CONCEPÇÕES DE LICENCIANDOS EM CIÊNCIAS BIOLÓGICAS SOBRE A NATUREZA DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO


Regina Maria Rabello Borges
Professora da Faculdade de Educação – PUCRS
regina.ez@terra.com.br

Karine Rabello Borges
Aluna do Curso de Psicologia – PUCRS

 
Resumo

    Este estudo visa à atualização de uma pesquisa envolvendo concepções sobre a natureza do conhecimento científico e a educação em Ciências entre licenciandos de cursos de Ciências Biológicas, comparando os resultados da pesquisa realizada dez anos atrás (Borges, 1991) com dados atuais, obtidos entre alunos da disciplina Prática de Ensino de Biologia, na PUCRS, em 2001. Foi aplicado o mesmo instrumento de pesquisa, submetido, igualmente, a uma análise de conteúdo. Os resultados dessa análise indicam 20 % dos alunos como empiristas e indutivistas, 25 % como empiristas, mas com ressalvas, sendo que 25 % foram categorizados como indefinidos quanto à opção epistemológica, ou por não se posicionarem claramente ou por concordarem com idéias contraditórias.
 
 

Abstract

    This study intends to update a research on the conceptions on the nature of scientific knowledge and Science Education among student teachers in Biological Sciences courses, comparing the results with a study conducted ten years ago(Borges, 1991) with updated data, obtained with students of Teaching Practice in Biology, in PUCRS, in 2001. The same research instrument was applied. Content analysis was used. The results of the analysis indicate that 20% of the students carry empiricist and inductivist conceptions, 25% are empiricists but conscious of some of its limitations. 25% were cathegorized as with no clear epistemological option, because either not assuming a clear position, or accecpting contradictory ideas.
 
 

Introdução

    Considerando que há uma relação entre concepções sobre a natureza do conhecimento científico e concepções sobre a educação em ciências (Zylbersztajn e Borges, 1995), é importante verificar como essa reflexão se reflete, ou não, em cursos de formação de professores.

    Em pesquisa anterior, que resultou numa dissertação de mestrado (Borges, 1991) com orientação de Arden Zylbersztajn, na UFSC, foi constatada a predominância da concepção empirista. Considerando o tempo decorrido, convém atualizar esse resultado. Foi realizada, portanto, uma pesquisa envolvendo alunos do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas, em sala de aula, na disciplina Prática de Ensino de Biologia, aplicando o instrumento de pesquisa que foi utilizado para identificar concepções sobre cientificidade entre licenciandos em Ciências, Química, Física e Biologia em 11 Instituições de Ensino Superior do Rio Grande do Sul.

    Portanto, a partir da apresentação desse instrumento de pesquisa e da metodologia adotada em sua aplicação e análise, serão analisados os dados obtidos na pesquisa mais recente, comparando-os com os que foram identificados na pesquisa anterior e refletindo sobre as variações encontradas.
 
 

Instrumento de pesquisa

    O instrumento de pesquisa utilizado nesta pesquisa é uma variação de outro, criado por Zylbersztajn (1986). É composto por pequenos textos que resumem algumas visões sobre a natureza das ciências, designados pelas letras L, P, K, F, B, E. É apresentado no livro "Em debate: cientificidade e a educação em ciências" (Borges, 1996), que foi distribuído aos alunos da disciplina mencionada. Segue-se a caracterização das idéias contidas nesses textos.

Texto L - Visão tradicional das ciências, com ênfase no método científico empirista e indutivista, que parte de observações à formulação de teorias. Nessa concepção, o conhecimento científico é considerado como certo e seguro, por partir de evidências observacionais e experimentais.

Texto P - Visão falseacionista, relacionada ao racionalismo critico de Karl Popper, pelo qual nenhuma teoria pode ser considerada como absolutamente certa: é possível refutar, mas jamais comprovar uma teoria. Popper, em 1935, propôs esse critério da falsificabilidade das teorias para caracterizar o conhecimento científico.

Texto K - Visão contextualista proposta por Thomas S. Kuhn, em l962, ao considerar como ciência apenas o que os cientistas aceitam por consenso, no contexto de comunidades científicas conservadoras e resistentes a mudanças.

Texto B - Visão dialética do conhecimento científico. Corresponde ao racionalismo aplicado de Gaston Bachelard, pelo qual a ciência exige romper com o senso comum que direciona nossas percepções, pois as observações são influenciadas por conhecimentos e teorias prévias.

