CONHECIMENTO ESCOLAR E EXPLICAÇÕES TELEOLÓGICAS – UM DESAFIO PARA O ENSINO DE BIOLOGIA



Carmen Maria De Caro Martins
Programa de Pós-graduação em Educação/Faculdade de Educação, e Colégio Técnico da UFMG
decaro@coltec.ufmg.br

Oto Borges
Programa de Pós-graduação em Educação/Faculdade de Educação, e Colégio Técnico da UFMG
oto@coltec.ufmg.br

Resumo

    Este trabalho relata os resultados de um estudo sobre o uso de um conhecimento escolar em uma situação simulada do cotidiano. Para este estudo escolhemos o conceito de osmose que estamos considerando ser de natureza principalmente escolar. O fenômeno da osmose tem sido apontado, por estudantes e professores dos diferentes níveis de escolarização, como um dos mais difíceis de compreensão. Alguns pesquisadores da área de ensino de ciências têm apontado que um dos problemas é que o entendimento da osmose depende de explicações abstratas, que envolve relações entre macro e micro sistemas. Outro problema apresentado pela literatura relaciona-se à tendência do uso de explicações teleológicas por professores e estudantes de Biologia. Concepções semelhantes são descritas para o processo de adaptação e evolução, bem como para as respostas dos organismos ao meio. Os resultados sugerem que os estudantes do ensino médio são capazes de utilizar o conceito de osmose em situações de quase cotidiano. Entretanto, quando são solicitados a elaborarem uma explicação sobre o fenômeno de osmose, há uma forte tendência para o uso de explicações teleológicas.




Abstract

    We reported here the preliminary results about how high school students use the concept of osmosis to interpret and explain daily life situations. Osmosis has been considered by students and school teachers from different levels a very hard concept to be understood. Some natural science education researchers assumed that is difficult to understand osmosis because it requires very abstract explanations concerning to relations between macro and micro systems. As both biology teachers and students tends to use teleological explanations, this tendency is also considered as additional source of difficulties in the understanding of the osmosis concept. Students in different levels believe that the cause of water movements in the process of osmosis is the "desire" or the "necessity" that external and internal environments to reach the same concentrations. Similar tendencies are also found in students’ understanding about adaptation, evolution and ecological responses of organisms to environmental variations. Our results showed the preference students have to use teleological explanations. Otherwise, they had no difficulties to explain the phenomena we introduced to them using their school knowledge about osmosis.

Apoio: CNPq


Introdução

    Estamos assistindo, nos últimos anos, uma grande discussão sobre o ensino, especialmente em relação ao ensino de Ciências. Há uma preocupação dos educadores com os propósitos das disciplinas científicas no ensino de primeiro e segundo graus.

    A partir da década de 1980, com o apoio da UNESCO, vários países elaboraram propostas de reformas curriculares que visavam a implantação de um currículo de ciências "para todos". Este movimento de mudança curricular surgiu em decorrência do rápido crescimento científico e tecnológico que demandava transformações nos hábitos dos cidadãos, além de uma discussão da ética na Ciência.

    Uma das justificativas dos defensores desta proposta era a necessidade de melhorar a educação científica e promover uma maior compreensão da ciência pelos cidadãos. O objetivo seria permitir que eles pudessem entender e analisar criticamente assuntos que tivessem componentes científicos, especialmente aqueles divulgados pela mídia.

    Também no Brasil, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9346/96) definiu os princípios da educação brasileira, tornando o ensino médio parte da educação básica, ou seja, este nível de ensino passou a fazer parte da formação de todos os brasileiros. Os princípios definidos pela LDB para o ensino médio contemplam, entre outros, a preparação para o trabalho e a compreensão dos fundamentos científico-metodológicos dos processos produtivos, inserindo a experiência cotidiana e o trabalho no currículo do ensino médio como um todo, bem como a compreensão do significado das ciências.

    Com base nestes princípios, o Ministério de Educação e Cultura (MEC) elaborou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para a educação básica com orientações que mudam substancialmente o ensino, especialmente o ensino de ciências. Uma das grandes questões colocadas pelos PCNs está relacionada ao papel do contexto e das situações do cotidiano no ensino das disciplinas da área de Ciências como a Biologia, a Física e a Química, de modo a "estabelecer uma relação ativa entre o estudante e o objeto do conhecimento e a desenvolver a capacidade de relacionar o aprendido com o observado, a teoria com suas conseqüências e aplicações prática"(BRASIL, 1999).

