AULA DE CIÊNCIAS SOB UM OLHAR VYGOTSKYANO E BAKHTINIANO: "Será que golfinho e baleia é peixe?"
 

Daniela Lopes Scarpa
Bolsista de Mestrado FAPESP/FEUSP
dani.scarpa@uol.com.br

Silvia Luzia Frateschi Trivelato
Faculdade de Educação/USP
slftrive@usp.br


Resumo

    A partir da articulação dos referenciais teóricos de Vygotsky e Bakhtin, o objetivo geral do presente trabalho é caracterizar as relações entre as interações lingüísticas que se estabelecem em uma Roda de Ciências na Educação Infantil e a construção de conhecimento biológico nestas situações de ensino-aprendizagem. O foco é situado no processo que ocorre enquanto alunos e professores participam conjuntamente de algumas situações em sala de aula, registradas em vídeo, através da transcrição do movimento discursivo (ações verbais e não verbais) destes sujeitos.


Abstract

    On the strength of theoretical ideas of the psychological approaching of Vygotsky and the theory of the utterance of Bakhtin, the purpose of this work is to characterize the relationship between speech and knowledge construction, to understand how language is involved in the process of conceptual elaboration in situations of Meetings of Natural Sciences in the Early Child Education. As object of investigation to understand how the language of natural sciences are involved in teaching and learning, discursive sequences of the dialogues in meetings of natural sciences had been taken. The used instrument of collection was the video, with the posterior transcription of the chosen episodes for analysis.


Introdução

    Os processos comunicativos envolvidos na aprendizagem têm sido cada vez mais privilegiados nas pesquisas em Ensino de Ciências. Esta nova abordagem é caracterizada por uma visão de mundo que contempla o homem como ser integrado e integrante do contexto no qual vive e trabalha. Os pressupostos epistemológicos de uma perspectiva sociocultural vêm contribuir na tentativa de entender a construção de conhecimento não como atividade individual, mas inserida em um conjunto de valores sociais e culturais.

    Verifica-se na literatura de pesquisa em Ensino de Ciências, o interesse crescente sobre as questões da linguagem e da interação entre sujeitos relacionadas com a construção do conhecimento/pensamento científico (Jiménez-Aleixandre et al, 1998; Mortimer & Machado, 1997; Mercer, 1997). Esses autores oferecem contribuições importantes para a área, mostrando que a intersecção entre a pesquisa em Linguagem e a pesquisa em Ensino de Ciências tem se configurado como campo fértil de produção de conhecimento.

    Mercer (op.cit.) acredita que há necessariamente uma relação entre pensamento e comunicação de idéias. Um dos objetivos do ensino seria o desenvolvimento do pensamento crítico pelo indivíduo. Essa forma de pensar só existe embasada em uma argumentação justificada e vice-versa, e isto seria uma característica comum a todos os domínios de conhecimento que, na escola, são divididos em disciplinas.

    O interesse de Jiménez-Aleixandre et al (op.cit.) consiste em como a comunicação pode facilitar o aprendizado de ciências pelo aluno. A autora estuda o contexto argumentativo construído e negociado na interatividade entre professor e aluno e na forma como isto contribui na construção de conhecimento/significado dos conteúdos científicos.

    Mortimer & Machado (op.cit.) adotam pressupostos de Bakhtin e Vygotsky, integrando sua análise com a teoria de equilibração de Piaget. Para eles, as formas de equilibração, ou seja, a necessidade de conflitos com o objetivo de superação de concepções prévias para a possibilidade de construção de conceitos científicos, só são possíveis a partir do movimento discursivo, no qual o professor estabelece diferentes funções em seu texto (que pode ser persuasivo ou autoritário), construído na interação com os alunos. Portanto, não há construção de conhecimento individual e solitária, mas percebe-se o professor como mediador no estabelecimento de uma zona proximal de desenvolvimento na resolução de situações conflituosas pelos alunos, nas quais a cultura científica é contraditória ao senso comum.

