DA RECEITA AO MODELO: COMO ARTICULAR CONTEÚDOS E ESTRATÉGIAS DE ENSINO NA FORMAÇÃO DOCENTE?

Sílvia Nogueira Chaves[1]



Resumo

    O presente trabalho é parte da pesquisa participante, na modalidade narrativa, que resultou em minha tese de doutorado. Nela relato e analiso prática de formação continuada de professores de ciências do Ensino Fundamental desenvolvida por grupo de 15 professores-formadores (dentre os quais a autora se inclui), especialistas em Educação em Ciências, junto a 13 Delegacias de Ensino, no âmbito do Projeto de Educação Continuada (PEC) da Secretaria de Estado de Educação de São Paulo, em convênio com o Banco Mundial e uma universidade pública do interior do Estado de São Paulo. Na construção do material empírico, assim como na organização do relato produzido a partir dele, optei por assumir a perspectiva da investigação narrativa proposta por Larrosa (1995). Isso porque, como método investigativo, a narração se presta para captar o que Ezpeleta e Rockwell (1989) consideram como a história não documentada da educação, ou seja, a que é produzida no contexto das práticas educacionais efetivadas. Destaco que, as vozes, aqui apresentadas, dos sujeitos que construíram o processo de formação de professores que vivenciei, e do qual fui igualmente artífice, foram obtidas basicamente nas reuniões de planejamento e avaliação das atividades desenvolvidas pelo grupo de formadores, em entrevistas com membros do grupo de formadores, em materiais (roteiros e projetos) produzidos pelo grupo de formadores e em notas de campo que produzi durante o processo de formação investigado. A temática que trago para discussão neste texto emerge da análise do descompasso entre as expectativas dos professores participantes do PEC em relação à aprendizagem de atividades práticas, especialmente de experimentação no ensino de ciências e a forma como nos formadores lidamos com essa questão no desenvolvimento do processo investigado. O resultado de tal análise sinaliza para a necessidade de por em disponibilidade, na formação de professores, modelos de ação docente que articulem conteúdos científicos e estratégias de ensino, se quisermos, de fato, transformar as práticas educativas hoje vigentes no ensino de ciências.




Abstract

    The present work is part of the participant search, in the narrative mode, that has resulted in my doctorship thesis. There, I mention and analyse the practice of the continuous formation of science teachers of the Fundamental Education developed by a fifteen former-teachers group (among them the author), Science Education specialist, with thirteen Instruction Offices, in the scope of Continuous Education Project (PEC) of the Bureau of Education of São Paulo state, at a convenant with the World Wide Bank and a public university in the country of São Paulo state. In the building of the empiric material, as in the organization of the report produced from it, I chose to assume the perspective of the narrative investigation proposed by Larrosa (1995). That because, as a investigative method, the narration serves to capture that Ezpeleta e Rockwell (1989) consider as the no documented history of education, that means, the one that is not produced in the context of the educational practices put into effect. I destach that the voices, presented here, of the subjects that have built the process of teachers forming that I lived, and from which I was equally a builder, were basicaly obtained in the planning and avaliations reunions of the activities developed by the formers group, in interviews with members of the formers group, in materials (scripts and projects) produced by the formers group and in the notes of field that I produced during the process of forming investigated. The set of themes that I bring to discussion in this text emerges from the analysis of the disorder between the expectations of the teachers participant of PEC in respect to the learning of practice activities, especially of experimentation in the science teaching and the mode as we formers deal with that question in the development of the investigated process. The result of this analysis signalyzes to the necessity of puting in availability, in the forming of teachers, models of teaching action that articulate scientific contents and strategies of teaching, if we want, indeed, to transform the educative performances valid in the teaching of science today.


Expectativas e perspectivas de formação docente

    Experimente perguntar para um professor de ciências qual sua expectativa, desejo ou intenção ao participar de um curso, disciplina ou qualquer outra iniciativa de formação docente e, quase invariavelmente, ouvirá respostas que podem ser sintetizadas em uma única frase: "aprender estratégias para ensinar melhor os conteúdos científicos". Essa é a resposta que tenho ouvido ao longo dos últimos nove anos nos quais venho me dedicando à formação de professores, na sua maioria de ciências, e que ainda hoje, ou cada vez mais hoje, causa-me profunda admiração e respeito por esses profissionais que diante das condições aviltantes e desrespeitosas a que vêm sendo submetidos em seus trabalhos, mantém e reiteram, nesta frase, seu compromisso com a sociedade representada por alunos e pais que a eles confiam a educação das novas gerações. Em que pese toda ética embutida nesse compromisso assumido, não é supérfluo questionar: o que significa "ensinar melhor"? De que fatores depende um melhor ensino de ciências?

    No âmbito do ensino de ciências, há alguns "lugares comuns" como respostas a essas questões. Dentre eles, o entendimento de que a melhoria do ensino de ciências depende da implementação de atividades práticas, especialmente as experimentais na abordagem dos conteúdos científicos e que aos cursos de formação docente, em especial a continuada, cabe a tarefa de fornecer aos professores ‘práticas receitas pedagógicas’ para implementá-las em suas salas de aula.

    No programa de educação continuada de professores de ciências, objeto de investigação dessa pesquisa as concepções manifestadas pelos professores não diferem dessa compreensão geral. O primeiro indício de tal concepção despontou quando solicitamo-lhes, em nosso primeiro encontro[2], que relatassem algumas de suas experiências docentes que considerassem bem sucedidas.

    Durante o planejamento do curso já prevíamos que os professores tenderiam a considerar bem sucedidas as aulas que envolvessem realização de experimentos, atividades práticas do tipo jogos, excursões etc, o que se confirmou. Por experiência e vivências próprias, sabíamos que tais elementos faziam parte do imaginário do professor como características de um ensino de ciências bem sucedido. Elementos difundidos, reforçados durante muito tempo (e até hoje) nos livros didáticos, na literatura sobre educação científica e nas propostas de treinamento, capacitação de professores (HODSON, 1994). Além disso, essas atividades, em geral, costumam ser mais motivantes para os estudantes, e qual professor não acha que se saiu bem quando percebe que sua aula agradou o aluno?

