A CRÔNICA DA DISCIPLINA: UMA EXPERIÊNCIA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE CIÊNCIAS

Elisabeth Barolli
(DEME – UFSCar e CENPEC)

Marisa Franzoni[1]
(FE – USP)

Alberto Villani[2]
(IF – USP)

Denise de Freitas[2]
(DEME – UFSCar)

Resumo


        Tendo como referência a conceituação de professor reflexivo, foi desenvolvida, no decorrer do 1o semestre de 2000, uma experiência didática numa das disciplinas do curso de licenciatura na UFSCar, com o propósito de ajudar os licenciandos a planejar, refletir sobre e interpretar sua prática de ensino. A experiência consistiu na elaboração sistemática, pelos professores da disciplina e por dois pesquisadores, de textos relatando e interpretando episódios ocorridos em sala de aula, nos estágios e nos encontros extra-classe com os estudantes. Esses textos eram distribuídos aos licenciandos em cada aula subseqüente e, eventualmente, comentados. O presente estudo analisa os efeitos que esses textos provocaram nos futuros professores e fornece pistas para os pesquisadores que pretendem atuar na formação inicial de professores, na perspectiva de uma prática reflexiva.
Abstract
By drawing on the concept of reflexive teacher, an experience has been carried out in a class of the UFSCar Teacher Education Course along the first semester of 2000, so that to-be teachers could better plan, think over, and interpret their teaching practice. Two professors and two researchers wrote small narrative reports that described and interpreted what had happened during class, extra-class meetings, or during trainees’ own classes. Such reports were handed in to students at every subsequent course class and occasionally commented. This paper analyses the effects that such texts produced onto students and offers some hints for researchers who wish to carry out a reflexive practice approach in their teacher education courses.
Introdução
A idéia de professores como ‘profissionais reflexivos’ apareceu há bastante tempo na literatura educacional (Schon, 1983;1992). Segundo esse autor, o processo de conhecimento profissional do professor desenvolve-se na ação, pois a complexidade da sala de aula comporta situações problemáticas que requerem decisões em um ambiente marcado pela incerteza, instabilidade, singularidade e permeado por conflitos de valores. O saber pedagógico, então, estaria sendo elaborado pela reflexão na ação e reflexão sobre a ação, isto é, pela reflexão empreendida, durante e depois da ação. As situações em que o saber do professor não se mostra apropriado, são ensejos para que ele possa efetuar uma reflexão-na-ação, podendo assim reestruturar e produzir conhecimento.
Conhecimento-na-ação, para Schön (1992), é um conhecimento utilizado efetivamente pelos professores em sua profissão, que difere, em parte, do conhecimento teórico cientificamente produzido. Como se trata de um conhecimento que está implícito na ação, torna-se difícil explicitá-lo para outros profissionais e, até mesmo, para outros professores.

 

Perrenoud (1999) concebe a prática reflexiva “como um funcionamento estável, necessário em ‘velocidade de cruzeiro’ e vital em casos de ‘turbulências’”. Para ele a reflexão do professor refere-se à “sua relação com o saber, com as pessoas, o poder, as instituições, as tecnologias, o tempo que passa, a cooperação, tanto quanto sobre o modo de superar as limitações ou de tornar seus gestos técnicos mais eficazes”(pp.10-11). Em síntese, a reflexão na ação tende a desvincular o professor do trabalho prescrito, das rotinas automáticas, permitindo-lhe construir seu próprio caminho em função das circunstâncias; a posteriori, a reflexão permite analisar mais tranqüilamente os acontecimentos e construir saberes a partir de situações semelhantes.
 

Para Gilbert (1994), o modelo de Schön para compreender o desenvolvimento do conhecimento profissional, elimina a dualidade entre os meios e os fins, o saber e o fazer, a pesquisa e a ação, reunindo-os em um único processo: o da reflexão. Aponta que, no campo das investigações sobre formação de professores, os pesquisadores que primeiro se utilizaram do conceito de Schön sobre o professor reflexivo, trabalhavam no contexto da abordagem libertadora para a educação. Dessa forma, os programas seriam mais efetivos se focalizassem explicitamente o desenvolvimento da habilidade, nos professores, para refletirem sobre suas ações e sobre o contexto social e cultural mais amplo dentro do qual o ensino está inserido. Com isso, poder-se-ia ter informações mais adequadas sobre os novos desafios que perturbam o sono dos professores envolvidos com a escola pública: a onda de violência, o clima de ameaça e de impunidade que entraram na sala de aula.
 

Atualmente, o conceito de reflexão tem sido usado amplamente nas pesquisas sobre formação de professores e orientado a implementação de programas de capacitação profissional, como um meio de ajudar professores a explorar e melhorar aspectos de sua prática. Um instrumento muito utilizado na formação inicial de professores, para incentivar o desenvolvimento de uma prática reflexiva, é a observação de uma sala de aula e a elaboração de um correspondente relatório que analisa as atividades didáticas desenvolvidas. O ponto mais importante é o retorno que o responsável pela formação dá para o aprendiz, pois este tem a possibilidade de confrontar seus critérios e interpretações com os daquele, questionando e até reorganizando aos pouco seu próprio saber.

 
Um outro exemplo de prática dessa reflexão na ação, pode ser encontrado em Freitas (1998), que discute a função da análise conjunta de professores e licenciandos em torno das gravações das aulas do Estágio Supervisionado. As discussões geradas criam condições para uma operação mais delicada: a exposição simultânea e um confronto dos saberes tanto dos futuros professores, quanto do professor, exigindo deste último coerência, sensibilidade e adaptação. Uma prática em parte semelhante é discutida por Pacca & Villani (1996), ao abordarem o papel da elaboração do “Diário de Bordo”, um documento constituído pelos relatos dos professores, aos colegas e aos responsáveis pela formação em serviço, sobre o trabalho de sala de aula. Neste caso os coordenadores, para serem eficientes, procuram localizar os significantes que amarram o saber dos professores, buscando introduzir questões ou interpretações que facilitem a superação de esquemas explicativos.
De um modo geral, os exemplos citados, têm em comum uma exposição inicial do aprendiz, que implicitamente revela e desnuda seus critérios, a partir da qual o docente intervém para que algo de novo apareça no discurso do primeiro. E se o processo fosse realizado ao contrário? Ou seja, e se fosse o docente que inicialmente se expusesse, revelando implicitamente ou explicitamente seus critérios de análise, de modo a criar condições para que o aprendiz pudesse concordar, discordar ou deslocar o foco?