    Pesquisas na área de educação em ciências tem identificado a dificuldade dos estudantes em substituir os conceitos do "senso comum" por científicos em situações cotidianas. Para estes pesquisadores haveria uma descontinuidade entre o conhecimento científico e o conhecimento ordinário, o que dificultaria a transposição do conhecimento escolar para situações cotidianas (WANDERSEE et al, 1994).

    Podemos identificar nas propostas curriculares a expectativa de que os conhecimentos escolares possam mediar a relação entre as percepções, os comportamentos e as ações dos sujeitos em situações da vida cotidiana. Em vista dos inúmeros resultados dos estudos conduzidos nas tradições de pesquisa sobre concepções alternativas, sobre mudança conceitual, e desenvolvimento de conceitos, não temos razões para sermos esperançosos quanto a efetividade desta meta curricular.

    O presente estudo aborda o uso de um conhecimento escolar, por estudantes do ensino médio, em uma situação do cotidiano. Vamos situar o trabalho no âmbito da pesquisa no ensino de ciências e justificar a escolha do conceito de osmose como foco de nossa pesquisa


Reformas curriculares e a necessidade de aplicar o conhecimento escolar na vida cotidiana

    A ciência, e, principalmente a biologia, tem produzido nos últimos anos uma quantidade muito grande de conhecimento científico. Alguns deles chegam rapidamente ao domínio público como por exemplo: a clonagem da ovelha Dolly; o projeto Genoma Humano; os transgênicos; o efeito estufa e suas conseqüências na mudança do clima da Terra; o desmatamento da Amazônia e suas implicações na perda da biodiversidade; entre outros. Essa é uma realidade que exige um cidadão preparado para conviver nesse tipo de sociedade.

    Uma pergunta que podemos fazer de imediato é: qual é a contribuição da educação formal e informal na formação de um cidadão crítico, capaz de acompanhar o desenvolvimento científico e tecnológico e ainda participar das decisões sociais, políticas e econômicas?

    Ultimamente, os debates sobre a importância do conhecimento científico pelos cidadãos têm-se intensificado em função da preocupação com o papel da ciência na sociedade (CAJAS, 1999).

    Durante os últimos 40 anos, os educadores vêm discutindo esta questão. O rápido desenvolvimento tecnológico, ocorrido após a II Guerra Mundial e que culminou no lançamento do foguete soviético em 1957, desencadeou nos Estados Unidos, uma série de mudanças nos currículos das disciplinas científicas. As metas para o ensino de ciências para a educação geral foram inseridas numa abordagem que passou a se chamar "alfabetização científica". Em um artigo recente HURD (1997) caracteriza uma pessoa cientificamente alfabetizada como sendo capaz de:

    Hoje, o conceito de alfabetização científica é usado de modo muito amplo e contempla praticamente todos os objetivos do ensino de ciências descritos ao longo dos anos. Embora não se tenha um consenso sobre como obtê-la (LAUGSCH, 2000), várias propostas de reformas curriculares têm apontado a "alfabetização científica" como meta do ensino de ciências.

    Entretanto, mesmo com as mudanças ocorridas no ensino de ciências nos últimos cinqüenta anos, especialmente em relação a produção e enriquecimento dos materiais didáticos e a modernização dos currículos e estratégias de ensino, alguns autores tem sugerido uma grave crise na educação das ciências (BARROS, 1998).

    Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos mostra que 45% dos entrevistados consideram-se cientificamente alfabetizados. Destes, 30% possuem vocabulário transmitido pela mídia; 10% compreendem e explicam fatos básicos da natureza como efeito estufa, papel do DNA nos seres vivos; e 5% (cientistas, tecnólogos profissionais) conhecem a teoria e suas implicações. Para BARROS (1998) estes resultados evidenciam que os currículos atuais com conteúdos convencionais e a epistemologia educacional utilizada podem estar não contribuindo na preparação dos estudantes para a compreensão do mundo real que os rodeia. Ela aponta que um dos problemas encontrados no ensino de ciências relaciona-se à dificuldade de modificar o enfoque e os conteúdos do quantitativo-formal para o qualitativo-fenomenológico de modo a tornar o ensino mais interessante e mais significativo para os estudantes através de uma análise dos acontecimentos presentes no cotidiano.