    Nosso grande desafio era como superar essa análise que considerávamos superficial, levando os professores à discussão de que esses elementos podem até ser importantes, mas não são garantia de prática bem sucedida, sem, contudo, descredenciar suas concepções e perspectivas. Isso porque tínhamos consciência que a introdução de atividades práticas no curso era a expectativa de quase a totalidade dos professores participantes. Tal expectativa, manifestada já no primeiro Encontro, provocou uma reviravolta na proposta original do curso no que tange as estratégias de discussão das temáticas que compunham sua programação que até então haviam sido apresentadas no plano de curso da seguinte forma: I. A Prática Docente dos Participantes: Características e Problemas; II. Dilemas e Controvérsias Históricas no Ensino de Ciências; III. Modelos Clássicos e Alternativos do Ensino de Ciências; IV. Planejamento, Aplicação e Avaliação de uma Unidade de Ensino de Ciências; V. Aprofundamentos de Tópicos de Conteúdos de Ciências; VI. Visões de Ciência, Ambiente e Educação e suas Relações com o Ensino de Ciências; VII. Indicações para Renovação Experimental do Ensino de Ciências.

    A apresentação das temáticas tal como estão dispostas acima, gerou reações entre os participantes que podem ser classificadas como: manifestação explícita de descontentamento, descontentamento tácito, até um suposto convencimento que mais tarde foi se confirmando como acatamento da autoridade acadêmica que representávamos.

    Na reunião do grupo de formadores, após o primeiro encontro com os professores, essas diversas formas de reações passam a ser alvo de discussões no grupo que vai, não sem grandes polêmicas, reconfigurando sua forma de trabalhar as temáticas. Acompanhemos esses momentos:

– (...) Nas expectativas dos professores, tanto na localidade X quanto nas outras, (Delegacias) surgiu a idéia de que nós iríamos contribuir, isso a gente já esperava, para ensinar a usar o laboratório, levar experiências. Esse tipo de coisa é uma coisa bastante presente como expectativa de todos eles, e era uma coisa que a gente já sabia que ia acontecer. (Thais)[3]

– Nesse aspecto que a Thais está falando..., vocês estão com o plano de curso na mão? Teve uma professora que falou textualmente que os três primeiros itens do programa não serviam para nada, que (o curso) só ia começar a interessar a partir do quarto item. Foi explícita dizendo que; o que ela queria era que a gente ensinasse como fazer atividades práticas, gostosas, legais, interessantes. E por isso ela marcou bem que esses três primeiros itens do nosso programa para ela não interessavam nada. (Sílvia)

– (...) Eles, professores, têm dúvidas ou expectativas semelhantes às que foram colocadas, em relação a livro didático, proposta curricular, sala ambiente... Expectativas que o curso trabalhe claramente a questão de atividades para eles. (João)

– (...) Na hora da discussão pareceu que eles (professores) não sabem como abordar determinados temas de forma mais criativa, então, a expectativa do curso estaria depositada aí, formas de trabalhar determinados conteúdos. (Clara)

– O plano de curso não foi questionado, quer dizer, eu acho que tem esse elemento de surpresa, de uma certa autoridade, que a gente representa, da Universidade, mas também significa que eles não estavam tão predispostos a querer receituários como em outras ocasiões onde não havia discurso que conseguisse evitar esse tipo de situação. (Igor)
 

    Desde que começamos a planejar o curso sabíamos que em algum momento a expectativa por trabalhar técnicas de ensino viria à tona, e por isso julgávamos estar preparados para lidar com situações emergentes usando o poder persuasivo de nossos argumentos sobre a perspectiva limitada e limitante de se tratar a formação docente como mera transmissão de receitas pedagógicas.

    Na contramão dessa concepção entendíamos a formação como processo de busca de autonomia e nessa busca compreendíamos que o instrumental básico era a consciência do caráter ideológico da tarefa educativa, daí porque insistirmos desde o início (via relato de experiências pedagógicas de sucesso) em trabalhar o desvelamento de concepções de ensino, aprendizagem e conhecimento dos professores.

    Superar o modelo tecnicista de formação de professores era preocupação expressa já no texto da proposta original do curso, no qual se reafirma essa intenção negando a prática tradicional de transmissão de conteúdos e técnicas de ensino previamente estruturados e alinhando a nossa proposta de capacitação com outras que consideram como ponto de partida da formação a prática docente cotidiana dos professores.

    Contudo, se eram claras, para nosso grupo, as limitações de um modelo de formação que concebe formar como ‘treinar’, ‘domesticar a prática docente’, para os professores essa era uma aprendizagem que ainda precisava ser feita e não seria a força da coerência de nossas inflamadas argumentações que alteraria essa concepção. Foi isso que começamos a perceber no decorrer dos encontros e nas discussões em grupo.

– Pelas conversas (dos professores), mesmo pela aceitação tácita do plano de curso, ou por aquela expressão explícita de que os três primeiros temas (do programa) não serviam para nada, o fato é que eu acho que a gente não vai poder adiar muito trabalhar com alguma forma de atividade. Claro que a gente também não vai poder fugir daquilo que a gente acredita do estilo que a gente quer dar ao curso (...) Para eles (professores) a gente está num ritmo que parece não acompanhar muito as expectativas deles. Então, acho que a gente tem que pensar nisso porque aí a gente está desmotivando ao invés de motivar. Na localidade X não houve essa colocação mais explícita, mas alguns professores me chamaram particularmente e falaram assim: ‘sabe o que é, a gente estava achando que era diferente o curso, a gente queria saber se vai ter no curso alguma contribuição para a sala de aula, mesmo, (...) algumas atividades, alguma coisa’. Então, eu acho que é um alerta para a gente, para a gente começar a pensar. (Sílvia)

