Elisabeth Barolli
(DEME – UFSCar e CENPEC)
Marisa Franzoni[1]
(FE – USP)
Alberto Villani[2]
(IF – USP)
Denise de Freitas[2]
(DEME – UFSCar)
Resumo
Perrenoud
(1999) concebe a prática reflexiva “como um funcionamento estável,
necessário
em ‘velocidade de cruzeiro’ e vital em casos de ‘turbulências’”.
Para
ele a reflexão do professor refere-se à
“sua relação com o saber, com as pessoas, o poder, as instituições,
as tecnologias, o tempo que passa, a cooperação, tanto quanto
sobre o modo de superar as limitações ou de tornar seus gestos
técnicos mais eficazes”(pp.10-11). Em síntese, a reflexão
na ação tende a desvincular o professor do trabalho prescrito,
das rotinas automáticas, permitindo-lhe construir seu próprio
caminho em função das circunstâncias; a posteriori,
a reflexão permite analisar mais tranqüilamente os acontecimentos
e construir saberes a partir de situações semelhantes.
Para
Gilbert (1994), o modelo de Schön para compreender o desenvolvimento
do conhecimento profissional, elimina a dualidade entre os meios e os fins,
o saber e o fazer, a pesquisa e a ação, reunindo-os em um
único processo: o da reflexão. Aponta que, no campo das investigações
sobre formação de professores, os pesquisadores que primeiro
se utilizaram do conceito de Schön sobre o professor reflexivo, trabalhavam
no contexto da abordagem libertadora para a educação. Dessa
forma, os programas seriam mais efetivos se focalizassem explicitamente
o desenvolvimento da habilidade, nos professores, para refletirem sobre
suas ações e sobre o contexto social e cultural mais amplo
dentro do qual o ensino está inserido. Com isso, poder-se-ia ter
informações mais adequadas sobre os novos desafios que perturbam
o sono dos professores envolvidos com a escola pública: a onda de
violência, o clima de ameaça e de impunidade que entraram
na sala de aula.
Atualmente, o conceito de reflexão tem sido usado amplamente nas pesquisas sobre formação de professores e orientado a implementação de programas de capacitação profissional, como um meio de ajudar professores a explorar e melhorar aspectos de sua prática. Um instrumento muito utilizado na formação inicial de professores, para incentivar o desenvolvimento de uma prática reflexiva, é a observação de uma sala de aula e a elaboração de um correspondente relatório que analisa as atividades didáticas desenvolvidas. O ponto mais importante é o retorno que o responsável pela formação dá para o aprendiz, pois este tem a possibilidade de confrontar seus critérios e interpretações com os daquele, questionando e até reorganizando aos pouco seu próprio saber.
Uma experiência
didática com esse espírito foi desenvolvida por um grupo
de pesquisadores (os autores desse trabalho) no decorrer de um semestre,
por meio de uma disciplina que integrou os cursos de Prática de
Ensino de Ciências e de Física na Universidade Federal de
São Carlos. A experiência consistiu na elaboração
sistemática de textos que relatavam e interpretavam, do ponto de
vista de quem estava coordenando a disciplina, os episódios ocorridos
na sala de aula, nos estágios e nos encontros extra-classe, que
eram realizados regularmente com cada grupo de estudantes toda semana,
como forma de contribuir para o planejamento, execução e
análise dos estágios. Esses textos eram distribuídos
para os licenciandos, lidos em voz alta e, eventualmente, comentados durante
cada aula. O objetivo desse trabalho é investigar os efeitos que
esses textos provocaram nos futuros professores e fornecer pistas para
os pesquisadores poderem atuar na formação inicial de professores
na perspectiva de uma prática reflexiva.
“Esperamos
que com a ajuda desse documento você tenha mais facilidade
para: - Elaborar o planejamento didático do Estágio Supervisionado;
Registrar seu processo individual de aprendizagem, apontando os eventos
mais marcantes; Produzir materiais escritos: diário individual e
relatório grupal; Levantar questões a serem discutidas em
sala de aula.”
Os textos, via de
regra, começavam pela explicitação do processo de
planejamento da disciplina integrada, que estava sendo desenvolvido em
conjunto pelas professoras, com a participação dos dois outros
pesquisadores.
“Durante as conversas
para preparação do planejamento da disciplina, surgiu a idéia
de que cada grupo de licenciandos seria uma miniatura de escola” (Crôn.
