AS FORMAS E A CONSTRUÇÃO DA (INTER)SUBJETIVIDADE EM UM GRUPO DE PROFESSORES: ANÁLISE DE UMA PRÁTICA E SEUS DISCURSOS



Juarez Melgaço Valadares
Mestrando em Ensino de Física – USP
jmelgaco@if.usp.br

Alberto Villani [1]
Universidade de São Paulo, Brasil



Resumo

    A perspectiva deste trabalho é compreender as angústias, dilemas e resistências que os professores colocam diante da proposta de trabalhos coletivos e interdisciplinares, privilegiadas atualmente em diversos projetos educacionais. A partir da escuta atenta de um grupo de professores de uma escola pública de Belo Horizonte, tentaremos inserir os elementos para uma compreensão das relações necessárias de cooperação entre os professores para o desenvolvimento de outros trabalhos em grupo, nos quais estes elementos podem ser invariantes. Utilizaremos o referencial psicanalítico de René Kaës, que focaliza o grupo enquanto um local de produção de subjetividades próprias e inéditas.

Abstract

    The proposition of this essay is to comprehend the anguishes, dilemmas and the resistance that teachers display when presented to collectives and interdisciplinaries type of work proposals, privileged, nowadays, in a series of educational projects. Taking as the starting point the narrative, about their experience, of a group of teachers from a public school of Belo Horizonte, we will attempt to insert elements needed to the comprehension of the necessary cooperation and solidarity relations among teachers, for the develoment of other group works, in which these elements can be constant. In the essay will be used as a referential to the analysis the concept of the French psychoanalytic René Kaës that sees the group as a place of production of subjectivities, inedited and of it´s own.

I - Justificativa

    Vários projetos educacionais (por exemplo, os Parâmetros Curriculares Nacionais, o Projeto Escola Plural – BH) privilegiam o trabalho coletivo dos professores por considerá-lo capaz de enfrentar os problemas da escola brasileira atual e de introduzir um novo ambiente escolar. Porém, o trabalho coletivo tem sido realizado de forma esporádica nas escolas, prevalecendo apenas no campo do discurso. Parece consenso que as práticas de intervenções globalizadoras não conseguem ser disseminadas e, mesmo quando sugeridas e até amparadas no contexto de propostas amplas não contribuem para o rompimento com as práticas individualizadas nas escolas. O nosso desafio é compreender como os professores vivenciam a construção de trabalhos em equipe e obter indicações de cuidados que possam minimizar a resistência diante de uma proposta coletiva de trabalho. Qual a resistência que colocamos diante de uma proposta coletiva de trabalho? Esta resistência é fruto de uma pré-disponibilidade do sujeito, portanto individual, ou é marcada por questões institucionais, ou está além disso? Podemos fazer algo para auxiliar os professores a assumirem projetos coletivos?

    Essas considerações motivaram uma busca teórica que permitiu ampliar e subsidiar as discussões sobre os conflitos presentes na prática do professor, sobretudo nos momentos de se abrir para uma colaboração com os colegas. Neste percurso adquiriu importância a reflexão sobre as relações entre a subjetividade e as atividades concretas da educação, principalmente aqueles que tentam uma compreensão dos fenômenos grupais utilizando os conceitos retirados da Psicanálise. Outras questões mais específicas surgiram: Que realidade psíquica é formada nos grupos? Que laços são mantidos entre os diversos sujeitos singulares que constituem a grupalidade?

    Temos claro que falar das interseções entre educação e psicanálise é lidar com limites interdisciplinares que têm provocado um grande espaço de interrogações, principalmente no se que refere ao uso de conceitos psicanalíticos em contextos externos à situação clínica. Por outro lado, esta interseção tem promovido um grande avanço teórico e novas possibilidades de pesquisa, que pode ser visto em publicações recentes que tentam aproximar as duas áreas (Villani & Cabral, 1998; Mrech, 1999; Kupfer, 2000; Barolli & Villani, 2000). Entre as propostas educacionais no âmbito político-institucional e o trabalho real nas escolas existe um espaço atravessado pela subjetividade dos professores, coordenadores e diretores, ou seja, a relação entre trabalho e saber é da ordem da relação do sujeito com o saber (Santos, 1997).

