AVALIAÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTICOS PRODUZIDOS DE FORMA INTEGRADA EM ATIVIDADES DE FORMAÇÃO INICIAL E CONTINUADA DE PROFESSORES DE QUÍMICA



José Claudio Del Pino

Ana Grace Pellenz

Marcelo Eichler



Resumo

    Entende-se que a produção de material didático alternativo ao livro texto padrão pode servir de estratégia para a formação continuada de professores da escola básica. Nesse artigo, buscamos trazer as vozes de professores e de alunos que utilizaram e avaliaram esse material didático em cursos de extensão.

Abstract

    In this paper we point out that the pedagogic material production, as an alternative to the traditional textbook, may stands as a strategy to primary and secondary teachers continued formation and also try to bring to light both the teachers and students voice who have used and evaluated such pedagogic material in extension courses.

Algumas compreensões desde a pedagogia crítica

    No discurso das políticas públicas sobre a educação é possível perceber a idéia que a educação serviria de veículo para uma transformação social e econômica (McLaren, 1999). Nesse sentido, entendemos que a melhoria da qualidade de ensino de química passa pela definição de uma nova postura didático-pedagógica centrada em alguns princípios básicos:

1) adequação à realidade econômica, política e social do meio onde se insere a escola;

2) desenvolvimento de uma educação química que tem na experimentação uma das formas de aquisição de dados da realidade, utilizados para reflexão crítica sobre o mundo e para o aprimoramento do desenvolvimento cognitivo;

3) utilização do ensino de química como um meio de educação para a vida, relacionando os conteúdos aprendidos com o cotidiano dos alunos e com outras áreas do conhecimento, formando a totalidade que explica e interpreta a presença do homem na Terra e o sentido do desenvolvimento científico.

    Compreendemos que uma das causas da dicotomia entre a realidade encontrada em nossas escolas e aquilo que nos é desejável pode estar relacionada com deficiências na formação do professor.

    Cremos que existe um consenso que a reflexão da prática docente deve ser o primeiro passo para a implementação de mudanças do atual quadro de ensino. O professor, para o pleno exercício de sua atividade, necessita constantemente avaliar seus métodos, suas práticas e principalmente qual a finalidade e a dimensão de seu ato de ensinar. Enfim, julgamos necessário que o professor assuma uma postura crítica para o seu ensinar e em relação a ele.

    Porém, entendemos que o problema da consciência crítica não pode ser colocado de modo abstrato em relação aos contextos históricos significativos nos quais o conhecimento é produzido, assumido e apropriado. Dessa forma, é útil reconhecer que o projeto pedagógico de Freire é "apoiado no reconhecimento da base cultural das tradições populares e na importância da construção coletiva do conhecimento" (McLaren, 1999; p 24). A pedagogia de Freire é antiautoritária, dialógica e interativa, colocando o poder nas mãos de estudantes e trabalhadores. O mais importante dessa pedagogia é o fato da análise da vida cotidiana se situar no centro do currículo. Assim, "a centralidade de Freire na pedagogia crítica pode ser atribuída ao seu modelo de conhecimento emancipatório enquanto práxis. Para Freire, isto se dá na passagem da ‘consciência ingênua’ à ‘consciência crítica’". (p 25)

    Em tal pedagogia há um outro modo de pensar, de negociar e de transformar a relação entre ensino em sala de aula, a produção do conhecimento, as estruturas institucionais da escola e as relações sociais e materiais da comunidade mais ampla, da sociedade e do estado-nação. Tudo isso para além da postura hegemônica que nos é imposta como a mais palatável. No entanto,

"a pedagogia freireana, ainda que com uma gama tão diversa de influências, em nível de vida em sala de aula, é freqüentemente percebida, equivocadamente, como sinônimo de método global de alfabetização, de programas de alfabetização de adultos e das novas abordagens ‘construtivistas’ para a questão do ensino-aprendizagem baseadas no trabalho de Vygotsky" (McLaren, 1999; p 30)
 
 
    Esse entendimento está por trás das reclamações dos professores sobre o pouco lhes é ensinado sobre como passar do pensamento crítico à prática crítica. Pensar criticamente é muito mais fácil que agir dessa forma. Porém, o fato é que "[Paulo] Freire exortava seus leitores e leitoras e reinventa-los no contexto de suas lutas específicas" (McLaren, 1999; p 35). Sua recusa em definir soluções alternativas ao coletivo dos problemas permite a longevidade de seu trabalho, podendo seus leitores, fazer as traduções que lhe sejam específicas, indo além das "fronteiras geográficas, geopolíticas e culturais" (p 34).