 

Uma experiência didática com esse espírito foi desenvolvida por um grupo de pesquisadores (os autores desse trabalho) no decorrer de um semestre, por meio de uma disciplina que integrou os cursos de Prática de Ensino de Ciências e de Física na Universidade Federal de São Carlos. A experiência consistiu na elaboração sistemática de textos que relatavam e interpretavam, do ponto de vista de quem estava coordenando a disciplina, os episódios ocorridos na sala de aula, nos estágios e nos encontros extra-classe, que eram realizados regularmente com cada grupo de estudantes toda semana, como forma de contribuir para o planejamento, execução e análise dos estágios. Esses textos eram distribuídos para os licenciandos, lidos em voz alta e, eventualmente, comentados durante cada aula. O objetivo desse trabalho é investigar os efeitos que esses textos provocaram nos futuros professores e fornecer pistas para os pesquisadores poderem atuar na formação inicial de professores na perspectiva de uma prática reflexiva.
 

As Crônicas da Disciplina 




A denominação "Crônica da Disciplina"[3] para os textos elaborados, provém de uma de suas características principais: relatar de maneira possivelmente ‘tocante’ os eventos principais da disciplina e refletir sobre os mesmos. Foram elaboradas pelo grupo de pesquisa, 14 Crônicas, cada uma com duas páginas e aproximadamente 900 palavras. A produção das Crônicas obedecia a um roteiro bastante geral: um dos membros do grupo elaborava o primeiro esboço, no qual os episódios ocorridos nas aulas e encontros com as professoras eram sistematicamente apresentados. Esse esboço constituía-se num subsídio utilizado pelo grupo de pesquisa para posterior discussão e elaboração de uma versão final que incorporava modificações e novas informações que não haviam sido coletivizadas, ou algo relevante que não havia sido percebido ou, ainda, alguma discordância quanto à interpretação dos eventos. Neste item apresentaremos inicialmente as Crônicas focalizando seu conteúdo mais significativo, sem explicitar as razões e os contextos que induziram os elaboradores a veicular essa determinada produção.
A primeira Crônica, entregue aos alunos já no segundo dia de aula, explicitava sua intenção:

 

“Esperamos que com a ajuda desse documento você tenha mais facilidade para: - Elaborar o planejamento didático do Estágio Supervisionado; Registrar seu processo individual de aprendizagem, apontando os eventos mais marcantes; Produzir materiais escritos: diário individual e relatório grupal; Levantar questões a serem discutidas em sala de aula.”
 

Os textos, via de regra, começavam pela explicitação do processo de planejamento da disciplina integrada, que estava sendo desenvolvido em conjunto pelas professoras, com a participação dos dois outros pesquisadores.
 

“Durante as conversas para preparação do planejamento da disciplina, surgiu a idéia de que cada grupo de licenciandos seria uma miniatura de escola” (Crôn. I)
 

Em outro momento, o texto procurava retratar alguns dos episódios de aula, como por exemplo:
 

 
"... Os novos alunos, respondendo à solicitação das professoras, rapidamente se juntaram aos outros grupos existentes ou formaram novos. A discussão sobre os conceitos de poluição e qualidade de vida começou nos pequenos grupos" (Crôn. II)
Também eram sugeridas questões que questionavam alguns acontecimentos das aulas. Tais questões acenavam tanto com preocupações específicas, como o interesse e a dispersão dos próprios estudantes, quanto com possíveis generalizações, como ilustram os exemplos a seguir.

 

“Percebemos que os objetivos, assim como o planejamento das primeiras aulas, foram pouco esmiuçados por parte dos grupos. Ou seja, faltaram contribuições e detalhes que preenchessem cada uma das etapas. Tarefa difícil, que exige um investimento prolongado. A tarefa fica ainda mais difícil se os companheiros de grupo não estão presentes e se a classe permanece em silêncio, vocês não acham?” (Crôn. V)
 

“Dessa vez conseguimos realizar tudo aquilo que estava proposto para a aula. Isto nos deixou satisfeitos. Quando o professor se sente satisfeito?” (Crôn. IV)
 

Detalhes sobre o movimento que ocorria entre professoras e estudantes quando, fora da sala de aula se encontravam para discutir o planejamento, também eram contemplados.
 

“Os dois grupos do NAI[4] se reuniram em conjunto para discutir a primeira aula que deveria ser 'surpreendente' e cativante para os meninos. A idéia era acoplar a música de um rap, com suas palavras evocantes sobre qualidade de vida e um jogo (RPG) envolvendo conflitos de uma comunidade relativos à poluição ambiental (...) À noite, no encontro com o grupo da Esterina I (5as séries), havia tantos caciques (professoras e pesquisadores) quanto índios (estudantes). O tom foi dado pelo bombardeio de perguntas sobre o planejamento da primeira aula.(...) A mesma coisa aconteceu com o grupo do CDCC que, inclusive, já fez um folder e um cartaz para a divulgação de seu curso. A impressão é que os grupos deram um salto no planejamento ao se confrontarem com alguns dos possíveis eventos de sala de aula elaborando uma linha de conduta”. (Crôn. VII)
 

Reflexões e recados teóricos também se constituíram num dos elementos freqüentes das crônicas.
 

“Em geral, mudamos um planejamento quando uma atividade preparada parece não encontrar na classe o clima adequado para ser aproveitada ou quando uma nova atividade parece mais promissora do que as preparadas. De fato, a escolha de manter ou mudar o planejamento é subjetiva, por isso não tem um método que garanta o sucesso do professor nesse sentido.” (Crôn. III)

“Quando o professor se sente satisfeito? Sem dúvida quando ele consegue realizar seu planejamento. Entretanto, existe uma satisfação maior quando ele percebe que seus alunos estão acompanhando as atividades com atenção. A satisfação parece maior ainda quando os alunos se expõem apresentando suas idéias e reflexões. Uma situação especial acontece quando as contribuições dos alunos entram em ressonância e aparecem idéias novas e compartilhadas”(Crôn.IV)
 

Algumas mudanças foram introduzidas, a partir da Crônica VIII, principalmente no que se refere à linguagem que passou a ser mais coloquial, e até poética.
 

“A aula foi um "happening" de cabo a rabo. Começou pela leitura da Crônica. O silêncio foi total. Depois, uma das professoras enganchou direto a encenação com a outra. Os temas abordados eram quentes e giravam sempre ao redor da socialização das questões dos estudantes, manifestadas ou intuídas” (Crôn.VIII)
 

“Dizia um grande filósofo tupiniquim: Difícil é tirar o branco do papel. Que o diga a Marisa que quase toda a semana traz a primeira versão da Crônica da aula, mesmo sabendo que na enésima versão muitas coisas irão ficar diferentes. (...)Quando a gente sonha sozinho, não passa de um sonho. Quando a gente sonha junto é a realidade que começa.” (Crôn. X)
 

Nessa fase, as falas dos licenciandos começaram a aparecer com maior freqüência.
 

