DIMENSÕES DOS MODELOS PEDAGÓGICOS DE PROFESSORES DO ENSINO MÉDIO ACERCA DO FENÔMENO DA FOTOSSÍNTESE
 
 

Fátima Alves
Museu de Astronomia e Ciências Afins
fatimalves@openlink.com.br

Sonia Krapas
Universidade Federal Fluminense
 

Resumo

    O presente artigo estuda os modelos pedagógicos de três professores de biologia do ensino médio, a partir de entrevistas semi-estruturadas. Dimensões dos modelos pedagógicos foram estabelecidas no sentido de articular o conhecimento científico específico, no caso a fotossíntese, com aspectos mais gerais subjacentes à prática pedagógica. Os resultados mostram que existe um valorização excessiva do saber construído pela experiência, principalmente na interação com colegas. Existe também uma relação entre a formação do professor e como o conhecimento científico influencia a prática pedagógica. Contribuições para a didática das ciências e para a formação de professores são apresentadas e discutidas.

Abstract

This paper searched three pedagogical models of high school biology teachers through semi-structured interviews. Pedagogical models dimensions were settled to get coherent distinct scientific knowledge, in this case, photosynthesis with general aspects close to the pedagogical practice of teachers. The results show that occur an excessive value of the knowledge built throughout the years, mainly among colleagues. It also has a relation between teacher knowledge and how the scientifical base influences the pedagogical practice. It is presented and discussed some contributions for the didactic of sciences.



Introdução

    A reflexão sobre quais são os processos que os indivíduos utilizam para a construção do saber em geral e, especificamente, o científico, constitui um amplo campo de investigações na área da educação em ciências. A pesquisa em educação em ciências, nos anos 1970 e 1980, focalizou sua atenção nos conteúdos das idéias de estudantes em relação aos diversos conceitos científicos. Entretanto, diante das várias críticas foram feitas ao MCA e à teoria da mudança conceitual, surge no cenário um novo referencial teórico sobre a cognição humana: os modelos mentais. Os estudos sobre modelos mentais enfocam, não somente os processos cognitivos referentes à aprendizagem, mas também as representações dos professores.

    O presente trabalho tem como objetivo estudar as principais dimensões constitutivas dos modelos pedagógicos de professores de biologia do ensino médio. Discute-se, entre outros aspectos, o papel do conhecimento científico na estruturação das práticas pedagógicas e a importância do saber da experiência na formação docentes. Considerando a natureza do problema investigado, optamos por realizar uma pesquisa enfatizando o caráter descritivo e interpretativo. Sendo assim, os dados foram obtidos por meio de entrevistas semi-estruturadas com três professores de biologia atuantes no ensino médio. Para cada professor realizamos duas entrevistas com duração média de uma hora cada. A primeira enfocava, entre outros aspectos, temas relacionados com as concepções dos professores sobre objetivos do ensino de biologia, relações entre o conhecimento biológico e suas práticas pedagógicas, atividades de ensino desenvolvidas e desenvolvimento da carreira profissional. Já na segunda, procuramos centralizar nas questões específicas do ensino da fotossíntese realizado em suas práticas e de uma forma geral. As informações obtidas durante as entrevistas foram analisadas utilizando-se o software NUD*IST (1997)[1] desenvolvido com o objetivo de auxiliar as pesquisas qualitativas que enfocam a descrição e a interpretação.

    A seguir discutiremos as pesquisas referentes ao saber docente e aos modelos pedagógicos, no sentido de propor uma articulação entre os aspectos específicos do conhecimento biológico e as questões gerais sobre a prática docente. Posteriormente apresentaremos as principais dimensões dos modelos pedagógicos constituídas a partir da análise dos dados obtidos.



Modelos Pedagógicos: Ampliando Dimensões

    A adoção de uma perspectiva construtivista da aprendizagem tem implicado em conceber o aluno como sujeito ativo na condução de seu processo de construção do conhecimento e que eles, antes da instrução formal, desenvolvem suas próprias concepções dos fenômenos naturais, a partir de sua experiência com o mundo e com os outros. A partir dessa visão de aprendizagem, o ensino é caracterizado como um processo que visa à promoção de uma mudança conceitual, ou seja, fazer com que os alunos mudem suas idéias prévias em favor das concepções científicas, a partir de estratégias instrucionais adequadas.

    Seguindo um caminho semelhante ao das investigações sobre as concepções alternativas dos alunos, várias pesquisas foram desenvolvidas com o objetivo de revelar as concepções (muitas vezes, também alternativas) de professores de ciências sobre conteúdos específicos, epistemológicos e/ou pedagógicos.

    Pesquisas desenvolvidas mostram que muitos professores apresentam deficiências conceituais graves em relação aos diferentes tópicos do currículo escolar decorrentes, muitas vezes, de uma formação inicial precária. Os estudos também evidenciam que os docentes possuem concepções sobre ensino e aprendizagem ainda centradas na idéia de transmissão-assimilação de conhecimentos, bem como uma visão empirista do processo de construção do conhecimento científico. Estas pesquisas, assim como muitas outras, contribuíram para que a formação inicial e continuada de professores fosse repensada e reestruturada, com o objetivo de superar as dificuldades encontradas. Entretanto, a mudança pretendida por tais cursos de formação não foi tão bem sucedida. Apesar da procura, pouca mudança pôde ser percebida nas salas de aula. Isto porque os professores, assim como os alunos, têm concepções explícitas e implícitas sobre as diferentes variáveis relacionadas ao ensino e estas concepções não se modificam facilmente.

    Não podemos deixar de considerar a importância destes trabalhos para a educação em ciências. O conhecimento da matéria, tanto de tópicos curriculares quanto de aspectos epistemológicos e/ou pedagógicos, é essencial para uma prática docente significativa. Sabemos, porém, que esta prática não está somente restrita à sabedoria e à aplicação de conhecimentos, mas envolve muitas outras dimensões. Muitas vezes, nessas investigações, os professores, assim como os alunos, são considerados tabula rasa (Gatti, 1992). Esta concepção tem levado os professores a perceberem um distanciamento entre o que é retratado nas pesquisas, nos cursos de formação e nas políticas educacionais e o que realmente acontece nas salas de aula. Cria-se um sentimento de desconfiança dos professores com os cursos oferecidos pelas universidades, uma vez que, freqüentemente, desvalorizam o patrimônio de experiência e conhecimento acumulado pelos professores (Lüdke, 1993).