    O presente trabalho propõe uma reflexão sobre o grupo e as formas de subjetividade que decorrem de suas práticas e seus discursos. Sua contribuição refere-se tanto à análise de situações concretas quanto à formação de professores. A intenção é localizar as formas de interações que facilitam o desenvolvimento de grupos de trabalhos interdisciplinares em suas atividades cotidianas. Espera-se também elaborar uma perspectiva de intervenção nos coletivos de professores capaz de favorecer uma adaptação ativa à realidade. Trata-se de atenuar as ansiedades básicas que surgem no trabalho escolar e que interditam o acesso à satisfação, sem, no entanto, destruir os movimentos desejantes.

II - O referencial teórico

    Na organização e planejamento das ações na escola os professores constroem certas relações entre si e com os objetos que ultrapassam o envolvimento cognitivo com as tarefas. Focalizaremos nosso olhar na palavra ‘relações’, principalmente as que acontecem na produção de projetos coletivos e interdisciplinares, mergulhando desta forma em uma complexa rede de elementos subjetivos. Nosso referencial teórico está baseado em conceitos propostos por Bion (1970), Pichon-Rivière (1998a e 1998b), Bleger (1998) e elementos da Metapsicologia formulada por Kaës (1997).

    Bion foi um dos precursores no estudo da dinâmica de grupos. Um dos méritos de seu livro, Experiência com Grupos, foi o de assinalar as formas de inserção do sujeito no mundo externo, resgatando a subjetividade. Descreve a situação dos grupos como um conflito permanente entre as atividades transformadoras - grupos de trabalho - e uma tendência a uma regressão a serviço do princípio do prazer[2] - os pressupostos básicos. Os pressupostos básicos são constituídos de emoções intensas, que desempenham um importante papel na organização do grupo, proporcionando uma satisfação de seus membros por encobrirem suas angústias.

    Além das categorias propostas por Bion utilizaremos os conceitos de vínculo e grupo operativo apresentados por Pichon-Rivière e retomados por Bleger. O vínculo é definido pelo primeiro como uma estrutura complexa que inclui um sujeito, um objeto e sua mútua inter-relação com processos de comunicação e aprendizagem. Essas estruturas, quando internalizadas, facilitam ou dificultam a aprendizagem de novos conhecimentos, na medida em que introduzem confrontos entre os campos intersubjetivo e intra-subjetivo. Grupo operativo é um conjunto de pessoas que trabalham em equipe para realizar determinadas tarefas; o planejamento, as ações, bem como os conflitos que surgem são considerados e apropriados pelo próprio grupo. A adaptação ativa à realidade ocorre através do manejo e solução integradora dos conflitos, sendo avaliada caso a caso pelos mecanismos de defesa utilizados pelo grupo ao enfrentar as mudanças.

    Kaës preocupa-se em compreender de que forma uma pluralidade de indivíduos pode constituir um grupo. É determinante em sua teoria o conceito de aparelho psíquico grupal (Kaës, 1997), dispositivo que tem como característica mediar as diferenças e as trocas entre a realidade psíquica individual e a realidade grupal em seus aspectos sociais e culturais. O aparelho psíquico grupal é a construção psíquica comum dos membros necessária para constituição do grupo, e é particular de cada grupo conforme o contexto. Neste trabalho estaremos utilizando o modelo, por ele proposto, de seqüências organizadoras grupais. Estes organizadores procuram compreender a origem e o sentido dos vínculos progressivamente estabelecidos entre os sujeitos no grupo.

    Num primeiro momento, seguindo Kaës (1997), o grupo é percebido pelo sujeito como um objeto-externo no qual deve depositar os anseios, projetos e angústias que carrega consigo, e espera, simultaneamente, ser reconhecido pelos outros membros do grupo: a angústia de não ser aplica-se na plenitude de coincidência (Kaës, 1997:214). Neste momento inicial de constituição do grupo é construída tanto uma identificação entre cada um dos membros para a realização de seus desejos (construção narcísica comum) quanto os mecanismos de defesa contra os perigos que podem ameaçar a grupalidade em construção (pactos denegativos). Como conseqüência são organizados os lugares subjetivos no grupo, são determinadas quais as fantasias permitidas, e configurados os vínculos entre os membros capazes de produzir um efeito comum. Este conjunto imaginário e narcísico é denominado pólo isomórfico.

