CONTRIBUIÇÕES DA ANÁLISE DE DISCURSO PARA A COMPREENSÃO DO FUNCIONAMENTO DE IMAGENS EM AULAS DE FÍSICA

Henrique César da Silva[1]
doutorando - gepCE-FE-Unicamp
hcs@unicamp.br

Maria José P. M. de Almeida
gepCE-FE-Unicamp
mjpma@unicamp.br

Resumo

    É feita uma reflexão sobre o funcionamento de imagens do espaço em aulas de Física para o ensino médio, no contexto de uma unidade de ensino sobre gravitação newtoniana. O suporte principal dessa reflexão é a Análise de Discurso como é discutida em trabalhos de Michel Pêcheux e Eni Orlandi, com ênfase na categoria memória discursiva.

Abstract

    The functioning of the space images in high school Physics classes is thought in the context of teaching situations about gravitation. The bases of our reflection is the Discourse Analysis of the French school of thought , by Michel Pêcheux and Eni Orlandi, with emphasis in discursive memory.
 

Introdução

    A busca por um ensino de Física culturalmente mais relevante não é recente, e tem tido grande ênfase nos últimos anos, motivando, reflexões e propostas de mudanças curriculares. Na medida em que as interações escolares são (re)produtoras de significados, cultura e conhecimentos, o currículo não se define apenas como conteúdos que podem compor ou não uma lista previamente elaborada. Há conteúdos nas formas e não há conteúdos que se produzam fora dos modos de interação e do funcionamento do discurso em aula dentro do contexto mais amplo da história e da cultura. Assim, o estudo das mediações escolares é de extrema importância numa concepção que considera forma e conteúdo como aspectos indissociáveis no ensino. Nesta direção, questões que relacionam linguagem e ensino vêm ganhando mais atenção nos últimos anos.

    A perspectiva central da reflexão aqui apresentada é a do estabelecimento de conexões entre o "interior" e o "exterior" da sala de aula, compreendida como espaço contraditório de aproximações e distanciamentos entre os sujeitos a cultura científica. De um lado, no "interior", temos a pouca compreensão dos conteúdos trabalhados em aulas de Física no nível médio, o interesse cada vez menor por parte dos estudantes, o pouco significado e impacto que este ensino acaba tendo em suas vidas após a escola. Estes conhecidos há bastante tempo mas têm sofrido poucas modificações na realidade cotidiana das escolas. De outro lado, no "exterior", grande interesse por filmes de ficção científica, leituras de revistas e livros de divulgação e jornais, por determinados assuntos relacionados direta ou indiretamente à ciência. Há uma formação exterior à escola que passa por determinados objetos culturais, envolve temas e modos de interação que raramente chegam a fazer parte do cotidiano escolar. Parece-nos que tem sido dada pouca atenção ao fato de que a maioria dos estudantes vivem numa cultura onde informações científicas são veiculadas massivamente, onde os sujeitos convivem com produtos tecnológicos relacionados ao conhecimento científico.

    Esta contemporaneidade da relação dos sujeitos com o mundo e com a ciência no mundo tem sido pensada na introdução de conteúdos e temas da ciência do século XX como quântica, relatividade, energia nuclear, laser, semicondutores, etc., na esteira da crítica de que a Física trabalhada na escola estagnou no século XIX (se é que o tenha alcançado!). No entanto, é possível pensá-la também com relação a conteúdo/temas "antigos", como é o caso que escolhemos, o da gravitação newtoniana.

    Em se tratando deste tema, a questão da mediação de imagens ganha uma importância especial dentro da problemática que levantamos.

    Abordamos aqui questões sobre o funcionamento de imagens em aulas de Física no do desenvolvimento de uma unidade de ensino sobre gravitação inspirada numa abordagem cultural. Pretendemos Pretendíamos, ao organizar a unidade, tornar culturalmente mais significativas as relações entre os estudantes e a ciência, visando à possibilidade de seu prolongamento e aprofundamento para além do tempo e espaço escolares. Direcionar o ensino da física para tal finalidade, implica em mudanças curriculares que, a nosso ver, devem passar pela inserção das práticas e mediações escolares e do conhecimento científico no contexto histórico-cultural contemporâneo dos estudantes.