Referenciais Teóricos

    Este trabalho insere-se em uma perspectiva sociocultural e toma o discurso que se realiza no contexto da sala de aula como objeto de investigação para entender a natureza e significado da construção de conhecimento científico pelo aluno/sujeito. Nesse sentido, as contribuições da abordagem da psicologia cognitiva da tríade russa: Luria, Leontiev e Vygotsky e da teoria da linguagem de Bakhtin e seu grupo são importantes.

    O interesse de Vygotsky (1934/1998) e seus colegas estava centrado em entender os processos do desenvolvimento cognitivo humano. O aprendizado e, mais especificamente, o aprendizado escolar seriam partes integrantes do desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas.

    Para que o desenvolvimento ocorra efetivamente, o aprendizado deve estar voltado para o que a criança consegue realizar com a ajuda do outro, ou seja, deve-se estabelecer uma zona proximal de desenvolvimento na qual, através da mediação do professor ou de outras crianças, seja possível ao sujeito amadurecer processos de desenvolvimento, resolvendo problemas que não conseguiria resolver sozinho.

    Em conseqüência, é na interação que a significação se produz, sendo que o outro tem um papel mediador fundamental na aprendizagem. Segundo ele:

"Todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível social, e, depois, no nível individual; primeiro entre pessoas (interpsicológico) e, depois, no interior da criança (intrapsicológico). (...) Todas as funções superiores originam-se das relações reais entre indivíduos humanos." (Vygotsky, 1934/1998: 75).
 
 
    Tal reconstrução individual das formas de ação realizadas em contato com o outro configura o processo de internalização. Uma vez que processos adquiridos a partir do estabelecimento de uma zona proximal de desenvolvimento são internalizados, tornam-se parte do nível de desenvolvimento real da criança, que se caracteriza por solução independente de problemas.

    A criança então está imersa em um sistemas de significações sociais desde os primeiros anos de vida. A palavra é mediadora de todas as elaborações da criança, que utiliza categorias de generalizações nas diferentes fases do desenvolvimento. Em seus experimentos, Vygotsky (1934/1998) identificou três fases básicas até a formação dos conceitos: "amontoados", complexos e conceitos potenciais.

    Na primeira delas, a criança pequena agrupa objetos em um agregação desorganizada ou "amontoados" de acordo com alguma percepção subjetiva e nenhum princípio lógico. A palavra, nesse caso, reflete o objeto visto de forma isolada.

    A segunda fase na construção de conceitos é a formação de complexos, em que os objetos são associados devido às suas relações factuais estabelecidas por meio da experiência direta. Os objetos são agrupados com todos os seus atributos.

    A fase dos conceitos potenciais não acontece de maneira sucessiva à fase do pensamento por complexos e sim, é considerada por Vygotsky uma outra raiz da     formação de conceitos verdadeiros. Nessa estrutura de generalização, se iniciam as operação que realizam abstrações, ou seja, um traço ou atributo do objeto é isolada para formar grupos a partir desse traço comum. O pensamento conceitual propriamente dito é atingido quando a síntese, a generalização é consolidada e articulada com a abstração (análise).
 
    Vygotsky também chama a atenção para as diferenças que caracterizam a formação dos conceitos em situações cotidianas e em situações de aprendizagem sistematizada, de escolarização. Apesar de fazerem parte de um único processo de formação de conceitos na mente da criança e de se influenciarem mutuamente, os conceitos espontâneos e os não-espontâneos (científicos) diferem quanto ao seu desenvolvimento e funcionamento.

    Enquanto os conceitos espontâneos são gerados a partir da experiência pessoal da criança, os conceitos científicos aparecem nas interações de forma orientada, deliberada e planejada em um esforço de tomada de consciência dos conceitos, suas aplicações e generalizações. Dessa forma, cada vez que o sujeito atinge um nível na esfera dos conceitos científicos, os conceitos são reestruturados; por outro lado, é preciso que o desenvolvimento de um conceito espontâneo tenha alcançado um certo nível para que o conceito científico correlato possa ser atingido.