    É necessário entender que ensinar antecede as eleições sobre o que ensinar e o como ensinar. O professor precisa ter uma compreensão política a favor de quem e do que ele ensina. O preparo científico, a capacitação científica, o domínio dos conteúdos necessários, fundamentais à educação do menino ou do jovem, demanda clareza política do educador, na medida em que não há capacitação, formação ou preparação científica neutra. Não basta que o professor saiba bem álgebra, geografia, história, biologia. Não basta que disponha de certos instrumentos mínimos, como um quadro negro e giz (Andreola, 1987).

    Por isso, julgamos que os professores dos quais a sociedade precisa devem ser profissionais com uma grande leitura de mundo, capazes de visualizar o contexto de seus conteúdos dentro de uma visão ampla de ensino e realidade sócio-econômica, conforme pois é importante enfatizar que os professores devem assumir responsabilidade ativa pelo levantamento de questões sérias acerca do que ensinam, como devem ensinar, e quais são as metas mais amplas pelas quais estão lutando. Isto significa que eles devem assumir um papel responsável na formação dos propósitos e condições de escolarização, desenvolvendo uma linguagem crítica que esteja atenta aos problemas experimentados em nível da experiência cotidiana, particularmente enquanto relacionados com as experiências pedagógicas ligadas à prática em sala de aula (Giroux, 1997).

    Então, para que o ensino se torne realmente significativo, os conteúdos abordados devem ser coerentes com a realidade da escola em que estão inseridos, facilitadores do acesso à cultura e ao saber por parte dos alunos, ajudando-os a interagir de modo participativo consciente das relações sociais. Isto também é responsabilidade do professor, uma vez que não basta que os conteúdos sejam apenas ensinados, ainda que bem ensinados; é preciso que se liguem, de forma indissociável, à sua significação humana e social.

    Os livros textos tradicionais, comumente empregados nas escolas são carentes quanto a esta abordagem, uma vez que simplesmente não tomam conhecimento das diferentes realidades de escola existentes. Os programas de química são, usualmente, determinados pelos autores de livros-texto, e estes se sucedem num copismo fantástico que decreta a quase universalidade dos programas. Assim, o que se ensina na capital é igual ao que se ensina na zona rural; o que se ensina no Brasil é o mesmo que se ensina nos estados Unidos ou na Tanzânia (Chassot, 1993).

    O livro texto tradicional também acaba por atrofiar a capacidade criativa e reflexiva do professor, uma vez que este não participa da escolha dos temas ou da abordagem dada pelo livro, sendo passivo ao processo de elaboração de conteúdos, da didática e da metodologia adotada.

    Justamente por isso que, embora o livro didático possa ser parcialmente libertador, uma vez que fornece o conhecimento necessário onde faz falta, freqüentemente o texto se torna um aspecto dos sistemas de controle (Apple, 1995). Como pouca coisa é deixada para a decisão dos professores, à medida em que o estado ou o mercado controla cada vez mais os tipos de conhecimento que devam ser ensinados, os resultados e objetivos desse ensino e a maneira segundo a qual este deve ser conduzido, presume-se que a mudança que é propalada pelos discursos das políticas públicas pode ser inóxia ou inópia. Dessa forma, conforme Apple, enquanto os textos dominarem os currículos, ignorá-los como não sendo dignos de uma séria atenção ou de uma luta política é viver em um mundo divorciado da realidade.

    Embora muito se critique os livros textos tradicionais, julgamos que pouco se fez para reverter tal quadro. Entendemos que se torna muito difícil para um professor, de forma individual, produzir algo alternativo para essa situação. Isso porque, além das dificuldades inerentes a sua formação, tal atividade requer estudo, dedicação, infra-estrutura e recursos. E isso, normalmente, não lhe dado, pois as decisões de foro político e burocrático, apoiados pelo interesse mercantil, alijou-lhes desse processo. E isso se dá porque a escola não se vê como o foco de resistência, ou conforme nos fala Lutfi: "as escolas (...) não colocam para si a questão da produção do conhecimento, em especial o conhecimento químico. É consenso que isso não diz respeito ao professor que leciona química" (1992). Assim, pensamos que sem um amparo e um trabalho coletivo e integrado, esse tipo de atividade se torna praticamente inviável. Por tudo isso, compreendemos como necessárias as atividades integradas que busquem uma produção de material didático coletiva, com envolvimento de professores de diversas realidades através de proposições, discussões e reflexões sobre o saber, o ensinar e o aprender química.