    Entretanto, a partir da mudança no cenário das pesquisas educacionais[2], mais atenção está sendo dada ao que o professor sabe sobre a atividade que desempenha. Há, com isso, o resgate do que se designa saber docente. Adotamos aqui uma noção de saber bem ampla, na qual estão inseridos conhecimentos, competências, idéias, crenças, habilidades, procedimentos etc. que os professores utilizam para assumir a atividade docente como um todo (p.e. Tardif, 2000).

    Um aspecto relevante salientado sobre o saber docente é a relação dos professores com os saberes (Tardif et al., 1991). O conceito de exterioridade é utilizado para mostrar que os saberes específicos e os pedagógicos precedem e dominam a prática do professor, mas não são provenientes dela. A tarefa de produção e legitimação destes saberes é assumida pela universidade, cabendo ao professor o papel de consumidor técnico. Assim, para tentar resolver esta exterioridade, os docentes produzem saberes sobre os quais tenham controle e a partir dos quais possam compreender e dominar as suas práticas, surgindo "como núcleo vital do saber docente, a partir do qual o(a)s professores(a)s tentam transformar suas relações de exterioridade com os saberes em relações de interioridade com sua prática." (ibid, p. 232).

    Uma das linhas possíveis de se investigar os saberes docentes está relacionada com a tradição psicológica da pesquisa educacional. Segundo Tardif (2000) esta visão busca compreender fenômenos relacionados com os sujeitos, seus pensamentos, seus comportamentos, suas ações e emoções. Muitas destas pesquisas assumem a proposição de que o saber pertence ao campo das representações mentais internas.

    O autor apresenta quatro divisões na tradição psicológica. A primeira, denominada comportamentalista, é definida dentro de uma visão técnica do ensino, na qual o professor aplica com eficiência os resultados encontrados nas pesquisas em situações de aprendizagem. O saber em questão é aquele produzido por especialistas a partir de estudos empíricos dos comportamentos eficazes de professores em diversas situações. Uma das principais críticas relaciona-se com uma questão abordada anteriormente ¾ a exterioridade do saber:

"quando falamos de ‘saber’, trata-se sempre do saber científico, isto é, do saber produzido pela pesquisa (...), o saber dos professores se dissolve em seus comportamentos ou desaparece numa espécie de caixa preta (o pensamento, o espírito, a cognição)(...)(op. cit, p. 8).     Atualmente a abordagem comportamentalista está perdendo espaço para a psicologia cognitivista que define o saber como pertencente ao campo do processamento da informação, sejam elas símbolos, roteiros, esquemas ou conhecimentos anteriores. O saber do docente se refere aos esquemas de memória ao longo prazo e ativadas no momento da ação, a fim de processar e armazenar novas informações oriundas da situação concreta que está ocorrendo. (ibid, p. 9).

    Com relação à dinâmica dos saberes docentes, a tradição cognitivista considera que os novos conhecimentos são gerados no decorrer da ação, no interior da qual estes saberes são entendidos como anteriores à situação concreta, mas são ajustados na e pela ação. Ainda são poucas as investigações sobre os saberes docentes inseridos nesta perspectiva e fazem parte de um campo mais vasto, que trata principalmente da cognição dos alunos.

    A terceira perspectiva apresentada por Tardif refere-se aos estudos sobre os pensamentos dos professores (Teacher’s Thinking), influenciados por uma variedade de aportes teóricos. Embora a cognição ainda seja o foco dessas pesquisas, propõem uma concepção mais construtivistas que as perspectivas anteriores, uma vez que consideram não somente uma racionalidade instrumental, mas também a improvisação, a imaginação etc. como constitutivos da prática docente. A cognição ¾ o saber docente ¾ é então

"modelada pelos próprios condicionantes da atividade e da situação, aos quais o professor procura se adaptar elaborando estratégias de ação cada vez mais eficazes e bem adaptadas às diversas variações do contexto. À medida que estas estratégias se reforçam ao mostrarem seu valor elas originam rotinas de ação que são planos mentais conservados na memória e que o professor reatualiza no momento oportuno. Elas proporcionam ao ator uma ‘segurança ontológica’ (Giddens, 1987) ligada à relativa estabilidade da ação e à competência do ator em situar-se nela a cada vez" (ibid, p.12).     A grande diferença desta concepção em relação ao cognitivismo é a importância do contexto da situação. A visão mais adequada do professor seria a do prático reflexivo proposto por Schön (1992), uma vez que a ação contém uma certa dose de indeterminação e flexibilidade.

    Finalmente Tardif apresenta a tradição ligada à fenomenologia, na qual a ênfase não está somente na atividade cognitiva dos professores, como nas anteriores, mas relacionado-a com a história da pessoa e a sua vivência. Os saberes são concebidos como conhecimentos personalizados e inseridos em uma cultura e tradição.

    A atividade do professor possui uma relação íntima com as suas experiências anteriores que influenciam a sua personalidade e a sua maneira de ser. Os pesquisadores desta linha possuem um interesse na linguagem pessoal de cada professor, pois é a partir do relato de vida que o seu ofício e as suas relações com os alunos ganham sentido.

    As ciências cognitivistas representam um programa de pesquisa muito poderoso e produtivo no cenário internacional e, apesar de algumas críticas, é inegável a contribuição de suas investigações para a compreensão das relações que se desenvolvem nas escolas e para a atuação sobre elas.