    Com pequenas modificações essa unidade, previamente planejada para algo em torno de 15 aulas, foi desenvolvida em três escolas de duas cidades do interior do Estado de São Paulo. A maior parte das aulas foi gravada em audio e vídeo, sendo ainda coletados trabalhos produzidos pelos estudantes, e realizados registros num caderno de campo. No presente trabalho articulamos uma perspectiva de análise sobre o funcionamento de imagens no desenvolvimento dessa unidade de ensino, explorando a relação "exterior"/"interior" da sala de aula.



Telescópio Espacial Hubble[2]


 



Gravitação, espaço cósmico e imagens no contexto cultural atual

    Entre os vários motivos que poderiam ser elencados para justificar a seleção do tema gravitação para trabalho com o ensino médio, destacamos a quase total ausência deste conteúdo nas salas de aula; contraditoriamente, pois a mecânica clássica (e em grande parte a cinemática) é o conteúdo mais trabalhado neste nível de ensino, e sabemos que isso ocorre com grande ênfase no formalismo matemático. Esta contradição é apontada por Franco Jr. (1989) numa análise sobre conteúdos de livros didáticos centrada na lei da queda dos corpos de Galileu.

"A exploração da relação entre a Física e a Astronomia tem um importante papel a desempenhar na didática da Física. Evidentemente, tal relação tem para o estudante de hoje um caráter diferenciado daquele do século XVII. Atualmente o modelo heliocêntrico faz parte das noções conhecidas por grande parte da população. No entanto, tal noção é transmitida fundamentalmente pelo argumento da autoridade. Chega-se, então, a uma situação em que as pessoas convivem com a crença no heliocentrismo e com uma concepção sobre o movimento incompatível com essa mesma crença. Neste contexto, a relação da Física com a Astronomia leva a uma contradição entre as noções intuitivas e a crença internalizada pelo argumento de autoridade. Tal contradição cria as condições favoráveis para a superação tanto do senso comum quanto do argumento de autoridade, viabilizando a integração do heliocentrismo com a Física numa nova concepção global." (idem, p. 225)     Com a gravitação ausente, o ensino da mecânica dificilmente pode aproximar os estudantes de um dos maiores legados culturais da história humana: a imagem de natureza que a ela está associada, notadamente a de um cosmos unificado. Embora as teorias da relatividade restrita e geral de Einstein e a teoria quântica tenham imposto limites à Física newtoniana, numa escala astronômica muito maior do que a do Universo conhecido à época de Newton, sua mecânica ainda é usada e bastante válida.

    Isso nos leva a outra justificativa a da possibilidade de exploração da relação que este conteúdo estabelece com o espaço cósmico. Esta relação se torna relevante, entre outros motivos, quando queremos estabelecer conexões com o contexto científico-cultural no qual vivem os estudantes, ou seja, a contemporaneidade da nossa relação com o espaço cósmico e do lugar da Terra no Universo, nos vários sentidos que esta expressão pode assumir: ontológico, antropológico, astronômico, físico. Relação que vem se modificando desde o uso do telescópio por Galileo, mas que ganha realce especial após eventos como a corrida espacial, a chegada dos norte-americanos à Lua, o desenvolvimento das tecnologias de satélites artificiais, e o grande desenvolvimento da astrofísica e da cosmologia no século XX. A imagem é sem dúvida um elemento fundamental desta contemporaneidade.

    Vemos as imagens do espaço como mediações fundamentais na construção de uma gravitação escolar contemporânea dos estudantes neste século XXI. Um espaço cósmico unificado, no qual se inclui a Terra, no qual o movimento de uma pedra caindo é da mesma natureza que o movimento de um planeta orbitando o Sol, das galáxias interagindo num aglomerado, de homens na Lua e sondas em Marte, dos mísseis da "Guerra nas Estrelas" do governo Bush, dos satélites artificiais que nos espionam e que permitem que assistamos "ao vivo" eventos que ocorrem no mundo todo, desde a Guerra do Golfo à Copa do Mundo. A menos pela pedra que cai, que podemos tocar, em todos os outros casos, e mais na infinidade de quase todos os outros que eles exemplificam, a imagem é hoje a mediação fundamental que nos põe em contato com esses fenômenos. Sem a imagem esses eventos não existiriam para nós. E é por serem imagens e sons que eles nos aparecem como reais. De uma realidade que tem a mesma natureza da realidade da pedra, apesar de não os tocarmos. Uma realidade cotidiana.