“Após o comentário do Alessandro e da Alice a turma foi no embalo. Fernando, após observar que o jogo coordenado pela Pietra funcionou muito bem, perguntou perplexo: Transformar a aula em play-ground? Se não tiver capacidade de inventar um jogo, não tenho capacidade de dar aula? E a Flávia rebateu: Se o aluno não estiver interessado é papel do professor gerar motivação.” (Crôn.X)
 

Dessa forma, experiências individuais eram relatadas em detalhes ou cobranças eram colocadas.
 

“No encontro semanal do grupo do Esterina, assistimos alguns trechos das aulas. Houve discordância em relação à disciplina da classe: o André sustentava que na sua aula a bagunça era menor do que as meninas diziam ter percebido. No entanto, ao assistir a gravação o André comentou que, de fato, não havia notado que tinha um pouco mais de bagunça do que ele acreditava. (Crôn. X)
 

“.. a solidariedade do grupo não precisa chegar ao ponto de deixar a sala de aula quando uma companheira o faz!.... O grupo de Gandi e Paloma, pela primeira vez, apareceu no encontro semanal. Infelizmente a Denise estava com problemas de Departamento urgentes e não pôde atendê-los. Esperamos que isso não desanime o grupo a aparecer nas aulas e nos encontros para colocar os problemas efetivos do estágio(Crôn.IX)
 

A escolha por uma mensagem que pudesse, dentro do possível, refletir mais profundamente sobre as práticas dos estudantes, foi perseguida sobretudo no final.
 

“Logo após ter dado espaço para os desabafos, nos parece necessário dar uma volta por cima e aproveitar da experiência para rever nossa concepção de educação, de ensino, de aprendizagem e de professor. Parece que o interesse de todos ficou amarrado ao visível: todo mundo interessado ao falar de suas aulas. Mas é possível ir além disso, construir um saber que aproveita da experiência e do conhecimento disponível na literatura, para entender a realidade da escola, com seus problemas aparentemente insolúveis.” (Crôn.XII)
 

Às vezes com mensagens sofisticadas.
 

“Todo esse trabalho final [de avaliação] não é o chantilly da experiência: é um ingrediente essencial do bolo. Se não conseguirmos entender a articulação entre nosso ‘planejamento’ e nossa ‘presença’ na sala de aula, teremos avançado muito pouco em nossa formação, rumo ao ‘professor reflexivo’ almejado pela literatura atual. Sobretudo, devemos entender quando ‘cedemos de nosso desejo’ de ensinar e passamos a esperar que o céu nos substitua.” (Crôn. XIII)
 

Ou com imagens pictóricas:

“Qual imagem temos da experiência realizada, nesse semestre, por professores, pesquisadores e licenciandos na disciplina integrada de Prática de Ensino? Essa imagem parece ficar melhor definida quando pensamos na construção de um mosaico, desde a preparação da variedade de seus componentes até a construção de uma imagem articulada que chame a atenção. (...) O objeto efetivamente construído por professoras, licenciandos e colaboradores foi um mosaico, composto de três desenhos diferentes e poderia ter como título: Cenas de Educação Cotidiana: na Escola, no Centro e no Núcleo.(...) Na imagem do nosso mosaico houve problemas na construção do fundo que sustenta a articulação e a composição entre os vários desenhos. Perdemos a chance de efetivamente realizar uma experiência de construção coletiva, na qual a própria individualidade é revista na direção de um crescimento pessoal e coletivo. (Crôn. XIV)
 

O Problema 



Em resumo, as Crônicas constituíram-se num instrumento variado e até sofisticado que procurava estabelecer uma comunicação com os licenciandos sobre os elementos que caracterizam a prática de um professor, tais como os critérios de planejamento, condução, sustentação e avaliação do processo de aprendizagem, ou seja, os saberes docentes.
Após cada estudante receber a Crônica referente à semana anterior, uma das professoras ou um licenciando realizava a leitura em voz alta, o que quase sempre foi feito no início da aula. Em geral, eles acompanhavam a leitura permanecendo num ‘denso’ silêncio com raros movimentos de dispersão. Terminada a leitura, apesar de uma das professoras perguntar se alguém queria fazer comentários, os estudantes não se manifestavam quanto ao seu conteúdo, nem se concordavam ou não com a análise e interpretação de seus próprios processos, mesmo quando as Crônicas refletiam sobre a dispersão dos estudantes em algumas atividades da aula anterior, ou sobre a satisfação com que haviam participado de outras atividades, como por exemplo, os estágios. Essa indiferença dos alunos, por assim dizer, deixava os pesquisadores incomodados e ansiosos por encontrar uma forma de elaborar as Crônicas de modo a suscitar um debate em torno das questões por elas levantadas. O curso, no entanto, seguia sem que as professoras realizassem uma intervenção mais direta nesse sentido, embora o grupo ficasse em dúvida quanto a manter essa postura. Decorridos cerca de dois meses do início da disciplina, uma das professoras argumentou que na sua interpretação as Crônicas haviam sido originalmente pensadas sem a perspectiva de cobrar dos alunos um posicionamento em relação a elas. O grupo, levando em conta esse argumento, abandonou a expectativa de intervir explicitamente junto aos alunos, deixando claro, inclusive, essa posição na própria Crônica. Assim, as Crônicas seriam um exemplo silencioso e sistemático de uma prática reflexiva, que buscava atingir implicitamente os alunos.
“A Crônica foi pensada como um presente. Esperávamos que vocês gostassem e que ela fosse útil, pois achávamos que vocês não iriam encontrar em nenhum outro lugar um material como este. Mas presente é sempre um risco: não se cobra.”(Crôn.VII)

 

A equipe avaliava a influência da Crônica a partir das observações que apareciam nos diários individuais e dos comentários bastante eventuais sobre o instrumento durante os encontros extra-classe. Na parte final da disciplina alguns licenciandos começaram a se referir às Crônicas com maior freqüência, sobretudo para saber se suas falas ou ações tinham sido mencionadas. Somente na leitura da última Crônica, que além de apresentar uma avaliação da Disciplina do ponto de vista da equipe, convocava os alunos para fazerem suas próprias avaliações, houve um diálogo efetivo.
 

Como interpretar o silêncio permanente dos estudantes? Será que gostaram e aproveitaram? Será que se estabeleceu alguma forma de diálogo por meio desse tipo de instrumento? Será que os textos ajudaram os licenciandos em seus planejamentos, em suas aulas e em suas avaliações? Será que a opção de não intervir explicitamente durante as aulas para incentivar as reflexões dos estudantes foi eficiente e deixou as marcas esperadas?
 