– É, eu acho que agora o que está sendo levantado é uma questão crucial. Primeiro: não é porque ele (professor) aceitou o plano de curso, não é porque ele não pediu receitas etc., que lá no íntimo ele não tenha alguma expectativa de aproximação desse desejo oculto que ele tem, essa necessidade. Do ponto de vista metodológico, para eles o que existe são as técnicas de ensino que dão a indicação do bem e do mal sucedido. O que está realmente oculto, isso é inequívoco, são as concepções ciência, ambiente, educação. (...) Nós tínhamos uma solução dentro do plano original, o que não significa que isso não possa ser mexido. Só que aí nós temos que fazer uma avaliação do tempo que temos para poder dar uma virada, e eu acho que se tivéssemos um certo tempo daríamos uma belíssima virada porque hoje a gente tem consciência de que precisa produzir um salto qualitativo no sentido de tentar encontrar uma fórmula de a partir das expectativas deles (professores), desse concreto deles que são técnicas, dessa supostas experiências mal ou bem sucedidas de causas e características nebulosas, etc., você aos poucos, sem necessariamente precisar dizer: concepção de ciência, concepção... que tem mais a ver com academia. O caminho que a gente projetou aqui aparentemente é um pouco clássico, um pouco tradicional, um pouco acadêmico demais, da maneira como agora nós estamos sentindo e querendo trabalhar. Então, se é assim, qual é a estratégia que nós queremos colocar em substituição? (...) Então acho que o desafio é esse "como não perder de vista isso (...) não amesquinharmos a nossa proposta, sem perder de vista a expectativa emergente, natural dos professores", o que nós vamos fazer agora de maneira a pegar situações emergentes e aproveitar ou trazer como nossas para começar a explorar esse referencial teórico, como vamos começar a explorar? (Igor)
 

    Para nós essa tomada de consciência não foi tranqüila como pode levar a crer o trecho selecionado. Em reunião anterior, a tensão gerada pela necessidade de redefinir os rumos do curso havia sido grande. Naquela ocasião, diante da revelação de descontentamento dos professores, as opiniões se dividiram em nosso grupo.

    Havia os que defendiam (dentre eles eu) a utilização imediata de atividades práticas experimentais como estratégia para discussão das concepções de ciência ambiente e educação que gostaríamos de introduzir como subsídio para análise da prática docente. Entendíamos, à semelhança de Martins (1997), que aquilo que se vivencia é introjetado com mais força do que a teoria ouvida. Além disso, julgávamos acadêmico demais o encaminhamento dado ao primeiro encontro com os professores – com estilo de pós-graduação, como mencionou João - para alcançar os professores em seus anseios e necessidades.

    Outros alegavam ser prematuro introduzirmos tais atividades naquele momento e que já tínhamos criado algumas dívidas no primeiro encontro que precisavam ser saldadas, como por exemplo, a discussão do resultado de entrevista com alunos que solicitamos que os professores realizassem. De fato as estratégias adotadas no primeiro encontro já antecipavam ou preestabeleciam parte do encaminhamento a ser utilizado no segundo, contudo não ocupariam a totalidade do tempo de que dispúnhamos para aquele encontro. Ademais, nossa proposta não se restringia ao momento subsequente imediato do curso, nós a defendíamos como um pressuposto a ser adotado dali por diante e não só para esfriar os ânimos, atenuar expectativas. Então, por que seria prematuro introduzir atividades práticas naquela ocasião? Que condições seriam necessárias para que elas fossem implementadas? O que as tornaria adequadas?

    Confesso que naquele momento a alegação de prematuridade me soava descabida, por expressar mera resistência a mudar um estilo de ensino no qual se estava comodamente à vontade, familiarizado. Demorei a entender o pressuposto que estava subjacente àquele posicionamento. Foi somente por ocasião de uma reunião do grupo de formadores que compreendi a lógica que o sustentava.

– Eu estou desmistificando ao contrário a experimentação. Não que eu achasse que ela não devia ser feita. Mas não tinha me passado pela cabeça que a experimentação pudesse ser um tema gerador. Nunca! Foi uma transformação que vai ser minha, pessoal, ou seja, se alguém perguntar o que me aconteceu de fundamental (durante a participação no PEC), eu diria muitas coisas, mas pessoalmente nem me passava pela cabeça isso (usar a experimentação como tema gerador). (Igor)

– Engraçado que no início havia até uma certa resistência quanto à experimentação nos primeiros encontros. (Elisa)

– Era eu, Clara, Thais e João puxando a corda para um lado, e o Igor resistindo. (Sílvia)

– Lógico, porque no fundo eu devia achar que era muito perigoso a gente adotar a experimentação porque a gente estaria acabando por validar uma coisa que estava sob crítica, não que devia ser banida desse ensino, de jeito nenhum, nunca, em nenhum momento eu queria dizer isso. E ao partirmos para essa prática, que a gente pode experimentar e verificar como que é possível trabalhar como tema gerador, como qualquer outro, onde você aplaude, mostra as vantagens de um lado e dificuldades de outro etc. Então é um processo, para todo mundo é um processo, cada um tem sua trajetória que desenvolveu até aquele momento na vida. (Igor)
 

    Essa auto análise de Igor me faz recordar a reflexão de Paulo Freire (1992) na qual diz que: Os momentos que vivemos ou são instantes de um processo anteriormente iniciado ou inauguram um novo processo de qualquer forma referido a algo passado. (...) Nós é que não percebemos o ‘parentesco’ entre os tempos vividos e perdemos assim a possibilidade de ‘soldar’ conhecimentos desligados e, ao fazê-lo, iluminar com os segundos, a precária claridade dos primeiros.(...), deixando assim de desvelar a razão de ser fundamental do modo como nos experimentamos em cada momento (19 e 28). (destaques no original)
 
    Igor acabara de localizar, naquele instante, o parentesco entre seus dois momentos profissionais soldando-os na confecção de nova aprendizagem e eu, agora com distância e tempo necessários para reflexão, entendo sua resistência à utilização de atividades experimentais no curso e compartilho com o leitor essa atual compreensão.

    A biografia profissional de Igor é profundamente marcada por uma espécie de deificação do ensino experimental, muito própria do movimento de reforma curricular do ensino de ciências nos idos anos 70, ao qual esteve intimamente envolvido, chegando, até mesmo a participar da tradução de alguns projetos norte americanos que serviam de inspiração e referência para a reforma. Nos anos 80, do endeusamento passou-se à diabolização do ensino experimental, esquadrinhando-se e revelando-se todas suas mazelas, ideologias, e despropósitos (HODSON, 1994).