    Nos últimos anos, a perspectiva dos modelos mentais está surgindo como um novo referencial para os estudos sobre o pensamento/cognição humana. Os modelos mentais surgem baseados em uma vertente psicológica cognitivista, principalmente pela contribuição do pesquisador Johnson-Laird (1983). Entretanto, os estudos na área de modelos mentais estão também incorporando aportes advindos da educação em ciência e da filosofia da ciência, nos quais os modelos mentais e o processo de modelagem estariam no cerne da discussão sobre o processo de ensino e aprendizagem. No âmbito da pesquisa sobre modelos, considerarmos que um modelo pedagógico é construído com o propósito de promover a educação. É possível diferenciar modelo pedagógico no sentido amplo, que inclui os processos de mediação didática, isto é, os processos de transformação do conhecimento científico em escolar, e modelo pedagógico no sentido estrito, que se refere à representação simplificada de uma idéia, objeto, processo ou sistema, com o objetivo de facilitar a compreensão significativa dos fenômenos modelados (Krapas et al. 1998). A articulação desses dois sentidos atribuídos aos modelos pedagógicos aumentará o escopo de dimensões presentes neles.

    Procuramos, então, estabelecer como modelo pedagógico um certo modo de conduzir as ações praticadas pelo professor em sala de aula e, mais especificamente, nas interações com seus alunos. Os padrões consistentes da prática constituem o estilo de ensino de um docente, manifestando suas concepções de educação, de aprendizagem e de conhecimento. Um exemplo da expressão do estilo de um docente é a colocação em prática do programa de uma disciplina específica, pois, apesar de algumas semelhanças, o que se ensina sob esta denominação apresenta inúmeras variações. Dessa forma, o modelo pedagógico se distingue de um método ou uma técnica, uma vez que pressupõe flexibilidade quanto aos meios ou às estratégias de ação e uma reflexão continuada sobre os princípios que orientam esta ação.

    Cabe, então, perguntar: "de onde vêm as explicações dadas pelos professores? Como eles decidem o que ensinar, como representar o que ensinam, como questionar os alunos sobre o que estão ensinando e como lidar com o problema das concepções alternativas?" (Shulman, 1986). Para o autor estas questões apontam que alguns temas não estão sendo privilegiados nas pesquisas educacionais, pois a ênfase tem sido posta em aspectos mais gerais do ensino como, por exemplo, o manejo de classe, desconsiderando demandas relacionadas com as especificidades das disciplinas. Shulmam sugere, então, que o conteúdo e a maneira de ensiná-lo não sejam consideradas dimensões estanques, mas sim partes constitutivas de um complexo conjunto de saberes.

    Os saberes dos professores de ciências apresentam singularidades inerentes à própria área do conhecimento e às condições sociais e históricas relativas a sua construção. Entender como ocorre a transformação do conteúdo científico para o conteúdo escolar, é também compreender como o professor faz a tomada de decisão acerca de que conteúdos ensinar, como ensinar e como avaliá-los. A multidimensionalidade do processo de ensino-aprendizagem amplia os horizontes, pois aponta para a necessidade dos conteúdos, estruturantes fundamentais neste processo, estarem articulados com outras dimensões como a humana, a técnica e a político-social (Candau, 1996).

    Julgamos que a perspectiva dos modelos pedagógicos poderá constituir um arcabouço teórico frutífero, no sentido de estabelecer ligações entre o conhecimento científico específico, no nosso caso a fotossíntese, com aspectos mais gerais que estão subjacente à prática pedagógica do professor. Nessa proposta, o modelo pedagógico seria a ferramenta utilizada para compreender quais são as fontes, os processos de ação e os aspectos pedagógicos sobre os quais o conhecimento biológico é utilizado e, ao mesmo tempo e de forma complementar, entender como este conhecimento contribui para a formação/modificação desses aspectos.

    Consideramos que a análise de questões mais amplas não adquire uma totalidade explicativa se não incluir elementos dos esquemas que são colocados em ação pelos indivíduos em seus julgamentos e suas práticas. Da mesma forma, a análise das representações dos indivíduos deve procurar recuperar a origem social de tais estruturas cognitivas. As ações docentes como, por exemplo a colocação prática de um currículo, dependem tanto do seu contexto mental, ou seja, das suas representações, quanto do contexto institucional nas quais estão inseridas, constituindo um processo de total dependência entre os fatores com benefícios mútuos:

"(...) existe uma correspondência entre as estruturas sociais e as estruturas mentais, entre as divisões objetivas do mundo social (...) e os princípios de visão e divisão que os agentes lhes aplicam" (Bourdieu, 1991, p.113).     A habilidade/competência do docente em lidar com a complexidade e as multidimensões da prática educativa possui características individuais, que se traduzem em um saber fazer estabelecido na experiência profissional. Ao mesmo tempo, essa experiência individual de cada professor apresenta uma dimensão sócio-profissional, uma vez que é reflexo de um coletivo, construído no universo de trabalho e nas suas possibilidades e limitações.

    O trabalho docente realiza-se em uma situação social que exige competências e uma integração crescente na vida profissional, a partir do compartilhamento de um sistema comum de regras que regem o contexto social. Dessa forma, o saber não domina nem precede a ação, como se fosse a apenas a mobilização de um conjunto de informações armazenado anteriormente. O agir e o saber-agir constituem-se nas faces de um processo no qual o indivíduo está inserido, pois a ação recorre ao conhecimento na sua própria realização. Nessa perspectiva, o saber docente não pode ser somente caraterizado como o pensamento individual e nem reduzido às interações sociais que por si só não constituem o trabalho do professor.

    Devido às inúmeras solicitações características da estrutura escolar (da instituição, dos alunos, dos pais etc.) o professor necessita realizar constantemente decisões que irão compor a sua prática específica, muitas vezes baseada na improvisação. Entretanto, isto não significa que o docente entre na sala de aula sem um planejamento mínimo, cujas intenções didáticas variam entre, outras coisas, de acordo com o momento e o tipo de atividade.