I)
Em outro momento,
o texto procurava retratar alguns dos episódios de aula, como por
exemplo:
“Percebemos
que os objetivos, assim como o planejamento das primeiras aulas, foram
pouco esmiuçados por parte dos grupos. Ou seja, faltaram contribuições
e detalhes que preenchessem cada uma das etapas. Tarefa difícil,
que exige um investimento prolongado. A tarefa fica ainda mais difícil
se os companheiros de grupo não estão presentes e se a classe
permanece em silêncio, vocês não acham?” (Crôn.
V)
“Dessa
vez conseguimos realizar tudo aquilo que estava proposto para a aula. Isto
nos deixou satisfeitos. Quando o professor se sente satisfeito?” (Crôn.
IV)
Detalhes
sobre o movimento que ocorria entre professoras e estudantes quando, fora
da sala de aula se encontravam para discutir o planejamento, também
eram contemplados.
“Os
dois grupos do NAI[4]
se reuniram em conjunto para discutir a primeira aula que deveria ser 'surpreendente'
e cativante para os meninos. A idéia era acoplar a música
de um rap, com suas palavras evocantes sobre qualidade de vida e um jogo
(RPG) envolvendo conflitos de uma comunidade relativos à poluição
ambiental (...) À noite, no encontro com o grupo da Esterina I (5as
séries), havia tantos caciques (professoras e pesquisadores) quanto
índios (estudantes). O tom foi dado pelo bombardeio de perguntas
sobre o planejamento da primeira aula.(...) A mesma coisa aconteceu com
o grupo do CDCC que, inclusive, já fez um folder e um cartaz para
a divulgação de seu curso. A impressão é que
os grupos deram um salto no planejamento ao se confrontarem com alguns
dos possíveis eventos de sala de aula elaborando uma linha de conduta”.
(Crôn. VII)
Reflexões
e recados teóricos também se constituíram num dos
elementos freqüentes das crônicas.
“Em geral, mudamos um planejamento quando uma atividade preparada parece não encontrar na classe o clima adequado para ser aproveitada ou quando uma nova atividade parece mais promissora do que as preparadas. De fato, a escolha de manter ou mudar o planejamento é subjetiva, por isso não tem um método que garanta o sucesso do professor nesse sentido.” (Crôn. III)
“Quando
o professor se sente satisfeito? Sem dúvida quando ele consegue
realizar seu planejamento. Entretanto, existe uma satisfação
maior quando ele percebe que seus alunos estão acompanhando as atividades
com atenção. A satisfação parece maior ainda
quando os alunos se expõem apresentando suas idéias e reflexões.
Uma situação especial acontece quando as contribuições
dos alunos entram em ressonância e aparecem idéias novas e
compartilhadas”(Crôn.IV)
Algumas
mudanças foram introduzidas, a partir da Crônica VIII, principalmente
no que se refere à linguagem que passou a ser mais coloquial, e
até poética.
“A
aula foi um "happening" de cabo a rabo. Começou pela leitura da
Crônica. O silêncio foi total. Depois, uma das professoras
enganchou direto a encenação com a outra. Os temas abordados
eram quentes e giravam sempre ao redor da socialização das
questões dos estudantes, manifestadas ou intuídas” (Crôn.VIII)
“Dizia
um grande filósofo tupiniquim: Difícil é tirar o branco
do papel. Que o diga a Marisa que quase toda a semana traz a primeira versão
da Crônica da aula, mesmo sabendo que na enésima versão
muitas coisas irão ficar diferentes. (...)Quando a gente sonha sozinho,
não passa de um sonho. Quando a gente sonha junto é a realidade
que começa.” (Crôn. X)
Nessa fase, as falas
dos licenciandos começaram a aparecer com maior freqüência.
“Após
o comentário do Alessandro e da Alice a turma foi no embalo. Fernando,
após observar que o jogo coordenado pela Pietra funcionou muito
bem, perguntou perplexo: Transformar a aula em play-ground? Se não
tiver capacidade de inventar um jogo, não tenho capacidade de dar
aula? E a Flávia rebateu: Se o aluno não estiver interessado
é papel do professor gerar motivação.” (Crôn.X)
Dessa
forma, experiências individuais eram relatadas em detalhes ou cobranças
eram colocadas.