    No Brasil, uma rápida análise dos documentos oficiais que orientam o ensino pode nos indicar a principal tendência do ensino de ciências: o ensino contextualizado no cotidiano do estudante. Exemplos sobre esta abordagem estão presentes não só nos documentos do MEC como também em editais de algumas das principais Universidades brasileiras , entre as quais, a UFMG.

    O parecer CEB no 15/98, aprovado em 01\06\98, orienta que a organização curricular do Ensino Médio deve ter entre outros pressupostos,

"abertura e sensibilidade para identificar as relações que existem entre os conteúdos do ensino e das situações de aprendizagem e os muitos contextos de vida social e pessoal, de modo a estabelecer uma relação ativa entre o estudante e o objeto do conhecimento e a desenvolver a capacidade de relacionar o aprendido com o observado, a teoria com suas conseqüências e aplicações práticas.."(BRASIL, 1999).
 
    O contexto que é mais próximo do estudante e mais facilmente explorável para dar significado aos conteúdos da aprendizagem é o da vida pessoal, cotidiano e convivência. O estudante vive num mundo de fatos regidos pelas leis naturais e está imerso num universo de relações sociais. Está exposto a informações cada vez mais acessíveis e rodeados por bens cada vez mais diversificados, produzidos com materiais sempre novos.

    No entanto, implantar um currículo que exponha o estudante a estas questões requer muito tempo e essencialmente uma mudança na concepção de ensino pelos professores, escolas e autores de livros didáticos. Um exemplo que se pode citar refere-se às dificuldades dos professores de Biologia na implantação das sugestões dos PCN. Hoje, não existe no mercado nenhum livro didático que esteja em concordância com as novas orientações.

    Outras dificuldades são apontadas na literatura. O argumento de CAJAS (1999), por exemplo, é que fazer a conexão entre o conhecimento escolar e situações do cotidiano, é uma meta educacional complexa e difícil. Para ele esta conexão pode ser interpretada de diferentes maneiras, por exemplo: quando os professores ensinam alguns tópicos como força, energia, momentum, é possível fazer uma articulação entre os problemas do mundo real. Entretanto, ele ressalta que as reformas curriculares estão sugerindo uma aplicação significativa da ciência em relação ao cotidiano dos estudantes, ou seja, o ponto de partida seria o uso da ciência em situações do cotidiano e não a resolução de problemas acadêmicos específicos. Para ele, adotar este enfoque, significaria assumir que o conhecimento científico poderia ser usado de modo significativo em situações do dia a dia. E, sob esse aspecto, há poucas pesquisas na educação.

    Para LAYTON et al (apud CAJAS, 1999) as pessoas reconstroem o conhecimento científico em contextos específicos. Por exemplo, o modo como elas entendem calor e temperatura pode determinar como explicam o controle do aquecimento em suas casas. Entretanto, a ciência escolar, geralmente, não considera estas situações do contexto e tratam o tópico calor e temperatura com base nos modelos atômicos e moleculares.

    A sugestão de CAJAS (1999) é que o ensino de ciências tenha uma abordagem mais tecnológica de modo a representar um caminho para se usar a ciência no dia a dia. Seu argumento é que este tipo de conhecimento pode reduzir a distância entre conhecimento científico especializado e o conhecimento escolar e tem uma implicação importante na compreensão da ciência pelos cidadãos. A tecnologia pode ser vista como uma interação complexa entre entender e fazer. Em um artigo sobre currículo, MILLAR (1996) também enfatiza que uma certa forma de pensar mais tecnológica talvez faça mais sentido no ensino de ciências.

    Por outro lado, JENKINS (1999) discute que no dia a dia, o conhecimento científico é freqüentemente marginalizado ou ignorado na solução de um problema. Em muitas situações do cotidiano o conhecimento do senso comum pode oferecer uma base mais efetiva do que o conhecimento científico.