    As situações "improvisadas", tão características do ambiente escolar, podem ser explicadas a partir do modelo pedagógico do professor, que não se constitui somente nos esquemas cognitivos restritos à dimensão técnica da prática pedagógica, como o conhecimento de um determinado tópico curricular, mas também incorpora dimensões da prática social que o professor está inserido. Dessa forma o modelo pedagógico incorpora aspectos oriundos da convivência do docente em um determinado contexto e da sua história de vida. Tais saberes estão contidos em rituais, rotinas e ciclos que constituem o trabalho do professor envolvido em contextos particulares. Estes aspectos estão inter-conectados e integrados na prática do professor, constituindo o seu modelo pedagógico.

    A seguir apresentaremos a análise dos discursos dos professores pesquisados no sentido de caracterizar seus modelos pedagógicos acerca do fenômeno da fotossíntese, procurando resgatar questões, não somente relacionadas ao conhecimento da matéria, como também incorporar elementos do contexto mais amplo e procurando desvendar o agir e saber-agir dos docentes.



Modelos pedagógicos de fotossíntese

Escolha, Formação e Carreira: conhecendo os professores

    Alberto, 34 anos, há cinco anos é professor de um colégio da rede pública federal. Escolheu o curso de ciências biológicas pela aparente facilidade de passar no vestibular e por influência das aulas de biologia. Ao ingressar na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Alberto procurou vários caminhos até se decidir por fazer bacharelado em genética. Após a formatura, Alberto investiu na carreira de pesquisador em bioquímica, realizando o mestrado e iniciando um doutorado na área. Teve a oportunidade de ir para a Bélgica para cursar um doutorado sandwich. Após esta experiência, decidiu mudar sua área de atuação e retornar à universidade para cursar licenciatura plena por causa da sua insatisfação com o trabalho de pesquisa. Durante o curso de licenciatura, começou um novo doutorado em bioquímica na Fundação Oswaldo Cruz, obtendo o título de doutor após cinco anos. Durante as entrevistas, Alberto sempre demonstrou muita sinceridade e confiança, caracterizando-se por uma atitude questionadora, muitas vezes crítica, da profissão docente.

    Carlos, 36 anos, leciona há aproximadamente onze anos e possui várias experiências profissionais, tanto na rede pública quanto particular, em diferentes séries do ensino fundamental e médio. É docente de uma escola da rede pública federal há aproximadamente dois anos, atuando em três turmas do 1º ano do ensino médio. Ingressou no curso de ciências biológicas na Universidade Federal do Rio de Janeiro por causa da sua afinidade com a natureza. Escolheu cursar bacharelado em ecologia e investiu na área de pesquisa, estagiando em diversos laboratórios. Ao terminar o bacharelado, continuou na universidade para fazer o curso de licenciatura. O caminho que o levou ao magistério foi descrito como resultado de uma crise de identidade com o trabalho de pesquisa. Anos depois de formado, criou, junto com um colega de faculdade, um projeto independente de educação ambiental para a comunidade em geral, que tinha como objetivo desenvolver uma consciência sobre problemas ecológicos. Em 1994, Carlos iniciou o mestrado em ecologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro e prestou um concurso público, em 1996, para ser professor titular na escola que atualmente leciona. Seus relatos revelam muita sinceridade e descontração, além de demonstrar interesse em esclarecer, o máximo possível, suas opiniões.

    Bernardo, 44 anos, possui 21 anos de experiência no magistério. Atualmente leciona em três colégios particulares bem conceituados da cidade do Rio de Janeiro, em diferentes séries dos ensino fundamental e médio. Sua escolha pelo curso de ciências biológicas foi influenciada pelas aulas de biologia, principalmente pela afinidade com um professor em particular. Formou-se em licenciatura e bacharelado na Universidade Federal do Rio de Janeiro e começou a estagiar na Fundação Oswaldo Cruz. Iniciou sua carreira no magistério por motivos financeiros, abandonando de vez a pesquisa científica. Durante as entrevistas, Bernardo apresentou uma preocupação em relação ao impacto que iria causar suas opiniões, demonstrando um sentimento de desconfiança de que sua prática fosse avaliada. Seus relatos mostram uma oscilação entre o "ideal" e o "praticado", sempre com justificativas para suas ações.


Dimensões dos Modelos Pedagógicos

    A atividade docente pode ser concebida como a mobilização de vários saberes que formam um reservatório (Gauthier et al., 1998), no qual o professor se abastece para responder às exigências de sua situação concreta de ensino. Consideramos que este reservatório configura-se no modelo pedagógico do professor, uma vez que os saberes, provenientes de várias esferas sociais, constituem uma verdadeira rede de significados.

    A análise dos professores estudados envolveu a definição de grandes dimensões que dão conta de seus modelos pedagógicos, a saber: gestão da matéria, gestão de classe e formação docente, instituição escolar. As dimensões apresentadas não devem ser compreendidas como estaques. Ao contrário, argumentamos que a construção e a análise do modelo pedagógico se carateriza por elementos interligados que constitui uma rede de significados, na qual as relações entre os elementos também são importantes para um entendimento amplo das práticas realizadas nos espaços formais de educação.

1) Gestão da Matéria

    A função de gerenciamento da matéria (Gauthier et al., 1998) por um professor, que tem por finalidade reunir um conjunto de variáveis que influenciam na aprendizagem dos alunos.

    Um dos aspectos envolvidos na gestão da matéria é o planejamento escolar que exerce um influencia positiva na aprendizagem, uma vez que estrutura os conhecimentos escolares, facilitando o desenvolvimento das atividades pedagógicas e a manutenção da "ordem" na classe (Clark & Peterson, 1987). Os discursos dos professores analisados centram-se na tradição técnica da pedagogia dos objetivos, característica da década de 1960, com a clássica taxionomia de Bloom, na qual todo docente deveria, antes de cada aula, elaborar um plano de aula com início e fim. Essa visão, oriunda da formação inicial, é criticada e, por isso, eles não dedicam muito tempo para o desenvolvimento de um planejamento de tal natureza.

    Na prática, esses docentes realizam um planejamento com elementos presentes nas abordagens construtivistas da educação, nas quais os objetivos continuam sendo essenciais no processo de ensino-aprendizagem, mas o professor não deve ter a "pretensão/intenção" de cumpri-los de forma mecânica e obsessiva (Perrenoud, 2000). Estabelecem, então, objetivos educacionais mais amplos e centralizam suas práticas pedagógicas nas experiências dos anos anteriores e em planos incompletos.