    O céu em toda a história da humanidade foi motivo de admiração, mistério, fascínio, beleza. Imaginário e apreciação estética sempre estiveram juntos. No entanto, o céu que nos fascina hoje é muito mais aquele das imagens do Hubble, ou seja, jamais visíveis a olho nu, produtos de um desenvolvimento tecnológico complexo que em grande parte são ícones da nossa era. Em relação ao céu, ao espaço cósmico, não vivemos mais na época da admiração a olho nu. Uma quantidade enorme de imagens do espaço cósmico (TV, filmes, vídeos, documentários, fotos, revistas, jornais, outdoors) circulam em nossa sociedade, engendrando representações, constituindo nosso imaginário. Essas imagens colocam nossa relação cotidiana com o espaço cósmico num patamar muito diferente do que se encontravam os homens na época de Galileu, por exemplo.


Significação, interdiscurso, memória e contexto cultural

    Várias pesquisas em ensino da Física têm, nos últimos anos, contribuído para veiculação da idéia de um estudante produtor de sentidos, participante nos processos de ensino e de aprendizagem. Nesse ensino os estudantes possuem suas próprias formas de pensar, alternativas às da Física, resultados de processos mentais individuais. Essa concepção implica numa perspectiva de ensino por mudança conceitual, na qual as chamadas concepções alternativas dos estudantes devem ser modificadas pelos processos escolares. Outros trabalhos vêm analisando as relações entre a produção de sentidos e aspectos do contexto social de uma sala de aula, alguns assumindo as duas perspectivas.

    Para além das representações dos estudantes estritamente circunscritas ao domínio científico, à dimensão conceitual, aos produtos do conhecimento científico, a produção de sentidos de outras naturezas também vêm sendo tornada visível e relevante para se pensar o ensino da ciência. Assim, por exemplo, numa perspectiva cultural antropológica, Aikenhead (1996) e Aikenhead e Jegede (1999) tratam da maneira como os sujeitos significam e se significam o/no espaço escolar. Significações que se constituem reciprocamente e que são constitutivas dos processos de ensino e aprendizagem, mas não como produtos de um processo intrinsecamente interno à escola, mas da relação entre o cotidiano escolar e um contexto "exterior" à escola, principalmente o contexto familiar. Para estes autores, aprender ciência significa, para os estudantes, atravessar os limites entre duas culturas (cultural border crossing), a cultura cotidiana de seu dia-a-dia e a cultura da ciência escolar. Para alguns essa travessia seria fácil, para outros, trabalhosa, e para outros ainda, impossível. Cultura no sentido de um sistema ordenado de significados e símbolos em termos dos quais as interações sociais têm lugar, ou seja, normas, valores, crenças, expectativas e ações convencionais de um determinado grupo. "Border crossing" entre culturas podem ocorrer toda vez que alguém se move de uma comunidade social para outra (Aikenhead e Jegede, 1999).

    Segundo Lopes (1999), o conhecimento escolar é constituído na relação com outros dois conhecimentos: o cotidiano e o científico. Constituição tensa pelo menos   sob dois aspectos. De um lado porque a relação entre esses dois conhecimentos implica em se considerar uma descontinuidade cultural, já que diferentes saberes não podem ser reduzidos a uma única razão. Por outro lado, porque "o conhecimento escolar, por princípio, se propõe a construir/transmitir aos alunos o conhecimento científico e, ao mesmo tempo, é base da transmissão/construção do conhecimento cotidiano de uma sociedade." (idem, p. 104)

    A consideração do contexto cultural "exterior" à escola como fator influente nos processos de ensino e aprendizagem também é apontada por Solomon (1999), numa reflexão sobre a natureza do currículo de ciência nos dias de hoje. Na perspectiva dessa autora destacam-se aspectos como as representações de ciência dos sujeitos construídas socialmente num contexto cultural mais amplo caracterizado, entre outros fatores, por fortes resistências e críticas à ciência, envolvendo questões ambientais, políticas, éticas.