Metodologia de Pesquisa e Análise dos Dados



Para responder a essas perguntas temos como dados da experiência as discussões entre os pesquisadores durante a elaboração das Crônicas, suas repercussões em sala de aula, as observações e anotações realizadas ao longo das aulas e encontros extras e, finalmente, as entrevistas gravadas em áudio e vídeo com alguns estudantes da disciplina. Nessa análise focalizaremos principalmente essas últimas[5]. Foram realizadas oito entrevistas tentando escolher aleatoriamente um representante de cada grupo. Para interpretar e analisar os dados, estaremos, concomitantemente à apresentação dos relatos, fazendo uma discussão dos mesmos a partir de nossas observações, anotações e discussões coletivas.
Uma das alunas, CE, afirmou ter lido em sala e em casa todas as Crônicas. Em sua visão, o documento era uma forma das professoras demonstrarem sua preocupação com os estudantes, tendo sido, ao mesmo tempo, um auxílio para a elaboração dos relatórios individuais.
É com a gente, com o processo da gente; ver o que a gente estava sentindo da disciplina, o que estava passando na nossa cabeça. É que elas se preocuparam em estar dando. Eu acho que a Crônica é uma forma de estar valorizando mesmo a gente, dar uma satisfação. Dar um retorno.... Apesar de nunca ter prosseguido grandes discussões, eu acho que nunca deixou de ser uma forma delas mostrarem preocupação com a gente...”

 

“..., quando eu precisava retomar alguma coisa elas ajudaram muito.
 

Para CE, as perguntas levantadas nos textos tentavam explicar algumas coisas:
 

“Problemas que estavam acontecendo, não só agora na educação, mas, como a evasão, por exemplo... Várias Crônicas colocaram isso. Ainda que a pessoa não colocasse nada na sala de aula, servia para a gente poder pensar e responder no relatório individual.
 

A teoria, subjacente às Crônicas, no entanto, parece não ter chamado muito a atenção de CE:
 

“Nunca parei para pensar nisso. Não via pois nunca parei para pensar. A não ser naquele dia em que as professoras discutiram a teoria, que elas entraram meio que representando. Se não me falha a memória elas estavam falando sobre teoria. ...Nessa foi mais fácil perceber, mas nas outras não”.
 

Para FA, os textos ajudaram somente na elaboração dos relatórios finais (individual e coletivo).
 

“ Não, eu não li todas as Crônicas. Eu não tinha nenhum interesse nelas. Para mim era muita reflexão. Na verdade eu li para fazer o outro.
 

De acordo com essa estudante a Crônica superestimou o trabalho de alguns licenciandos e excluiu seu grupo e a si própria do grupo-classe:

“Se a gente aparecia era só para coisa ruim.... Não dá nem vontade de ler. O professor que submete os alunos aos fracassos repetitivos, desmotiva os alunos. E é o que está acontecendo. Eu vi com a gente e isso é exclusão. Bom professor seria quem incluiria o aluno no grupo e não faria a exclusão...”
 

Outra estudante, NE, introduziu espontaneamente o assunto quando falava sobre sua dificuldade com as leituras em geral:
 

" Gostar de ler eu gosto, mas eu acabo fazendo outra coisa. Eu tenho dificuldade com a leitura. Depois que a gente lê a gente fala: Pô, é legal. E também tem uma frase que estava na Crônica que, quando a gente vai planejar uma aula a gente se lembra de alguns textos que a gente acha importante; e não é gastar tempo, mas é importante investir nisso".
 

Ao se referir às Crônicas, NE comenta que sua relação com elas ficou restrita a sala de aula.
 

"Na hora de fazer a leitura na sala, é verdade o que tinha lá, mas era algo passageiro. Poderia ser aproveitado. Eu achei que era mais para a hora da aula. Mas eu não levei para fora. É interessante, mas é mais para a hora"
Ao mesmo tempo, essa estudante revela que as perguntas apresentadas nos textos tiveram sentido para ela:

 
“Se bem que têm umas perguntinhas que eu gostaria de responder. Por exemplo: Por que será que não gerou interesse? E eu tinha duas hipóteses.
NE, no entanto, faz referência ao incômodo que em alguns momentos as Crônicas causaram:

 

“Me deixava angustiada com as cobranças. Foi lida mas nenhum questionamento foi feito. E até falei para a professora: 'A gente leu mas não temos o que questionar'! Algumas perguntas eu acho que poderiam ser respondidas.
 

Ela, no entanto, sugere algumas mudanças.
 

“Após a leitura da Crônica parece que era uma obrigação nossa comentar coisas que a gente não estava fazendo. Se os alunos fossem chamados a responder ou passadas algumas perguntas... 'Então, o que vocês acham'? E não deixar: 'Alguém quer fazer uma pergunta'? Acho que se direcionar pode dar ou virar alguma coisa.”
 

NE não faz referência a sua utilização para elaborar seus relatórios individuais, apesar de em alguns momentos ter se dirigido às professoras com dúvidas nesse sentido e destacar algumas passagens das Crônicas. Também, em sala de aula, seu grupo pesquisou nos textos anteriores idéias que poderiam compor o relatório coletivo.
 

Para IA, as Crônicas ajudaram na elaboração de seus relatórios individuais e coletivos. Para ela, era surpreendente analisar os fatos comentados, pois era possível completar seus registros de aula.
 

“Eu faço anotações em aula e quando eu lia a Crônica ficava sempre faltando alguma coisa no que eu escrevia. Nossa, será que eu dormi na aula? Como alguém conseguiu ver tudo isso? Realmente, isso aconteceu. Quer dizer, a gente no grupo quando tentava ver a aula do outro, era difícil. Como vocês conseguiam?”
 

De acordo com essa aluna, foi nas Crônicas que efetivamente a teoria trabalhada no curso mais apareceu:
 

“Foi o que mais encaixou a teoria. As perguntinhas delas. A teoria, por exemplo, sobre grupos. Eu nem sabia que existia uma teoria sobre grupos.”
IA mostrou-se extremamente satisfeita com a idéia da Crônica. Para ela, ajudou a conhecer pessoas, a refletir. Além disso, gerava curiosidades sobre o processo do outro e seu próprio:

 

“Dá uma idéia do processo da gente. Acho que foi o melhor da aula. Idéias legais. Coisa muito bem bolada. A gente ia logo procurar o que falava da gente. Eu lia antes do pessoal ler. Você aluno perde a noção da sala de aula. Lendo alto, vai ajudando, vai pensando. Aquelas falas que se encaixavam. Nossa, alguém falou isso? É realmente. Na aula mesmo a gente não pensa, mas depois vai lendo e percebe o que aconteceu, dá uma idéia. Foi a parte mais interessante da aula. Eu não conhecia um monte de gente lá. Quem é Fulano? Quem é Sicrano? Tinha gente lá que eu nunca tinha ouvido a voz.”
 