“No encontro
semanal do grupo do Esterina, assistimos alguns trechos das aulas. Houve
discordância em relação à disciplina da classe:
o André sustentava que na sua aula a bagunça era menor do
que as meninas diziam ter percebido. No entanto, ao assistir a gravação
o André comentou que, de fato, não havia notado que tinha
um pouco mais de bagunça do que ele acreditava. (Crôn. X)
“.. a solidariedade
do grupo não precisa chegar ao ponto de deixar a sala de aula quando
uma companheira o faz!.... O grupo de Gandi e Paloma, pela primeira vez,
apareceu no encontro semanal. Infelizmente a Denise estava com problemas
de Departamento urgentes e não pôde atendê-los. Esperamos
que isso não desanime o grupo a aparecer nas aulas e nos encontros
para colocar os problemas efetivos do estágio(Crôn.IX)
A
escolha por uma mensagem que pudesse, dentro do possível, refletir
mais profundamente sobre as práticas dos estudantes, foi perseguida
sobretudo no final.
“Logo após
ter dado espaço para os desabafos, nos parece necessário
dar uma volta por cima e aproveitar da experiência para rever nossa
concepção de educação, de ensino, de aprendizagem
e de professor. Parece que o interesse de todos ficou amarrado ao visível:
todo mundo interessado ao falar de suas aulas. Mas é possível
ir além disso, construir um saber que aproveita da experiência
e do conhecimento disponível na literatura, para entender a realidade
da escola, com seus problemas aparentemente insolúveis.” (Crôn.XII)
Às
vezes com mensagens sofisticadas.
“Todo esse trabalho
final [de avaliação] não é o chantilly
da experiência: é um ingrediente essencial do bolo. Se não
conseguirmos entender a articulação entre nosso ‘planejamento’
e nossa ‘presença’ na sala de aula, teremos avançado muito
pouco em nossa formação, rumo ao ‘professor reflexivo’ almejado
pela literatura atual. Sobretudo, devemos entender quando ‘cedemos de nosso
desejo’ de ensinar e passamos a esperar que o céu nos substitua.”
(Crôn. XIII)
Ou com imagens pictóricas:
“Qual imagem
temos da experiência realizada, nesse semestre, por professores,
pesquisadores e licenciandos na disciplina integrada de Prática
de Ensino? Essa imagem parece ficar melhor definida quando pensamos na
construção de um mosaico, desde a preparação
da variedade de seus componentes até a construção
de uma imagem articulada que chame a atenção. (...) O objeto
efetivamente construído por professoras, licenciandos e colaboradores
foi um mosaico, composto de três desenhos diferentes e poderia ter
como título: Cenas de Educação Cotidiana: na Escola,
no Centro e no Núcleo.(...) Na imagem do nosso mosaico houve problemas
na construção do fundo que sustenta a articulação
e a composição entre os vários desenhos. Perdemos
a chance de efetivamente realizar uma experiência de construção
coletiva, na qual a própria individualidade é revista na
direção de um crescimento pessoal e coletivo. (Crôn.
XIV)
A equipe
avaliava a influência da Crônica a partir das observações
que apareciam nos diários individuais e dos comentários bastante
eventuais sobre o instrumento durante os encontros extra-classe. Na
parte final da disciplina alguns licenciandos começaram a se referir
às Crônicas com maior freqüência, sobretudo para
saber se suas falas ou ações tinham sido mencionadas. Somente
na leitura da última Crônica, que além de apresentar
uma avaliação da Disciplina do ponto de vista da equipe,
convocava os alunos para fazerem suas próprias avaliações,
houve um diálogo efetivo.
Como
interpretar o silêncio permanente dos estudantes? Será que
gostaram e aproveitaram? Será que se estabeleceu alguma forma de
diálogo por meio desse tipo de instrumento? Será que os textos
ajudaram os licenciandos em seus planejamentos, em suas aulas e em suas
avaliações? Será que a opção de não
intervir explicitamente durante as aulas para incentivar as reflexões
dos estudantes foi eficiente e deixou as marcas esperadas?
“...,
quando eu precisava retomar alguma coisa elas ajudaram muito.
Para
CE, as perguntas levantadas nos textos tentavam explicar algumas coisas:
“Problemas
que estavam acontecendo, não só agora na educação,
mas, como a evasão, por exemplo... Várias Crônicas
colocaram isso. Ainda que a pessoa não colocasse nada na sala de
aula, servia para a gente poder pensar e responder no relatório
individual.
