DIFERENTES CONTEXTOS NA ÁREA DE CIÊNCIAS DA NATUREZA, MATEMÁTICA E SUAS TECNOLOGIAS DOS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS DO ENSINO MÉDIO: INTEGRAÇÃO COM BASE NO MERCADO[1]



Alice Casimiro Lopes[2]

Maria Margarida Gomes[3]

Inilcéa dos Santos Lima[4]



Resumo

    Neste artigo, analisamos no texto oficial dos parâmetros curriculares para o ensino médio (PCNEM) como são propostas as relações entre os conteúdos das diversas disciplinas da área de ciências da natureza, matemática e suas tecnologias com os contextos de vida dos alunos, bem como quais são os contextos considerados mais importantes em cada uma delas. Buscamos focalizar a concepção de contextualização apresentada por cada uma das disciplinas dessa área: Física, Química, Biologia e Matemática. Nosso intuito foi o de entender como essas concepções expressas nos documentos disciplinares dos PCNEM articulam-se com as DCNEM e qual é o potencial dessas concepções para superar a classificação disciplinar acentuada do ensino médio. A partir dessa análise, defendemos que a concepção de contextualização é uma recontextualização, nos termos de Basil Bernstein, dos princípios curriculares relacionados à valorização dos saberes cotidianos e populares, bem como das experiências dos alunos, há muito presentes no pensamento curricular e na pesquisa em ensino de ciências. Nessa recontextualização, há uma efetiva perda do potencial crítico que sempre caracterizou a defesa do cotidiano, dos saberes populares e das experiências dos alunos, especialmente após os trabalhos de Paulo Freire. Por outro lado, tal concepção de contextualização também pouco contribui para uma efetiva integração de saberes disciplinares. Na área de ciências da natureza, matemática e suas tecnologias, há muitas diferenças entre os contextos apresentados para os diferentes conhecimentos disciplinares. O contexto que efetivamente é apresentado como comum a todas as disciplinas é o do mundo produtivo e das exigências do mercado de trabalho da era pós-industrial. Dessa forma a inclusão da contextualização pouco contribui para questionar a acentuada classificação de saberes que caracteriza o nível médio de ensino e tampouco favorece uma interpretação mais crítica dos saberes escolares.




Abstract

    In this article we analyze the articulation proposed in the official curriculum for high schools of Brazil (PCNEM) between school knowledge of natural science, mathematics and their technologies on one side, and the student’s life contexts on the other side, also considering the relative importance attributed to each context. We focused on the concept of contextualization presented in each school subject of the area, physics, chemistry, biology, and mathematics. Our objectives were to understand how these concepts expressed in the PCNEM were articulated with the DCNEM and their potential to overcome the accentuated classification in school subjects of high school. We defend that the concept of contextualization is a recontextualization - in Basil Bernstein’s terms - of curricular principles related to everyday and popular knowledge, and of students’experiences. These ideas are not new in currilucum and in science education. In this recontextualization, there is a real loss of the critical view that always characterized the defense of the students’ everyday experiences and popular culture, especially after the work of Paulo Freire. Besides, such conception of contextualization little contributes to an effective integration of the school subjects. In the area of natural sciences, mathematics and their technologies there are many differences among the contexts presented in the different school subjects. The context presented as common to all school subjects is the one of the productive world and of the market demands of the post industrial era. The inclusion of contextualization does little to question the accentuated classification of knowledge that characterizes high school and does not favor a critical interpretation of the school knowledge.


Situando a problemática

    A partir das definições da LDB 9394/96, novas orientações curriculares para o nível médio de ensino foram elaboradas pelo MEC e estão expressas nas diretrizes curriculares nacionais para o ensino médio (DCNEM - Brasil, 1999). Tais diretrizes, por sua vez, estão apoiadas nos parâmetros curriculares nacionais para o mesmo nível de ensino (PCNEM - Brasil, 1999). A implementação dessas novas orientações corresponde a uma das metas do Projeto Escola Jovem (Brasil, 2001), projeto mais amplo de reforma curricular do nível médio de ensino que está sendo desenvolvido no Brasil com o financiamento do Banco Interamericano (BID, 1999). Tal projeto insere–se no contexto de reformas curriculares desenvolvidas nos últimos anos, em diferentes países, segundo políticas genericamente denominadas como neoliberais.

    Essas políticas têm em comum o estabelecimento de uma contradição entre flexibilidade curricular e controle via avaliação pelo Estado, de forma a introduzir as forças do mercado e as formas de decisão próprias do setor privado na educação. Whitty, Power e Halpin (1999) analisam tais políticas como "políticas de quase-mercados", procurando marcar uma diferença com a visão idealizada de um mercado livre, cada vez mais inexistente no mundo capitalista globalizado. Segundo esses autores, há uma tendência de separação entre prestador do serviço educacional e financiador desse mesmo serviço, de maneira tal que alunos e suas famílias são tratados como clientes que podem escolher entre diferentes prestadores. Tais prestadores passam a ser competidores entre si pela possibilidade de prestar o serviço, ao mesmo tempo em que o governo regula fortemente o processo educacional.