Na visão da aluna DE, os textos tiveram principalmente o papel de ajudá-la na elaboração dos diários e dos relatórios coletivos. Para esses últimos, foram um verdadeiro guia.
 

“Li todos. Li nas aulas e em casa para fazer os relatórios. Eu achei legal. Eu li em casa para fazer o relatório individual. É uma coisa assim, bem descritiva. Tinha questões... Tinha uma descrição detalhada da coisa, da aula e algumas coisas mais relevantes do que tinha acontecido. A gente [grupo de trabalho] combinou de cada um descrever a sua aula [do Estágio], detalhar, como se fosse uma Crônica. É, agora a gente vai juntar o que cada um fez para fazer o relatório do grupo. Quer dizer ela está guiando o nosso relatório.
 

Ao mesmo tempo em que afirma não ter estudado no curso nenhuma teoria sobre formação de professores, a aluna admite que os elementos teóricos estiveram presentes, embora não soubesse explicitá-los. Teve dúvidas sobre qual seria a melhor maneira de apresentar a teoria para que fosse possível tirar melhor proveito:
 

“Deu para enxergar a teoria ao longo dela, mas se você me perguntar o que [qual teoria] eu não vou saber dizer. Quer dizer, ela não estava pronta, na forma que a gente está acostumada, mas se tivesse explícita eu não sei, não tenho certeza, mas acho que não seria tão legal. Acho que desmotivaria um pouco.”
 

Para DA, o valor efetivo das Crônicas foi integrar, socializar e baixar a ansiedade dos futuros professores diante da experiência de dar aulas.
 

“No começo ela passava uma impressão e eu fiquei com essa impressão até o fim de que ela servia para unir mais a turma. As Crônicas mostravam que todo mundo estava fazendo a mesma coisa, atividades diferentes, lugares diferentes... porque quando você faz Prática de Ensino você fica muito isolado no seu grupo, e de repente a gente não sabe o que os outros estão fazendo; e você se sente meio isolado, assim fazendo uma coisa sozinho, você e seu grupo. Quer dizer, o planejamento, as aulas, aquilo, aquilo outro, será que eles [os alunos] vão gostar... Mas esse texto comentava as experiências dos outros grupos, o que os outros grupos estavam fazendo e então mostrava que os outros estavam passando pelas mesmas dificuldades. A gente fica meio isolado. Eu achei que serviu para dar uma integrada e até uma certa suspirada: 'não sou só eu que estou sentindo tudo isso'.”
 

Além disso, atribui às Crônicas um valor metodológico.
 

“Tinha um valor metodológico,.... como se fosse um roteiro que estivesse sendo cumprido, entendeu? Na primeira semana elas [professoras] passaram quais eram as metas que deveriam ser atingidas durante o curso, até quando a gente vai discutir, quando a gente vai para o estágio; então quando as Crônicas começaram a aparecer parece que elas estavam mostrando o que estava sendo atingido desde o começo do curso.”
 

Por fim, ensinam como fazer um relatório e ajudam na condução do processo de ensino.
 

“Acho que elas mostram um pouco com se faz um relatório numa experiência dessa. É diferente de você ficar dando seis meses de aula numa disciplina e fazer um relatório. Quer dizer, é como um roteiro com início, meio e fim. Acho que ela encaminhou a gente para aquilo que vocês queriam.
 

Para TO, os textos ajudaram principalmente na realização da avaliação final.
 

“Eles ajudaram, principalmente para a avaliação. Quando eu fui fazer a avaliação do curso, que é feita no final, eu não lembrava do que tinha se passado, então eu fui relendo, marcando coisas que foram acontecendo na aula. Tinham perguntas na avaliação que faziam referência ao começo do curso e então eu precisava estar lendo para responder as perguntas. Eu fiz poucas anotações durante o curso então eu juntava com o que tinha escrito para fazer a avaliação.”
 

Compartilha com as idéias de DA no que se refere às trocas de experiências.

“Ela teve mais valor no final, para fazer a avaliação. Mas eu li também durante o curso, principalmente para ver o que os outros estavam passando. Ela servia de referencial para ver a experiência que cada um estava passando, apesar de cada um estar numa realidade diferente.”
 

No entanto, lamenta que não pôde efetivamente utilizar dos conhecimentos comentados nas Crônicas sobre os demais grupos, uma vez que seu planejamento já estava pronto ou fechado:
 

“Já que o nosso planejamento estava pronto, a gente não modificou a partir da experiência dos outros. Quer dizer, se desse tempo, a gente teria mudado. Mas ficou marcado que se a gente tivesse feito teria sido super válido... Se a gente tivesse parado para remodelar, acho que a gente teria ganho mais.”
 

Para TO, as Crônicas foram uma descrição das atividades dos grupos de trabalho e para as professoras um instrumento didático.
 

“Deve ser uma ferramenta para as aulas delas, para o planejamento delas. Assim como um vídeo, um instrumento didático, se é que pode colocar assim. Foi um suporte para o planejamento delas. Elas faziam parte do planejamento mas para mim era um referencial sobre as experiências dos outros grupos. Porque a gente não teve acesso ao planejamento dos outros grupos; lá pelo menos tem o registro.”
 

Na interpretação de LI, os textos foram uma forma das professoras prestarem atenção nos estudantes, fazendo-os refletir. LI percebeu que as Crônicas tinham conteúdo, mas não soube dizer ou dar nomes a eles. No entanto, as utilizou para suas produções individuais e coletivas.
 

“Não sei dizer que conteúdo que tinha nas Crônicas.”
 

LI também alegou que foram importantes para se perceber o que os demais grupos estavam elaborando, o que considerou fundamental para o desenvolvimento das aulas.
 