    É interessante destacar o papel que Vygotsky atribui à escola:

"Os anos escolares são, no todo, o período ótimo para o aprendizado de operações que exigem consciência e controle deliberado; o aprendizado dessas operações favorece enormemente o desenvolvimento das funções psicológicas superiores enquanto ainda estão em fase de amadurecimento." (Vygotsky, 1934/1998: 131)
 
 
    A teoria vygotskyana tem sido complementada e relida sob a ótica da Teoria da Enunciação de Bakhtin (Rojo, 1999; Wertsch, 1993), passando-se a enfocá-la a partir do ponto de vista discursivo-enunciativo.

    Na visão construída por Bakhtin, as condições e circunstâncias sociais são determinantes na produção de sentido do discurso. Para o autor russo, a forma lingüística é sempre percebida como signo mutável, indissoluvelmente ligado à situação social. Somente desta forma é que a palavra, como signo neutro, vai adquirir ideologia, tornando-se enunciado na comunicação discursiva.

    Neste sentido, para ele, nenhuma enunciação (produto do ato de fala) pode ser considerada uma ação individual; pelo contrário, exige sempre uma "atitude responsiva" do interlocutor, constituindo-se, assim, a interação verbal como fenômeno social por natureza.

    A construção de sentidos envolve um processo dialógico, noção importante da obra bakhtiniana, que Smolka (1993) caracteriza como um

"encontro de vozes que se realiza e acontece de diversos modos: seja no diálogo face a face, seja no inescapável, constitutivo "concerto polifônico" quando, nas palavras que falamos, ressoam as palavras dos outros".
 
 
    Podemos entender, então, que a compreensão, a elaboração de significados acontece nesse encontro de vozes que se dá em um "auditório social" e em uma "situação de produção" determinados. Nas palavras de Bakhtin (1929/1986: 113): "A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação."     Neste contexto, é possível pensar-se a sala de aula como espaço histórico-cultural formado por múltiplas vozes em um contínuo processo de construção/negociação de significados, tomando-a como objeto de investigação. "A compreensão passiva do significado lingüístico de um modo geral não é uma compreensão; é apenas seu momento abstrato... Na vida real do discurso falado, toda compreensão concreta é ativa: ela liga o que deve ser compreendido ao seu próprio círculo, expressivo e objetal... A compreensão amadurece na resposta. A compreensão e a resposta estão fundidas dialeticamente e reciprocamente condicionadas, sendo impossível uma sem a outra." (Bakhtin, 1934-35/1998: 90).
 
 
    A compreensão – resposta ativa dentro de um contexto de produção – está também ligada dialeticamente à intenção do locutor, que, graças à sua vontade discursiva, pode escolher um gênero do discurso: tipos relativamente estáveis de enunciados disponíveis em uma sociedade em determinado momento histórico.

    De acordo com Bakhtin (1979/1985), existem gêneros primários e secundários em circulação em uma sociedade. Os gêneros primários são aqueles que acontecem na esfera do cotidiano, tomando forma nos diálogos concretos da comunicação imediata e privada. Ao contrário, os gêneros secundários são mais complexos, surgindo em condições de comunicação cultural mais organizada e pública. Textos produzidos na literatura, na ciência, na arte, no jornalismo, etc. pertencem a gêneros secundários. Ambos os tipos não são estáticos e interagem um com o outro historicamente.

    Schneuwly & Dolz (1996), baseando-se na concepção de gêneros de Bakhtin, propõem olhar a interação a partir da noção de agrupamentos de gêneros: gêneros de uma mesma esfera de comunicação social, que apresentam os mesmos aspectos tipológicos (composicionais e temáticos) e que exijam dos locutores determinadas capacidades lingüísticas, foram agrupados com a finalidade de facilitar o uso dos gêneros como unidades organizadoras do ensino-aprendizagem. Os cinco agrupamentos propostos são: relatar, narrar, argumentar, expor e instruir/prescrever.

    Na tabela abaixo[1] está relacionado o agrupamento de gênero, seu domínio social de comunicação e exemplos de gêneros que compõem o agrupamento.
 