    As diferentes propostas curriculares nacionais vêm assumindo esse discurso global por intermédio da incorporação de discursos das agências de fomento e de orientação internacional de políticas econômicas e culturais (Banco Mundial, Banco Interamericano, Unesco e Fundo Monetário Internacional). Porém, a esse discurso global são associados os discursos da academia, de propostas curriculares de outros países com os quais se estabelecem projetos de cooperação econômica e/ou cultural, bem como dos campos simbólico e de produção de uma forma mais ampla. Nesse processo de incorporação de diferentes discursos, necessariamente há recontextualizações, muito bem interpretadas por Bernstein (1996, 1998), fazendo com que as orientações globais sejam sempre reinterpretadas e adaptadas aos contextos locais dos diferentes países. Como expressão da importância conferida ao entendimento dessa tensão global-local que se estabelece nas reformas curriculares, os processos de recontextualização vêm sendo objeto de pesquisa em diferentes países (Bonal & Rambla, 1999; Evans, 1990; Evans & Penney, 1995; Morais, Neves & Fontinhas, 1999; Whitty et al, 1994a e 1994b).

    Para Bernstein, a recontextualização constitui–se a partir da transferência de textos[5] de um contexto a outro. As propostas curriculares oficiais, e mesmo o currículo em ação nas escolas (campo de reprodução e de resistência), são sempre constituídos por processos de recontextualização. Nessa recontextualização inicialmente há uma descontextualização, pois alguns textos são selecionados em detrimento de outros, bem como são trazidos de um contexto de questões e relações sociais distintas para outro. Essa descontextualização muda a posição do texto em relação a outros textos, práticas e situações. Simultaneamente há um reposicionamento e uma refocalização. Nesse processo, o texto é modificado por processos de simplificação, condensação e reelaboração, desenvolvidos em meio aos conflitos entre os diferentes interesses que estruturam o campo de recontextualização.

    Por isso, Bernstein afirma ser no processo de recontextualização, quando um texto muda de lugar, que se constitui um espaço para atuação da ideologia. Dessa forma, o campo recontextualizador pedagógico oficial, constituído basicamente pelo Estado nacional sob influência de todos os demais campos (internacional, acadêmico, cultural, de produção), produz o discurso pedagógico oficial. O discurso pedagógico é definido por Bernstein (1996; 1998a) não como um discurso propriamente dito, mas como um princípio de apropriação de outros discursos, um princípio recontextualizador. Trata-se das regras para embutir e relacionar dois outros discursos: o discurso instrucional (discurso especializado das ciências de referência que se espera ser transmitido na escola) e o discurso regulativo (discurso associado aos valores e aos princípios pedagógicos). Como é o discurso regulativo que domina o discurso instrucional, é por meio do discurso regulativo que a ideologia intervém no discurso pedagógico.

    Entendemos, assim, que os princípios de organização do conhecimento escolar constituem um discurso regulativo capaz de modificar e imprimir marcas dominantes no discurso instrucional relativo aos conhecimentos disciplinares. Nos PCNEM identificamos a contextualização como um dos princípios que faz parte de seu discurso regulativo. Embutir o discurso instrucional referente às diferentes disciplinas nesse discurso regulativo que organiza o conhecimento escolar recontextualiza tal discurso instrucional, redefine suas finalidades educacionais e configura o discurso pedagógico oficial. Esse discurso pedagógico oficial, no caso constituído pelos PCNEM, é que será capaz de regular a produção, distribuição, reprodução, inter-relação e mudança dos textos pedagógicos legítimos, suas relações sociais de transmissão e aquisição e a organização de seus contextos.

    Nos limites desse artigo, analisamos no texto oficial dos PCNEM como são propostas as relações entre os conteúdos das diversas disciplinas da área de ciências da natureza, matemática e suas tecnologias com os contextos de vida dos alunos, bem como quais são os contextos considerados mais importantes em cada uma delas. Buscamos assim focalizar a concepção de contextualização apresentada por cada uma das disciplinas dessa área: Física, Química, Biologia e Matemática. Nosso intuito foi o de analisar como essas concepções expressas nos documentos disciplinares dos PCNEM articulam-se com as DCNEM e qual é o potencial dessas concepções para superar a classificação disciplinar acentuada do ensino médio.

    A partir dessa análise, defendemos que a concepção de contextualização é uma recontextualização, nos termos de Bernstein, dos princípios curriculares relacionados à valorização dos saberes cotidianos e populares, bem como das experiências dos alunos, há muito presentes no pensamento curricular e na pesquisa em ensino de ciências. Nessa recontextualização há uma efetiva perda do potencial crítico que sempre caracterizou a defesa do cotidiano, dos saberes populares e das experiências dos alunos, especialmente após os trabalhos de Paulo Freire. Por outro lado, tal concepção de contextualização também pouco contribui para uma efetiva integração de saberes disciplinares. Na área de ciências da natureza, matemática e suas tecnologias, há muitas diferenças entre os contextos apresentados para os diferentes conhecimentos disciplinares. O contexto que efetivamente é apresentado como comum a todas as disciplinas é o do mundo produtivo e das exigências do mercado de trabalho da era pós-industrial. Dessa forma a inclusão da contextualização pouco contribui para questionar a acentuada classificação (Bernstein, 1996, 1998) de saberes que caracteriza o nível médio de ensino e, quando o faz, tampouco favorece uma interpretação mais crítica dos saberes escolares.


Como o cotidiano e as experiências dos alunos se transformam em contextualização?