    Trabalhos como o de Solomon (1999), permitem-nos destacar dois pontos: há significados, mesmo que implícitos, construídos fora da escola, que interferem no ambiente escolar; significados que dizem respeito à maneira como a ciência é representada na sua relação com a sociedade.

    Vejamos como essa questão pode ser interpretada de um ponto de vista discursivo.



Memória discursiva e significação

    A Análise de Discurso francesa vai propor uma noção de discurso compreendido como efeito de sentidos entre interlocutores, preocupando-se com as condições históricas e ideológicas da produção desses efeitos. Entre essas condições destacam-se: o sujeito e a situação. Ao falar o sujeito ocupa uma posição que é constitutiva de seu dizer, dos efeitos de sentidos que se produzem, e que remetem a papéis sociais. A situação pode ser pensada de dois modos. Num sentido restrito, temos a situação imediata, e num sentido mais amplo, o contexto histórico-social e a ideologia.

    A memória também faz parte das condições de produção. Nenhum sentido nasce a partir de si mesmo, nem emana dos fatos ou das coisas. Há sempre outras vozes, outros dizeres ditos em outros lugares, em outros tempos que significam no nosso. Algo só faz sentido porque já tem sentido. É o que é chamado memória discursiva ou interdiscurso: "o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra." (Orlandi, 1999, p. 31). Esta é uma memória necessariamente esquecida pelo sujeito. Trata-se de um esquecimento estruturante, não de um "defeito": "os sujeitos ‘esquecem’ que já foi dito - e este esquecimento não é voluntário - para, ao se identificarem com o que dizem, se constituírem em sujeitos." (idem, p. 36)

    O interdiscurso, ou memória discursiva, está implicado simultaneamente na constituição histórica dos sentidos e dos sujeitos, fenômenos inseparáveis, já que "a toda formação discursiva é associada uma memória discursiva, constituída de formulações que repetem, recusam e transformam outras formulações." (Maingueneau, 1997, p. 115)

"(...) a memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os "implícitos" (...) de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível." (Pêcheux, 1999)     Por memória discursiva compreende-se que "algo fala sempre antes, em outro lugar e independentemente" (Pêcheux, 1995, p. 162).

    Na sala de aula cada tomada de palavra (oral ou escrita), seja do professor, seja dos estudantes, se inscreve numa história de sentidos e modos de significar, de dizer (ler e escrever). História escolar, no sentido mais restrito, e história "extra escolar" no sentido mais amplo.

    Temos "escutado" em sala de aula, nos dizeres (escritos) de estudantes do nível médio, ao responderem, por exemplo, algumas questões propostas, uma relação com o espaço cósmico mediada por discursos que fazem parte de uma memória que é contemporânea dos estudantes e que "extrapola" o espaço escolar.

    De fato, com relação à difusão da ciência, poucos assuntos têm sido mais divulgados nas últimas décadas do que aqueles relacionados à pesquisa espacial, à astrofísica, à cosmologia, à astronáutica. Quase que semanalmente há notícias e imagens nos jornais escritos e televisivos, documentários freqüentes na TV. Situações que se passam em ambientes espaciais, na Lua, em outros planetas, envolvidas em narrativas reais ou fictícias são amplamente conhecidas, principalmente através de filmes.

    Se há uma memória discursiva que está implicada em toda significação, a seleção escolar não pode se restringir aos textos e enunciados (escritos ou orais) sobre os quais deseja que os alunos produzam determinados sentidos. Podemos dizer que o processo de ensino desenvolvido na escola implica numa "seleção" que trabalha este interdiscurso, ou seja, simultaneamente, e mesmo que não intencional ou explicitamente, o discurso pedagógico põe em funcionamento aspectos de uma memória discursiva que dependerá, entre outros fatores da história de vida dos estudantes. A maneira como esta memória é posta a funcionar tem conseqüências diretas na qualidade e mesmo nas possibilidades de significação das pessoas no espaço escolar. Escolhemos a gravitação associada à idéia de se trabalhar o espaço cósmico, para iniciar um curso de física no nível médio, em parte, pela possibilidade de conexões com o contexto científico-cultural atual, pela potencialidade do tema em disponibilizar todo um amplo interdiscurso relacionado ao tema.