    O enfoque de MAYAOH e KNUTTON (1997) é diferente. Eles estudaram como professores de ciências usaram experiências da vida cotidiana na sala de aula e identificaram doze tipos de episódios relacionados a experiências extra-classe. Entre os episódios identificados por eles, os mais utilizados pelos professores foram: discussão de notícias da mídia; o uso de narrativas sobre experiências pessoais do professor; experiências do cotidiano; conhecimento do senso comum; entre outros. Entretanto, estes diferentes tipos de episódios não foram usados com muita freqüência pelos professores e, quando aconteciam, eram iniciados quase sempre, pelos próprios professores e raramente os professores deixavam claro sobre a relação entre a atividade de ensino desenvolvida com a experiência do cotidiano. A crítica de CAJAS (1998) para esta pesquisa refere-se a falta de experiência dos professores envolvidos e que em função disto, não teriam conseguido fazer a conexão entre a vida cotidiana dos estudantes e a sala de aula de ciências.


O uso do conhecimento escolar em quase-simulações de situações do cotidiano

    Estamos chamando de conhecimentos nitidamente escolares aqueles conhecimentos que são caracteristicamente aprendidos na escola, ou seja, conhecimentos que dificilmente podem ser aprendidos na experiência cotidiana, através da mídia de massa ou em ambientes informais de ensino. São conhecimentos suficientemente elaborados para que fiquem sob a responsabilidade exclusiva da escola, mas, ao mesmo tempo, suficientemente simples para que os alunos de educação básica possam aprendê-los. O conhecimento do fenômeno de osmose, por exemplo, pode ser caracterizado como principalmente escolar. Embora muitos estudantes consigam prever o que acontece com uma salada de alface que foi temperada antes de ser servida, a explicação do porque a salada murcha só é possível com a utilização de um conhecimento que se aprendeu na escola.

    O conceito de osmose pode ser considerado "estruturador ou organizador" em Biologia. O conhecimento sobre osmose permite entender como se dá o transporte de água nos seres vivos. Isto é fundamental para a compreensão de processos tais como: a entrada e saída de substâncias nas células; a filtração do sangue para retirada de substâncias tóxicas resultantes do metabolismo celular; a movimentação de água e nutrientes nas plantas. É também conceito chave em física e química (difusão, permeabilidade, soluções, natureza corpuscular da matéria). Além disso, diariamente estamos lidando com práticas que envolvem o processo osmótico tais como o uso açúcar ou sal na conservação de alimentos, a calda de açúcar para conservar doces, a salmoura para conservar carnes como o bacalhau e a carne de sol.

    Embora tão presente no dia a dia, este conceito é de grande dificuldade de aprendizagem para os estudantes. JOHNSTONE e MAHMOUD (apud FRIEDLER, 1987) identificaram que osmose e potencial de água foram apontados pelos estudantes e professores como o mais difícil entre os quinze conceitos mais importantes da biologia. Porque osmose é tão difícil? Pesquisas em ensino tem mostrado que o conceito de osmose é difícil porque provavelmente demanda explicações abstratas e depende de vários fatores. FRIEDLER (1987) apresenta em seu trabalho algumas das razões citadas na literatura:

    O estudo feito por FRIEDLER (1987) identificou que a maioria dos estudantes acredita que o desejo ou necessidade de alcançar concentrações iguais é a causa do movimento da água, evidenciando idéias teleológicas e antropomórficas. Para este autor, professores e livros textos abordam a osmose usando explicações teleológicas, dificultando o entendimento dos estudantes sobre este conceito.

    Uma explicação é "teleológica" quando apela para causas finais, para um propósito determinado. Há uma tendência no pensamento humano em considerar que as coisas, no mundo, existem para um fim. É comum ouvirmos de crianças e adultos explicações do tipo: as aves possuem asas para voar, ou os peixes possuem brânquias para poderem respirar na água. A legitimidade das explicações teleológicas e antropomórficas em biologia é uma questão não resolvida para muitos educadores. ZOHAR e GINOSSAR (1998) argumentam que as explicações antropomórficas e teleológicas prevalecem em biologia porque:

      1) A estrutura física dos organismos vivos é usualmente adaptada para sua sobrevivência: portanto, os organismos parecem ser orientados para um fim
      2) As pessoas tendem a projetar a partir de sua própria experiência as metas e os objetivos dos fenômenos que eles percebem no mundo.
      3) Explicações antropomórficas/teleológicas tem valor aparentemente explicativo.
      4) Tendem a nos dar a sensação de nós realmente entendermos o fenômeno em questão, porque ela é relatada em termos de proposta, as quais nós temos familiaridade a partir de nossa experiência.
    Além disso há um valor heurístico na abordagem teleológica. Na história da biologia, muitas pesquisas motivadas por orientação teleológica resultaram em importantes descobertas, o que aumentou nosso conhecimento científico da relação entre a causa e o fenômeno biológico.