Discussão dos Resultados 



Uma maneira de analisar os relatos dos licenciandos pode ser perguntando: os objetivos iniciais do grupo de pesquisa em relação às Crônicas foram alcançados? Ou seja, os textos serviram para os estudantes aperfeiçoarem seus planejamentos, elaborarem seus próprios relatórios e avançarem em sua reflexão sobre ser professor?
Os comentários dos licenciandos e a observação em sala de aula e nos grupos convergem na seguinte síntese. As Crônicas ajudaram efetivamente os estudantes no que se refere às produções dos diários individuais e coletivos. Parte dos licenciandos percebeu a presença das questões que buscavam aprimorar uma reflexão sobre o processo individual e coletivo, porém a reflexão nem sempre "saiu" da sala de aula, ou seja, não serviu para pensar situações extra-classe. Finalmente, nenhum dos entrevistados fez qualquer referência verbal às Crônicas enquanto suporte para a elaboração do planejamento didático; frente às dificuldades que os grupos sentiam para realizar essa tarefa, os textos não eram "lembrados", apesar de alguns deles terem apresentado um conjunto de questões nessa direção. Enfim, os objetivos iniciais vislumbrados pelas professoras e pelos pesquisadores foram atingidos somente em parte.
Ao mesmo tempo, as entrevistas sinalizam para algumas novidades à medida em que alguns dos aspectos apontados pelos licenciandos não estavam previstos explicitamente nos objetivos iniciais das Crônicas. Pelas palavras dos estudantes, podemos perceber que vários deles encontraram outros significados na atuação docente via Crônica; mais do que isso, parece que este instrumento atingiu outras necessidades dos licenciandos: a de se comunicar com os outros grupos, a de conhecer as experiências dos outros e de ser objeto de atenção das professoras. Enfim, de poder concretizar uma integração que não ocorria efetivamente nos momentos das aulas. Essas necessidades podem e devem ser entendidas no contexto da Disciplina.

 

No que se refere ao estágio, os grupos se envolveram em experiências bastante diferentes, apesar de todos terem a mesma temática geral: poluição e qualidade de vida. Alguns optaram por preparar um minicurso para um grupo de adolescentes em situação de risco, outros para alunos voluntários no Centro de Ciências da USP, outros ainda ofereceram suas aulas numa escola durante um horário regular cedido pelos professores. No contexto de cada uma dessas experiências, todos tiveram que enfrentar muitas dificuldades de vários tipos.
 

No que se refere mais especificamente às aulas da disciplina integrada, podemos inclusive supor que havia uma expectativa de uma sala de aula acolhedora. As palavras dos estudantes tanto durante as entrevistas, como na avaliação final realizada em classe, sugerem que a troca de experiências, a troca de informações e, sobretudo, a sensação de fazer parte de um grande grupo com uma meta, parecem ter tido pouco espaço e relevância ao longo da Disciplina. O ponto interessante é que durante as aulas houve vários momentos reservados para isso, nos quais os licenciandos relataram seus planejamentos, suas dificuldades, suas experiências. Entretanto, parecem atribuir à Crônica esse papel, mais do que aos outros momentos. Como interpretar isso?
 

Uma interpretação que podemos sugerir é que efetivamente a leitura da Crônica era um momento (privilegiado) que acenava com a possibilidade de ‘fusão grupal’, em que os estudantes experimentavam a sensação de pertencer a um grande grupo. Assim, o conteúdo da Crônica era lido neste clima: as trocas de experiências e de informações eram percebidas como experiência grupal. Talvez o silêncio ‘denso’ relatado anteriormente possa ser interpretado como o sinal dessa união momentânea. Até a queixa de FA, de ter sido discriminada pela Crônica, parece apontar para essa interpretação. Independentemente de ter sido ou não objeto de uma intenção implícita de exclusão por parte do grupo que redigiu o texto, FA parece revelar a percepção de que durante a leitura da Crônica percebia a presença de um grupo classe, no qual ela e seu grupo se sentiam excluídos.
 

A pergunta, então, é: porque os outros momentos de troca não eram percebidos nesse clima? Uma hipótese é que a disciplina como um todo não foi vista nesta perspectiva, pois sua ‘estrutura’ não era suficientemente articulada para poder capturar o imaginário dos alunos como experiência grupal: os próprios momentos de troca eram vistos sobretudo como experiências individuais. Mas por que a leitura da Crônica saía dessa perspectiva? Pelo fato da Crônica ser lida todas as aulas? Por seu conteúdo fazer referências sistemáticas à classe como um todo? Por representar uma referência na qual licenciandos, professoras e pesquisadores podiam se reconhecer?
 

As várias metas apontadas pelos licenciandos entrevistados parecem sugerir todas essas razões; mais explicitamente, a integração da qual pareciam sentir falta os estudantes referia-se à vivência de uma experiência capaz de articular seus vários elementos. Falta não compensada, e até tornada mais aguda, pela intensidade da experiência individual ou em pequenos grupos. Em particular, um ponto que apareceu em outros momentos das entrevistas foi a necessidade de obter a atenção das professoras: saber que elas se preocupavam com o andamento de todos era um consolo para os licenciandos, que pareciam reconhecer a necessidade de receber uma atenção maior. Por que?
 

Uma tentativa de resposta a essa questão pode vir da caracterização do grupo classe como conjunto de pessoas que apresentavam grande dificuldade de se relacionar, de dividir seus problemas, de admitir que podiam aprender uns com os outros. De fato, em vários momentos os estudantes manifestaram o desconforto de pertencer à classe. Inclusive, vez ou outra, surgiram conflitos nos quais os licenciandos não se mostraram disponíveis para negociar uma solução. Assim, nossa interpretação é que o grupo, implicitamente, utilizava o momento de leitura das Crônicas para realizar um sonho sem ter que se comprometer com as conseqüências.
 

Mudança no Saber Subjetivo dos Alunos?


Uma outra pergunta que podemos levantar é se o papel atribuído à Crônica pelos licenciandos dependia dela ser considerada um ‘presente’ das professoras. As novidades que apareceram nas entrevistas com os licenciandos nos remetem diretamente a um outro modo de analisar a eficácia desse instrumento didático. A interpretação desse ponto requer uma distinção entre conhecimento e saber (Mrech, 1999; Freitas et al., 2000).
 
 
Podemos resumir as idéias, no caso da disciplina de Prática de Ensino distinguindo: conhecimento pedagógico objetivo, objeto da elaboração dos pesquisadores em educação e de explicitação dos livros e revistas científicas, conhecimento subjetivo do aprendiz ou do professor, ou seja, a transformação que o conhecimento objetivo sofre ao ser assimilado pelos sujeitos, que pode ser encontrada a partir do significado das palavras escritas ou orais dos mesmos quando convidados a falar sobre os temas e, finalmente, saber subjetivo, que é o conjunto das relações tecidas e elaboradas com investimento próprio, que o sujeito estabelece com seu conhecimento. Tais relações podem ser inferidas a partir dos significantes presentes nas falas ou nas ações dos aprendizes.
 