    Articulado a este momento originário tem-se o primeiro organizador grupal, quando é percebida uma função unificadora em virtude de uma angústia muitas vezes intensa. As relações anteriores de desejo e proibição podem produzir como efeito o abandono de uma parte das exigências do sujeito singular em favor de um objetivo comum ou de um ideal superior, às vezes encarnado por um líder. Este surge a partir do momento em que as expectativas dos membros são projetadas e, portanto, representa o desejo do grupo. O líder surge como um efeito de mútua determinação, constituindo-se em uma defesa contra as ansiedades dos diversos membros. Ele torna-se, enquanto sujeito real, o elo transicional entre o imaginário de cada sujeito e a experiência sensível.

    Uma segunda fase pode ser caracterizada pela emergência de exigências individuais dos sujeitos e de novas tarefas e compromissos elaborados pelo próprio grupo. Estas exigências propiciam um clima desorganizador do aparelho psíquico grupal fundado no isomorfismo. Este momento pode ser identificado como o segundo organizador grupal proposto por Kaës: a colocação do envelope grupal na condição de limite do grupo. Este envelope implica o enunciado das primeiras regras em comum, a produção normativa e simbólica da realidade psíquica grupal. Inicia-se a abertura de espaços no grupo por onde pode surgir novamente o sujeito e a palavra individual: a constituição do pólo homomórfico. Os processos de subjetivação que são decorrentes desta fase promovem a mobilidade de papéis e lugares no grupo, inclusive a rotatividade do líder.

    Esta diferenciação entre o sujeito individual e o grupo no espaço do aparelho psíquico será sustentada pelo acesso ao simbólico: a fase mitopoética, ou terceiro organizador grupal. Nesta fase o grupo surge como uma organização simbólica de relações de diferença entre cada sujeito no grupo. O grupo não é mais um prolongamento dos sujeitos, mas o resultado de uma fase personalizante de cada um de seus componentes.

    Neste trabalho observaremos professores que desenvolvem ações coletivas como meio de apropriação dos espaços, normas e saberes que formatam a escola. Utilizaremos os conceitos acima delineados para compreender as ansiedades e as iniciativas do grupo em uma situação específica de planejamento, execução, avaliação e reformulação de um projeto coletivo. Que significados podemos encontrar nestas práticas? Que manifestações invariantes desta experiência poderiam ser estendidas a outros contextos?

III- Considerações metodológicas

    Este trabalho é uma tentativa de reconstrução interpretativa do processo vivenciado pelo grupo de professores do ensino fundamental de uma escola pertencente à Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte, que desde 1995 desenvolve projetos temáticos coletivos[3]. Estes projetos, já relatados em vários encontros e congressos, têm contribuído de forma significativa na construção de práticas pedagógicas alternativas. Nossa reconstrução se realizou mediante uma operação de acoplamento ressonante entre os dados de uma entrevista aberta, realizada recentemente por um dos autores (J.M.), os relatos objetivos dos eventos e o modelo teórico de Kaës com seus organizadores grupais. A entrevista, que permite desvelar elementos pertencentes à subjetividade dos membros do grupo, foi convocada pelo pesquisador, que esboçou anteriormente à entrevista o propósito da reunião para que os participantes soubessem o que esperar das discussões e ficassem à vontade para aderir ou não. Participaram quatro professores, que trocaram suas experiências em relação ao trabalho desenvolvido e interagiram com suas idéias e percepções. A entrevista, referente à experiência grupal, promoveu um debate livre e rico que resultou em descobertas inesperadas e reconstitutivas do grupo, revelando sentimentos, percepções e as situações de dificuldades que foram vivenciadas pelo coletivo. A pergunta inicial permitiu a abertura do processo comunicativo, e o texto produzido surgiu da associação livre dos membros do grupo, no qual a palavra partilhada criou possibilidades de interação e comunicação. Houve desta forma um ajuste da comunicação: a fala de um membro (consciente ou não) atuou como estímulo para a conduta do outro, que realimentava as manifestações do primeiro (Bleger, 1998). Nesse sentido pode-se dizer que o texto é do grupo.