Agrupamentos de Gêneros
Domínios
Exemplos de Gêneros
NARRAR
Cultura literária ficcional. Conto, romance, lenda, fábula, ficção científica
RELATAR
Documentação e memorização das ações humanas. Relatos de experiências, diário, notícia, reportagem, histórias, ensaios
EXPOR
Transmissão e Construção de saberes. Texto expositivo, texto explicativo, conferência, relatório, artigos
INSTRUIR/ PRESCREVER
Instruções e prescrições (relação mútua de comportamentos). Regulamento, regras do jogo, instruções, receita
ARGUMENTAR
Discussão de problemas sociais controversos (sustentação, refutação e negociação) Textos de opinião, diálogo argumentativo, debate regrado, carta de reclamação

    Bakhtin reconhece duas formas de operação do discurso no que diz respeito à constituição do sujeito: o discurso autoritário e o discurso internamente persuasivo. O discurso autoritário "exige nosso reconhecimento incondicional, e não absolutamente uma compreensão e assimilação livre em nossas palavras. (...) É uma palavra encontrada de antemão." (Bakhtin, 1934-35/1998: 143-144). Caracteriza-se por deixar explícito apenas a voz do locutor.

    O discurso internamente persuasivo, por outro lado, nos revela possibilidades diferentes, evidenciando o dialogismo e a participação compreensiva ativa de locutores e interlocutores. "No fluxo de nossa consciência, a palavra persuasiva interior é comumente metade nossa, metade de outrem. Sua produtividade criativa consiste precisamente em que ela desperta nosso pensamento e nossa nova palavra autônoma." (Bakhtin, op.cit: 146).

    No contexto de sala de aula, é comum um padrão discurso IRF: o professor inicia com uma questão (I), o aluno responde (R) e o professor dá um feedback (F) (Mortimer & Machado, 1997). De acordo com a natureza do retorno do professor para a resposta do aluno, seu discurso pode ser caracterizado como avaliativo ou elicitativo. O discurso avaliativo pode ser comparado com o discurso autoritário na acepção de Bakhtin, já que o professor espera uma determinada resposta do aluno que represente uma mensagem única, unívoca, com a função de transmissão de conhecimento e significados. Contrapondo-se a esse modelo, o padrão elicitativo exige uma "atitude responsiva" dos alunos, na qual a função dialógica é reconhecida. Nessa situação discursa é possível recriar e gerar novos significados, comparando-se ao modelo internamente persuasivo. Muitas vezes, a alternância entre uma e outra forma de discurso é importante para que se estabeleça significados compartilhados e superação de conflitos na sala de aula.

    Nossa intenção, neste trabalho, é, através das indicações do referencial teórico, procurar pistas que possam deslindar os processos de construção de conhecimento e significação a partir das interações em uma roda de ciências.

Análise e Discussão de uma Roda de Ciências: "Será que golfinho e baleia é peixe?"

    O objetivo mais geral deste trabalho é caracterizar as relações entre o discurso e a construção de conhecimento, relacionando modos como a linguagem está envolvida com o processo de elaboração conceitual em situações de ensino de Rodas de Ciências na Educação Infantil.

    Como objeto de investigação para se entender como a linguagem das ciências naturais estão envolvidas no ensinar e no aprender, foram tomadas seqüências discursivas dos diálogos em rodas de ciências na Educação Infantil. O instrumento de coleta utilizado foi o vídeo, com a posterior transcrição dos episódios de ensino considerados relevantes para análise.

    O assunto abordado na roda de ciências analisada foi "Baleias e Golfinhos" e a roda era composta por 9 crianças com idade média de 5 anos (os nomes são fictícios), pela professora do grupo (batizada de "Vanessa") e pela investigadora ("Cláudia"). As crianças já tinham discutido o assunto em rodas anteriores e investigadora foi chamada para responder algumas questões e trazer esclarecimentos.

    Ao contar para a investigadora o que estavam estudando, os alunos têm que disponibilizar suas lembranças com a intervenção da professora. Este direcionamento vai possibilitar que o discurso pretendido siga adiante e que novos conceitos sejam introduzidos. Como diz Bakhtin (1934-35/1993):

"O discurso está imediata e diretamente determinado pelo discurso-resposta futuro: ele é que provoca esta resposta, pressente-o, e baseia-se nela. Ao se constituir na atmosfera do "já-dito", o discurso é orientado ao mesmo tempo para o discurso-resposta que ainda não foi dito, discurso porém que foi solicitado a surgir e que já era esperado. Assim todo diálogo é vivo."
 