    A superação desse tipo de problema, e não poderia ser diferente, envolve muito trabalho, estudo e reflexão. Nesse sentido, a pedagogia de Paulo Freire propõe o desenvolvimento de temas geradores para superar o problema da elaboração dos conteúdos curriculares e da aprendizagem dos conceitos disciplinares. O tema gerador é entendido como o assunto que centraliza o processo de ensino-aprendizagem, sobre o qual acontecem os estudos, pesquisas, análises, reflexões, discussões e conclusões (Corazza, 1992). Segundo a pedagogia da autonomia, o processo de escolha desses assuntos, problemas ou temas geradores é fruto de uma mediação entre as responsabilidades dos professores e os interesses dos alunos. Além do mais, nessa pedagogia, o professor deve estimular seus alunos à pergunta e provocá-los à reflexão crítica sobre suas próprias perguntas, rompendo com a passividade dos alunos em face às explicações discursivas do próprio professor. As possibilidades são várias e estão em aberto.

    Por fim, nessa perspectiva, a partir de uma orientação bachelardiana, pode-se pensar a função do professor como complicador e não como facilitador (Silva, 1999). O professor só facilita quando complica. Complica, à medida que desafia, à medida que propõe a análise de cada perspectiva, como uma perspectiva. Quando provoca a exposição do erro de forma discursiva, complica o saber fácil, dificulta os juízos apressados. Assim, se descobrir é a única maneira ativa de conhecer, fazer com que se descubra é, portanto, o único método de ensinar.

    De tudo isso, resto dizer que antes é necessário perguntar qual a transformação que desejamos, para então decidir qual a educação que queremos.


Um breve histórico de um longo e inacabado projeto

    As atividades de produção de material didático visam possibilitar a instrumentação do professor para sua atividade e para motivá-lo a elaborar novas propostas, organizando uma biblioteca de materiais didáticos centrados na realidade, considerando as características peculiares de diferentes escolas, configurando como um produto coletivo do trabalho e da reflexão da prática docente de diversos professores atuantes no sistema de ensino.

    Se por um lado, é necessário que os materiais didáticos - livros, roteiros de experiências, instrumentos artesanais elaborados com materiais de baixo custo – e as grades curriculares permeadas ou conduzidas por tema gerador centrado na realidade do aluno contenham a explicitação das metodologias de ensino a serem utilizadas pelos professores e sejam orientados por um ensino de química que privilegie a compreensão, a reflexão, a crítica e o julgamento do aluno.

    Por outro lado, também se faz necessário oferecer ao professor um conjunto de instrumentos e métodos que lhe possam ser úteis quando for elaborar suas propostas de ensino e produzir seu próprio material didático. Dessa forma, praticamente desde nossa fundação, a Área de Educação Química (AEQ), tem desenvolvido ações que buscam integrar formação de professores investigadores na e da sua prática docente, com estruturação de propostas de ensino de química que contemplem produção de material didático.

    Nos anos de 1996 e 1997, durante o desenrolar do Programa Pró-Ciências, desenvolvemos um projeto estruturado junto ao Fórum das Licenciaturas da UFRGS que teve como objetivo estreitar as ações integradas entre universidade e escola na produção de materiais didáticos (Eichler, Camargo e Del Pino, 1998). Esse projeto permitiu a elaboração de dois materiais didáticos, que aqui serão brevemente resumidos, com os temas geradores: a) leite; e b) corantes naturais e processos de tinturaria.