    Aqui fazemos uma extensão teórica, considerando as imagens, embora não verbais, mesmo assim, linguagem, como parte desse interdiscurso. Acreditamos que essa consideração seja relevante numa cultura marcadamente oral como a nossa e caracterizada também pela presença massiva de imagens (Almeida, 1994), principalmente as fílmicas e televisivas.


As imagem no "exterior" e no "interior" da sala de aula

    Orlandi (1987) caracteriza o discurso pedagógico como um discurso circular. Em suas palavras:

"um dizer institucionalizado, sobre as coisas, que se garante, garantindo a instituição em que se origina e para a qual tende. É esse o domínio de sua circularidade. Circularidade da qual vemos a possibilidade de rompimento através da crítica." (idem, p. 23)     Circularidade que se produz pela "ausência" do referente, oculto pelo dizer; por não haver uma interlocução propriamente dita, mas um agente exclusivo, resultando numa polissemia contida ao invés de controlada.

    A crítica desse discurso pedagógico a nosso ver passa pela produção de um contexto que, ao procurar romper com essa circularidade, conecta, faz intervir na produção do conhecimento escolar, outros saberes, informações, conhecimentos, sentidos que circulam "fora" da escola, na cultura mais ampla em que vivemos, a qual nos constitui contemporaneamente.

    O nosso mundo, resultado do trabalho humano, social, histórico, prático e simbólico, é um mundo cada vez mais científico ainda que contraditoriamente a distância compreensiva entre nós e a ciência pareça ser cada vez maior. Falar na intervenção constitutiva do cotidiano na escola (Lopes, 1999) significa, a nosso ver, falar desse cotidiano produzido também indiretamente pela ciência e tecnologia, mas que para nós, ideologicamente, aparece sempre apenas como cotidiano, como comum, como "natural".

    Num contexto cultural como aquele em que vivemos, marcado pelo visual, pelas imagens, não podemos deixar de considerá-las parte desse interdiscurso, ainda que não verbal, mas também linguagem. As imagens, principalmente as televisivas são parte do cotidiano extra-escolar dos estudantes, mediação contemporânea fundamental da nossa relação com a realidade natural e social.

    E em relação às imagens e seu papel na cultura atual, nos reportamos a Almeida (1994),

"(...) atualmente, há uma grande maioria de pessoas cuja inteligência foi e está sendo educada por imagens e sons, pela quantidade e qualidade de cinema e televisão a que assistem e não mais pelo texto escrito." (p. 8)     Ao falar da sala de aula é preciso ter em mente que este é um espaço caracterizado por múltiplas tensões. Tensões constitutivas que jamais serão totalmente eliminadas, mas que se conhecidas podem ser administradas, trabalhadas, deslocadas. Tensões que a nosso ver constituem o próprio currículo. Tensões de diferentes ordens e escalas que envolvem relações de poder e autoridade, a relação entre diferentes racionalidades e ideologias, diferentes culturas.

    A relação dos estudantes com as imagens na sala de aula não escapa a essas tensões. E, remete a diferentes memórias, algumas contraditórias. Lêem-se e analisam-se textos, cobram-se textos para as provas. Mas raramente a imagem está relacionada com alguma prática que tenha ou produza os mesmos significados para os alunos na escola. Na escola elas são ilustrações, apêndices, complementos, quase dispensáveis, aos textos orais ou escritos. Geralmente estão implicadas em atividades consideradas menores, até mesmo supérfluas. Podem significar um momento de descontração, de uma não-aula, principalmente no caso de um filme. Mas também podem significar a substituição da voz do professor, principalmente no caso de documentários. Estas memórias, em parte, vão sendo (re)construídas ao longo da vida escolar dos estudantes, ao longo de várias aulas, de modos diferentes entre as diferentes disciplinas, pelas maneiras diferentes em que se associam a outras práticas escolares.