 
    Este aspecto reafirma e consolida o papel de autoridade do professor nesta esfera de circulação com interlocutores ocupando posição assimétrica, não só caracterizando esta figura como detentora do conhecimento, mas também envolvida com um modo, uma lógica de pensar que quer compartilhar com seus alunos.

    Uma análise enunciativa baseada na teoria dos Gêneros do Discurso (Bakhtin, 1979/1985) de processos interativos na sala de aula deve levar em consideração as condições de produção do enunciado. O primeiro aspecto relevante para análise diz respeito à esfera comunicativa de circulação, o que pode ser transformado em uma pergunta: quais são as vozes presentes no episódio estudado?

    Podemos identificar pelo menos quatro vozes, com papéis hierárquicos diferenciados na roda, representadas pela figura material dos interlocutores: professora, alunos, pesquisadora e livros. Cada um destes "personagens" vai trazer outras vozes embutidas em seus enunciados.

    A investigadora foi trazida intencionalmente pela professora para acrescentar novos conceitos científicos nas rodas. Desta forma, o seu estatuto social na interação é diverso, situando-se seu poder no domínio cognitivo. Sua presença ecoa as vozes do conhecimento acadêmico científico – ela é a especialista em biologia, ocupando uma posição assimétrica tanto em relação à professora quanto aos alunos. Este poder atribuído a ela pode ser facilmente visualizado em vários trechos de outras rodas, onde sempre que um novo objeto é colocado em negociação pela professora, ela recorre à fala da pesquisadora para dar legitimidade à questão; ou ainda quando verificamos seqüências longas de turnos alternados onde só encontramos participação oral da professora (P) e de I (investigadora).

1) P: Pessoal, por que a Cláudia tá aqui hoje?
2) A3: É de golfinho.
3) P: Como cê sabe?
4) A2: Porque é por causa de golfinho.
5) P: Que golfinho?
6) A4: Golfinho (apontando pro livro que Cláudia estava na mão).
7) P: Há!!! Vocês já viram aí..... Pois é, eu chamei a Cláudia aqui...
8) A2: E peixe.
9) P: E peixe...
10) A: E o que tem aqui... (apontando para o livro)
11) I: Tem peixe, golfinho e baleia.
12) P: Será que golfinho e baleia é peixe?
 
    A partir da pergunta inicial: "Pessoal, por que a Cláudia tá aqui hoje?" e da presença dos livros que a investigadora trazia, a professora incorpora a resposta dos alunos (turnos 2, 6 e 8) para estabelecer o objeto de negociação que permeia toda a roda com a questão do turno 12 – a classificação de golfinho, baleia e peixe.     O diálogo se inicia e o objeto de negociação é colocado pela professora: "Será que golfinho e baleia é peixe?". Para algumas crianças, não existe contradição: "É claro que é". A estratégia da professora para responder a essa afirmação e colocar o problema, é fazer uma pergunta revozeando a resposta do aluno, mas com uma entonação avaliativa. Outro aluno (A5) responde que baleia e golfinho não são conceitos iguais a peixe. Esses conceitos, formam no pensamento da criança o que Vygotsky chama de "aglomerados": "uma imagem desarticulada, por força de alguma impressão ocasional." (Vygotsky, 1934/1998:74). Isso fica explícito com a resposta sobre o que o aluno acha que é no turno 17, classificando os animais em três grupos diferentes de acordo com o significado que as palavras – golfinho, baleia e peixe – denotam.

    A6, no turno 20, insiste que baleia e golfinho são tipos de peixe, explicando em seguida um atributo comum a esses animais: "Porque tem um negócio em cima igual ao do peixe." Outra criança acrescenta um outro atributo comum, que é o fato de nadarem. Essa passagem demonstra um tipo de elaboração por complexos, na qual o que liga seus componentes são observações concretas e factuais, descobertas pela experiência direta. Essas características são suficientes para colocar baleia, golfinho e peixe no mesmo grupo.