    A valorização das experiências dos alunos como base para constituição do conhecimento escolar não é nova no pensamento curricular. É possível situar mais claramente tal ênfase no pensamento de John Dewey (1859-1952). Para Dewey (1952, 1959), os objetivos sociais das disciplinas escolares são diferentes dos objetivos sociais das disciplinas de referência. Não são os princípios lógicos que fornecem a base de organização do conhecimento escolar, mas sim os princípios psicológicos. Como analisa Popkewitz (2001), Dewey rejeita o dualismo cartesiano corpo/mente e a separação entre os métodos de pesquisa e o conhecimento produzido sobre o mundo. Em uma ótica essencialmente pragmática, Dewey entende ensino e aprendizagem como atividades condicionais e contingentes que precisam focalizar a comunidade. Assim, as experiências e interesses dos alunos são entendidos como definidores dos princípios da organização do conhecimento escolar. A própria integração do conhecimento não é pensada com base nos princípios do conhecimento científico, como na matriz do pensamento de Jerome Bruner, ou com base nas exigências do mundo produtivo, como na matriz do currículo por competências. Os princípios integradores são centrados nas vivências dos alunos.

    A perspectiva crítica de currículo desenvolveu muitos questionamentos ao pragmatismo e ao cientificismo do pensamento de Dewey, bem como a seu caráter acentuadamente liberal e psicológico. A partir dos trabalhos dos autores críticos, confere-se um caráter de classe aos saberes dos alunos e um enfoque mais político e transformador das estruturas sociais à concepção de democracia. Permanece, entretanto, a compreensão de que é fundamental valorizar os saberes dos alunos, especialmente das classes populares, como forma de desenvolver um currículo democrático. Por exemplo, Apple e Beane (1997), com base em Dewey, defendem a necessidade de o aluno conferir significado ao que aprende, relacionando esse conhecimento com suas aplicações e, sobretudo, extraindo significados para suas experiências futuras. Giroux (1997), outro autor de grande expressão na teoria crítica de currículo, salienta como a constituição de uma pedagogia radical pressupõe a valorização do capital cultural dos alunos das classes populares. Em suas interpretações, muito se identifica a influência do pensamento de Paulo Freire.

    Por sua vez, o pensamento educacional em ciências sempre procurou levar em conta as relações entre ciência, vida cotidiana e contextos sociais mais amplos, seja como forma de superar um ensino verbalista e academicista, seja como forma de motivar e provocar interesse nos alunos, seja ainda como forma de garantir o conhecimento das aplicações de conceitos científicos. Mesmo em trabalhos mais antigos como os de Venâncio Filho (1940), docente livre do Colégio Pedro II na área de Ciências Físicas e Naturais, e Gustavo Lessa (1964) podemos identificar o destaque conferido as relações entre vida cotidiana e escola.

    Atualmente, no campo da pesquisa em ensino de ciências também são freqüentes os trabalhos que problematizam as relações entre cotidiano/saberes populares e ensino de ciências e/ou que propõem maior inter-relação entre o ensino de ciências e as questões sociais e tecnológicas.

    Sem a pretensão de efetuar um levantamento das produções do campo nessa temática, não podemos deixar de mencionar alguns autores. Lutfi (1988, 1992), por exemplo, aponta para um aprofundamento das relações entre cotidiano e ensino de Química. O autor interpreta tais relações como uma forma de entendermos as relações sociais e econômicas na sociedade. Nesse caso, o cotidiano não é restrito às ações isoladas do dia-a-dia, nem sua relação com o ensino de Química se resume à ilustração das aulas com exemplos de aplicações científicas. O cotidiano é ele mesmo contraditório, estruturado em relações determinadas pela sociedade capitalista.

    Um enfoque crítico relativo às relações entre cotidiano e ensino de ciências também pode ser destacado nos trabalhos de Chassot (1993, 1995). Em seus trabalhos, o autor reiteradamente valoriza a importância de se ver a Química como uma linguagem, capaz de permitir a compreensão mais crítica do mundo, bem como a necessidade de que o ensino inter-relacione os saberes científicos e populares, sem estabelecer hierarquias sociais entre saberes e pessoas.

    Igualmente nas atuais discussões sobre as relações entre ciência, tecnologia e sociedade (CTS), constata-se o foco na construção de um ensino de ciências mais significativo a partir da relação dos saberes científicos com questões sociais mais amplas (Santos, 1992; Trivelato, 1993).

    A despeito das inúmeras diferenças de enfoque dessas perspectivas teóricas e dos possíveis questionamentos que possam ser desenvolvidos nesse campo, podemos afirmar que em todos esses trabalhos a valorização do cotidiano, das experiências dos alunos, dos saberes populares e de contextos sociais e tecnológicos mais amplos tende a assumir um viés crítico e vinculado à defesa de uma educação democrática. Não se trata de apenas inserir o aluno no mundo e, para tal, fazer o aluno compreender esse mundo. Trata-se do entendimento de que há um projeto de mudança a ser desenvolvido no mundo, de forma democrática, e diferentes conhecimentos precisam ser construídos para que esse projeto se desenvolva. A direção a ser conferida e os processos a serem desenvolvidos nessa mudança são certamente diversos, assim como são diferentes formas de compreender a estrutura social. Isso não invalida, no entanto, a localização de uma idéia comum de transformação do mundo em contraposição a uma submissão a esse mesmo mundo