A importância do saber é que ele tem a função de guiar de maneira implícita as escolhas do indivíduo, porque é com ele que a satisfação inconsciente se articula. Essa distinção lembra um pouco aquela entre conhecimento explícito e latente, utilizada na literatura, assim como as preocupações dos educadores em atingir o conhecimento implícito. Em nosso contexto, o ponto importante é a ligação do saber subjetivo, que tem ramificações conscientes e inconscientes, com a satisfação do indivíduo e com seu desejo de saber.
 
Apesar de não existir nenhum instrumento que tenha a priori a característica de atingir o conhecimento subjetivo e o saber individual dos aprendizes, a instrução, ou seja, a ação didática é a única porta aberta para isso. Não há garantia de sucesso, mas sem ela as possibilidades de sucesso praticamente inexistem nesse nível. Isso implica que a educação se realiza sempre com uma tensão entre tornar a assimilação do aprendiz o mais explícita e fiel possível ao conhecimento visado e deixar espaço para que o saber entre em jogo. Se forçar demais do lado da meta explícita visada, o professor pode ter como resultado o aprendiz dissertar sobre o mesmo, sem muito envolvimento pessoal; pelo contrário, se houver espaço demasiado para o envolvimento do seu saber, o risco é que este não sofra modificações na direção do conhecimento visado, meta da educação em ciências.

 

Em nosso caso a Crônica apontava explicitamente e implicitamente conteúdos referente à formação de professores: veiculava idéias e analisava ações. Entretanto não cobrava nada quanto à assimilação dos mesmos. Isso tinha algumas implicações evidentes: a ‘gratuidade’ tornava o evento – leitura da Crônica – mais leve: sua repetição ao longo das 14 semanas de aula sempre era esperada com um certo gosto. Se tivesse havido uma reflexão ou um trabalho sistemático sobre seu conteúdo, que pudesse contribuir para que a classe se articulasse em torno de uma tarefa concreta, o clima provavelmente teria sido diferente, pelo menos em parte e depois de um certo tempo. Entretanto, esse trabalho sistemático poderia ter provocado um ganho em profundidade e favorecido um maior envolvimento, pelo menos para uma parte dos licenciandos. A fala de um aluno parece confirmar essa suposição, ao afirmar que o planejamento do mini-curso de seu grupo não foi modificado porque já estava pronto, embora reconhecesse que informações novas estavam disponíveis nas Crônicas. Talvez um investimento maior de professores e estudantes nas discussões em plenária tivesse modificado essa inércia e favorecido a apresentação de um planejamento mais coerente.
 

Enfim, resta a dúvida: esses ganhos teriam compensado a perda de ‘leveza’ das Crônicas e a eventual insatisfação daqueles que viriam a se sentir ‘obrigados’ a refletir numa determinada direção? Ou seja, quanto foi modificado o saber individual dos alunos? Que consequências teria nesse saber uma mudança na forma de trabalhar com a Crônica na sala de aula?
 

Um aspecto referente ao saber dos licenciandos é o quanto ele foi modificado na direção do conhecimento pedagógico pela contribuição das Crônicas. A teoria sobre a formação do professor era apresentada em geral de forma implícita, na descrição e interpretação das experiências, nas questões levantadas e em comentários explícitos. Muitos licenciandos na avaliação final deixaram claro que o curso foi pobre em conteúdo, sendo que alguns queixaram-se explicitamente da falta de leituras sobre como ser professor. Para outros, o espaço dado às leituras em geral foi insuficiente, no entanto, para a maioria dos entrevistados a teoria estava presente nas Crônicas, apesar de alguns não saberem exatamente de qual teoria se tratava. Interessante o comentário de um licenciando para o qual as professoras não fariam um texto desse tipo se não estivessem embasadas teoricamente; a idéia de que "sei que existe teoria mas não sei dizer onde" foi compartilhada por outra estudante.
 

Parece que o modo de interpretar os eventos nas Crônicas chamou a atenção de alguns licenciandos, provavelmente pela coerência das afirmações ou a profundidade dos argumentos, criando a ‘impressão’ de uma presença implícita da teoria na sala de aula. Vários estudantes confirmaram ter aprendido com a teoria apresentada nas Crônicas. Porém, a explicitação dessa teoria parecia estar ao alcance de poucos licenciandos. O estranho é que quando foi perguntado se teria sido melhor apresentar a teoria de forma explícita, a mesma estudante que não sabia dizer aonde estava a teoria embora admitisse sua existência, ficou em dúvida. Isso sugere que não havia um desejo explícito de conhecer as teorias, o importante seria saber conduzir as intervenções didáticas. Em nossa interpretação os alunos, ao negarem a influência das Crônicas no planejamento, referiam-se ao planejamento escrito, elaborado antes e durante o Estágio, e não à realização efetiva desse planejamento. De fato, nos parece que os planejamentos escritos não incorporaram as sugestões das Crônicas, mas a prática efetiva apresentou soluções muito mais coerentes com seu espírito. Provavelmente idéias como flexibilização do planejamento, levantamento de questões, atenção às respostas dos alunos foram adotadas eventualmente e implicitamente, sobretudo nos momentos de maior dificuldades, sem uma correspondente consciência. Em nossa interpretação o saber subjetivo dos estudantes foi modificado, pelo menos em parte, sem uma correspondente mudança na linguagem e na reflexão. Eles sentiram a necessidade de um suporte teórico para a prática didática, porém não conseguiram se apropriar explicitamente das sugestões das Crônicas.
 

Algumas Considerações Finais


Podemos agora retomar a questão inicial: qual o efeito do professor se expor comentando os eventos sempre novos que aparecem ao longo da interação didática? A análise das Crônicas da Disciplina permite algumas considerações gerais.
 
Sem dúvida o efeito sobre o docente é grande. A elaboração desse instrumento expõe amplamente o docente: obriga-o a um envolvimento pessoal na produção regular dos textos e a um esforço intelectual contínuo para localizar os eventos mais significativos, interpretar seus possíveis sentidos e intervervir de maneira adequada, quando possível. Em nosso caso, a equipe ficou envolvida de diferentes maneiras nas várias etapas da experiência: a produção dos textos exigiu um grande dispêndio de energia e de tempo. Em média, cada Crônica exigia dois dias de trabalho, desde a elaboração da versão inicial até a reelaboração a partir dos comentários e da discussão com toda a equipe. O resultado final era geralmente de grande satisfação para a equipe toda, não somente pela originalidade e, às vezes, sofisticação do produto realizado, como também pelo processo que permitia uma reflexão contínua sobre a disciplina e uma percepção de seu andamento.
 