    A interferência dos professores sobre o planejamento anual está relacionado com o tipo de instituição escolar que trabalham. No caso de Bernardo, o planejamento anual é definido pela escola, ficando sua interferência restrita ao desenvolvimento e à reestruturação de estratégias de ensino. Já Carlos e Alberto elaboram o planejamento anual e possuem a liberdade de tomar decisões com relação a inclusão, exclusão e/ou redistribuição de conteúdos de acordo com os objetivos educacionais pretendidos e com a proposta da equipe, podendo até mesmo, modificá-lo ao longo do ano.

    A elaboração de situações de aprendizagem também faz parte da gestão da amtéria. Nas pedagogias com enfoque construtivista, o processo de ensino-aprendizagem enfatiza as representações dos alunos, que servem de base para o desenvolvimento da atividade docente. A idéia de trabalhar a partir do conhecimento dos alunos talvez tenha sido o aspecto do construtivismo mais amplamente incorporado pelos professores. Entretanto, geralmente, utilizam os conhecimentos prévios dos alunos como ponto de apoio, não os relacionando explicitamente com uma concepção de ensino que visa à mudança conceitual. Muitas vezes, a mensagem implícita na aparente concessão aos alunos de falar é: "esqueçam o que vocês sabem, desconfiem do senso comum e do que lhes contaram e escutem-me, pois vou dizer-lhes como as coisas acontecem realmente" (Perrenoud, 2000, p.28).

    Os docentes sujeitos da pesquisa concordam que o conhecimento dos alunos mantém a motivação e o estímulo durante as aulas. Porém, enfatizam que conceitos mais abstratos, como o caso da fotossíntese, não possibilitam o diálogo, pois os alunos "não sabem nada" a respeito. Dessa forma, não baseiam suas aulas desse tópico no conhecimento prévio dos alunos. Os professores assinalam que os alunos sabem a definição básica e os componentes da fotossíntese, porém não possuem um conhecimento sobre a sua importância para a manutenção da vida na Terra. Apontam ainda que o conhecimento da fotossíntese é freqüentemente confundido com o fenômeno da respiração celular e apresentam explicações antropocêntricas.

"Então, eles trazem esses problemas, alguns [alunos] trazem alguns conhecimentos... eles sabem o que é fotossíntese basicamente. O nome eles têm muito claro na cabeça, né? Se você perguntar como é que uma planta se alimenta, eles sabem dizer que é fotossíntese, mas às vezes não sabem dizer que... vão dizer que o oposto disso nos animais é a respiração celular. Isso é que é mal arrumado na maioria das vezes" (Carlos)     A avaliação também é um dos fatores presentes na gestão da matéria. Geralmente a avaliação é concebida como uma atividade de controle e classificação dos alunos. Nessa perspectiva o que é "medido" é a capacidade de adaptação dos alunos ao ambiente escolar, verdadeiros "esquemas de sobrevivência".

    Os professores analisados apontam que esses elementos estão presentes nas suas ações avaliativas. Admitem o quanto é difícil realizar uma avaliação que consiga englobar todas as variáveis que constituem o processo de ensino-aprendizagem, bem como adequar-se à estrutura do sistema escolar.

"Bom, o meu [tipo de avaliação] é ruim, infelizmente (risos). Eu acho que a escola sendo do jeito que ela é, ela tem poucas chances de avaliar decentemente. Então, por exemplo, essa grade fragmentada, esse excesso de disciplina, e eu acho que essa falta de conexão entre as disciplinas... Então, às vezes o cara está estudando geografia dos Estados Unidos e em história, sei lá, tá estudando colonização da América do Sul, essa falta... Pode até ter uma relação entre as coisas, mas... Enfim, eu acho que ninguém procura muito criar um bom senso. Então, acho que fica difícil você avaliar." (Alberto)     Um dos aspectos mais ressaltados pelos professores é a influência da instituição escolar no processo avaliativo. Principalmente em relação à obrigatoriedade da aplicação de provas bimestrais e à adoção, pela maioria das escolas, de uma avaliação por notas. Outro fator apontado refere-se à questão da subjetividade presente nas avaliações realizadas ao longo do ano. Os professores enfatizam que determinam o "futuro dos alunos" de forma diferenciada de acordo com as aptidões de cada um. Assim, cobram mais dos alunos que consideram mais capazes e exigem menos dos menos aptos. O grau de subjetividade aumenta de acordo com o conhecimento da história de cada aluno, seja escolar, seja familiar. Nessa perspectiva, uma das dificuldades apontadas para a realização de uma avaliação mais plural e formativa, está relacionada com a escassez de informação disponível para os professores, por parte das instituições, sobre os seus alunos. A admissão de uma subjetividade talvez seja a maneira de personalizar/individualizar um processo que, por natureza, visa a homogeneização.

2)Gestão de Classe

    Consideramos como gestão de classe os aspectos relacionados com as disposições necessárias para criar e manter um ambiente favorável tanto ao ensino quanto à aprendizagem (Gauthier et al., 1998). Todos os professores analisados ressaltam que a aprendizagem depende muito do interesse dos alunos. Os docentes seriam, então, responsáveis pelos meios/estratégias capazes de estimular a motivação dos alunos e por adequar as situações de aprendizagem aos limites e às condições dos seus alunos. Carlos e Alberto consideram o processo de ensino-aprendizagem uma co-responsabilidade dos atores envolvidos:

"Eu me sinto responsável por ensinar. Eu faço melhor que eu posso, mas se o aluno não quiser aprender, eu posso plantar bananeira, passar vídeo, fazer aula prática, o diabo que ele não vai aprender. Se ele tivesse uma motivação interna, que eu posso até tentar, batalhar para mexer na motivação dele, mas ele pode estar completamente fechado a qualquer coisa (...)"(Carlos)     Um ponto apresentado pelos professores refere-se à concepção de aprender na qual o aluno aprende a cumprir um papel, ou seja, corresponde ao que é esperado pelo professor e pela instituição. Os estudantes aprendem não somente os conteúdos disciplinares, mas também condutas e valores. "(...) aprender o que você quer que ele aprenda, não vai adquirir aquela habilidade, ou não vai adquirir aquele conhecimento. O que ele vai fazer é aprender a se relacionar com o que você espera dele. Eu acho que isso é o que mais acontece na escola. É o aluno que aprende a fazer prova, aprende a passar de ano, aprende a responder aquilo que se espera que ele responda. Eu acho que isso é o que a gente mais faz na escola, infelizmente." (Alberto)     Carlos e Bernardo definiram o significado de aprender como uma transformação de conhecimentos pelo aprendiz. Caracterizaram-no como um processo que ocorre ao longo da vida, fora do contexto escolar. Com relação ao ensino, Carlos e Bernardo trazem à tona a importância do prazer na atividade docente. Para eles, professor precisa transmitir/demonstrar a satisfação pessoal em ter escolhido a carreira de biólogo/ professor.

    Sobre esse aspecto os professores apontaram que a permanência em uma determinada série por muito tempo, prática comum entre o professorado, pode diminuir essa satisfação tão necessária para o ensino. Assumir o mesmo programa repetitivamente leva a uma desqualificação progressiva do professor, uma vez que alguns conhecimentos teóricos e/ou didáticos permanecem estáticos e muitas vezes obsoletos em relação aos avanços da ciência. A rotina da utilização de um conjunto de materiais didáticos torna os professores menos críticos e reflexivos sobre sua prática (Perrenoud, 2000). Já Alberto enfatiza a dimensão técnica do processo de ensino-aprendizagem, no qual a aprendizagem está relacionada com a retenção/assimilação e o ensino com a transmissão de conhecimentos.

"Olha eu sou bastante pragmático em relação ao que é ensinar. Eu acho que uma boa parte do que é ensinar é transferência de conteúdo mesmo. Então, você pode fazer o show que você quiser, você pode variar, você pode melhorar a sua relação com a turma, você pode tornar aquela transferência mais agradável, digamos assim, menos dolorosa, né? Mas você acaba fazendo transferência de conhecimento mesmo." (Alberto)     Um dos aspectos mais relevante para o gerenciamento da classe é o estabelecimento de uma boa relação com os estudantes. Os professores analisados consideram que a base para a criação de um ambiente satisfatório para a aprendizagem é a definição de um conjunto de regras de convívio. Os professores assumem uma postura de negociação das regras com os estudantes, entretanto, admitem que a grande maioria delas é definida por eles próprios e o descumprimento das regras leva a sanções bem ao estilo tradicional.

    Um outro aspecto assinalado pelos professores é a variedade de relações intersubjetivas presentes na sala de aula. A atividade docente caracteriza-se pela ebulição de sentimentos mobilizados nas relações entre professor e alunos: sedução, chantagem afetiva, amor, ódio, narcisismo, medo, angústias, etc. O professor pode assumir uma postura de negação desses sentimentos, tentando estabelecer relações formais e distantes com os alunos. Pode também viver um dilema constante, acreditando que o processo de ensino-aprendizagem necessita de um envolvimento maior com os alunos, como é o caso de Alberto:

"É uma relação que oscila (risos)... digamos assim, que eu já desisti de agradar. Muito cedo eu desisti de agradar todos os alunos. Agora, eu assumo que tem aluno que não vai gostar de mim, que eu não vou gostar de alguns alunos também. Então, eu assumo a relação como pessoal. Agora, o que eu tento fazer é que a relação, as preferências, as semelhanças não interfiram no que é a minha obrigação na escola, que é avaliar o cara corretamente. É tentar fazer com que todos produzam, mas eu acho que é uma relação muito heterogênea. Assim, porque tem personalidades que se adaptam melhor a sua maneira de trabalhar e tem personalidades que se adaptam pior, e é impossível você fazer um trabalho unanime tanto para bem quanto para o mal. Então, eu assumo isso em sala. Assim, que a minha relação com eles passa pelo pessoal. Eu sou gente, pessoa. Agora... eu tento ser justo na minha decisão, neutro eu não sou, mas eu tento ser justo. Então, eu prefiro trabalhar em um ambiente que tem regras, talvez muitas, mas que elas são definidas logo no inicio." (Alberto)     Os discursos dos professores analisados estão permeados por esse dilema e apontam que a relação é a priori desregulada. Cada vez que se entra na sala de aula é preciso restabelecer relações com os alunos, lembrá-los das regras do jogo. Os alunos do ensino médio são adolescentes preocupados com os seus problemas. O professor fica um pouco frustado porque, mesmo que os alunos queiram, individualmente, estabelecer relações com os professores, coletivamente, eles não as querem.

3) Formação Docente

    Os professores investigados estudaram na mesma universidade, realizando o curso de licenciatura em épocas diferenciadas. Entretanto, todos consideraram que a formação inicial foi totalmente desvinculada da prática, uma vez que evidenciava aspectos burocráticos, como a confecção de planos de aulas, ao invés de revelar os reais problemas enfrentados por um professor no seu cotidiano.

    Quanto aos investimentos dos professores investigados na formação continuada, pode-se dizer que foram pequenos ou ausentes. Bernardo participou de alguns cursos de formação que tratavam de assuntos específicos de biologia como, por exemplo, quiropterofilia. Entretanto, não encontrou um retorno satisfatório, por causa de sua aparente desarticulação com o trabalho em sala de aula: Alberto e Carlos não participaram de nenhum curso de formação continuada sobre conteúdo específico de biologia. Talvez se consideram com uma boa formação científica. Em relação aos cursos para voltados para prática pedagógica, expressam uma certa desconfiança, seja por causa de uma dificuldade em lidar com a linguagem da educação, seja por criticar os tipos de cursos oferecidos.