    As próprias condições de trabalho na escola, geralmente não são as mais adequadas para o trabalho com imagens. Televisões muito pequenas, falta de cortinas nas salas, falta de um sala de vídeo[3], qualidade de som ou imagem precárias, a própria disposição das carteiras, falta de um tela ou espaço para projeção de transparências e slides, falta de controle remoto limitando as possibilidades de uso das funções do vídeo, etc. são alguns dos problemas que temos encontrado e que contribuem para este clima de secundarização da relevância do trabalho pedagógico com as imagens, além de uma cultura verbal bastante introjetada nas pessoas.

    Pudemos observar indícios dessas relações contraditórias com as imagens na sala de aula. A expressiva preferência por filmes ao invés de documentários por parte de muitos estudantes, percebidas por manifestações orais e principalmente por mudança de atitudes.

    Com Aikenhead (1996) podemos significar o uso de imagens do espaço cósmico no contexto escolar como um estreitamento entre as culturas cotidiana dos alunos e a cultura escolar. A imagem é um elemento que resgata a história de vida extra-escolar dos alunos e a traz para dentro da escola. Movimento que não se dá sem contradições, mas pelo contrário, permite torná-las um pouco mais visíveis ampliando as possibilidades de trabalhá-las.


Situações de ensino com imagens

    Narramos aqui uma situação de ensino com imagens na unidade anteriormente citada. Numa das aulas, exibimos um trecho do filme Apollo 13[4] (aquele em se dá o lançamento do foguete até a acoplagem do módulo lunar) e depois um trecho de um documentário sobre o Sistema Solar[5]. No primeiro, os alunos sentaram-se mais próximos, não conversaram, ficaram "vidrados" na TV. Tratava-se de uma não-aula, mas de um filme, com suspense, emoção. Os alunos "deixaram" de ser alunos e passaram a ser simplesmente espectadores de uma imagem fílmica, papel não-escolar, cotidiano. No segundo, alguns mudaram de carteira, indo para o fundo da sala, passaram a fazer outras atividades, alguns a conversar. Trata-se então de uma aula que os requisitava a ocuparem seus lugares de alunos e, conseqüentemente, os lugares de contra-alunos tão freqüentes hoje em qualquer escola, pública ou particular.

    Numa das escolas em que realizamos uma avaliação do curso junto aos alunos, vários apontaram espontaneamente o uso de imagens como um dos aspectos positivos do curso, principalmente das transparências.

    Trazer imagens para a sala de aula significa trazer elementos da cotidianidade dos alunos, estabelecendo uma continuidade entre a cultura escolar e a cultura extra-escolar. Aproximar a escola de sua cultura oral. Momento em que a escola, a sala de aula, deixa um pouco de ser um ambiente totalmente estranho, exterior, distante para grande parte dos alunos. Neste ambiente ampliaram-se as possibilidades de participação dos alunos nas aulas, no entanto, não sem contradições.

    Vivemos mergulhados num mundo de imagens do espaço cósmico. Ainda que este fato permita que se engendrem representações sobre o espaço cósmico diferentes das concepções pre-copernicanas, este fato não parece ter sido culturalmente suficiente para interiorizar uma concepção unificada como a decorrente da síntese newtoniana. E essa é, a nosso ver, uma das funções da escola.


Imagem e realidade

    Para Almeida (1994), imagens e sons podem ser pensados como aspectos fundamentais de um nova cultura oral.