    O instrumento utilizado para o registro da entrevista foi o vídeo, que permitiu captar as interações verbais e não verbais, com a sua transcrição posterior. Esta escuta atenta do implícito, do que estava deslocado no texto, foi o que nos fez ir e voltar nas diversas falas e diálogos travados, elidindo uma ordem estritamente cronológica da narrativa do grupo. Destacar esse implícito foi tornar possível uma leitura e interpretação sobre os movimentos consciente e inconsciente que marcaram a evolução do grupo de 1995 a 1997.

IV - Análise preliminar dos dados coletados

a) Momento Originário e o Primeiro Organizador Grupal

    Se voltarmos nosso olhar à narrativa dos membros do grupo, referente ao ano de 95, identificamos que o primeiro desafio encontrado foi o de vencer a resistência dos participantes em se perceberem como integrantes de um grupo. O grupo aparece convocado pela Instituição, e, portanto, como um objeto externo a seus membros. A proposta de um projeto interdisciplinar foi elaborada pelos diretores da escola ("BH Ontem e Hoje"), que convocaram os professores para a realização de uma tarefa em conjunto. Era delineada uma nova forma de organização do trabalho pedagógico, em ressonância com o Projeto Escola Plural (Prefeitura, 1994), para enfrentar os problemas vivenciados no turno da noite, principalmente o absenteísmo dos professores e os altos índices de evasão e repetência dos alunos. As representações consciente e inconsciente de cada professor foram organizadas em torno desta tarefa proposta, a qual funcionou como um disparador de formações imaginárias. Esta fase constituiu o encontro dos diversos professores com o espaço do agrupamento. As palavras dos entrevistados apontam para uma identificação ainda ‘confusa’ com o objeto de desejo do diretor que idealizava a construção deste grupo. A hipótese que levantamos, em concordância com Kaës, é que o grupo se organizou em torno desta fantasia pessoal de algum membro do grupo ou da escola. O diálogo abaixo permitiu visualizar este momento[4]:

"Co – Eu me lembro que 1995 é basicamente o ano em que nós resolvemos implantar o Projeto Escola Plural, é (+) trabalhar com projetos interdisciplinares, né (+) e estudamos os caderninhos. A Prefeitura já estava trabalhando com isso na escola primária mas no ginásio não tava ainda. E o turno da noite resolveu fazer. Então eu sei, foi você[5] (J.) mesmo que veio conversar comigo sobre, para trabalhar matemática relacionada com outro conteúdo, né? Eu usei um material onde eu relacionava a matemática com a história ...Eu montei o material. Depois eu trabalhei com o material de geografia, quando você (aponta para Q.), uma topografia da região de Belo Horizonte, você trouxe um material topográfico de onde?...Em geografia foi isso. Em Ciências a idéia foi explorar graus..."

"J – Essa produção já era coletiva?"

"Co – É (+). Essa produção não chegou a ser bem coletiva não. Era assim, com o auxílio dele (aponta para Q.). Tá entendendo?"

"Q - Na época não existia essa idéia de coletivo não J."

"Co – Não tinha reunião. Ele me deu este negócio do Parque das Mangabeiras/"

"Q - A intenção de se criar um coletivo eu acho que não estava a vista ainda não, a intenção ainda não. Lembra que você (J.) chamou lá embaixo para uma reunião, tava Eu, o A., a Co. e até você (J.) queria que eu fosse o coordenador do grupo, tá lembrado? Não tinha a intenção do coletivo não, depois que foram surgindo essa (gesto de desdobramento)."

"Co – Você (J.) pediu que a gente trabalhasse com textos, começasse com a linha da Escola Plural, um ano antes que ela fosse implantada no ginásio em geral e em BH. Tentar. Era um experimento. Então assim, cada um ia trazendo alguma coisa e a gente ia montando o material."

"Q - Era muito mais uma adesão, uma iniciativa pessoal mesmo, do que uma (+), uma idéia de grupo mesmo. Não tinha não, que eu me lembre."