    Muitos educadores são contra o uso de formulações teleológicas pelos livros didáticos e professores porque elas podem confundir os estudantes levando-os a acreditar que as explicações teleológicas podem ser legitimamente tratadas como uma explicação causal. ZOHAR e GINOSSAR ( 1998).

    Em nossa pesquisa identificamos que os estudantes do ensino médio são capazes de utilizar o conceito de osmose em situações de quase cotidiano. Entretanto quando são solicitados a elaborarem uma explicação sobre o fenômeno observado, há uma forte tendência para o uso de explicações teleológicas.



Metodologia

    Para verificarmos como os estudantes usam o conceito de osmose, em situações do dia a dia fizemos um estudo com sessenta estudantes de três turmas do terceiro ano do ensino médio regular, em uma escola pública com forte tendência para um ensino teórico-prático.

    Os estudantes que participaram da pesquisa já haviam estudado o conceito de osmose em diferentes contextos do ensino de biologia: a) no primeiro ano, no estudo das propriedades da membrana plasmática b) no segundo ano, no contexto de absorção e distribuição de nutrientes nos organismos; no processo de osmorregulação e funcionamento do sistema excretor dos diferentes animais; e no estudo de transporte de água nos vegetais.

    Para coleta de dados escolhemos simular uma situação do cotidiano do estudante como o ato de temperar uma salada de alface.

    A atividade teve início com a leitura de um pequeno texto que descrevia algumas características das folhas das plantas. A seguir, os estudantes descreveram a folha de alface que eles tinham à sua disposição e registraram suas observações em uma folha de resposta Este pequeno texto tinha como objetivo orientar a observação e descrição do estudante sobre as características da folha de alface, em especial a "firmeza" das folhas frescas.

    Após esta descrição inicial os estudantes temperaram as folhas de alface com sal, foi solicitado que eles fizessem uma previsão sobre as alterações que iriam ocorrem nestas folhas. Passados alguns minutos, os estudantes observaram a folha temperada, compararam o resultado com a sua previsão e, a pedido da professora, elaboraram uma explicação sobre o que havia ocorrido com a folha de alface. Todas as explicações foram registradas em uma folha em que os estudantes se identificavam com um número que foi previamente sorteado.
 

Resultados e discussão

    As respostas dos estudantes foram analisadas e agrupadas em três categorias que estamos denominando: I) descrição; II) causal e III) teleológica.

    Na categoria descrição, foram incluídas as respostas que descreviam alterações morfológicas da folha. Por exemplo:

"A folha deve perder um pouco de coloração e rigidez"

"Espero que murche"; "Espero que ela fique mais enrugada e escura com um aspecto menos natural."

"Espero que a folha de alface murche, perca a aparência de uma folha nova e perca a consistência"

"Ela estará mais flexível."
 

    Foram consideradas causais, as respostas que continham uma explicação que associava o causa do murchamento ao processo de perda de água pela folha desencadeado pelo sal do tempero. Respostas incluídas nesta categoria podem ser vistas nos exemplos: "Ela irá se desidratar, murchando e perdendo a aparência fresca."

"Espero que a alface perca água, (pois a água com sal está mais concentrada). Murchando desta forma."

"Provavelmente a folha irá murchar. Isto porque o meio externo se tornou mais concentrado, e então a folha perderá água."
 

    Na categoria de respostas teleológicas, foram incluídas respostas que atribuíam à água ou ao sal a capacidade de resolver o problema da diferença de concentração. Por exemplo: "A folha vai 'suar ' para dissolver o sal, ficando mais seca e dura."

"Mudanças na concentração de sal do ambiente fariam a folha se desidratar, pois ela perderia água na tentativa de equilibrar a concentração de sal do ambiente"

"Considerando a solução colocada ser uma mistura de água+sal, espera-se que comece a sair água do alface para que as concentrações do soluto (sal) dentro e fora da alface se equilibrem. Assim a folha terá alguma modificação perceptível."
 