    Nesse caso, P e I não contribuem com a instalação de uma ZPD, pois não fornecem elementos adicionais para que as crianças possam solucionar esse problema, apenas fazem questões com entonação avaliativa, o que acaba por demonstrar a fragilidade e instabilidade desse tipo de pensamento pela criança (tanto por aglomerados como por complexos) quando diz no turno 27 que "é quase igual, mas não é peixe".

    A professora tem uma função fundamentalmente organizadora, através do revozeamento, da repetição. Normalmente, ela constrói um padrão discursivo dentro da estrutura IRF (iniciação/resposta/feedback), a partir do qual reorganiza e muitas vezes redireciona as falas/informações que emergem dos diferentes lugares sociais (alunos, pesquisadora e livros) para o seu objetivo.

31) P: Agora quem lembra, eu quero ver quem é que lembra disso. Porque ele morria quando ele ficava preso na rede. A Lu não falou que ele é peixe? Então, se ele fica embaixo da água porque ele morre?
     
    (Silêncio)

    32) P: A rede não tá embaixo da água?
    33) A: Tá (assente com a cabeça).
    34) P: Porque ele morria mesmo?
    35) A9: Porque ele ficava preso.
    36) P: Porque ele ficava preso e daí o que acontecia com ele?
    37) A1: Porque ele não conseguia respirar.
    38) P: E porque ele não conseguia respirar? Peixe não respira debaixo da água?
    39) A1: Respira, mas ....respira é que...o golfinho às vezes o golfinho não pode ficar muito tempo debaixo da água, ele salta pra cima pra respirar um pouco.
    40) P: Isso, exatamente. O golfinho e a baleia também, né Cláudia? Eles precisam sair um pouquinho da água pra pegar ar e depois voltar. Porque, lembra que a gente viu, na verdade o golfinho não é peixe.
    41) A9: Uma vez eu vi, tinha um golfinho lá na Disney que ele só fazia assim (gesto de ondulação com a mão).
    42) P: Ficava pulando?
    43) A2: Eu vi lá um show, né, tinha um palhaço, duas focas...
    44) P: Vocês lembram o que o golfinho é, que ele não é peixe?
    45) A1: Tinha um peixe que virava uma bolha assim, ôôôôô...
    46) I: É o baiacu, né?
    47) P: É o baiacu (vira pra Cláudia), feio né?
    48) P: O golfinho, pessoal era um mamífero, lembra que a gente leu isso? Não lembra? Por isso que ele precisa levantar, respirar e pegar ar, diferente dos peixes.
    49) I: Ele tem um buraco aqui em cima...
    50) P: Olha o que a Cláudia tá falando...
    51) I: Ele tem um buraco em cima, atrás da cabeça (faz gesto com a mão).
    52) A9: Solta água.
    53) I: Solta água, então ele vai lá, respira e na verdade ele solta ar quente que em contato com o ar vira água
    54) P: Ah, é ar quente, olha!
    55) A6: É igual, é igual baleia que também nas costas...
    56) I: É, é igual baleia.
    57) A9: Eu vi um show de baleia lá na Disney que a baleia só pulava, entrava na água e pulava.

    Aqui novamente, depois de idas e vindas na roda, a partir da lembrança das reportagens sobre o golfinho preso na rede, a professora introduz novamente o objeto de negociação no turno 81. Na ausência de resposta, ela reformula sua estratégia de mediação, dividindo a pergunta em partes. A1 introduz novo conceito na roda: respirar. Há tentativa de instalação de uma ZPD, quando P coloca a contradição entre o fato de o golfinho não respirar debaixo d’água e o peixe sim. No turno 89, A1 demonstra que não há relação de supra-ordenação ou subordinação entre o conceito de respirar fora da água e ser mamífero. Assim, para a criança, em seu pensamento por complexos, não existe contradição aparente em se dizer que respira fora ou dentro d’água e ser peixe – ela explica esse fato a partir da observação direta da ação do golfinho para respirar (o salto). Talvez as professoras devessem ter ficado satisfeitas com a constatação pelo aluno de que o golfinho não consegue respirar debaixo d’água ou talvez o conceito de mamíferos ainda não possui o grau de generalidade esperado.