    No texto da proposta curricular oficial para o ensino médio, tais concepções apresentam-se recontextualizadas. Há o deslocamento desse enfoque relacionado com os saberes populares, com as experiências sociais dos alunos e de questionamento do cotidiano no qual estão inseridos, para relocalização com o discurso das competências necessárias ao mundo produtivo. A contextualização passa a ter como função primordial permitir a integração e favorecer a formação das habilidades e competências necessárias ao mundo do trabalho em mudança. Dessa forma, a concepção de contexto nos documentos oficiais é claramente mais restritiva do que a interpretação conferida pelo discurso pedagógico da academia relativo ao tema. Enquanto as idéias de cotidiano, de comunidade, de experiências dos alunos e de valorização dos saberes populares, de formas distintas, visam amplamente a relação dos alunos com o mundo que os cerca, a concepção de contexto nos PCNEM e nas DCNEM fica primordialmente restrita ao trabalho produtivo.

    Há três interpretações para o contexto nos PCNEM: a) trabalho; b) cidadania; c) vida pessoal, cotidiana e convivência. Neste terceiro contexto, a maior ênfase é no meio ambiente, no corpo e na saúde. Porém, em virtude do eixo central ser a formação para o mundo produtivo que se modifica rapidamente, o contexto do trabalho adquire centralidade, ficando os dois outros contextos subsumidos a ele: "O contexto do trabalho é também imprescindível para a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos a que se refere o artigo 35 da LDB" (Brasil, 1999: 93). Para expressar tal centralidade do trabalho, a tecnologia é escolhida como tema por excelência capaz de contextualizar os conhecimentos e as disciplinas no mundo do trabalho.

    Podemos relacionar esse enfoque dos PCNEM com a análise que Bernstein (1998) faz do conhecimento oficial dos tempos atuais. Para esse autor, esse conhecimento oficial é fruto de uma radical separação entre mundo interior e mundo exterior. Ao analisar as diferenças entre o trivium e o quadrivium no ensino das universidades da Idade Média, Bernstein (1998) identifica uma relação íntima entre o conhecimento e o conhecedor. Segundo ele, o trivium (a formação da palavra) é um discurso que representa a construção do interior, uma forma particular de criar o exterior (o mundo). Enquanto o quadrivium (a exploração do mundo) é um discurso que representa a construção do exterior, do mundo material. É preciso criar o interior como condição necessária para compreender o mundo. A partir dessa visão, Bernstein aponta que a ruptura entre o trivium e quadrivium é uma marca de nossa herança educacional, seja indicando uma divisão entre mundo religioso e mundo material, como na Idade Média, seja pela substituição do princípio religioso por um princípio humanista, também separado do mundo material. Trata-se de uma separação constante entre o interior e o exterior, mas ainda assim a construção do interior é condição fundamental para a compreensão do mundo exterior. Nos tempos atuais, para Bernstein, há um princípio desumano orientando a organização do conhecimento oficial. O mundo exterior, quer dizer, o quadrivium, passa a ser a mola propulsora do conhecimento oficial, da formação humana (do ser, do eu), porque há um domínio crescente das disciplinas especializadas orientadas pelos princípios do mercado e do mundo produtivo.

    Essa submissão ao mundo exterior é explícita no texto oficial dos PCNEM e das DCNEM. As demandas do mercado de trabalho são entendidas como o contexto ideal para as situações de aprendizagem integradas e significativas. Ainda de acordo com os documentos oficiais, mudaram as exigências sobre o papel da educação na sociedade atual e por isso a educação deve mudar: "O novo paradigma emana da compreensão de que, cada vez mais, as competências desejáveis ao pleno desenvolvimento humano aproximam-se das necessárias à inserção no processo produtivo". (PCNEM - Brasil, 1999: 23) Ou seja, a educação hoje mostra-se liberada para se submeter às demandas do mundo produtivo.

    O entendimento é de que as novas regras e o novo funcionamento da sociedade estão impregnados pelo uso de tecnologias, assim como os conhecimentos produzidos pelas ciências e pelas tecnologias estão em permanente transformação. Os cidadãos, portanto, devem ser educados para ter autonomia e capacidade de sempre buscar novas formas de se aperfeiçoar, tanto nas escolhas e decisões da vida pessoal como na vida profissional. Nessa perspectiva é que se defende não haver mais divisão entre formação geral para determinados setores da sociedade e formação para o trabalho para outros setores. Toda a educação passa a ser entendida como tendo por finalidade a formação geral de um cidadão plenamente preparado para o mundo do trabalho. Nesse sentido, a autonomia preconizada pelos PCNEM é aquela necessária ao cidadão capaz de se adequar ao mundo em constante mudança. Assim sendo, distancia-se completamente do potencial crítico associado à autonomia preconizada pela pedagogia radical (Giroux, 1997).

    O discurso oficial dos PCNEM valoriza o quanto há de novo nessa proposta curricular, sempre relacionando seus princípios com as novas exigências sociais, culturais e políticas para a formação do novo cidadão trabalhador. Dessa forma, espera-se atingir uma formação que dê conta da complexidade da vida contemporânea e da formação de um profissional adaptado aos novos modelos de organização do trabalho na era pós-industrial.