    Este momento de ‘adesão’ relaciona-se ainda com o desejo do diretor, o qual já tinha sido capturado pelo discurso da Prefeitura. A ‘adesão’, considerada como a parte do sujeito que não pode pensar, é a garantia à idéia deste Outro (diretor). Pode-se dizer que os professores, em sua maioria, foram seduzidos pelo diretor. O submetimento do sujeito servia aos interesses de conjunto e era também uma exigência do próprio sujeito pelas condições impostas neste momento originário. Não se formou ainda um agrupamento no sentido proposto por Kaës, e o projeto é articulado em torno de um somatório de conteúdos das várias disciplinas, numa perspectiva multidisciplinar. Não havia confronto de pontos de vista, processos de negociação e tomadas de decisão que superassem os marcos disciplinares e o trato individualista do projeto pelos professores.

    Esta estruturação permite localizar o lugar de cada membro bem como engendrar as primeiras fantasias de medo, desconforto, e também, de realização pessoal. Estas fantasias tanto suportam a antecipação de uma experiência que pode vir a ser prazerosa quanto sedimenta a ameaça de uma perda do ideal narcisista de cada um. Esta configuração foi assim ‘racionalizada’ na entrevista:

"Co-Eu não tinha muita experiência. Você pedia prá mim fazer as coisas eu acho que até chorava"

"Co - Talvez até que no primeiro momento ficou meio assustado mas... (Olha para o Q.)"

"Q - É, meio assustado, reclamava, mas apostava no risco, né? Olha para o grupo)"

    Uma série de formações e processos psíquicos grupais são característicos deste momento, e normalmente estão relacionados a um espaço narcísico ilimitado. As falas abaixo, retiradas de trechos distintos da entrevista, transmitem os enunciados sobre a origem e a razão de ser daquele grupo, na visão de um dos professores:

"Q – Uma coisa que eu vejo é que o pessoal daqui tá sempre aberto, né? (+) sem tanto preconceito. Não esconde (+) suas idéias não, mas as pessoas não tinham tanto preconceito prá receber as coisas novas, ou prá pensar diferente, é:: prá tentar ousar, né."

"Q – Acho que outra coincidência é ter pegado pessoas muito democráticas (risos), (+) e não havia um certo egoísmo, digamos assim (+) individualismo, né."

"Q – Uma coisa da noite que eu vejo é que a gente trata com pessoas inteligentes né J.? O G., a Cr., a Co., são pessoas inteligentes e que estão articuladas prás coisas. (...) Não adianta também querer pegar de uma hora prá outra (+) surgir um grupo assim (gesto de união) sem as pessoas estarem predispostas a isso. Não sei."

    Subjaz às citações acima o imaginário de unidade enquanto um organizador psíquico grupal: todos são ‘democráticos’, ‘abertos’, ‘predispostos’ e ‘inteligentes’. Consideramos que se configura um espaço da experiência que corresponde a impulsos de atração e rejeição, incluindo valores de apego e afinidades, e que mobiliza, para cada indivíduo, experiências e representações anteriores. Para Kaës, este movimento originário vai suscitar o primeiro organizador grupal, pois os diferentes modos de identificação utilizados (identificações adesivas, projetivas, introjetivas) são correlativos de uma extensão dos limites do Eu e acompanham-se de angústias e de mecanismos de defesa.(1997: 187).

    Este grupo origina-se desta ambigüidade: está vinculado a uma indiferenciação eu-objeto e está alienado no desejo do diretor, mas permite a construção do sentido da realidade para os sujeitos. Percebe-se aqui que o conflito não é localizado apenas na interação do indivíduo-grupo, mas é também intrapsíquico, fruto de um compromisso advindo pela adesão ao coletivo. É a construção de um esquema conceitual de referência comum aos membros, cuja transformação pode fazer o grupo se desenvolver e que serve de intermediário às manifestações intersubjetivas no grupo. São aqueles modos iniciais de identificação que podem culminar no nascimento de um líder do grupo, e ao qual se delega poderes expressivos. Na análise da transcrição abaixo percebemos o surgimento deste líder, centrado na figura de um dos coordenadores da escola, depósito das expectativas e ansiedades do grupo:

"Co- (...) De repente, a D., a D. não, aquela professora de História [ Q – a S.] ela chegou com um projeto, até pegou um material que tinha feito de História, montou uma outra coisa ..."