    Finalmente, quando a investigadora diz que golfinho não é peixe, os alunos introduzem a ruptura (turnos 91 e 107) através da mudança de gênero: de definições, exposições e explicações (pertencentes ao agrupamento de gênero da ordem do EXPOR), elas contam a sua própria experiência com golfinhos e peixes na tentativa de busca de significação (RELATAR):

"Frente a um conceito sistematizado desconhecido, a criança busca significá-lo através de sua aproximação com outros signos já conhecidos, já elaborados e internalizados. Ela busca enraizá-lo na experiência concreta." (Fontana, 1997:125)
 
 
    O gênero RELATAR está muito mais próximo da experiência cotidiana, implicando o aluno no discurso. Esse movimento de ruptura, muitas vezes interpretado como desinteresse dos alunos pela aula, pode ser interpretado, então, como busca de significação para aquele objeto de conhecimento tão estranho que está sendo colocado em negociação na roda.

    A fala de A6, no turno 105, é muito interessante pois revela que está participando ativamente do tema proposto na roda: a classificação de golfinhos, baleias e peixes. Encontrando um atributo comum a baleias e golfinhos sinaliza um processo de construção de conhecimento que teve início desde o início da roda. Esse mesmo aluno, no turno 20, diz que golfinho e baleia são tipos de peixes. Agora, 85 turnos depois, a constatação de que baleia e golfinho tem o "buraco em cima" poderia ter sido utilizada como um elemento a mais que contribuiria em uma reclassificação.

    Na falta de resposta para a pergunta sobre como pode-se classificar os golfinhos (turno 94), já que ele não pode ser considerado peixe, a professora tenta retomar a questão, inserindo na roda a palavra mamífero. A investigadora usa uma estratégia interessante, remetendo-se a uma característica visível e que possivelmente os alunos conheciam, para relacioná-la com a respiração dos mamíferos aquáticos: "Ele tem um buraco aqui em cima...". No entanto, o conhecimento cotidiano da criança, expresso no turno 102, revela que é água o que o golfinho solta pelo buraco, o que é incompatível com a idéia de respiração. A explicação dada, então, pela investigadora sobre a transformação do vapor d’água em líquido (turnos 103 e 104) é um conceito muito abstrato, que envolve vários outros conhecimentos que ainda não foram construídos nessa faixa etária. Dessa forma, pode-se perceber nova ruptura de gênero a partir do turno 107.

58) A9: Eu vi um show de baleia lá na Disney que a baleia só pulava, entrava na água e pulava.
59) A2: Esse eu também fui, superlegal.
60) A9: Eu também me molhei inteira. Sabe de uma coisa eu também vi a baleia debaixo da água.
61) I: Olha que bonito. Que baleia que era? Baleia Orca?
62) A9: Não sei. Parecia Shamu.
63) P e I: Shamu?
64) P: Pessoal, a Cláudia hoje trouxe um livro que tem mais informação, né Cláudia?
    A9 introduz a ruptura com um relato de experiência, tornando-se implicado no discurso, participando ativamente. Quero salientar que a ruptura se dá em termos de gênero e não de universo temático. Em sua fala, a criança chama a atenção para o fato de que viu a baleia fora d’água pulando e dentro da água. A expressão "Sabe de uma coisa" é significativa, revelando a ênfase dada à dicotomia dentro e fora d’água. Esse trecho mostra a busca de sentido desse aluno ao tema tratado na roda.

    O assunto baleias e golfinhos é mantido praticamente na roda inteira. Podemos verificar as crianças inserindo o aspecto ficcional, quando contam as estórias de baleias e golfinhos em filmes que assistiram ou em contos conhecidos (Pinóquio, por exemplo) ou, ainda, relatam experiências vividas junto a esses animais. Desta forma, poderíamos dizer que a negociação está envolvendo os gêneros da ordem do EXPOR, colocado principalmente pela voz acadêmica (representada pela investigadora) quando das explicações e definições científicas, e os gêneros da ordem do RELATAR, através dos quais as crianças são implicadas no discurso.