    Um outro aspecto importante para a formação docente está articulado com a prática de ser professor, mais especificamente, com as oportunidades de troca de experiências com os colegas. Os saberes da experiência têm origem no confronto com as situações da profissão. São nas oportunidades de relacionar-se com pares que os saberes produzidos adquirem uma certa objetividade, dando-lhes um caráter formativo, uma vez que os professores são levados a tomar consciência destes saberes. As situações nas quais os professores possuem alguma obrigação ou responsabilidade de trocarem experiências como, por exemplo, nas reuniões pedagógicas, também são consideradas como importantes para a formação. Devido a sua trajetória profissional, Bernardo valoriza ainda mais as discussões pedagógicas que acontecem nos colégios em que trabalha. Os temas tratados são referentes aos problemas específicos de cada instituição, caracterizando-se pela construção de uma pedagogia especial, inserida em um contexto. Com isso, Bernardo apresenta uma idéia de pedagogia relacionada com a sua aplicabilidade prática, fazendo críticas aqueles que teorizam a educação.

"Tudo que nós aprendemos lá, no [nome de escola], nós jogamos em sala de aula. E depois voltamos, temos um retorno para saber se aquela medida foi correta, se não foi correta. Que pontos favoráveis, que pontos ruins. Então, fica uma coisa mais dinâmica. Eu até contesto as coisas, acho que pode ser um educador maravilhoso (ênfase)... mas cadê se ele não tem experiência dentro da sala de aula? Às vezes o que se coloca no papel é muito lindo (ênfase), é muito bonito, mas quando você... mas tenta colocar aquilo na sala... é inadmissível. Aquela coisa muito teórica, de um pedagogo teórico, que é ficar fora de uma sala de aula, eu acho... levantando idéias de como deveria ser"(Bernardo)     Alberto e Carlos trocam experiências constantemente, que podem ser caracterizadas como uma aprendizagem compartilhada, uma vez que existe uma modificação dos materiais produzidos e uma preocupação em mudar a prática a partir da troca de experiências. Já no caso do Bernardo, a troca de experiências caracteriza-se mais por uma troca de informação. A cumplicidade entre os pares é resultado da co-responsabilidade em dividir uma turma, descrita como uma checagem periódica do andamento do planejamento para evitar defasagem.

    Independente de como acontece a formação continuada de um professor, é inegável a sua importância para o exercício do magistério. Atualmente existem estudos que consideram que a competência[3] de gerenciamento da autoformação é uma forma de enriquecer e instrumentalizar uma prática reflexiva. Desse modo, esta abordagem deve ser considerada como uma via de recurso dos docentes para desenvolver essa competência de forma a que "cada um saiba cada vez melhor apontar suas próprias falhas e traduzir a distância entre o que faz e o que gostaria de fazer em um projeto de formação" (Perrenoud, 2000, p.164).

4) Instituição Escolar

    A instituição escolar é o ambiente que possui características que definem em grande parte como o professor exerce suas atividades. A relação entre o docente e a escola tradicionalmente está baseada na desconfiança, na liberdade vigiada e na prestação de contas do trabalho realizado (Perrenoud, 2000). Os professores sujeitos dessa pesquisa identificaram alguns desses aspectos quando analisaram suas relações com as escolas em que atuam.

    Um ponto abordado pelos docentes refere-se a uma clara distinção no relacionamento de acordo com a natureza da instituição escolar, ou seja, pública ou privada. Todos os professores tiveram experiências em ambos os tipos, mas ao longo da vida profissional tiveram a chance de escolher um determinado perfil de escola que se adaptasse ao estilo pedagógico de cada um, além, é claro, das questões financeiras.

    Bernardo trabalha atualmente em três escolas particulares (duas confessionais e uma laica) e possui uma relação com as instituições baseada no binômio empregador-empregado, considerando-as como "empresas". Dessa forma, procura desenvolver suas atividades de acordo com as características de cada escola.

"Escola particular é uma empresa. Uma empresa. E uma empresa que tem vários profissionais aí, que estão querendo pegar o seu lugar. E dentro da nossa área, da nossa licenciatura, do magistério, essa história de currículo é complicado. O que conta mais é o QI: quem indica mesmo. Você conhece algum professor disso, algum professor daquilo... então, você coloca e indica um colega. Então, é um negócio mais... a concorrência é grande... eu acho até bom, porque você nunca se acomoda, né?" (Bernardo)     Carlos e Alberto trabalham na mesma instituição pública e compartilham a opinião de que possuem grande liberdade com relação ao planejamento escolar. A possibilidade de inclusão e exclusão de conteúdos curriculares é considerada como uma vantagem de se trabalhar em uma escola pública. A pressão pelo cumprimento do planejamento é exercida pela própria equipe de biologia, sendo resolvida com um acordo prévio. Entretanto, Alberto assinala que, apesar da aparente liberdade concedida pela estrutura escolar pública, os professores continuam "amarrados" a um compromisso que ultrapassa os muros da escola. Compromisso esse que está relacionado ao cumprimento de um planejamento mínimo, de forma que os alunos possam transitar pelo sistema educativo.



Considerações Finais

    Nos discursos dos professores analisados não foi destacado práticas pedagógicas que pudessem ser caracterizadas como procedimentos inéditos ou grandes inovações. Revelam, sim, a preocupação constante que os docentes possuem em atingir seus objetivos educacionais, estimulando seus alunos para realizarem uma aprendizagem significativa. Presumimos que seus discursos sejam semelhantes aos de vários professores em lugares e épocas distintas. A diferença encontra-se na maneira pessoal de colocar em ação o seu modelo pedagógico, muito bem representado por Carlos ao explicar como é ser professor:

"A aula certa é aquela que o cara, o professor pegou o saber lá que achou importante, que ele transformou dentro dele e que agora ele vai passar para o aluno com a marca dele. Eu acho que os professores devem buscar as suas marcas, porque as aulas deles seriam melhores e seria mais prazeroso para eles. Eu acho que a gente fazer o que gosta, no tempo que a gente gosta fica mais fácil a gente imprimir uma marca do nosso trabalho e isso é um exemplo importante para o aluno."     Há muito tempo reconhece-se que o campo educacional, e especificamente a educação em ciências, é caracterizado pela convivência simultânea de um conjunto de dimensões que o professor deve considerar na sua prática pedagógica, não somente aquelas relacionadas à sala de aula, mas também ao contexto escolar mais amplo. Por ser um sistema de muitos fatores, a sala de aula, segundo Queiroz (2000) pode ser comparada analogamente aos sistemas físicos complexos.