"As imagens e os movimentos sonorizados do cinema e da televisão têm um grau forte de ‘realidade’. Realidade no sentido de que aquilo que a pessoa está vendo ‘é’, mais do que ‘parece ser’. Na projeção de um filme ou na televisão qualquer coisa ou pessoa que apareça está sendo vista e não lida ou escutada. Existe porque está sendo vista. Esta proximidade real das imagens tem uma configuração muito próxima da oralidade (...)" (p. 9)     A linguagem escrita, de um texto, trabalha sempre com abstrações universais, generalizáveis. A casa pode ser qualquer casa e não uma casa especifica. Já as imagens nunca são gerais, reproduzem sempre particularidades. A imagem de uma casa na TV ou no cinema é aquela casa e não outra. "A imagem/som projetada, por mais fantasiosa que seja, é sempre real; está sendo vista/ouvida como no mundo real. A sua relação a imaginação é direta e global, quase sem mediações, semelhante à situação da fala (oral). É muito diferente da imaginação reflexiva, mediada pela palavra escrita e pela sintaxe de um texto literário. É essa homologia com a fala (oral) e com a realidade visível/audível que dá ao cinema e à TV sua força e domínio sobre as populações orais atuais." (Almeida, 1994, p. 26-7, nota de rodapé).     Considerando este caráter "real" das imagens em geral, algumas imagens espaciais podem ser consideradas como uma ampliação da nossa experiência vivida para além da contexto terrestre. "Experienciamos" fenômenos como a "flutuação" de objetos em espaçonaves ou na Lua, como se os presenciássemos ao vivo aqui.

Astronauta em órbita da Terra[6]

    Estas características culturais das imagens no mundo de hoje tornam-se particularmente relevantes para o caso da gravidade, que abordamos neste trabalho, pois neste caso, o próprio desenvolvimento científico-tecnológico atual nos traz, através de imagens, um mundo que não podemos sentir, perceber, tocar, e o traz como realidade, estendendo nossa relação sensível com o mundo físico, tornando-se parte de nossos conhecimentos primeiros.

    A importância de se levar em conta o fato dos estudantes de hoje viverem em contato com uma ampla variedade de imagens do espaço cósmico, ao se pensar o ensino da gravitação foi apontada por exemplo por Noce et al. (1988).

"As crianças vêem a Lua no céu e talvez tenham observado seu movimento e suas fases. Ela está longe no espaço mas alguns homens chegaram lá usando naves espaciais e, através de verdadeiras ou fantásticas histórias, as crianças adquiriram o conhecimento de que na Lua não há ar para respirar e as coisas têm um peso menor. Durante as discussões em sala de aula (...) as crianças pareceram estar muito certas dessas noções, como se elas tivesse pessoalmente viajado para a Lua." (p. 66)

"Desde que as crianças tenham visto imagens na televisão de astronautas flutuando em suas espaçonaves, elas generalizaram tal flutuação como sendo o estado natural para todos os mundos pelo espaço, incluindo a Lua. O mundo da Terra é especial e diferente: somente aqui existe ar e a queda é um movimento natural. Na Lua, num mundo espacial, as coisas não caem naturalmente mas flutuam." (p. 66)

"As crianças de hoje são diferentes das crianças que éramos: elas já viram a Lua na TV; elas sabem que as pessoas podem ir à Lua; elas têm visto que no espaço as coisas não caem, elas flutuam. (...) As práticas de ensino não mudaram a esse respeito: metodologias apropriadas para o período antes da descida do primeiro homem na Lua são usadas até hoje." (p. 70)

    Os autores vão notar que os fatos "experimentais" conhecidos pelos alunos sobre a gravidade não se restringem aos presenciados na Terra. "A maioria das crianças entretanto parecem pensar que a gravidade pertence à Terra. (...) Assim, parece que a Terra e a Lua (no sentido de ser um lugar diferente da Terra) são pensados como dois mundos que diferem quanto ao fenômeno da gravidade, mais ou menos do mesmo modo como era pensado pelas pessoas na antigüidade, antes da introdução de uma teoria física unificadora da gravitação por Newton."     O trabalho de Noce et al. (1988) relaciona a produção de sentidos que comumente vêm sendo conhecidos como concepções alternativas à contemporaneidade da relação dos estudantes com a realidade.

    No entanto, as implicações deste contexto cultural atual relacionado a imagens do espaço cósmico e sua interferência no ensino da física, são maiores do que aquelas estritamente centradas na questão conceitual e suas implicações para o ensino vão além da perspectiva da mudança conceitual.


Imagem e imagens da natureza

    Em Abrantes (1998) encontramos a noção de imagens de natureza, concepções a respeito das entidades que constituem a natureza, suas propriedades e suas inter-relações (p. 9).