    Para voltar ao assunto principal e interromper o relato, a professora recorre à voz acadêmica, científica, representada pela investigadora, e aos livros trazidos por ela (turno 113).

    No trecho seguinte, após leitura de uma definição de cetáceos, na qual aparecem várias palavras que as crianças não dominam, a investigadora tenta decifrar seu significado. Com a introdução de um novo instrumento de mediação, a investigadora muda sua estratégia e pergunta o que são mamíferos, possibilitando, assim, esclarecer muitas das rupturas anteriores e apreender como a criança elabora esse conceito.

65) I: Difícil, né? O que é mamífero?
66) A9: Mamífero é que dá leite.
67) I: Que dá leite. Então ele dá leite né, as baleias os golfinhos...
68) A7: Vaca, vaca dá leite.
69) I: Vaca também. As baleia, os golfinhos e as vacas, as pessoas....
70) A9: Os leões.
71) A7: Os leões não tem aquelas bolinhas....
72) A2: Eu sei também, os peixes, os peixes.
73) P: Gente, dá pra imaginar que o golfinho bebezinho mama na mãe. E que o filhote da baleia mama na baleia?
74) A1: Não...
75) A1: Ah, eu já sei da baleia. Eu já vi filhote de baleia. Era num desenho.
76) I: É mesmo?
77) P: Um filhote de baleia que mamava na baleia?
78) A1: (Assente com a cabeça).
79) I: E tem golfinho e baleia que vive fora da água?
    As crianças generalizam por complexos a idéia de mamíferos, compartilhando conhecimentos prévios. Provavelmente, a partir da elaboração de outras vozes, de sentidos em circulação formularam o conceito de que "mamífero dá leite". Em geral, essa é uma acepção próxima ao senso comum – conceitos cotidianos. Em seus exemplos, citam apenas os animais que conhecem e que têm certeza que dão leite, mas não revelam em momento algum uma associação com a idéia que baleia e golfinho podem dar leite, a não ser no turno 137, quando A1 relata que já viu filhote de baleia. A partir daí, o foco de negociação muda para outras características dos cetáceos e a questão da classificação fica em aberto.

    Além disso, para os alunos, o conceito de mamífero não está relacionado com a idéia de respirar fora da água, através de pulmões, em contraposição com os peixes que respiram na água através de brânquias. Isso pode explicar, em parte, as estratégias de ruptura das crianças quando peixes e mamíferos pertenciam ao mesmo grupo.

    Interessante notar que, mesmo com uma estrutura hierárquica assimétrica, na qual o poder está associado ao discurso da professora e da investigadora, há uma intensa negociação de significados por parte dos alunos/receptores. Pode-se levantar a hipótese de que a própria estrutura de roda privilegia a negociação: afinal, todos têm espaço para falar, mesmo com posições hierárquicas assimétricas. Isto caracterizaria uma possibilidade de exercício pela criança da expressão de suas idéias, da argumentação, afinal, uma "atitude responsiva" frente a um interlocutor (professora e outros alunos) e perante um assunto.

    Esta análise nos demonstra que a utilização do referencial teórico adotado é promissora na tentativa de entender as rodas de ciências como espaço de interação e negociação. Além disso, as rodas de ciências se configuram como arena de conflito, onde ecoam diversas vozes em uma relação de intensa negociação entre os interlocutores.

    Acredito que estas reflexões indicam caminhos interessantes a serem seguidos, seja na caracterização dos gêneros envolvidos em diferentes situações de produção, seja nos diferentes papéis atribuídos aos interlocutores, seja na construção do conhecimento científico, seja na busca das diferentes vozes que ecoam no ensino de ciências, todas estas possibilidades oferecendo contribuições à pesquisa e ao Ensino de Ciências.
 

Referências

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  [1] Modificada de Schneuwly & Dolz, 1996.