    Igor não passou imune a esses diversos momentos históricos e num movimento usual de quem abandona uma concepção para abraçar outra antagônica acabara por inconscientemente, talvez, negar o valor da primeira, passando a temer qualquer possibilidade de validá-la como elemento preponderante da Educação em Ciências.

    Nesta perspectiva, as técnicas experimentais tão divulgadas na década de 70 nos cursos de capacitação de professores de ciências, a moda de receitas solucionadoras dos problemas de ensino (FURIÓ, 1994; CHAVES, 2001), constituíam-se agora para Igor um perigo iminente de reincidirmos num modelo de formação que a priori negávamos. Mesmo com toda sua experiência profissional (ou seria por causa dela?) naquele primeiro momento ele não conseguiu superar a visão, digamos, reformista da experimentação para usá-la dentro de novos propósitos e pressupostos. E como ele era uma liderança no grupo, o segundo Encontro com os professores participantes manteve o caráter eminentemente acadêmico.

    Todavia, nossa insistente convicção, aliada ao descontentamento explícito dos professores para com o encaminhamento do curso fizeram-no (Igor) capitular inicialmente e aderir, finalmente, ao uso da experimentação com estratégia de discussão.

    Assim, no terceiro encontro com os professores já foram incluídas atividades experimentais para serem desenvolvidas pelos professores como objeto de reflexão, agora não apenas verbalizado, mas vivido. Nosso objetivo ao introduzirmos a atividade "características e papéis didáticos das atividades experimentais no ensino de ciências" era discutir as concepções de ciência, ensino e educação subjacentes a diferentes tipos de atividades experimentais, assinalando, simultaneamente, as possibilidades e contextos de utilização de cada um deles, assim como o perfil de educando que pressupunham formar. Revelando, desta forma, o caráter ideológico das estratégias de ensino.

Nós não estamos usando experimentação por experimentação. Temos usado a experimentação, dentre outras razões, porque é um elemento da realidade, da expectativa deles. Estamos pegando um elemento da concepção prévia deles, do inconsciente coletivo para trabalhar os elementos que nós queremos trabalhar. (Igor)
 
    Com este propósito, elaboramos quatro atividades (investigativa, expositivo demonstrativa, aplicativa e redescoberta) cuja diretividade – liberdade ou não para elaborar procedimentos – e envolvimento do aluno com a realização do experimento variavam em freqüência e intensidade entre uma e outra. Vale ressaltar, que todas as atividades giravam em torno do tema flutuação dos corpos envolvendo, portanto, a discussão de conceitos como densidade, massa, volume e peso. A realização das quatro atividades foi dividida entre dois Encontros, tendo sido a investigativa e a expositivo-demonstrativa realizada no terceiro e as outras duas no quarto.

    A receptividade que obtivemos em relação às primeiras atividades parecia indicar que acertáramos o passo e trilhávamos o caminho certo ao encontro das expectativas do professorado. Entretanto, já no segundo grupo de atividades, portanto no quarto Encontro, as queixas retornaram, agora não mais endereçadas a estratégia de ensino, mas aos conteúdos envolvidos na experimentação.

Por duas vezes nós fomos interrompidas por discussões deles (professores) de insatisfação com a estrutura do curso, porque o curso estava repetindo conteúdo. Porque densidade eles já sabiam, porque eles já tinham tido uma aula com a Thais no Encontro passado. Aí eu expliquei que não era repetição do conteúdo e que eles prestassem atenção a qual era o objetivo da atividade. Na atividade o conteúdo não era o que estava sendo priorizado, era a discussão das características das atividades experimentais. Mas eles acharam que isso eles já sabiam – quais eram as características – e não precisavam ficar no mesmo conteúdo e que a gente devia dar outro conteúdo de Física ou de Química que era o que eles tinham dificuldade. (Sílvia)
 
    Estávamos diante de novo problema, ou melhor do mesmo problema, mas agora com outra roupagem. Explico. Quando introduzimos as atividades como estratégia para discutirmos concepções de ciência, ensino e educação, mantendo a mesma temática (flutuação dos corpos) nos quatro enfoques de experimentação frustramos, novamente, as expectativas dos professores de obter técnica e conteúdos associados em forma de ‘práticas’ receitas de ensino.

    Nesta perspectiva, nem o nosso nem outro curso qualquer de formação daria conta de atender as demandas dos professores visto que os conteúdos abordados em ciências são de uma vastidão imensurável e mutável (CARDOSO et. al., 1991), o que nos colocaria diante da tarefa infinda de elaborar estratégias de ensino e, o que é pior, essa visão de formação redunda em eterna dependência dos professores para com os especialistas. Esta foi uma preocupação manifestada por David durante entrevista.

– A falta de conteúdo que o professor reclama nesse sentido é exatamente o desconhecimento dele do conteúdo mesmo.(David)

– Tu achas que a gente não contemplou o conteúdo? (Sílvia)

– Eu acho que não foi um foco do nosso curso (David)

– E isso é bom ou ruim no teu ponto de vista? (Sílvia)

– (silêncio reflexivo prolongado) (...) Um curso dessa natureza se você vai trabalhar a relação forma e conteúdo você não pode dar conta de todo o conteúdo que é o que o professor queria, não é? Então, eu acho que deveria haver um curso específico para isso.

– Outro curso? (Sílvia)

– É, mas aí é que tá, quando você dá o conteúdo isso vai depender da forma com que você vai trabalhar, essa forma vai influenciar muito a prática pedagógica do professor. Por que se você trabalhar dentro de determinados padrões, digamos com três parâmetros, ele (o professor) vai trabalhar com aqueles três parâmetros. (David)

– Entendi, tu achas que se a gente trabalhasse via conteúdo o professor ia tomar aquela forma de trabalhar como uma receita. (Sílvia)

– Hum hum, exatamente. (David)
 

    Era essa relação de dependência que tentávamos evitar a qualquer custo, até mesmo o da simpatia e adesão dos professores à nossa concepção de formação continuada. Entendíamos a formação como espaço-tempo de construção de autonomia docente e que este processo de construir a autonomia envolvia essencialmente a consciência das ideologias entranhadas nas técnicas, estratégias e abordagens de conteúdos de ensino. Entendíamos, ainda, que essa consciência permitiria ao professor exercer sua autonomia ao fazer opções, construir sua proposta pedagógica e até mesmo usar a de outros, mas jamais ser usado como veiculador ingênuo de propostas alheias.