    O primeiro tema possibilitou a elaboração de uma atividade laboratorial para as análises físicas e químicas de amostras desconhecidas de leite. Nessa atividade, inicialmente, sugere-se debater com os alunos, por exemplo, os aspectos organolépticos e propriedades do leite, suas diferenças de qualidade, seu potencial nutricional e econômico. Posteriormente, apresentam-se para os alunos, 6 (seis) amostras de leite desconhecidas, que devem ser por eles identificadas quanto ao tipo de leite (integral ou desnatado) e a presença de substâncias adulterantes (amido, formol e amônia). Para tanto, são desenvolvidos testes sobre densidade, teor de gordura e as reações orgânicas que indicariam a presença das substâncias estranhas. Esses testes permitem confrontar as hipóteses dos alunos com os resultados destes testes.

    Por sua vez o trabalho com corantes naturais tem por objetivo o estudo de conceitos de fenômenos físicos e químicos, reações químicas (as influências de temperatura e tempo), utilizando substâncias simples e compostas ou misturas de substâncias. O material elaborado possui reportagens de jornais, roteiros de atividades experimentais, textos explicativos sobre os fenômenos observados, um debate sobre produção tecnológica e apropriação do conhecimento, etc. As atividades práticas consistiram na lavagem da lã a ser tingida, na escolha e extração dos corantes naturais (retirados principalmente de vegetais) e nos procedimentos para o tingimento, incluindo revelação e mordentagem. Ao final destas atividades práticas os alunos aplicaram os conhecimentos aprendidos através da proposição e utilização de outra substância tingidora.

    Esses materiais foram avaliados através dos próprios cursos oferecidos durante o Pró-Ciências e em cursos extra-classe oferecidos a alunos de ensino técnico e médio, de escolas públicas. No âmbito da atividade com os professores, os cursos foram desenvolvidos com carga horária de 12 h/a com dois grupos, um envolvendo 24 professores vinculados a 28a Delegacia de Educação (DE) (na região metropolitana de Porto Alegre) e outros 29 professores da 24a DE (lotada na cidade de Cachoeira do Sul, mais ao centro do Estado). Face a insuficiência de tempo para desenvolver ambos os materiais com os professores, eles optaram pelo que envolveu leite como tema gerador. Em relação as atividades desenvolvidas com alunos de escolas públicas de nível médio, realizou-se cursos de 20 h/a envolvendo 12 alunos da Escola Estadual Açorianos e 24 alunos da Escola Técnica da UFRGS sobre o tema leite e cursos de 40 h/a e 24 h/a, respectivamente, para o tema corantes naturais e processos de tinturaria.

    A seguir trazemos as declarações de professores e alunos como uma maneira de evidenciar a avaliação que foi feita desses materiais, bem como dos cursos desenvolvidos.


O que alunos e professores têm a nos dizer

    Ao término do cursos com os professores, solicitamos o preenchimento de um questionário para coleta de informações. Isso nos permitiu uma avaliação, ainda que parcial, da utilização de tais materiais em cursos de formação continuada de professores de química. A análise das manifestações nos indica que 78% dos professores consideraram a proposta aplicável em sua realidade de escola. As justificativas evidenciaram que o tema é de interesse dos alunos em função de sua relação com o cotidiano dos mesmos, seja pela realidade rural produtora de leite de alguns, seja por esse ser um alimento largamente utilizado pela população para outros. Como expresso pelos professores: "vou adaptar este experimento a minha realidade de escola e cidade. Este tema é sempre de interesse dos alunos, pois estes consomem leite diariamente nas suas casas. Temos CORLAC na cidade. Quanto alimento se faz com leite!", ou "é possível adaptar à minha realidade de escola. Este tema é de grande importância para os alunos, a cidade fica no meio rural".

    Também se notou que uma estratégia de ensino que utilize tal tema gerador permite integrar vários conteúdos de química desenvolvidos na escola básica. No entanto, muitas vezes por falta de oportunidade de experienciar tal estratégia, os professores tem dificuldades de fazer essa integração, como expressa uma professora: "a partir do leite vimos que podemos trabalhar vários conteúdos de química, que na maioria das vezes temos dificuldade em procurar formas alternativas de trabalhar". Eles apontaram vários possibilidades de se efetivar tal integração de conteúdos, como por exemplo: "a análise do leite pode ser relacionada com conteúdos ministrados em sala de aula. Posso destacar o caso do equilíbrio químico em que é abordado o pH e que pode ser tratado na acidez do leite", ou ainda, "foi mais uma caracterização dos componentes do leite (misturas) e sua adulteração, fica mais dentro da orgânica".