A teoria,
subjacente às Crônicas, no entanto, parece não ter
chamado muito a atenção de CE:
“Nunca
parei para pensar nisso. Não via pois nunca parei para pensar. A
não ser naquele dia em que as professoras discutiram a teoria, que
elas entraram meio que representando. Se não me falha a memória
elas estavam falando sobre teoria. ...Nessa foi mais fácil perceber,
mas nas outras não”.
Para
FA, os textos ajudaram somente na elaboração dos relatórios
finais (individual e coletivo).
“
Não, eu não li todas as Crônicas. Eu não tinha
nenhum interesse nelas. Para mim era muita reflexão. Na verdade
eu li para fazer o outro.
De acordo com essa estudante a Crônica superestimou o trabalho de alguns licenciandos e excluiu seu grupo e a si própria do grupo-classe:
“Se a gente aparecia era só para coisa ruim.... Não
dá nem vontade de ler. O professor que submete os alunos aos fracassos
repetitivos, desmotiva os alunos. E é o que está acontecendo.
Eu vi com a gente e isso é exclusão. Bom professor seria
quem incluiria o aluno no grupo e não faria a exclusão...”
Outra
estudante, NE, introduziu espontaneamente o assunto quando falava sobre
sua dificuldade com as leituras em geral:
"
Gostar de ler eu gosto, mas eu acabo fazendo outra coisa. Eu tenho dificuldade
com a leitura. Depois que a gente lê a gente fala: Pô, é
legal. E também tem uma frase que estava na Crônica que, quando
a gente vai planejar uma aula a gente se lembra de alguns textos que a
gente acha importante; e não é gastar tempo, mas é
importante investir nisso".
Ao se
referir às Crônicas, NE comenta que sua relação
com elas ficou restrita a sala de aula.
“Me
deixava angustiada com as cobranças. Foi lida mas nenhum questionamento
foi feito. E até falei para a professora: 'A gente leu mas não
temos o que questionar'! Algumas perguntas eu acho que poderiam ser respondidas.
Ela,
no entanto, sugere algumas mudanças.
“Após
a leitura da Crônica parece que era uma obrigação nossa
comentar coisas que a gente não estava fazendo. Se os alunos fossem
chamados a responder ou passadas algumas perguntas... 'Então, o
que vocês acham'? E não deixar: 'Alguém quer fazer
uma pergunta'? Acho que se direcionar pode dar ou virar alguma coisa.”
NE não
faz referência a sua utilização para elaborar seus
relatórios individuais, apesar de em alguns momentos ter se dirigido
às professoras com dúvidas nesse sentido e destacar algumas
passagens das Crônicas. Também, em sala de aula, seu grupo
pesquisou nos textos anteriores idéias que poderiam compor o relatório
coletivo.
Para
IA, as Crônicas ajudaram na elaboração de seus relatórios
individuais e coletivos. Para ela, era surpreendente analisar os fatos
comentados, pois era possível completar seus registros de aula.
“Eu
faço anotações em aula e quando eu lia a Crônica
ficava sempre faltando alguma coisa no que eu escrevia. Nossa, será
que eu dormi na aula? Como alguém conseguiu ver tudo isso? Realmente,
isso aconteceu. Quer dizer, a gente no grupo quando tentava ver a aula
do outro, era difícil. Como vocês conseguiam?”
De acordo
com essa aluna, foi nas Crônicas que efetivamente a teoria trabalhada
no curso mais apareceu:
“Dá uma idéia do processo da
gente. Acho que foi o melhor da aula. Idéias legais. Coisa muito
bem bolada. A gente ia logo procurar o que falava da gente. Eu lia antes
do pessoal ler. Você aluno perde a noção da sala de
aula. Lendo alto, vai ajudando, vai pensando. Aquelas falas que se encaixavam.
Nossa, alguém falou isso? É realmente. Na aula mesmo a gente
não pensa, mas depois vai lendo e percebe o que aconteceu, dá
uma idéia. Foi a parte mais interessante da aula. Eu não
conhecia um monte de gente lá. Quem é Fulano? Quem é
Sicrano? Tinha gente lá que eu nunca tinha ouvido a voz.”