    Mas como superar essa relação de dependência quando o professor quer continuar dependente? Dito de outra forma, como estimular a busca da autonomia sem, em nome desta, cair no extremo de decidir por ele o que lhe é melhor profissionalmente? Que caminhos trilhar que reafirmando nosso intenção libertária não a negue com uma conduta autoritária do tipo "confiem em mim que eu sei o que é melhor para vocês"? Como construir um "caminho do meio", de conciliação entre nossas intenções com as necessidades e interesses dos professores?

    Essas questões que hoje formulo explicitamente não foram verbalizadas pelo grupo, mas consistiam em preocupação constante, emoldurada, quase sempre, pelo temor de sermos incoerentes com o que teoricamente defendíamos. Temor que nos fazia estar sempre às voltas com reformulações de estratégias, mas não de enfoque.

    Nesta perspectiva, vale ressaltar que apesar das vozes dos professores serem trazidas para o grupo, via manifestações de cada formador, isso não garantia que elas fossem discutidas em todas suas implicações ou linearmente incorporadas na elaboração da continuidade do curso. Muitas vezes elas eram superpostas, atropeladas mesmo, por situações mais urgentes que desviavam nossa atenção dos problemas pedagógicos para os burocráticos. Isso porque, freqüentemente, na vida estamos sempre resolvendo o imediato e adiando o importante[4]. Assim, no imediatismo em que muitas vezes fomos engolfados, as decisões iam sendo tomadas, os encaminhamento dados e nesse emaranhado entre o refletido, o semi refletido e o irrefletido íamos construindo nossa prática de formação de professores e simultaneamente nos formando nela.

    A discussão em torno de abordar ou não conteúdos específicos do ensino de ciências no curso era uma dessas questões que reputo à condição de semi-refletida. Isso porque, apesar de ser freqüentemente ventilada em nossas reuniões, não dispúnhamos de tempo para refletir sobre ela, em profundidade, no grupo como um todo, o que provocava a constante sensação de déficit, como mais adiante veremos nas declarações de alguns formadores. Contudo, como nos diz Perrenoud (1997), hesitar, temporizar, deixar correr as coisas, significa também decidir (108).

    Nessa perspectiva, nossa decisão foi não privilegiar discussões sobre os conteúdos ensinados em ciências. Isso porque analisávamos essas questões sempre pelo viés do temor de incorrermos na "receita pedagógica". Todavia, independente de nossa intenção original, os professores assimilaram a abordagem experimental dos conteúdos envolvidos na temática "flutuação dos corpos" como lhes era conveniente e não raras vezes vinham partilhar conosco a alegria de terem utilizado as mesmas atividade em suas aulas, com seus alunos. O que se repetiu com a projeção do filme "E a vida continua..."[5]

    A projeção do filme, estratégia que se seguiu à da vivência das atividades experimentais, levava adiante nossa intenção de tornar menos pesada a introdução de aspectos teóricos que julgávamos imprescindíveis na construção de uma prática docente emancipada, autônoma. Neste sentido, o filme, cujo enredo discute recentes pesquisas sobre a AIDS, abordando-as simultaneamente com base em aspectos internos e externos a prática científica[6], sintetizava grande número de reflexões que gostaríamos de realizar junto com os professores. Dentre elas, a já mencionada concepção de ciência acrescida de discussão sobre o papel da experimentação na produção do conhecimento científico.

    Nossa intenção era discutir, via filme, que o conhecimento científico depende muito mais de idéias do que de experimentos para desenvolver-se, portanto, o empirismo é tão somente uma das formas, cada vez mais remota (LATOUR e WOOLGAR, 1997), de construção da ciência e, assim, relativizando a importância da experimentação na produção do conhecimento científico relativizá-la também no ensino de ciências. Além disso, buscávamos desvelar a natureza eminentemente ideológica do conhecimento científico, desmistificando e desmitificando ciência e cientista. Todo esse processo implicava dizer que se a ciência não é monolítica conceitualmente, tampouco em suas formas de produção, o ensino dela também não o poderia ser. Esse entendimento colocava o professor diante da tarefa de optar a partir de que ângulo abordar a ciência, ainda que ele mantivesse sua concepção empirista essa passaria as ser uma opção e não o único caminho possível de aproximação ao conhecimento científico.

    Na tentativa de diminuir essa distância os professores acabaram apropriando-se da estratégia da projeção do filme como se essa constituísse uma sugestão de como abordar a temática AIDS, em suas aulas. Contudo, essas tentativas não tardavam a virar frustração, isso porque como mera técnica de ensino, ela logo se esgotava, gerando insatisfação e a necessidade de que outras a sucedessem, criando vínculo de dependência professores-especialista que somente seria quebrado com a emancipação do primeiro.

    Obviamente os resultados do uso dessa e de outras estratégias de ensino não foi uniforme entre os professores. Havia os que se sentiam aliviados com a perspectiva, por exemplo, de que um ensino de ciências de qualidade não implica a assunção de uma conduta empirista em aula. Porém, grande parte deles utilizou as atividades experimentais como receita a ser transposta para sua sala de aula dando evidências de que nossas estratégias não tinham dado conta de fazê-los ampliar suas compreensões acerca da não neutralidade das técnicas de ensino, mantendo-se, portanto, o entendimento do uso da experimentação no ensino de ciências na dimensão instrumental de objetivo motivacional.