    Nas atividades proposta no material didático se propõe a utilização de metodologias que privilegiam a experimentação pela utilização de técnicas de resolução de problemas. Essas permitiram que os professores (os alunos dos cursos) formulassem hipóteses sobre a qualidade das amostras de leite sob investigação, e desencadeassem análises organolépticas, de constantes físicas e de caracterização química, elaborando um relatório ao final da atividade. Os professores manifestaram sua satisfação ao desenvolverem tais atividades, como afirma uma professora: "elaborei várias hipóteses das amostras, vindo a despertar o meu interesse pela descoberta do experimento, visível aos nossos olhos. O trabalho experimental absorveu tanto a nossa atenção que naturalmente fomos aprendendo; nos dedicando ao trabalho e, consequentemente nos enriquecendo sobre o tema". Dessa forma, entendemos que é interessante observar o quanto também o professor valoriza a atividade experimental para sua própria aprendizagem, o que vem de encontro ao que defendemos: a utilização de atividades experimentais no ensino de química.

    No entanto, isso tudo não quer dizer que não houve dificuldades. Pelo contrário. As dificuldades que os professores apresentaram para desenvolver tal atividade, quer seja de cunho metodológico ou conceitual aponta deficiências na sua formação, uma vez que não vivenciaram tais práticas na licenciatura. Por exemplo, uma professora manifesta que: "alguns experimentos contrariou (sic) as minhas hipóteses, mas isso serviu para reconhecer as minhas limitações e formar um conhecimento científico mais preciso" ou quando um professor manifesta que alguns dados experimentais contrariaram suas hipóteses e geraram conflitos, "este conflito, eu identifico quando na análise do leite imaginava que a adição de água no leite diminuiria o teor de gordura, quando na verdade aumenta". Porém, apesar desse professor ter escrito ‘teor de gordura’, quando imaginamos que quisera se referir à densidade, é cabível verificar o erro conceitual que mesmo após a atividade esse professor manifesta. Ele confunde, como muitos professores e alunos fizeram a propriedade de viscosidade com a de densidade. Previamente, muitos professores manifestavam a opinião que o leite desnatado seria menos denso que o leite integral. O explicavam que tal seria em função desse ser mais espesso, forte e gorduroso do que aquele. Enfim, o leite integral pesa mais no estômago que o desnatado. Também imaginaram que o leite desnatado é feito por acréscimo de água e não por substituição do teor de gordura pelo volume equivalente de leite desnatado. Dessa forma, não conseguiram inferir que o leite desnatado é mais denso do que o integral, pelo simples fato desse conter gordura (que entre outras propriedades, é menos densa que a água) e aquele não. Além do mais, há o fato que alguns professores fazem uma relação de científico com certo ou preciso e não com adequado, por exemplo.

    Em relação aos textos presentes no material didático, alguns professores apontaram certas dificuldades de entendimento, como por exemplo: "a leitura é fácil, mas o fato de não ter a vivência e muitas práticas de laboratório os textos apesar de serem objetivos se tornaram, de certa forma, um pouco complicados". Já outros os consideraram acessíveis: "os textos são de fácil compreensão trazendo informações claras", ou, "os textos nos auxiliaram muito para a compreensão do assunto, e podemos ver de várias maneiras um mesmo tema". Enfim, em geral, consideraram o material de muito boa qualificação e utilidade para suas atividades de sala de aula: "material de excelente qualidade buscando de forma precisa e eficiente a melhoria do ensino de química"; ou, "o material foi rico. Nos ajudou a ter uma visão crítica e científica de vários tipos de leite"; ou ainda, "o material didático é ricamente produzido trazendo informações claras. A composição do leite é bem trabalhada. Os dados apresentados a cerca dos lipídios, proteínas e glicídios são detalhados mostrando inclusive a fórmula dos compostos". É interessante salientar, como vai se ver mais adiante, que os alunos também têm uma avaliação muito semelhante sobre esse tipo de material didático.