Na visão
da aluna DE, os textos tiveram principalmente o papel de ajudá-la
na elaboração dos diários e dos relatórios
coletivos. Para esses últimos, foram um verdadeiro guia.
“Li
todos. Li nas aulas e em casa para fazer os relatórios. Eu achei
legal. Eu li em casa para fazer o relatório individual. É
uma coisa assim, bem descritiva. Tinha questões... Tinha uma descrição
detalhada da coisa, da aula e algumas coisas mais relevantes do que tinha
acontecido. A gente [grupo de trabalho] combinou de cada um descrever
a sua aula [do Estágio], detalhar, como se fosse uma Crônica.
É, agora a gente vai juntar o que cada um fez para fazer o relatório
do grupo. Quer dizer ela está guiando o nosso relatório.
Ao mesmo
tempo em que afirma não ter estudado no curso nenhuma teoria sobre
formação de professores, a aluna admite que os elementos
teóricos estiveram presentes, embora não soubesse explicitá-los.
Teve dúvidas sobre qual seria a melhor maneira de apresentar a teoria
para que fosse possível tirar melhor proveito:
“Deu
para enxergar a teoria ao longo dela, mas se você me perguntar o
que [qual teoria] eu não vou saber dizer. Quer dizer, ela
não estava pronta, na forma que a gente está acostumada,
mas se tivesse explícita eu não sei, não tenho certeza,
mas acho que não seria tão legal. Acho que desmotivaria um
pouco.”
Para
DA, o valor efetivo das Crônicas foi integrar, socializar e baixar
a ansiedade dos futuros professores diante da experiência de dar
aulas.
“No
começo ela passava uma impressão e eu fiquei com essa impressão
até o fim de que ela servia para unir mais a turma. As Crônicas
mostravam que todo mundo estava fazendo a mesma coisa, atividades diferentes,
lugares diferentes... porque quando você faz Prática de Ensino
você fica muito isolado no seu grupo, e de repente a gente não
sabe o que os outros estão fazendo; e você se sente meio isolado,
assim fazendo uma coisa sozinho, você e seu grupo. Quer dizer, o
planejamento, as aulas, aquilo, aquilo outro, será que eles [os
alunos] vão gostar... Mas esse texto comentava as experiências
dos outros grupos, o que os outros grupos estavam fazendo e então
mostrava que os outros estavam passando pelas mesmas dificuldades. A gente
fica meio isolado. Eu achei que serviu para dar uma integrada e até
uma certa suspirada: 'não sou só eu que estou sentindo tudo
isso'.”
Além
disso, atribui às Crônicas um valor metodológico.
“Tinha
um valor metodológico,.... como se fosse um roteiro que estivesse
sendo cumprido, entendeu? Na primeira semana elas [professoras]
passaram quais eram as metas que deveriam ser atingidas durante o curso,
até quando a gente vai discutir, quando a gente vai para o estágio;
então quando as Crônicas começaram a aparecer parece
que elas estavam mostrando o que estava sendo atingido desde o começo
do curso.”
Por fim,
ensinam como fazer um relatório e ajudam na condução
do processo de ensino.
“Acho
que elas mostram um pouco com se faz um relatório numa experiência
dessa. É diferente de você ficar dando seis meses de aula
numa disciplina e fazer um relatório. Quer dizer, é como
um roteiro com início, meio e fim. Acho que ela encaminhou a gente
para aquilo que vocês queriam.
Para
TO, os textos ajudaram principalmente na realização da avaliação
final.
“Eles
ajudaram, principalmente para a avaliação. Quando eu fui
fazer a avaliação do curso, que é feita no final,
eu não lembrava do que tinha se passado, então eu fui relendo,
marcando coisas que foram acontecendo na aula. Tinham perguntas na avaliação
que faziam referência ao começo do curso e então eu
precisava estar lendo para responder as perguntas. Eu fiz poucas anotações
durante o curso então eu juntava com o que tinha escrito para fazer
a avaliação.”
Compartilha com as idéias de DA no que se refere às trocas de experiências.
“Ela
teve mais valor no final, para fazer a avaliação. Mas eu
li também durante o curso, principalmente para ver o que os outros
estavam passando. Ela servia de referencial para ver a experiência
que cada um estava passando, apesar de cada um estar numa realidade diferente.”