    Dessa forma, a profissão docente é constituída de saberes específicos e práticas sociais que se tornam essenciais para o seu exercício diante de tantas incertezas. Consideramos que esses saberes formam uma rede de significados tecida pelo docente como parte da caracterização e da construção de uma identidade profissional.

    A formação profissional, as relações interpessoais e as institucionais, assim como a dinâmica dessas interações e os significados que lhe são atribuídos, reúnem-se nas dimensões do modelo pedagógico. Tais dimensões não são adquiridas de forma definitiva e externa; possuem um caráter dinâmico, em um verdadeiro processo de construção/reconstrução permanente, uma vez que cada lugar e cada momento demandam redefinições e ajustes.

    Esse processo de apropriação e construção, característico do modelo pedagógico, ocorre, principalmente, na interseção entre a biografia individual do docente e a história de suas práticas sociais e educativas. Nos professores analisados essa interseção é fortemente reconhecida a partir do significado que o conhecimento científico, no caso a biologia, adquire no desenvolvimento da carreira docente e, conseqüentemente, na estruturação do modelo pedagógico. A transposição didática é essencial para caraterizar a tomada de decisão acerca do que ensinar, de como apresentar os conteúdos selecionados, de como escolher as perguntas e também de como lidar com a dinâmica e os problemas de aprendizagem que ocorrem nas salas de aula.

    Para Alberto e Carlos o conhecimento biológico que ensinam está muito relacionado com as especificidades da produção científica, fazendo com que suas práticas educativas tenham similaridades com o cotidiano do fazer ciência, demonstrado principalmente pela análise dos seus objetivos educacionais e das críticas que fazem ao ensino de biologia. É inegável que um bom conhecimento da matéria é primordial para o ensino de ciências, no entanto não é por si só um garantia para a realização de uma prática pedagógica significativa. Bernardo adquiriu uma longa experiência e o seu planejamento didático e seus objetivos educacionais estão centrados no estabelecimento de relações institucionais e interpessoais, tanto com os alunos quanto com os colegas. Devido a sua trajetória profissional o conhecimento biológico ensinado apresenta-se de uma forma cristalizada e inquestionável, podendo haver pequenas modificações nas estratégias de ensino no sentido de contornar possíveis problemas de relacionamento com a turma e também por causa de pressões impostas principalmente pela instituição escolar.

    Dessa forma, vimos que a realização da transposição didática está, no caso dos professores analisados, fortemente marcada pelo tipo de formação. A análise dos dados mostrou que existe também uma co-relação entre como transpor o conhecimento científico e o tempo de magistério. Um outro fator presente na relação de como o conhecimento científico estrutura o modelo pedagógico dos professores analisados é a grande importância dada ao saber construído na experiência. Como vimos é crescente o número de pesquisas enfocando o que vem se denominando saber docente. Dentre os saberes envolvidos, o saber a experiência está sendo considerado tanto por pesquisadores quanto pelos nossos professores, como a principal instância de formação da profissão docente.

    Os relatos mostram que a reflexão sobre a prática está subsidiada por uma idéia principal, seja ela uma crença ou uma teoria, que o professor constrói ao longo da sua carreira profissional sobre, por exemplo, o que é ensinar e o seu papel como docente, promovendo uma articulação entre os seus valores e o seu projeto educativo. Nesse sentido, percebe-se a presença de contradições no que os professores analisados pensam sobre suas práticas pedagógicas. Esse quadro gera uma situação na qual os professores criticam o ensino de biologia, mas não conseguem apresentar uma postura de mudança da própria prática, apontando para um clima de resistência e nostalgia das crenças, das verdades e da qualidade de outros tempos, seja no tempo quando eram alunos, seja no início da carreira. A resistência também se apresenta na necessidade do reconhecimento da produção pedagógica, acarretando na desconsideração de tudo que não foi comprovado/legitimado na sua própria trajetória profissional. Dessa forma, os professores apresentam uma compreensão atomitizada das questões pedagógicas, distanciando-se das produções das pesquisas na área educacional e também das políticas públicas, reduzindo-as freqüentemente a "modismos daqueles que não dão aula".

    Mesmo que os professores tenham clareza da prática educativa que gostariam de vivenciar com seus alunos, sentem-se limitados por uma série de determinantes — pessoais, políticos, institucionais, econômicos etc — que pode ser inibidora ou estimuladora de modificação no modelo pedagógico. A continuidade da formação pedagógica está intimamente relacionada, para os professores analisados, com a troca de experiência com os colegas que têm afinidade, confiança ou mais facilidade de encontrar.

    Podemos concluir que o modelo pedagógico do professor tem momentos de avanços e retrocessos. Nele convivem simultaneamente diferentes tendências pedagógicas, diferentes nuances, de acordo com o conteúdo trabalhado, da rotina de cada sala de aula e do clima institucional.


Referências

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[1] Agradecemos ao professor Creso Franco, coordenador do projeto de pesquisa desenvolvido no Departamento de Educação da PUC-Rio, pela concessão da licença de utilização do software NUD*IST.
[2] O surgimento de paradigmas interpretativos possibilita a focalização em questões mais interpessoais e define conhecimento “como sendo ativamente construído dentro de um instável, incerto, cheio de conflito mundo prático. O resultado é um conhecimento situado, idiossincrático, feito poderoso através dos contextos nos quais ele é adquirido e usado” (Widden et al. 1996, p.191).
[3] Este termo está sendo utilizado de acordo com Perrenoud (2000) que o define como sendo “a capacidade de mobilizar diversos recursos cognitivos para enfrentar um tipo de situação (...)” (p.15).