    Uma imagem de natureza seria algo menos articulado, explícito, fundamentado e consciente que uma "teoria" ou "filosofia". Trata-se de concepções tácitas, implícitas, quase "inconscientes". (p. 12) Uma imagem de natureza possuiria um caráter difuso, incorporando assistematicamente um grande número de idéias e intuições das quais não se tem muitas vezes consciência. (p. 12) Embora também num menor grau de sistematicidade, uma imagem de natureza poderia ser identificada como uma "metafísica" ou uma "ontologia". Elas também passariam pelo crivo da experiência, não sendo nem totalmente subjetivas, nem um mero "reflexo" da realidade.

    As concepções sobre os constituintes do Universo, do espaço cósmico, suas relações e propriedades são aspectos que interferem na relação entre Física e Astronomia, na compreensão do aspecto universal da mecânica newtoniana, não apenas da sua lei da gravitação mas das três leis fundamentais da mecânica. Quando trabalhamos conceitos e leis da mecânica aplicada apenas a fenômenos e corpos terrestres estamos longe de contribuir para a transmissão da imagem de natureza legada pela física newntoniana, uma imagem, aliás, divergente da que se tinha na Antigüidade e na Idade Média.

    Quando observamos imagens da superfície da Lua, de Marte em grandes escalas ou em vídeo, há algo que as aproxima de um "chão", as torna ontologicamente iguais às da Terra. A Lua e Marte, por exemplo, possuem relevo, há satélites artificiais com vulcões.

    A física newtoniana não é uma física terrestre, é justamente o resultado de um projeto ontológico e epistemológico, de certa forma iniciado com Copérnico, que visava a uma síntese completa na compreensão da natureza, unindo Céu e Terra.


Referências

Abrantes, Paulo. Imagens de natureza, imagens de ciência. Campinas, SP: Papirus, 1998. 247p.

Aikenhead, Glen S. e Jegede, Olugbemiro J. Cross-cultural science education: a cognitive explanation of a cultural phenomenon. Journal of Research in Science Teaching, 36 (3), 1999, p. 269-287.

Aikenhead, Glen S. Science education: border crossing into the subculture of science. Studies in Science Education, v. 27, 1996, p. 1-52

Almeida, Milton J. Imagens e sons: a nova cultura oral. São Paulo: Cortez, 1994, 110p. (Coleção Questões da nossa época; v. 32).

Franco Júnior, Creso. Os livros e a gravidade: uma queda pouco didática. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 70 (165), maio/ago., 1989, p. 224-242.

Lopes, Alice R. C. - Conhecimento escolar: ciência e cotidiano. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999, 236p.

Maingueneau, Dominique. Novas tendências em análise de discurso. 3a ed. Campinas, SP: Pontes: Editora da Unicamp, 1997, 198p.

Noce, G.; Torosantucci, G. e Vicentini, M. The floating of objects on the moon: prediction from a theory or experimental facts? International Journal of Science Education, 10 (1), 1988, p. 61-70.

Orlandi, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999, 100p.

Pêcheux, Michel. Papel da memória. In Achard, P. et. al. - Papel da memória. Campinas, SP: Pontes, 1999, p. 49-57.

Pêcheux, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 2a ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995.

Solomon, Joan. Meta-scientific criticisms, curriculum innovation and the propagation of scientific culture. Journal of Curriculum Studies, 31 (1), 1999, p. 1-15.

[1] Apoio CNPq.
[2] http://ethel.as.arizona.edu/~jcain/stewart/overview.html  (imagem originalmente colorida).
[3] Numa das escolas em que realizamos a intervenção anteriormente citada, uma sala de vídeo recém montada com boas cadeiras e bons equipamentos não podia ser usada por ordem da direção com a justificativa de que os alunos depredariam o material.
[4] Apollo 13. 1995. EUA. Dir.: Ron Howard.
[5] Explorando o nosso sistema solar - Interconnection Vídeos Educativos, s. d..
[6] http://images.jsc.nasa.gov/images/pao/GT4/10074016.jpg  (imagem originalmente colorida).