    Esse era um dos riscos que corríamos por estar sempre no limite, na tensão entre atender as expectativas dos professores e manter a perspectiva de nossa propostas de formação, dentre eles o de não tutelar os professores assumindo como nossa a tarefa de elaboração de suas propostas pedagógicas. Essa tensão, inúmeras vezes temor, esteve expressa, ainda, quando por ocasião da projeção do filme decidimos entregar aos professores uma coletânea de materiais impressos (capítulos de livros paradidáticos, artigos de jornais etc.) sobre a AIDS. Materiais que envolviam desde a discussão de aspectos técnicos da doença (formas de contágio, mecanismos de ação do vírus etc.) até os que abordavam a temática do ponto de vista social (preconceito para com os doentes, comportamentos de risco etc.).

    A polêmica instaurada em torno da entrega daquele material para os professores decorria do temor de parte do grupo, especialmente Igor, de que tal material suplantasse ou desviasse a atenção do propósito com que estávamos exibindo o filme para a discussão do conteúdo técnico sobre a AIDS. Portanto, a tensão estava entre atender uma demanda anunciada pelos professores, isto é, discutir conteúdos específicos e novamente, isso ser "desvirtuado" pelos professores.

    Hoje, olhando aqueles acontecimentos de outro ângulo, suponho que do ponto de vista epistemológico, um dos, se não o maior, fantasma a pairar sobre nossas decisões era o da coerência teórica. Temíamos cair no autoritarismo, no tecnicismo, no conteudismo, em todos os ‘ismos’, rótulos que ajudamos, como membros da academia, a criar e criticar em propostas pedagógicas para a educação em ciências e consequentemente nas ênfase dos processos de formação docente.

    Essa necessária preocupação com a coerência quando equilibrada funciona como horizonte a orientar os rumos da ação, em desequilíbrio pode imobilizar ou o que é pior, provocar evasão e abstenção diante do risco de envolver-se em situações em que o pensar e o agir podem ser confrontados. Contudo, como nos diz Freire (1992):(...) uma visão profundamente ingênua da prática educativa, vista como prática neutra, a serviço do bem-estar da humanidade, não é capaz de perceber que uma das bonitezas desta prática está exatamente em que não é possível vivê-la sem correr risco. O risco de não sermos coerentes, de falar uma coisa e fazer outra, por exemplo (77).

    É a assunção do risco que nos possibilita avaliar, refletir sobre o praticado, o feito e nesse processo reconstruí-lo, reelaborá-lo, aprender com ele num constante movimento de (trans)formação. E porque vivemos o risco, o conflito, a contradição tivemos a oportunidade de nos avaliar.

– Não sei como resolver, eu vejo que a forma de trabalhar os conteúdos, a metodologia, a abordagem, saber como fazer os alunos pensarem sobre aquele assunto depende muito daquele assunto ser bem conhecido pelo professor. Se o professor não domina o conteúdo que ele está ensinando ele tem muita dificuldade de criar situações que possibilitem aos alunos pensarem de uma forma diferente sobre aquilo, criar atividades....E como hoje isso é um problema sério, isto é, os professores estão tendo uma formação bastante deficiente, tem que saber, saber biologia, química .. Eu acho que essa é uma coisa que a gente não mexeu. O nosso projeto não se propunha a isso. (Thais)

– (Não mexeu) no conteúdo? (Sílvia)

– No conteúdo associado à forma de trabalhar, eu acho que isso a gente deixou de fora...., também não sei como resolver porque os conteúdos de ciências são vastos, então não sei como é que um curso poderia escolher alguns. Num determinado momento a gente fez isso, eu acho que nós fomos bem sucedidos nessa experiência em que fizemos isso. Por que eu acho que embora você não vá abordar muitos conteúdos a análise do modo como um conteúdo pode ser trabalhado, até pressupostos, como surgiu aquele tipo de conceito?, aquelas teorias se vinculam a que forma de pensar sobre a natureza? Qual a história daquelas idéias? Porque hoje elas são dominantes, mas poderiam ser diferentes, tudo isso é fundamental na hora de ensinar. (Thais)

– E ajuda a pensar sobre outros conteúdos.(Sílvia)
 

    A necessidade de atualização do universo de conhecimento dos professores dada a vastidão de conhecimentos científicos já acumulados e a velocidade de produção de novos saberes tem sido temática recorrente entre os que se ocupam com a formação docente no domínio da especialidade (CARDOSO et al. , 1991). Essa é uma questão angustiante para quem está em sala de aula. Contudo, hoje enxergo um equívoco contido nessa premência dos professores por se manterem atualizados, up to date, no conteúdos científico. O equívoco está em encarar o ensino de ciências como espaço de divulgação do conhecimento científico ou a escola a serviço da ciência, quando no âmbito da educação é a ciência que deve estar a serviço da escola. Dito de outra forma, não deve ser a ciência a ditar os conteúdos a serem trabalhados no ensino. Cabe ao professor definir os objetivos de seu ensino de ciências e a partir deles selecionar os conteúdos científicos que o possibilitam melhor trabalhar esse ou aquele aspecto que pretenda. Nessa perspectiva, a atualização vem como uma necessidade de aproximar o contemporâneo da escola e não como uma corrida angustiada e, de antemão, frustrada de acompanhar o ritmo da ciência.

    Daí por que em processos de formação continuada, como o que vivemos, não podemos nos eximir de trabalhar articuladamente conteúdo-método de ensino sob o pretexto de que não daremos conta de abarcar toda a produção científica da área. Ao associar conteúdos à análise do modo como estes podem ser trabalhados, como propôs Thais, já ajuda a pensar sobre outros conteúdos, como eu conclui. Ajuda por que funciona como modelo na elaboração de novas/outras formas de abordar outros conteúdos. Esse entendimento surgiu na entrevista de alguns dos formadores.