    Antes que comecemos a abordar as declarações dos estudantes, vale lembrar que com os professores somente o material sobre leite foi utilizado em cursos. No entanto, ambos os temas foram desenvolvidos em cursos com alunos de escolas públicas de nível médio. Nessa etapa da investigação queríamos verificar a aplicabilidade e a receptividade dos materiais didáticos junto aos alunos, bem como envolver os licenciandos, bolsistas de iniciação à docência da AEQ (por ocasião de projeto em parceria com o Fórum das Licenciaturas da UFRGS), participantes da estruturação de tais materiais. Com a finalidade de obter informações para a avaliação da atividade desenvolvida com os alunos, os licenciandos realizaram várias observações durante o desenvolvimento dos cursos. Isso se somou à aplicação de um questionário. Vejamos o que os alunos têm a nos dizer.

    Uma apreciação inicial feita pelos alunos sobre o material, indica que os textos presentes nos mesmo são de fácil compreensão: "eu achei fáceis, compreensíveis para qualquer aluno entender. Estavam bem exemplificados e atualizados ajudando-nos para um melhor entendimento do tema estudado". Talvez, por isso, os textos tem auxiliado em outros momentos do curso, como: "é fácil, os textos estavam bem claros. Foi um ponto de partida para a realização das experiências que foram realizadas", ou "achei os textos um pouco cansativos, mas serviram muito bem, principalmente na hora de realizar o relatório final, os textos nos auxiliaram bastante".

    Em relação às atividades experimentais propostas nos materiais didáticos, os alunos consideraram que "os roteiros das experiências são claros e fáceis" e "as experiências foram úteis, pois assim pude perceber por que muitas vezes as roupas desbotam tão rápido e o que prejudica a coloração". Também perceberam a importância da integração teoria-prática, "é necessário que tenhamos uma base teórica para melhor compreensão dos resultados práticos" e "foi com o auxílio das experiências e testes que pudemos chegar a qualquer conclusão sobre quais os corantes ou sais eram mais indicados", ou ainda, "as experiências foram úteis e relevantes pois quando lavamos roupa, por exemplo, a roupa pode ou não perder a coloração. São processos que muitas pessoas não tem a oportunidade de conhecer. Com o curso passamos a entender melhor o por quê".

    Quando nos apropriamos da estratégia de produção de material didático como espaço de formação inicial e continuada de professores, acreditamos que a utilização de temas geradores que contenham alguma relação com o cotidiano profissional, afetivo, de lazer, entre outros, dos estudantes, podem se constituir numa alternativa para motivá-los a participarem das aulas de química. Trabalhamos com públicos diferenciados em termos do tipo de curso que realizavam, um técnico em química ou biotecnologia, e outro de nível médio tradicional, cujos interesses possivelmente são diferenciados. Isso é evidenciado nas falas dos estudantes, em relação a área de conhecimento: química, "no momento em que a química visa a melhoria nas condições de vida da população, analisar o leite é de muita importância, devido este ser um alimento essencial ao metabolismo humano", ou "o assunto abordado é bastante importante, pois tem muito a ver com os cursos de química e biotecnologia, lidamos com assuntos relacionados ao curso nas aulas". Essa relação com sua formação profissional aparece bastante nas manifestações dos estudantes, "para mim como técnico em química abordou assuntos do nosso curso, processos de tingimento estão presentes em nosso dia-a-dia (a roupa que usamos)" ou "o leite é um produto praticamente de "rotina". Esse curso foi muito importante principalmente para a área de biotecnologia, onde entra qualidade de alimentos".

    Também, identificaram que tal conhecimento se estrutura numa rede conceitual, sendo que as atividades desenvolvidas permitiram a abordagem de conteúdos que tinham alguma relação com as disciplinas de seus cursos, "utilizamos técnicas aprendidas antes nas aulas de química para auxiliar no tingimento", como por exemplo, "adquirimos muitos conhecimentos teóricos e práticos sobre o assunto" e "as reações, testes de pH, preparação de soluções, cálculos", ou, "o pH, as reações, soluções, durante o curso observamos como o pH interferia, assim como as reações corante-sais, e preparamos soluções".

    Eles, ainda, fizeram relação com seu dia-dia, "porque é uma coisa cotidiana e que nos ajuda a entender mais sobre como corar e melhor corar tecidos e outras substâncias. E também quais substâncias coram". Em relação ao leite, "o leite é um produto muito consumido por todos nós e a maioria não saberia ao menos identificar macroscópicamente qualquer forma de adulteração", ou, "ficamos conhecendo mais sobre o leite que tomamos, se ele é puro ou não, qual o melhor leite se é de saquinho ou caixa".