Em síntese, a produção de uma Crônica regular incentiva e cria condições objetivas para que o docente seja reflexivo na ação e depois dela. Nesse sentido a colaboração de algum pesquisador que auxilie no processo de afastamento dos eventos e de interpretação é muito importante, para que as Crônicas não se tornem inconscientemente, em algum momento, um instrumento de exclusão ou de divisão entre os estudantes.
 
Quanto ao efeito sobre os licenciandos, podemos destacar sua exemplaridade. Pode tornar-se um exemplo para os estudantes do que é ser reflexivo, isto é, planejar, refletir, interpretar e dar um retorno aos aprendizes sobre o processo de aprendizagem em andamento. Nesse sentido esse instrumento pode ajudar os estudantes a planejar, refletir e interpretar suas ações. Porém, esse efeito, pode acontecer em vários níveis, como em nosso caso. As Crônicas operaram como exemplo explícito para tarefas que os licenciandos deviam realizar obrigatoriamente, ou seja, os relatórios finais. Serviram pouco ou nada para planejar, para refletir regularmente e explicitamente nas ações e para compreender os saberes que fazem parte do ofício de ser professor. Por outro lado, parece que serviram implicitamente em algumas situações durante o Estágio. Surpreendentemente tiveram também um efeito local bastante intenso, atingindo necessidades específicas dos licenciandos: minimizar o isolamento, favorecer trocas, sinalizar a atenção das docentes e remediar faltas teóricas.

 

Em resumo, o contexto da Disciplina exigia bastante esforço dos licenciandos durante as experiências inovadoras do Estágio. Isso parece ter implicado num desejo de encontrar na sala de aula um ambiente acolhedor, diferente das dificuldades de relacionamento que caracterizavam aquele grupo. O momento de leitura das Crônicas funcionou como uma satisfação ilusória, no qual o grupo vivia a possibilidade de uma fusão sem compromissos, que não implicava na exposição dos indivíduos, nem na mudança de seus saberes subjetivos. A Crônica, enquanto presente das professoras para os estudantes, teve um efeito parcial na mudança desses saberes; acreditamos que uma mudança mais substancial nessa perspectiva exigiria uma mudança no clima da sala de aula, que por sua vez, também contribuiria para isso. Que sugestões podem ser esboçadas para o futuro?
 

Algumas experiências passadas na formação de professores (Freitas, 1998; Franzoni, 1999), bem como a experiência vivida pela equipe nessa pesquisa nos fornecem algumas pistas. A demanda dos estudantes por um clima de classe acolhedor pode ser atendida por meio de um trabalho intelectual intenso e cooperativo. Essa perspectiva parece requerer a instauração de um compromisso do docente: não ceder de seu desejo de modificar o saber subjetivo dos licenciandos na direção dos conhecimentos científico e pedagógico por ele considerados relevantes. O efeito esperado desse compromisso do docente deveria ser a criação, por parte dos licenciandos, de um espaço para a Disciplina, ou seja, um correspondente compromisso na construção de uma experiência em conjunto. No caso da disciplina em questão, isso implicaria numa articulação mais estreita entre a Crônica e as atividades de sala de aula e extra classe.
 

Uma possibilidade de realizar esta articulação seria atribuindo à Crônica o papel de introduzir um problema a ser pesquisado como tarefa ou a ser discutido na sala de aula. Dessa forma o momento de leitura da Crônica poderia ser variado de acordo com seu conteúdo e sua função. Se a Crônica pretendesse apresentar o objetivo e a justificativa teórica das ações programadas pelo docente, poderia ser trabalhada no início da aula. A Crônica XIV, por exemplo, apresentava a avaliação da Disciplina do ponto de vista das docentes e propunha o mesmo trabalho para os licenciandos naquela aula: isso os incentivou a comentarem o texto e a iniciarem a tarefa. Outra função da Crônica poderia ser problematizar os objetivos previstos com uma atividade; neste caso a leitura da Crônica poderia ser deixada para dar início a avaliação dos efeitos do que foi planejado. Finalmente se a Crônica cumprisse o papel de introduzir e justificar uma tarefa a ser realizada extra sala de aula, mediante o estudo de alguma bibliografia por exemplo, a leitura poderia constituir a conclusão da aula antecipando os efeitos esperados. Talvez o conjunto e a articulação de todas essas possibilidades consigam tornar mais intensa a troca entre licenciandos e docentes.
 

Bibliografia


FRANZONI, M. (1999); A evolução de um grupo de estudantes em uma disciplina de Prática de Ensino de Biologia. Dissertação de Mestrado UNESP- Bauru
 
Freitas, D. (1998); Mudança Conceitual em sala de Aula: Uma experiência em Formação inicial de Professores. Tese de doutorado. FEUSP, São Paulo
 
Freitas, D.; Villani, A.;Pierson, A.H.C.;Franzoni, M. (2000) Conhecimento e Saber em Experiências de Formação de Professores. ATAS da XXIII ANPED. CD-Rom GT 8 Caxambú.
GILBERT J. (1994); The construction and reconstruction of the concept of the reflective practitioner in the discourses of teacher professional development. International Journal Science Education, 16(5): pp.511-522.

Mrech, L.M.(1999). Psicanálise e Educação: Novos operadores de Leituras. Pioneira, São Paulo.
 

Pacca, J.L.A. & Villani, A. (1996 ); Um curso de actualización y cambios conceptuales en professores de Física. Enseñanza de las Ciencias, 14(1), pp. 25-33.

PERRENOUD, P. (1999) Formar professores em contextos sociais em mudança: Prática Reflexiva e Participação Crítica. Revista Brasileira de Educação 12, pp.5-21.

Schon, D. (1983) The Reflective Practitioner. New York, Basic Books.

SCHÖN, D. A.(1992); Formar professores como profissionais reflexivos. In: Nóvoa (org) Os professores e a sua formação, Lisboa, Dom Quixote.
 


[1] Com Auxílio do CNPq
[2] Com auxílio Parcial do CNPq
[3] O nome inicialmente dado ao documento foi Relatório, entretanto, para dar uma idéa mais viva de seu conteúdo e de sua finalidade, e para não confundir com o relatório dos estudantes, mudamos o nome para Crônica. Consequentemente usamos esse nome todas as vezes que de alguma forma o documento era mencionado, inclusive nas entrevistas.
[4] Dois grupos realizaram o estágio com adolescentes em situação de risco, que se encontram sob a tutela do Núcleo de Atendimento Inicial (NAI) gerenciado pela Febem/SP.
[5] A entrevista abarcou outras questões que foram além do assunto Crônica. No entanto, fizemos a seleção dos trechos nos quais os alunos fizeram referências explícitas a elas, seja espontaneamente, seja quando provocados.