– (...) As vezes a gente percebe que "toca a lasqueira" no professor, balança ele mas não apresenta nenhuma coisa para ele botar no lugar. Foi mais ou menos o processo que a gente usou, nós pedimos para que eles elaborassem um planejamento, mas nós não demos um modelo temático de como você pode trabalhar (conteúdos). Esse é um dos problemas de quem está na Universidade, você não quer trabalhar com o conteúdo ou as vezes até trabalhar as atividades experimentais... Por que a gente trabalhou de forma comparativa? Porque a gente acreditava que se fôssemos trabalhar só o modelo investigativo, por exemplo, eles agarrariam aquilo e achariam que (aquela) era a única forma de trabalhar a experimentação. (João)
 
    Assim, em nome da autonomia, temendo a receita tínhamos sonegado aos professores modelos pedagógicos que explicitassem na ação o que teoricamente vínhamos tentando dizer-lhes, isto é, que as estratégias de ensino devem ser adotadas em consonância com os objetivos a que, como professor, proponho-me com meu ensino, que elas (estratégias) não são meros instrumentos de comunicação, mas constituem o conteúdo de ensino à medida que trazem subjacentes concepções de aprendizagem, de ensino de aluno, de professor, de conhecimento. – (...) Qualquer coisa que a gente trabalhe vai funcionar como um modelo para o professor e eu acho que isso é um processo de aprendizagem, sobre esse modelo ele vai fazer 1500 transformações e vai exercitar a autonomia, vai modificar aquilo e no final do processo ele vai ter uma coisa muito diferente do modelo inicial que serviu de base para ele começar. Então, por isso eu acho que nós (formadores de professores) devemos perder o medo e ouvir mais as queixas dos professores. (...) Não é preciso trabalhar pontualmente os conteúdos. Se a gente optasse por um curso temático todas as questões que nós queríamos discutir (ciência, sociedade, tecnologia) apareceriam e num único curso o professor poderia sacar coisas para trabalhar vários conteúdos. (Sílvia)

– (Não precisamos ter medo por que) Por mais que a gente tente nessa abordagem do conteúdo,

metodologicamente diversificar, nós vamos estar distantes da realidade escolar, e lá dentro da sala de aula ele (o professor) vai ter que tomar algumas decisões sempre, nós nunca vamos poder tomar decisões por eles, nem a receita é aplicada do mesmo jeito. (Arthur)

– Não tem os mesmos ingredientes.(Sílvia)
 

    Nesse processo de reavaliar o curso e, por conseguinte, avaliarmo-nos como formadores, acabamos por trazer à tona dois aspectos de nossa prática de formação de professores que gostaria de comentar mais pormenorizadamente. O primeiro, na realidade o último na seqüência apresentada, fala, de passagem, da existência de dois mundos, um nosso e outro dos professores. O segundo, mais elaborado na discussão, trata da necessidade de apresentar parâmetros, modelos que orientem a prática pedagógica na escola.

    A existência de dois mundos um acadêmico e outro escolar foi algo que, julgo, esteve insinuado ao longo dessa narrativa, os freqüentes descompassos entre intenções e expectativas, sugestões e necessidades são traços que revelam pontos de vistas construídos em contextos diversos. O fato de existirem múltiplas visões de mundo, porque fruto de experiências construídas em contextos diferenciados, não constitui, a priori, obstáculo ao diálogo entre os sujeitos que as possuem. Contudo, a intolerância com o outro, com o diferente, com o idiossincrático, muito própria do pensamento moderno, tem se incumbido de produzir esse obstáculo. A diversidade fala a favor de um mundo colorido, matizado, de nuanças que embelezam e enriquecem a existência e contra o acinzentamento (FREIRE, 1996) que a tentativa de homogeneização da linguagem, das condutas, da estética (até do corpo) propõe.

    Contudo, a coexistência de perspectivas diferentes não significa que devam elas ficar intocadas, fechadas e estacionadas em suas peculiaridades, mas dialogar, intercambiar-se, interpenetrar-se. Para tanto é preciso entender a lógica, a razão de ser de uma e outra. Nessa perspectiva, não é assumindo como minha a visão do outro, nem a negando como existência coerente que se constrói o já mencionado caminho do meio, no qual o diálogo se realiza e se concretiza na transformação dos sujeitos.

    E nós que estávamos buscando esse tão sonhado caminho do meio não escapamos da tensão, sempre desafiante, de nos equilibrarmos entre uma e outra postura. Por vezes ficamos tão ocupados e preocupados em nos fazer entender, corrigindo, alterando expressões nos enunciados das tarefas que aos professores solicitávamos, que descuidamo-nos de entendê-los desvendando a lógica por detrás de suas expectativas.

    Desvendamento que não implicaria a incorporação linear de suas demandas, mas que poderia auxiliar-nos a lidar melhor com elas. Desvendamento que, se em mão  dupla, poderia auxiliar, também, os professores a entender nossas posições e, ao entendê-las, melhor expressar no que elas conflitavam com as suas necessidades, num jogo de aprendermo-nos mutuamente.
 
    Entretanto, essa é uma aprendizagem que necessita de que ambos, professores e formadores, assumam-se como artífices do processo de formação e não como receptáculos, por exemplo (como em várias ocasiões fizeram os professores), de idéias, técnicas, estratégias alheias. Esforço-me para entender essa postura valendo-me da metáfora de Freire (1992; 1996) quando, referindo-se à relação opressor-oprimido colore a intensidade dessa relação dizendo que o opressor por vezes habita o corpo do oprimido.

    Esclareço, de tão domesticados por anos e anos a fio a receberem fórmulas prontas para suas práticas pedagógicas (tanto na formação continuada, quanto na inicial) os professores acabaram por incorporar e assumir esse modelo incapacitante, como única forma possível de relação com os formadores-especialistas. Não vendo esse processo como imposição, como negação da condição de sujeito de sua própria docência os professores acabaram por introjetar e incorporar essa perspectiva como lógica, natural, correta, deixando-a habitá-los.

    Se por um lado reconheço que essa é uma situação na qual somente o professor pode decidir libertar-se, por outro reconheço, igualmente, que não é possível sair de uma condição de heteronomia para a de autonomia sem antes passar por caminhos intermediários. Caminhos que nós formadores temos de nos predispor a construir junto com eles. É nesse sentido, o de caminho, que gostaria de inserir a discussão da necessidade, já anunciada nesta narrativa, de sugerir aos professores parâmetros, modelos que orientem a prática docente rumo à tão desejada autonomia.

