, argumentando que "pensar lógica e criticamente tem significados diferentes no nível prático" (p. 02), que a concordância pode ser só aparente ou mesmo que os professores estão despreparados para tal tarefa (p. 03). Suas dúvidas, no entanto, tendem a desconsiderar as origens históricas de tais conflitos, reduzindo a influência destes àquilo que chama de "nível prático". A impressão é que Krasilchik acredita na "tradição inventada" (Goodson, 1995) dos currículos científicos, não levando em conta os processos históricos que acabam por selecionar e naturalizar certos conteúdos e métodos em detrimento de outros.

    Já para autores como Saad (1981) e Junqueira (1988), a estabilidade mantém-se por nossa incapacidade histórica de modificar o quadro econômico e social do país. Os autores, embora reconheçam o currículo como uma construção sócio-histórica, vêem as disciplinas escolares apenas reforçando os interesses dominantes, não existindo brechas de resistência e/ou conflitos em suas histórias. Nesses estudos falta, portanto, um diálogo das macro-análises com os contextos escolares. Afinal, Goodson (1990: 232) nos lembra que "essa teorização macro-sociológica é muito diferente de se estudar grupos sociais ativamente em ação em instâncias históricas particulares".

    Os trabalhos em história das disciplinas escolares, em especial os de Ivor Goodson (1990, 1995, 1996 e 1997), apontam caminhos distintos daqueles trilhados pelas pesquisas aqui analisadas. Suas conclusões rompem tanto com as perspectivas filosóficas – que naturalizam as decisões curriculares e traçam uma história descritiva e pouco conflituosa – quanto com os estudos sociológicos que apenas constatam uma realidade panorâmica, muitas vezes linear e homogênea.

    Assim, embora a história do ensino de ciências já tenha sido investigada nas dissertações e teses aqui analisadas, entendo que os estudos em história das disciplinas podem contribuir de modo decisivo na reconstrução sócio-histórica das várias disciplinas científicas escolares. A apropriação desse referencial teórico constitui, portanto, um importante passo na reconstrução da história da disciplina escolar ciências em nosso país.
 

Referências
 

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