Texto F - Visão relativista de Paul Feyerabend sobre a metodologia científica, considerando a diversidade de métodos nas diferentes ciências, a inexistência de regras de pesquisa que não tenham sido violadas e a necessidade de tais violações para o progresso.

Texto E - Visão externalista das ciências. Ao contrário dos textos anteriores, que abordam questões epistemológicas (internalistas) ao analisar a construção do conhecimento pelas comunidades científicas, esse texto destaca a influência de fatores externos (sócio-políticos, econômicos, culturais) que direcionam as investigações.

    A orientação para responder a esse instrumento de pesquisa foi a seguinte:

    Após a conclusão desse exercício, as folhas com as respostas foram recolhidas e analisadas.
 
 

Análise das respostas

    Ler, refletir e avaliar as idéias contidas em cada texto, posicionando-se diante delas, é uma forma de iniciar um debate, pois "a própria leitura já é um processo dialógico, envolvendo quem lê, quem escreve e todos os autores mencionados no texto. Podemos concordar com suas idéias ou rejeitá-las, ao refletirmos e (re)construirmos uma concepção própria" (Borges, 1996, p. 16). A análise das respostas a esse exercício pode permitir a identificação de concepções individuais e a discussão coletiva dessas concepções.

    Num primeiro momento, logo após a conclusão do exercício, é interessante registrar, numa tabela, o grau que cada aluno atribuiu a cada um dos textos, colocando em discussão as idéias neles contidas. Isto corresponde a um retorno imediato, quando todos estão mergulhados ainda nas dúvidas geradas pela reflexão quanto a esse conjunto de idéias contraditórias. Isto é viável, especialmente, quando o professor que aplica o instrumento de pesquisa é professor da turma e destaca o debate epistemológico entre os temas desenvolvidos em aula. Foi o que aconteceu na pesquisa envolvendo os licenciandos em Ciências Biológicas da PUCRS, em 2001-1.

    Após isto, foi identificado o número de alunos que marcou os diferentes graus para cada um dos textos. Depois os números foram convertidos em percentuais, conforme está indicado na tabela 1.
 

TEXTOS

GRAUS ATRIBUÍDOS (%)
0 1 3 4 5
L - - 20 30 30 20
P 5 - 15 10 10 60
K 10 10 20 50 10 -
F 25 - - 35 15 25
B 10 5 5 10 10 60
E 5 - - 10 35 50

Tabela 1 – Percentual de alunos do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas (PUCRS – 2001-1) que atribuiu cada um dos graus (0 a 5) a cada texto.

    Esse registro pode ficar mais claro agrupando-se esses graus de acordo com a concordância ou discordância em relação aos textos:

    Isso pode ser constatado na tabela 2.
 

TEXTOS

CONCORDÂNCIA OU DISCORDÂNCIA (%)
Discordam 

(graus 0 e 1)

Concordam parcialmente

(graus 2 e 3)

Concordam 

(graus 4 e 5)

L - 50 50
P 5 25 70
K 20 70 10
F 25 35 40
B 15 15 70
E 5 10 85

Tabela 2 – Percentual de alunos do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas (PUCRS – 2001-1) em relação ao grau de concordância com cada texto.

    Em síntese, a partir dos graus atribuídos, podem ser constatadas algumas situações:

    Além dessa análise quantitativa das respostas, foi realizada também uma análise de conteúdo com abordagem qualitativa, utilizando critérios semelhantes ao do estudo realizado há dez anos.

    Antes de fazer esta análise, os comentários ao texto E foram considerados separadamente, como na pesquisa anterior, pois referem-se à visão externalista sobre as ciências. Mas chama a atenção a convergência das respostas, nas duas pesquisas, sendo de 87 % o índice de aceitação desse texto em 1991 (Borges, 1996) e de 85 % em 2001.

    A análise dos textos que se referem à abordagem epistemológica do desenvolvimento das ciências (internalismo) foi fundamentada em três grandes categorias: idealismo, empirismo e construtivismo.

IDEALISMO - O conhecimento é pré-existente no ser humano, necessitando apenas ser descoberto através da introspecção. O idealismo não foi abordado nos textos do instrumento de pesquisa.