    Ainda que tal discurso oficial dirija-se a todas as áreas do conhecimento previstas para o nível médio de ensino, é importante salientar o quanto a área de ciências da natureza, matemática e suas tecnologias é especialmente propícia à incorporação desse discurso. Os princípios relacionados ao mundo produtivo, às novas tecnologias e aos novos processos de trabalho mais facilmente podem ser vinculados à área de ciências, na medida em que o conhecimento técnico-científico é base do desenvolvimento produtivo na sociedade capitalista. Assim, fica aberto um espaço para a supervalorização dessa área em detrimento das demais áreas do conhecimento. Tal supervalorização pode, inclusive, favorecer uma visão limitada da própria área de ciências da natureza e matemática e tampouco contribui para uma formação mais crítica dos alunos.

    Nessa perspectiva, a exterioridade do ser humano domina o que deve ser ensinado e aprendido na escola. Mais do que isso, o exterior é representado pelas demandas do mercado e da organização econômica mundial. Abreu (2000), em sua análise sobre os PCNEM, reforça essa idéia alertando para o fato de que:

A globalização econômica tem um importante papel neste contexto. Ao promover o rompimento de fronteiras e a transferência acelerada de conhecimentos, tecnologias e informações, ela acaba por criar novas formas de socialização, novos processos de produção e novas identidades individuais e coletivas. Logo, a necessidade de construir uma nova organização curricular é baseada e justificada nestes documentos pelo novo significado que o trabalho adquire no contexto da globalização econômica e pela apropriação dos conhecimentos, visando à formação de um sujeito mais ativo no mundo do trabalho e na prática social. (p.19)     A formação do interior do ser humano passa a ser fruto das demandas do mundo exterior, predominantemente oriundas do mundo do trabalho e da produção. Assim, o contexto é concebido como uma ferramenta para o cidadão saber responder às demandas do coletivo social e do mundo do trabalho. O contexto não é abordado com uma perspectiva crítica, de ação social, de relação ativa e transformadora do estudante-cidadão com o seu entorno ambiental e social. Essa exterioridade não é percebida como algo que fará parte do indivíduo e que será também construída pelo coletivo, mas sim como uma ferramenta a ser utilizada pelo indivíduo a ela adaptado. O contexto é abordado na nova proposta curricular como algo externo do qual o indivíduo deve se apossar para poder responder ao que lhe é solicitado pelo mesmo contexto. Portanto, o contexto possibilita o acesso às ferramentas e aos métodos para se poder viver dentro dele.

    Tal concepção de contexto tem por objetivo atuar de forma integradora (PCNEM, Brasil, 1999: 34). Porém, como analisamos a seguir, tampouco essa perspectiva de integração se desenvolve nos documentos referentes às disciplinas da área de ciências da natureza e matemática.



Como a contextualização nas diferentes disciplinas fragmenta a área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias?
 
    Na nova proposta curricular para o ensino médio, o conhecimento escolar é organizado em três áreas: Linguagens, Códigos & suas Tecnologias, Ciências da Natureza, Matemática & suas Tecnologias e Ciências Humanas & suas Tecnologias, objetivando reunir em cada área aquelas disciplinas que têm objetos de estudo em comum. Tal opção visa permitir a utilização dos "conhecimentos de várias disciplinas para resolver um problema concreto ou compreender um determinado fenômeno sob diferentes pontos de vista. A interdisciplinaridade tem uma função instrumental. Trata-se de recorrer a um saber diretamente útil e utilizável para responder às questões e aos problemas sociais contemporâneos" (PCNEM - Brasil, 1999: 34). Nesse sentido, a interdisciplinaridade articula-se obrigatoriamente com a contextualização.

    Coerentemente com o princípio interdisciplinar, que tem por objetivo inter-relacionar, mas não superar as disciplinas, os PCNEM prevêem que o ensino da área de Ciências priorize o aprofundamento das quatro ciências por meio de uma compreensão profunda de suas características específicas. Mais ainda, a nova proposta curricular explicita objetivos relacionados a aspectos sociais e econômicos das ciências:

Os objetivos explicitamente atribuídos à área de Ciências e Matemática incluem compreender as Ciências da Natureza como construções humanas e a relação entre o conhecimento científico-tecnológico e a vida social e produtiva; (PCNEM - Brasil, 1999: 212)     Também se pretende que haja uma valorização da integração ou articulação interdisciplinar dos conhecimentos dessas ciências no que concerne principalmente à relação com os aspectos tecnológicos e aos aspectos práticos da vida cotidiana: Os objetivos do Ensino Médio em cada área do conhecimento devem envolver, de forma combinada, o desenvolvimento de conhecimentos práticos, contextualizados, que respondam às necessidades da vida contemporânea, e o desenvolvimento de conhecimentos mais amplos e abstratos, que correspondam a uma cultura geral e a uma visão de mundo. (PCNEM - Brasil, 1999: 207)     Segundo os PCNEM, deve-se partir de experiências vivenciais imediatas para explorar conteúdos considerados mais universais. Por exemplo, questões como as problemáticas ambientais globais ou questões econômicas continentais veiculadas pelos meios de comunicação podem não fazer parte do entorno vivencial dos alunos, mas são na verdade assuntos da atualidade que são familiares aos alunos e que fazem parte de sua vida (PCNEM – Brasil, 1999: 208).