    A tabela 1 apresenta o número de respostas obtidas na previsão e na explicação em cada uma das categorias consideradas.
 
Tabela 1- Tipos de respostas obtidas na previsão e explicação do que ocorre com a alface quando é temperada
Tipos de respostas
PREVISÃO 
EXPLICAÇÃO 
N
%
N
%
Descritiva
39
65%
4
7%
Causal
17
28%
23
38%
Teleológica
4
7%
27
45%
Incorreta
-
-
6
10%
TOTAL
60
 
60
 

    Como mostram os resultados sistematizados na Tabela 1, a maioria dos estudantes (65%) elaborou uma previsão descritiva. Entretanto, chama a atenção o fato de 21 estudantes terem optado por uma resposta explicativa ( causal ou teleológica), quando perguntados sobre quais alterações eles esperavam que acontecesse com a folha de alface, após a adição do tempero.

    Para a questão: "Tente explicar o que aconteceu com a folha", 50 estudantes apresentaram uma explicação causal ou teleológica. Entretanto, 4 estudantes ainda deram uma resposta descritiva, mesmo sendo solicitados a elaborarem uma explicação. Podemos também evidenciar o grande número de explicações teleológicas para o fenômeno da osmose, confirmando o que já havia sido relatado por FRIEDLER (1987).

    A tabela 2 mostra como mudaram as respostas dadas pelos estudantes na previsão e na explicação.
 

TABELA 2 – Evolução do padrão de respostas dos estudantes após a

atividade

PREVISÃO
EXPLICAÇÃO
Tipos de respostas
N
Tipos de 
respostas
N
%
Descritiva
339
Descritiva
3
5
Causal
16
27
Teleológica
14
23
Incorreta
6
10
Causal
117
Descritiva
1
1,6
Causal
6
10
Teleológica
10
16
Incorreta
0
0
Teleológica 0 Descritiva
0
0
Causal
1
1,6
Teleológica
3
5
Incorreta
0
 

    Observe que a maioria dos estudantes que fizeram uma previsão descritiva elabora uma explicação causal ou teleológica para o murchamento da folha de alface. Entre os estudantes que optaram por uma explicação causal na previsão, 10 mudaram para uma resposta teleológica ao elaborarem a explicação. Somente um estudante passou de uma resposta causal na previsão para uma descritiva na explicação. Já os estudantes que apresentaram respostas teleológicas na previsão, continuam com respostas explicativas teleológicas ou causais na explicação do fenômeno da osmose. É interessante notar ainda que respostas incorretas para a explicação foram dadas somente por estudantes que estavam na categoria descritiva no momento da previsão.

    A seguir apresento na tabela 3, alguns exemplos de evolução das respostas dos estudantes
 

Tabela 3 – Comparação entre a previsão e a explicação de alguns estudantes
PREVISÃO
EXPLICAÇÃO
Alterações que espero ocorrer : a folha murchar e parecer amassada.
D
Ao colocar água+sal na alface, o meio externo ficou hipertônico; como a alface é rica em água, ela perdeu parte dessa água, murchando. C
À folha deve ficar murcha e enrugada, a estrutura deverá ficar comprometida, amolecida.
D
À folha entrou em contato com uma solução hipertônica (água mais sal) e por osmose a água do interior das células da folha saiu diminuindo o volume dessas células.
C
Depois de algum tempo ela vai murchar.
D
Quando temperamos a folha, devido a presença do sal, ela desidratou. Então ela murcha porque teve que perder água para o meio externo que estava muito mais concentrado.
T
Ela estará mais flexível.
D
A água da folha esta saindo da folha por osmose pois o meio externo esta mais concentrado - por causa do sal - e a água sai na tentativa de igualar as concentrações.
T
O acréscimo de sal deve fazer com que a folha perca água, ficando mais murcha.
C
A folha deve ter perdido um pouco de sua quantidade interna de água para que ocorra um equilíbrio osmótico entre a folha e o meio.
T
A folha irá murchar, irá perder sua frescura e irá desidratar.
C
De acordo com a osmose. O meio ficou hipertônico (mais concentrado) em relação a alface. Para equilibrar as concentrações, a folha perde água. Isso explica os aspectos descritos acima.
T

    É importante ressaltar ainda que 7 estudantes mencionaram o fenômeno de osmose na previsão e 36 elaboraram respostas que explicavam o murchamento da alface em função do processo osmótico ou da diferença de concentração entre os dois meios.