    Dizia eu, durante entrevista com Arthur, que precisávamos perder o medo de que nossas estratégias de ensino fossem usadas pelos professores como receitas a serem transpostas para suas práticas. Isso porque, completava Arthur, na escola o contexto é outro e jamais os professores conseguirão reproduzi-las isomorficamente, mesmo que essas sejam suas intenções.

    Entendo hoje, como entendia no momento daquele diálogo, que no caminho entre a heteronomia e a autonomia da prática pedagógica está o processo de imitação de que nos fala Schön (1992). Imitação que pressupõe a construção seletiva de procedimentos que irão orientar ações futuras, não sendo, portanto, mera cópia. Assim, as estratégias que temíamos fossem usadas como receitas poderiam ser duplamente estratégicas, isto é, funcionar como modelos de organização, abordagem, enfoque dos conteúdos de ciências, aproximando-se, assim, da expectativas dos professores e simultaneamente como estratégia de inserção das questões que julgávamos relevantes discutir, mais ou menos o que fizemos por ocasião das atividades experimentais.

    Faz parte do processo de imitação tentar transladar, num primeiro momento, uma mesma estratégia para contextos diferentes, à semelhança do bricolage sugerido por Perrenoud (1997), o que não significa que tal tentativa tenha a repercussão esperada, visto que os contextos não tem os mesmos ingredientes. Esse desencontro entre expectativa e efetivação, se problematizado, no sentido de procurar identificar o que não permitiu que as coisas saíssem como o esperado, vai criando o hábito de refletir sobre o praticado que vai, por sua vez, produzindo novas reflexões e nesse movimento, gestando a autonomia profissional.

    O fato é que não se cria uma prática docente do nada, o que praticamos hoje é fruto de apropriação de inúmeros modelos que nós inconscientemente selecionamos em nossa vivência escolar, quer como alunos, quer como profissionais num constante processo de imitação passiva (ZEICHNER, 1993) ou de formação ambiental como preferem Carvalho e Perez (1993).

    Nesta linha de raciocínio, não se supera um modelo de prática docente usando como estratégia apenas o desvelamento crítico do habitus, é necessário que a esse desvelamento alie-se a apresentação do novo modelo, que se quer propor, de forma que as concepções que o constituem estejam pedagogicamente disponíveis em estratégias didáticas para que ele possa ser imitado, bricolado. Gerando, agora, não mais aprendizagem incidental, mas intencional, deliberada (MALDANER, 1997). Desse modo, a mudança da prática passa tanto por uma transformação do habitus como pela disponibilização de modelos de ação. (PERRENOUD, 1997: 35).

    Assim, se a imitação era um estágio do processo de desenvolvimento profissional do professor, compreendê-la como tal era aprendizagem para nós como formadores. Deste modo, assumindo a noção de estágio como princípio analítico, diria que o nosso estágio de desenvolvimento profissional situava-se numa transição entre romper com um passado tecnicista e assumir racional e emocionalmente o novo modelo de formação de professores que defendíamos e isso implicou passar por uma fase de negação da técnica como possibilidade nesse processo.


Referências


CARDOSO, A. M. T. et. al. Dimensão de formação do domínio da especialidade. IN: Formação continuada de professores: realidades e perspectivas. – Aveiro : Universidade de Aveiro, 1991.

CARVALHO, A. M. P. e PEREZ, D. G. Formação de professores de ciências. – São Paulo : Cortez, 1993.

CHAVES, S. N. Compromisso social e formação de professores. IN: SANTOS, E. F. Incursões didáticas Belém, E. F. S., 2001.

EZPELETA, J. e ROCKWELL, E. Pesquisa Participante. 2 ed. – São Paulo : Cortez: Autores Associados, 1989.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 14 ed. – São Paulo : Paz e Terra, 1996.

FREIRE, P. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. – Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1992.

FURIÓ, C. J. Tendencias actuales en la formación del profesorado de ciencias. Enseñanza de las ciencias, 12 (2), 1994, p.188-199.

HODSON, D. Hacia un enfoque más crítico del trabajo del laboratorio.Enseñanza de las Ciencias, 12 (3),1994, p. 299-313.

LARROSA, J. (org). Dejame que te cuente: Ensayos sobre narrativa y educación. – Barcelona : Editorial Laertes, 1995.

LATOUR, B. e WOOLGAR, S. A vida de laboratório. – Rio de Janeiro : Relume-Dumará, 1997.

MALDANER, O. A. A formação continuada de professores: ensino e pesquisa na escola. Campinas : FE/UNICAMP, 1997 (Tese de Doutorado).

MARTINS, P. L. O. Didática teórica, didática prática: para além do confronto. 5 ed. – São Paulo : Edições Loyola, 1997.

PERRENOUD, P. Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas 2 ed. – Lisboa : Dom Quixote, 1997.

SCHÖN, D. A. La formación de profisionales reflexivos: hacia un nuevo diseño de la enseñanza y el aprendizaje en las profesiones. – Madrid : Paidós, 1992.

ZEICHNER, K. A formação reflexiva de professores: idéias e práticas. – Lisboa : Educa, 1993.

[1] Professora do Departamento de Métodos, Técnica e Orientação da Educação da Universidade Federal do Pará, Doutora em Educação (em ciências) pela Universidade Estadual de Campinas.
[2] Encontros era a denominação que atribuíamos aos nosso contatos presenciais com os professores participantes do PEC.
[3] Todo os nomes atribuídos aos formadores são fictícios, com exceção do meu.
[4] Frase do repertório do amigo, também professor, Ruy Guilherme Almeida muito apropriada para os tipos de situações que vivíamos no curso.
[5] Filme produzido pela HBO para a televisão baseado em episódios recentes da pesquisa científica sobre a AIDS, utilizado pelo nosso grupo para discutir concepções de ciência e o papel da experimentação nas “descobertas” científicas.
[6] O filme discute não somente questões conceituais relativas à identificação do agente causador da doença, mas também questões sociais que ora limitaram, ora promoveram as pesquisas em torno da AIDS. A uma e outra respectivamente estou chamando de questões interna e externa, embora considere que os aspectos sociais que envolvem o cientista no seu fazer profissional nada tem de externo a ele, ao contrário, constituem-no e orientam sua forma de investigar.