    Identificamos como contextos básicos das disciplinas que compõem essa área: o histórico de cada ciência, o pessoal, o profissional e o social. Consideramos como contexto pessoal aquelas questões relacionadas diretamente à vida individual do ser humano, às experiências domésticas e à saúde individual. O contexto profissional diz respeito a tudo que se relaciona com a formação profissional do estudante do ensino médio. Já o contexto social encerra questões que aparecem nas relações humanas da vida coletiva incluindo, por exemplo, as questões ambientais, o uso de tecnologias e o sistema produtivo.

    Em todas as disciplinas da área de ciências da natureza só há de comum a abordagem do contexto histórico. Os textos oficiais dos PCNEM sobre as diferentes disciplinas concordam explicitamente que as ciências devem ser ensinadas por intermédio da compreensão histórico-filosófica de sua produção. Por exemplo, para a disciplina Biologia, os autores do texto da proposta consideram que a história e a filosofia da Biologia possibilitam aos alunos a compreensão dos conhecimentos produzidos como verdades provisórias. Ao considerar esse contexto, a proposta deixa claro que é preciso deixar de lado a idéia de que os alunos devem aprender longas listas de conteúdos que abranjam a maior parte possível dos conhecimentos biológicos ou tecnológicos a eles relacionados: "Mais importante é tratar esses conhecimentos de forma contextualizada, revelando como e por que foram produzidos, em que época, apresentando a história da Biologia como um movimento não linear e freqüentemente contraditório". (PCNEM - Brasil, 1999: 225)

    Essa mesma preocupação com o enfoque histórico do estudo dos conhecimentos científicos também está presente no texto da disciplina Física dos PCNEM: "…é essencial que o conhecimento físico seja explicitado como um processo histórico, objeto de contínua transformação e associado às outras formas de expressão e produção humanas. (PCNEM – Brasil, 1999: 229)".

    Da mesma forma no texto relativo aos conhecimentos da disciplina Química, a história da ciência apresenta-se como um contexto fundamental a ser considerado: "A História da Química, como parte do conhecimento socialmente produzido, deve permear todo o ensino de Química, possibilitando ao aluno a compreensão do processo de elaboração desse conhecimento, com seus avanços, erros e conflitos". (PCNEM – Brasil, 1999: 240)

    No caso da Matemática, ainda que o enfoque histórico não seja enfatizado como nas demais disciplinas da área, é defendido que os alunos deverão desenvolver competências e habilidades relacionadas às "etapas da história da Matemática com a evolução da humanidade" (PCNEM - Brasil p. 251). A idéia geral defendida é de que a Matemática "se situa como linguagem, instrumento portanto de expressão e raciocínio, estabelecendo-se também como espaço de elaboração e compreensão de idéias que se desenvolvem em estreita relação com o todo social e cultural, portanto ela possui também um dimensão histórica." (PCNEM – Brasil, 1999: 251).

    Tal valorização da história da ciência expressa uma sintonia com as discussões mais recentes de ensino de ciências e podem se constituir efetivamente como uma possibilidade de ensino mais questionador. Como inúmeros trabalhos no campo de pesquisa em ensino de Ciências já concluíram, contextualizar historicamente essas ciências significa, no mínimo, possibilitar aos alunos a desmitificação dos conhecimentos científicos socialmente produzidos.

    Entretanto, cada uma dessas ciências apresenta suas peculiaridades e diferenças históricas. A idéias de uma história da ciência unificada centra-se em uma abordagem também unificada de ciência, há muito já questionada (Lopes, 1999). Assim sendo, a utilização do contexto histórico efetivamente como princípio integrador pode vir a gerar uma visão de ciência que se distancia de uma perspectiva mais crítica de educação. Justamente por se associar a uma perspectiva mais positivista de ciência unificada.[6]

    Na análise dos contextos cotidianos das diversas disciplinas da área de Ciências surgem diferenças quanto ao que cada texto oficial prioriza como contexto. A disciplina Biologia apresenta um significado de contexto cotidiano mais abrangente estabelecido nas relações entre o cotidiano próximo e o distante. São destacados aspectos referentes à saúde, ambiente, tecnologia e qualidade de vida individual e social, envolvendo também aspectos éticos:

Neste século presencia-se um intenso processo de criação científica, inigualável a tempos anteriores. A associação entre ciência e tecnologia se amplia, tornando-se mais presente no cotidiano e modificando cada vez mais o mundo e o próprio ser humano. Questões relativas à valorização da vida em sua diversidade, à ética nas relações entre seres humanos, entre eles e seu meio e o planeta, ao desenvolvimento tecnológico e sua relação com a qualidade de vida, marcam fortemente nosso tempo, pondo em discussão os valores envolvidos na produção e aplicação do conhecimento científico e tecnológico. (PCNEM – Brasil, 1999: 220)     Assim, aparecem marcadamente aspectos relacionados ao contexto da vida social como as questões ambientais relativas à qualidade de vida e saúde, bem como questões éticas relacionadas a essa ciência. A visão de um contexto cotidiano mais voltado para a vida pessoal de cada cidadão parece ser mais valorizados nas DCNEM: Outro exemplo refere-se ao conhecimento científico. Conhecer o corpo humano não é apenas saber como funcionam os muitos aparelhos do organismo, mas também entender como funciona o próprio corpo e que conseqüências isso tem em decisões pessoais da maior importância tais como fazer dieta, usar drogas, consumir gorduras ou exercer a sexualidade. A adolescente que aprendeu tudo sobre aparelho reprodutivo mas não entende o que se passa com seu corpo a cada ciclo mensal não aprendeu de modo significativo. (DCNEM – Brasil, 1999: 92)     As questões de formação profissional não aparecem no texto proposto para a disciplina, porém são mencionadas nas DCNEM: A produção de serviços de saúde pode ser o contexto para tratar os conteúdos de Biologia, significando que os conteúdos dessas disciplinas poderão ser tratados de modo a serem, posteriormente, significativos e úteis a alunos que se destinem a essas ocupações.(DCNEM – Brasil, 1999: 93)     Distintamente da proposta para a disciplina Biologia, o texto relativo aos conhecimentos específicos da disciplina Física aponta para uma opção de contexto mais relacionada a aspectos do cotidiano doméstico. Embora a proposta sugira que a Física deve levar os alunos a compreender a dinâmica do universo, o que se enfatiza de fato é o cotidiano mais próximo por meio da "compreensão do conjunto de equipamentos e procedimentos, técnicos ou tecnológicos, do cotidiano doméstico, social e profissional." (PCNEM – Brasil, 1999: 229). Ou seja, os acontecimentos e experiências da vida diária dos alunos são consideradas fundamentais como contexto. Entretanto a vida doméstica é apresentada com uma forte relação com a compreensão de aspectos mais abrangentes desta disciplina: "O ensino da Física deve discutir a origem do universo e sua evolução, mas também os gastos da conta de luz e o funcionamento de aparelhos presentes na vida cotidiana". (PCNEM – Brasil, 1999: 233)

    Tal enfoque também é corroborado pelas DCNEM na análise do papel atual do ensino médio, pois a falta de relação entre o que se aprende na escola e a vida é colocada por intermédio do exemplo do jovem surfista que não relaciona sua atividade esportiva com os conhecimentos de Física estudados na escola (DCNEM – Brasil, 1999: 92)

    O contexto de aprendizagem mais relacionado com a formação profissional dessa disciplina fica mais evidente nas DCNEM, em que a Física, o trabalho como contexto e a formação técnica profissional são valorizados considerando-se que "a produção de bens nas áreas de mecânica e eletricidade contextualiza conteúdos de Física com aproveitamento na formação profissional de técnicos dessas áreas." (DCNEM – Brasil, 1999: 93)

    Assim, na disciplina Física há um acentuado predomínio de valorização do contexto cotidiano doméstico do indivíduo em relação aos aspectos profissionais e sociais. Essa característica diferencia a apresentação dos conhecimentos de Física dos de Biologia e de Química. Também aparece na proposta para a disciplina Química o contexto como um sentido cotidiano relacionado ao individual e ao social: "…utilizando-se a vivência dos alunos e os fatos do dia-a-dia, a tradição cultural, a mídia e a vida escolar, busca-se reconstruir os conhecimentos químicos que permitiriam refazer essas leituras de mundo…" (PCNEM – Brasil, 1999: 242). No entanto, o que é apresentado explicitamente como enfoque predominante na apresentação desta disciplina são as relações dos conhecimentos de Química com o sistema produtivo:

É desejável, portanto, que o aluno desenvolva competências e habilidades de identificar e controlar as variáveis que podem modificar a rapidez das transformações, como temperatura, estado de agregação, concentração e catalisador, reconhecendo a aplicação desses conhecimentos ao sistema produtivo e a outras situações de interesse social. (PCNEM – Brasil, 1999: 242)     Abreu (2001), em sua análise sobre os conhecimentos de química apresentados nos PCNEM, expressa claramente que os textos específicos da disciplina Química se caracterizam por apresentar uma relação contextual profunda com os sistemas produtivos: As tecnologias constituem o principal eixo integrador dos conhecimentos da Química e entre os outros conhecimentos da área, através de temas relacionados à vida social e, principalmente, ao mundo do trabalho. Temas como metalurgia, solos e fertilização, combustíveis e combustão, tratamento de água, obtenção, conservação e uso dos alimentos, chuva ácida, fermentação e muitos outros são mencionados e indicados como fontes potenciais para a discussão integrada. (p. 35)     Essa maior ênfase no sistema produtivo é fruto da orientação dominante da proposta da Química ter sido conferida pelos trabalhos do GEPEC (1993, 1998). O mundo produtivo nos trabalhos do GEPEC, no entanto, não se caracteriza pela ênfase em uma formação profissional, tampouco em uma inserção acrítica nos processos de trabalho. Constituem, sim, um foco que prioriza o entendimento do papel social da Química como base para os processos tecnológicos. Tais orientações, no entanto, recontextualizadas nos PCNEM, tornam-se submetidas aos princípios de formação das competências para o mundo produtivo.

    As problemáticas ambientais também têm seu lugar nos conhecimentos de Química como resultado de complexas relações dos aspectos sociais, políticos e econômicos com os aspectos dos sistemas de produção. Um bom exemplo disto é apontado "nas relações entre produção de fertilizantes, produtividade agrícola e poluição ambiental…" (PCNEM – Brasil, 1999: 245).