    Alguns exemplos de previsões que se referem à osmose podem ser ilustrados com as seguintes respostas:

"Como a concentração de sal da água com sal é maior do que a concentração da folha, ocorrerá uma saída de água da folha para fora, com isso a folha irá murchar"

"Mudanças na concentração de sal do ambiente fariam a folha se desidratar, pois ela perderia água na tentativa de equilibrar a concentração de sal do ambiente"

"Que a folha murche por perder água por osmose".

    Explicações que se referem explicitamente ao processo osmótico podem ser ilustradas com as seguintes respostas: "De acordo com a osmose. O meio ficou hipertônico (mais concentrado) em relação a alface. Para equilibrar as concentrações, a folha perde água. Isso explica os aspectos descritos acima"

"Acho que por osmose, a membrana das células que constituem o alface, possibilitou a passagem de água, o que fez com que perdesse sua rigidez e se tornar mole. A quantidade de água na folha aumentou".
 

    Estes resultados apresentam evidências de que, ao contrário do que apontam algumas pesquisas, os estudantes usaram um conhecimento científico, como o de osmose, em situações que simulam o cotidiano. Vale a pena lembrar que no currículo de biologia da escola onde foi realizada a pesquisa, o conceito de osmose foi trabalhado no primeiro e no segundo ano do ensino médio, e os estudantes participantes da pesquisa eram alunos do terceiro ano. Ou seja, eles foram capazes de usar um conceito que haviam estudado há pelo menos um ano. Assim, temos ao mesmo tempo evidência de que houve uma aprendizagem significativa de um conhecimento nitidamente escolar e de sua mobilização para entender situações do cotidiano.



Implicações para o ensino de Biologia

    Os resultados aqui apresentados mostram que os estudantes apresentam explicações bem elaboradas para o murchamento da alface temperada. Entretanto, algumas dessas explicações poderiam ser confundidas com concepções alternativas sobre o conceito de osmose, já que impõem ao fenômeno da osmose uma meta, um fim, ou seja, são explicações teleológicas.

    Esta tendência foi observada também por JUNGWITH (apud: ZOHAR e GINOSSAR, 1998) que encontrou uma alta proporção de estudantes da high school que usavam explicações teleológicas em exames; reconheciam textos de biologia como idéias teleológicas como explicações científicas. Ele observou ainda que estudantes que estavam se preparando para serem professores de ciências e não estavam imunes a este tipo de pensamento.

    Embora ainda não exista consenso sobre a origem do pensamento teleológico (KELEMEN, 1999), não podemos deixar de considerar que o ensino de biologia, de modo geral, tem uma orientação teleológica. Desde as séries iniciais as crianças aprendem que cada órgão, cada estrutura no corpo de um animal ou planta existe para uma função determinada.
 
    Na literatura não existem respostas definitivas para a legitimidade do uso de antropomorfismo e teleologia em biologia. De um lado este tipo de explicação tem valor pedagógico. Elas transformam longas formulações em outras mais curtas, ajudando os estudantes no entendimento de tópicos científicos, e na organização de informações de modo mais familiar. Por outro, tais formulações podem impedir o desenvolvimento de um sistema de explicações biológicas compatíveis com o conhecimento científico ( ZOHAR e GINOSSAR, 1998).

    Em nossa pesquisa, tivemos evidências que os estudantes usaram um conhecimento nitidamente escolar para solucionar um problema do cotidiano – porque a salada de alface murcha, após ter sido temperada? Entretanto, verificamos uma tendência para o uso de explicações teleológicas. Se analisarmos o uso deste tipo de explicação somente no contexto que utilizamos, podemos considerar que este tipo de pensamento não traz qualquer problema para o ensino e para a formação do cidadão. Entretanto, há um risco de que um esquema de pensamento como este, antropomórfico e finalista, implique em uma concepção de que o ambiente pode ser explorado pelo homem sem nenhuma limitação.


Bibliografia

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