No entanto,
lamenta que não pôde efetivamente utilizar dos conhecimentos
comentados nas Crônicas sobre os demais grupos, uma vez que seu planejamento
já estava pronto ou fechado:
“Já
que o nosso planejamento estava pronto, a gente não modificou a
partir da experiência dos outros. Quer dizer, se desse tempo, a gente
teria mudado. Mas ficou marcado que se a gente tivesse feito teria sido
super válido... Se a gente tivesse parado para remodelar, acho que
a gente teria ganho mais.”
Para
TO, as Crônicas foram uma descrição das atividades
dos grupos de trabalho e para as professoras um instrumento didático.
“Deve
ser uma ferramenta para as aulas delas, para o planejamento delas. Assim
como um vídeo, um instrumento didático, se é que pode
colocar assim. Foi um suporte para o planejamento delas. Elas faziam parte
do planejamento mas para mim era um referencial sobre as experiências
dos outros grupos. Porque a gente não teve acesso ao planejamento
dos outros grupos; lá pelo menos tem o registro.”
Na interpretação
de LI, os textos foram uma forma das professoras prestarem atenção
nos estudantes, fazendo-os refletir. LI percebeu que as Crônicas
tinham conteúdo, mas não soube dizer ou dar nomes a eles.
No entanto, as utilizou para suas produções individuais e
coletivas.
“Não
sei dizer que conteúdo que tinha nas Crônicas.”
LI também
alegou que foram importantes para se perceber o que os demais grupos estavam
elaborando, o que considerou fundamental para o desenvolvimento das aulas.
No que
se refere ao estágio, os grupos se envolveram em experiências
bastante diferentes, apesar de todos terem a mesma temática geral:
poluição e qualidade de vida. Alguns optaram por preparar
um minicurso para um grupo de adolescentes em situação de
risco, outros para alunos voluntários no Centro de Ciências
da USP, outros ainda ofereceram suas aulas numa escola durante um horário
regular cedido pelos professores. No contexto de cada uma dessas experiências,
todos tiveram que enfrentar muitas dificuldades de vários tipos.
No que
se refere mais especificamente às aulas da disciplina integrada,
podemos inclusive supor que havia uma expectativa de uma sala de aula acolhedora.
As palavras dos estudantes tanto durante as entrevistas, como na avaliação
final realizada em classe, sugerem que a troca de experiências, a
troca de informações e, sobretudo, a sensação
de fazer parte de um grande grupo com uma meta, parecem ter tido pouco
espaço e relevância ao longo da Disciplina. O ponto interessante
é que durante as aulas houve vários momentos reservados para
isso, nos quais os licenciandos relataram seus planejamentos, suas dificuldades,
suas experiências. Entretanto, parecem atribuir à Crônica
esse papel, mais do que aos outros momentos. Como interpretar isso?
Uma interpretação
que podemos sugerir é que efetivamente a leitura da Crônica
era um momento (privilegiado) que acenava com a possibilidade de ‘fusão
grupal’, em que os estudantes experimentavam a sensação de
pertencer a um grande grupo. Assim, o conteúdo da Crônica
era lido neste clima: as trocas de experiências e de informações
eram percebidas como experiência grupal. Talvez o silêncio
‘denso’ relatado anteriormente possa ser interpretado como o sinal dessa
união momentânea. Até a queixa de FA, de ter sido discriminada
pela Crônica, parece apontar para essa interpretação.
Independentemente de ter sido ou não objeto de uma intenção
implícita de exclusão por parte do grupo que redigiu o texto,
FA parece revelar a percepção de que durante a leitura da
Crônica percebia a presença de um grupo classe, no qual ela
e seu grupo se sentiam excluídos.
A pergunta,
então, é: porque os outros momentos de troca não eram
percebidos nesse clima? Uma hipótese é que a disciplina como
um todo não foi vista nesta perspectiva, pois sua ‘estrutura’ não
era suficientemente articulada para poder capturar o imaginário
dos alunos como experiência grupal: os próprios momentos de
troca eram vistos sobretudo como experiências individuais. Mas por
que a leitura da Crônica saía dessa perspectiva? Pelo fato
da Crônica ser lida todas as aulas? Por seu conteúdo fazer
referências sistemáticas à classe como um todo? Por
representar uma referência na qual licenciandos, professoras e pesquisadores
podiam se reconhecer?