    A participação de alguns alunos do Curso de Licenciatura em Química, neste projeto, como bolsistas de iniciação à docência, permitiu um aprimoramento do aprendizado desses licenciandos. As informações obtidas dos professores sobre a difícil e diversa realidade que vivenciam no sistema educacional forneceu subsídios para as reflexões críticas dos alunos da graduação. Além disso, a produção dos materiais instrucionais e sua utilização em sala de aula, ocasião em que foram avaliados, desencadeiam novas discussões com possíveis mudanças na prática docente.

    Essas atividades se revelam de grande importância na formação do licenciando, pois entendemos que, se ao longo do curso de graduação o futuro professor tiver aprendido a questionar sua atuação, se tiver sido desafiado a tornar-se cada vez mais eficiente e crítico, então a sua prática docente se constituirá num período em que poderá passar da imitação e da fundamentação de seu trabalho em propostas prontas, para a construção gradativa dos fundamentos de sua própria proposta (Moraes, 1991).

    Então, como neste artigo vimos discutindo a relação entre a produção de material didático e a formação de professores é importante também incluir algumas manifestações do alunos sobre a participação dos licenciandos como ministrantes dos cursos. As opiniões foram bastante positivas, onde os alunos enfatizaram fatos como: "os dois tem boa oratória e boa postura. Conseguiam controlar a turma e as experiências, os textos teóricos eram explicados", ou "acho que os professores se expressam bem, embora às vezes não se entendesse sua linguagem técnica, como no caso das características organolépticas, acho que poderia ter sido melhor explicado. Mas foi legal". Mas, pode ser interessante verificar o quanto os estudantes estão acostumados com as soluções prontas e as respostas diretas, "eu acho que os professores sabem muito sobre o conteúdo, apesar de às vêzes não terem respostas práticas as nossas perguntas". Finalmente, em suas comparações, muitas vezes mostraram a percepção que tem de sua realidade escolar, "seria importante para os alunos se a escola estivesse sempre em mãos curso como esses, professores informados e atualizados".


Alguns aprendizados

    É interessante notar que, esse caminho de produção do material didático envolveu professores universitários que trocaram experiências com professores do ensino fundamental e médio. Esses produziram propostas que vieram para a universidade, onde alunos do curso de licenciatura trabalharam com uma contextualização conceitual e metodológica do assunto proposto, desenvolvendo uma nova aplicação para as mesmas. Isso permitiu a confecção de outros materiais didáticos, que foram e tem sido utilizados com outros professores do ensino fundamental e médio, em novas edições dos cursos de formação de professores.

    Por fim, compreende-se da descrição apresentada, que existem vários ciclos envolvendo a produção de material didático, mas que todos convergem para o envolvimento do professor na sua qualificação profissional. Evoluindo em uma espiral que objetiva a melhoria da qualidade do trabalho do professor e, por conseqüência, a formação de seus alunos.


Referências

Andreola, B.A. (1987). Paulo Freire e o problema dos conteúdos. Revista de Educação AEC, 16 (63, :25-37.

Apple, M.W. (1995). Trabalho docente e textos: economia política das relações de classe e de gênero em educação. Porto Alegre: Artes Médicas.
Chassot, A.I. (1993) Catalisando transformações na educação. Ijuí: Ed. Unijuí, 1993.

Corazza, S.M. (1992). Tema gerador: concepções e práticas. Ijuí, Ed. Unijuí.
Eichler, M.; Barbosa, V.C. & Del Pino, J.C. (1998). Atividades integradas na produção de materiais instrucionais em química. Extensão – Revista da Pró-reitoria de Extensão (Porto Alegre – RS), 01 (01), 29-35.

Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra.
Giroux, H.A. (1997) Os professores como intelectuais. Porto Alegre: Artes Médicas.
Lutfi, M. (1992). Os ferrados e os cromados - produção social e apropriação privada do conhecimento químico. Ijuí: Ed. Unijuí.

McLaren, P. (1999). Utopias provisórias. Petrópolis: Vozes.

Moraes, R. (1991) A educação de professores de ciências: uma investigação da trajetória de formação e profissionalização de bons professores. Tese (Doutorado em Educação), UFRGS, Porto Alegre.

Silva, I. B. (1999). Inter-relação: a pedagogia da ciência. Ijuí: Unijuí.