    A disciplina Matemática se caracteriza no texto dos PCNEM por ser apresentada como uma ferramenta a ser usada por todas as disciplinas, especialmente as da área de ciências[7]. Apresenta também um caráter instrumental muito importante nas atividades profissionais. O texto ressalta aspectos contextuais relativos à capacidade de argumentar e também de ser cidadão ativo e "...agir como consumidor prudente ou tomar decisões em sua vida pessoal e profissional". (PCNEM – Brasil, 1999: 251)

    Assim, nossas análises dos textos oficiais dos PCNEM revelam que os diversos aspectos como ambiente, saúde, cotidiano doméstico, sistema produtivo e consumo priorizados de forma mais ou menos acentuada nas diferentes disciplinas, além de marcarem diferenças nas concepções de ensino de cada disciplina, também apresentam sempre uma relação comum com aspectos do mercado de trabalho. Na medida em que a abordagem dos contextos das diferentes disciplinas mostra-se tão distinta, concluímos que a própria contextualização apresenta-se como fraco princípio integrador: os documentos se mantêm efetivamente disciplinares. Tal fragmentação favorece a perspectiva unificadora conferida pelo contexto mais preconizado nas DCNEM: o contexto do trabalho produtivo e do atendimento às demandas do mercado.
 

Considerações Finais

    Efetivamente, a integração por intermédio da contextualização faz parte do discurso regulativo constituído pelos PCNEM e domina o discurso instrucional das disciplinas. Tal discurso não surgiu das equipes que produziram os documentos disciplinares. Já se consistia como um dos eixos estruturantes da primeira versão das DCNEM (Brasil, 1997). Também é interessante notar determinadas diferenças de valorização dos contextos quando comparamos os textos das diretrizes gerais e os textos específicos de cada disciplina. Assim, por exemplo, a valorização da formação profissional aparece mais claramente em disciplinas como a Biologia e a Física do que nos textos das DCNEM. Tais diferenças indicam contradições no interior da própria proposta curricular oficial.

    Como analisamos, a concepção de contexto dos PCNEM recontextualiza as concepções de valorização do cotidiano, dos saberes populares e da experiências dos alunos, associadas ao pensamento de Dewey, da perspectiva crítica de currículo e às perspectivas mais contemporâneas da pesquisa em ensino de ciências. Dessa forma recontextualizada, o objetivo conferido à contextualização é atuar como princípio integrador. Porém, como podemos concluir pela análise dos diferentes contextos nos documentos disciplinares, a contextualização mostra-se diversificada e fragmentada. Cada disciplina é apresentada com aspectos contextuais que reforçam na verdade a sua estrutura como disciplina. Ainda que possam contribuir para a valorização das relações do conhecimento escolar com a vida dos alunos, pouco contribuem para uma interpretação mais integrada do conhecimento.

    O único contexto que se mostra realmente comum nessa proposta curricular para o nível médio de ensino refere-se à orientação para o mundo produtivo, definida nas diretrizes curriculares nacionais e na opção pelo currículo por competências. Por esse princípio, estabelece-se uma submissão do conhecimento ao mercado da era pós-industrial e limita-se a potencialidade crítica do conhecimento escolar. Esse conhecimento acaba por ser compreendido como o conhecimento que se adquire no contexto de aprendizagem para que seja usado como ferramenta pelo indivíduo nas suas futuras atividades profissionais.


Referências

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Contato com as autoras:
Núcleo de Estudos de Currículo – NEC / Faculdade de Educação da UFRJ
http://www.cfch.ufrj.br/nec
e-mail: nec@ufrj.br
 

[1] Este artigo é derivado da pesquisa “A Organização do Conhecimento Escolar no ´Novo Ensino Médio”, realizada sob coordenação da Profa. Alice Casimiro Lopes, como parte das atividades do Núcleo de Estudos de Currículo – NEC da UFRJ (http://www.cfch.ufrj.br/nec), com auxílio financeiro do CNPq.
[2] Doutora em Educação pela UFRJ e professora adjunta da Faculdade de Educação da UFRJ.
[3] Mestre em Educação pela Kansas University e professora do setor curricular de Ciências Biológicas do Colégio de Aplicação da UFRJ.
[4] Professora de Química da rede estadual do Rio de Janeiro.
[5] Para Bernstein (1996, 1998a) um texto é qualquer representação pedagógica expressa pela fala, pela escrita, visualmente, espacialmente, nas posturas assumidas, na maneira de vestir. Essas representações pedagógicas expressam materialmente as relações sociais. Bernstein enfatiza esse conceito de forma a diferenciar de discurso, que se refere a uma categoria na qual todo sujeito é posicionado  e reposicionado e que confere forma às relações de poder e de controle geradas pelo princípio da divisão social do trabalho e por suas relações sociais intrínsecas (Domingos et al, 1986). Para Bernstein, o discurso não é meramente um texto, mas um conjunto de regras que regula a produção, reprodução, distribuição, transmissão, aquisição, avaliação e inter-relação dos textos. No caso deste artigo, invariavelmente quando utilizamos o termo “texto” estamos nos referindo, como usualmente, às produções escritas. Mas é importante ter em mente que essa referência não é restrita: muitas vezes são transferidos de um contexto a outro textos que não os escritos.
[6] Em um dos primeiros documentos de fundamentação em apoio a reforma do ensino médio (Carvalho, s.d.), a idéia da inclusão da história da ciência e da tecnologia passava por uma perspectiva mais ampla, a qual se cruzava inclusive com a história da cultura e da civilização. Essa idéia não se desenvolveu posteriormente nos PCNEM.
[7] Provavelmente, tal interpretação da Matemática como uma linguagem foi o que levou a sua inserção inicial na área de Códigos e Linguagens.