As várias
metas apontadas pelos licenciandos entrevistados parecem sugerir todas
essas razões; mais explicitamente, a integração da
qual pareciam sentir falta os estudantes referia-se à vivência
de uma experiência capaz de articular seus vários elementos.
Falta não compensada, e até tornada mais aguda, pela intensidade
da experiência individual ou em pequenos grupos. Em particular, um
ponto que apareceu em outros momentos das entrevistas foi a necessidade
de obter a atenção das professoras: saber que elas se preocupavam
com o andamento de todos era um consolo para os licenciandos, que pareciam
reconhecer a necessidade de receber uma atenção maior.
Por que?
Uma tentativa
de resposta a essa questão pode vir da caracterização
do grupo classe como conjunto de pessoas que apresentavam grande dificuldade
de se relacionar, de dividir seus problemas, de admitir que podiam aprender
uns com os outros. De fato, em vários momentos os estudantes manifestaram
o desconforto de pertencer à classe. Inclusive, vez ou outra, surgiram
conflitos nos quais os licenciandos não se mostraram disponíveis
para negociar uma solução. Assim, nossa interpretação
é que o grupo, implicitamente, utilizava o momento de leitura das
Crônicas para realizar um sonho sem ter que se comprometer com as
conseqüências.
Em nosso
caso a Crônica apontava explicitamente e implicitamente conteúdos
referente à formação de professores: veiculava idéias
e analisava ações. Entretanto não cobrava nada quanto
à assimilação dos mesmos. Isso tinha algumas implicações
evidentes: a ‘gratuidade’ tornava o evento – leitura da Crônica –
mais leve: sua repetição ao longo das 14 semanas de aula
sempre era esperada com um certo gosto. Se tivesse havido uma reflexão
ou um trabalho sistemático sobre seu conteúdo, que pudesse
contribuir para que a classe se articulasse em torno de uma tarefa concreta,
o clima provavelmente teria sido diferente, pelo menos em parte e depois
de um certo tempo. Entretanto, esse trabalho sistemático poderia
ter provocado um ganho em profundidade e favorecido um maior envolvimento,
pelo menos para uma parte dos licenciandos. A fala de um aluno parece confirmar
essa suposição, ao afirmar que o planejamento do mini-curso
de seu grupo não foi modificado porque já estava pronto,
embora reconhecesse que informações novas estavam disponíveis
nas Crônicas. Talvez um investimento maior de professores e estudantes
nas discussões em plenária tivesse modificado essa inércia
e favorecido a apresentação de um planejamento mais coerente.
Enfim,
resta a dúvida: esses ganhos teriam compensado a perda de ‘leveza’
das Crônicas e a eventual insatisfação daqueles que
viriam a se sentir ‘obrigados’ a refletir numa determinada direção?
Ou
seja, quanto foi modificado o saber individual dos alunos? Que consequências
teria nesse saber uma mudança na forma de trabalhar com a Crônica
na sala de aula?
Um aspecto
referente ao saber dos licenciandos é o quanto ele foi modificado
na direção do conhecimento pedagógico pela contribuição
das Crônicas. A teoria sobre a formação do professor
era apresentada em geral de forma implícita, na descrição
e interpretação das experiências, nas questões
levantadas e em comentários explícitos. Muitos licenciandos
na avaliação final deixaram claro que o curso foi pobre em
conteúdo, sendo que alguns queixaram-se explicitamente da falta
de leituras sobre como ser professor. Para outros, o espaço dado
às leituras em geral foi insuficiente, no entanto, para a maioria
dos entrevistados a teoria estava presente nas Crônicas, apesar de
alguns não saberem exatamente de qual teoria se tratava. Interessante
o comentário de um licenciando para o qual as professoras não
fariam um texto desse tipo se não estivessem embasadas teoricamente;
a idéia de que "sei que existe teoria mas não sei dizer
onde" foi compartilhada por outra estudante.