EMPIRISMO - O conhecimento é exterior ao indivíduo e deve ser buscado fora. O empirismo evidencia-se, sobretudo, na visão tradicional sobre as ciências. A concepção empirista e indutivista presente no método experimental baconiano, que ainda hoje é marcante na educação científica, supõe que "a observação dos fenômenos e a realização de experimentos precedem a formulação de teorias. Na visão indutivista, o método científico parte da observação à elaboração de hipóteses, seguida de experimentos (repetidos diversas vezes pelos pesquisadores) e conclusões, para chegar a teorias e leis" (Borges, 1996).

CONSTRUTIVISMO - O conhecimento não se encontra nem em nós, nem fora de nós, mas é construído pelas interações que estabelecemos. As teorias cientificas que aceitamos e teorias implícitas (nossos conhecimentos do cotidiano, memórias e crenças) precedem e influenciam observações, sendo a ciência um processo dinâmico e sujeito a mudanças.

    Atualmente, a maioria dos filósofos das ciências, por maiores que sejam as divergências entre eles, contestam o empirismo e apresentam em comum uma visão construtivista do conhecimento.

    Podemos encontrar diversas variações de uma visão construtivista, intercalando aspectos das concepções anteriores. Comparando os comentários escritos em relação aos textos L e B, torna-se possível determinar as categorias já citadas.

L – O conhecimento científico parte da observação neutra dos fenômenos, utilizando o método experimental.

B – Toda a observação é influenciada pelo que acreditamos e conhecemos.

- Empiristas: Acreditam que a observação precede a teoria.

- Construtivistas: Acreditam que não há observação neutra, isenta de teoria.

- Indefinidos: Não definem claramente uma concepção ou são contraditórios ao comentar os textos.

    Com essa finalidade, os comentários a cada texto foram relidos e comparados, visando a reconhecer concepções individuais sobre a natureza do conhecimento científico.

    O resultado dessa análise indicou que:

    Os resultados da presente pesquisa não visam à generalização, pois trata-se de uma única turma de alunos, de uma mesma instituição (PUCRS). Mas esses dados merecem ser refletidos, no sentido de uma conscientização sobre tais concepções. É importante colocar em debate, em sala de aula, as concepções sobre a natureza do conhecimento científico dos futuros professores de Ciências, nos cursos de graduação, além de realizar esse trabalho em cursos que envolvam educação continuada de professores em exercício, ao mesmo tempo em que se reflete sobre a educação em ciências.
 

Considerações finais

    A docência é influenciada por diferentes concepções sobre cientificidade e educação, bem como por posicionamentos políticos e sociais, sendo importante questionar os fundamentos epistemológicos e pedagógicos da educação em Ciências, desde os cursos de licenciatura.

    Entretanto, a reflexão epistemológica, embora necessária, pode ser insuficiente para que haja explicitação e amadurecimento dessas concepções. O debate de idéias pode viabilizar a vivência da produção e da crítica do conhecimento, se for seguido por uma reflexão que permita a tomada de consciência sobre esse processo.

    Na busca de alternativas para debater questões epistemológicas com licenciandos e professores já formados, integrando-as com a prática de ensino e analisando criticamente a educação científica escolar, uma longa caminhada já foi percorrida no Rio Grande do Sul, aproximando as licenciaturas em Ciências do ensino fundamental e do ensino médio realizado nas escolas e, também, da formação continuada de professores em exercício. Isso tem sido priorizado por diversas pesquisas interinstitucionais envolvendo a educação científica, com destaque às que foram realizadas pela Rede ACOMECIM (Ação Conjunta para a Melhoria do Ensino de Ciências) entre 1983 a 1995, e que continua a acontecer em outros projetos integrados de pesquisa.
 

Referências

BORGES, R.M.R. A Natureza do Conhecimento Científico e a Educação em Ciências. Florianópolis: UFSC, 1991. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, 1991.

______. Em Debate: Cientificidade e a Educação em Ciências. Porto Alegre: SE/ CECIRS, 1996.

ZYLBERSZTAJN, A. Idéias sobre a Natureza do Conhecimento Científico. Natal, UFRN, 1986a (mimeo).

ZYLBERSZTAJN, A. Projeto Treinamento e Ação. Relatório apresentado ao SPEC/PADCT/CAPES, Natal, UFRN, 1986b (mimeo).

______; BORGES, R. M. R. Concepções de Ciências e Ensino de Ciências. In: RIO Grande do Sul. Secretaria da Educação. Departamento Pedagógico. Centro de Ciências do Rio Grande do Sul. II Fórum Estadual de Debates em Clubes de Ciências. 1995. Anais. Porto Alegre: SE/CECIRS, 1995.