Parece
que o modo de interpretar os eventos nas Crônicas chamou a atenção
de alguns licenciandos, provavelmente pela coerência das afirmações
ou a profundidade dos argumentos, criando a ‘impressão’ de uma presença
implícita da teoria na sala de aula. Vários estudantes confirmaram
ter aprendido com a teoria apresentada nas Crônicas. Porém,
a explicitação dessa teoria parecia estar ao alcance de poucos
licenciandos. O estranho é que quando foi perguntado se teria sido
melhor apresentar a teoria de forma explícita, a mesma estudante
que não sabia dizer aonde estava a teoria embora admitisse sua existência,
ficou em dúvida. Isso sugere que não havia um desejo explícito
de conhecer as teorias, o importante seria saber conduzir as intervenções
didáticas. Em nossa interpretação os alunos, ao negarem
a influência das Crônicas no planejamento, referiam-se ao planejamento
escrito, elaborado antes e durante o Estágio, e não à
realização efetiva desse planejamento. De fato, nos parece
que os planejamentos escritos não incorporaram as sugestões
das Crônicas, mas a prática efetiva apresentou soluções
muito mais coerentes com seu espírito. Provavelmente idéias
como flexibilização do planejamento, levantamento de questões,
atenção às respostas dos alunos foram adotadas eventualmente
e implicitamente, sobretudo nos momentos de maior dificuldades, sem uma
correspondente consciência. Em nossa interpretação
o saber subjetivo dos estudantes foi modificado, pelo menos em parte, sem
uma correspondente mudança na linguagem e na reflexão. Eles
sentiram a necessidade de um suporte teórico para a prática
didática, porém não conseguiram se apropriar explicitamente
das sugestões das Crônicas.
Em resumo,
o contexto da Disciplina exigia bastante esforço dos licenciandos
durante as experiências inovadoras do Estágio. Isso parece
ter implicado num desejo de encontrar na sala de aula um ambiente acolhedor,
diferente das dificuldades de relacionamento que caracterizavam aquele
grupo. O momento de leitura das Crônicas funcionou como uma satisfação
ilusória, no qual o grupo vivia a possibilidade de uma fusão
sem compromissos, que não implicava na exposição dos
indivíduos, nem na mudança de seus saberes subjetivos. A
Crônica, enquanto presente das professoras para os estudantes, teve
um efeito parcial na mudança desses saberes; acreditamos que uma
mudança mais substancial nessa perspectiva exigiria uma mudança
no clima da sala de aula, que por sua vez, também contribuiria para
isso. Que sugestões podem ser esboçadas para o futuro?
Algumas
experiências passadas na formação de professores (Freitas,
1998; Franzoni, 1999), bem como a experiência vivida pela equipe
nessa pesquisa nos fornecem algumas pistas. A demanda dos estudantes por
um clima de classe acolhedor pode ser atendida por meio de um trabalho
intelectual intenso e cooperativo. Essa perspectiva parece requerer a instauração
de um compromisso do docente: não ceder de seu desejo de modificar
o saber subjetivo dos licenciandos na direção dos conhecimentos
científico e pedagógico por ele considerados relevantes.
O efeito esperado desse compromisso do docente deveria ser a criação,
por parte dos licenciandos, de um espaço para a Disciplina, ou seja,
um correspondente compromisso na construção de uma experiência
em conjunto. No caso da disciplina em questão, isso implicaria numa
articulação mais estreita entre a Crônica e as atividades
de sala de aula e extra classe.
Uma possibilidade
de realizar esta articulação seria atribuindo à Crônica
o papel de introduzir um problema a ser pesquisado como tarefa ou a ser
discutido na sala de aula. Dessa forma o momento de leitura da Crônica
poderia ser variado de acordo com seu conteúdo e sua função.
Se a Crônica pretendesse apresentar o objetivo e a justificativa
teórica das ações programadas pelo docente, poderia
ser trabalhada no início da aula. A Crônica XIV, por exemplo,
apresentava a avaliação da Disciplina do ponto de vista das
docentes e propunha o mesmo trabalho para os licenciandos naquela aula:
isso os incentivou a comentarem o texto e a iniciarem a tarefa. Outra função
da Crônica poderia ser problematizar os objetivos previstos com uma
atividade; neste caso a leitura da Crônica poderia ser deixada para
dar início a avaliação dos efeitos do que foi planejado.
Finalmente se a Crônica cumprisse o papel de introduzir e justificar
uma tarefa a ser realizada extra sala de aula, mediante o estudo de alguma
bibliografia por exemplo, a leitura poderia constituir a conclusão
da aula antecipando os efeitos esperados. Talvez o conjunto e a articulação
de todas essas possibilidades consigam tornar mais intensa a troca entre
licenciandos e docentes.
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