"Q – A S. (lembrando). Se por um lado foi bom, por outro foi ruim também né? Ela conseguiu articular todo mundo mas ela (+) ela imprimiu uma marca dela no grupo que vamos chamar de uma certa "arrogância" (aspas feitas através de gestos com as mãos) digamos assim/

    A possibilidade de aprofundar a nossa análise do grupo é facilitada se centrarmos o nosso olhar nos vínculos estabelecidos entre cada um dos participantes e o coordenador, vínculos que materializarão as atitudes e condutas do grupo. Vale a pena ver a citação de Kaës (1997:189):

"O sujeito singular agrupando-se traz ao conjunto o que ele aí projeta - suas projeções e seus projetos -, o que nele rejeita - o que não pode aceitar nele como sua realidade inconsciente, o negativo -, o que ele aí deposita, o que realiza: seus próprios sonhos de desejos irrealizados de um Outro que o precede, ou de qualquer Outro que o mantém sob sua obediência e de que possui uma parte constituinte de seu desejo inconsciente"     O vínculo, nesta situação, carrega consigo a passividade e o silêncio do grupo, assegurando uma identificação imaginária que sedimenta uma coesão grupal. Expressar ou reivindicar os valores individuais pode ter o significado de quebrar a harmonia que está sendo estabelecida e, paralelamente, ficar desprovido do saber que supõem-se ter o líder. Um ataque a este significaria abandonar o projeto defensivo que o constituiu, e deixar o grupo desamparado. Vejamos a fala do Prof. Q sobre o líder (a Profª. S.):

"Q - Ela teve a grande vantagem de organizar por que não havia coletivo. Ela organizou. Não havia coletivo. Ela organizou. Só que como a gente tava perdido nisso aí de como trabalhar em grupo, ela foi a liderança, né? E ela, (+), ela levou o grupo prá onde ela quis, na minha opinião. E a gente, talvez por comodismo também, não sei, acompanhou, né?

    E continua no diálogo abaixo:

"Q - Não, digamos assim, começou a rolar um lado sentimental, pessoal, digamos assim (+): meio assim, a gente ficou meio sem jeito de criticar alguns aspectos, né/ "[ Co- Ela não tava bem ]"

"Q- Aí o grupo foi seguindo, meio assim (+) meio prá lá meio prá cá (gesto com as mãos de balanço" ( Riso de todos)

    A reconstrução parece apontar uma complacência dirigida a este líder para não correr o risco de perdê-lo, o que poderia ser fonte de nova angústia. O grupo, neste momento, vivenciava uma fantasia de simbiose que preservaria uma continuidade entre os ideais e os sentimentos de cada indivíduo quando de sua integração ao coletivo. O processo conduz a uma redução das diferenças entre os membros - sensação de homogeneidade era igualdade - e mesmo a uma indiferenciação entre a pluralidade de componentes. A relação é especular, um pode ocupar o lugar do outro que nada será alterado. Essa é a idéia que talvez esteja subjacente à ‘afinidade’ como elemento fundante do grupo. Nega-se, sobremaneira, a diferença e a complementaridade, pois "o grupo é um", todas as partes são equivalentes.

    A indiferenciação de cada um (isomorfismo) ocorre simultaneamente a uma diminuição da criatividade de seus membros; predomina o princípio do prazer e da fusão imaginária, características de um grupo dependente. Estes aspectos indiferenciados não serão anulados pelo surgimento de uma relação diferenciadora no grupo. Mesmo tardiamente, o grupo haverá sempre de contar com remanescentes deste pólo isomórfico, devido aos mecanismos de defesa que ele proporciona frente a irrupções consideradas ameaçadoras.

    O funcionamento destas identificações teve um caráter transitório neste contexto específico. É na seqüência que a cultura do grupo estabelecida até este momento será questionada pelo retorno dos primeiros elementos desorganizadores: uma volta dos desejos individuais e as exigências do trabalho em equipe, que proporcionavam novas alternativas para a tarefa. Se por um lado, a Prof. S. nutria o grupo, por outro este considerava evasivas as suas respostas às aspirações e desejos de cada membro. Perpassava, segundo o relato do grupo, um clima de ambivalência para com este líder:

"Q - A S. (lembrando). Se por um lado foi bom, por outro foi ruim também, né? Ela conseguiu articular todo mundo mas ela, (+) ela imprimiu uma marca dela no grupo que vamos chamar de uma certa "arrogância" (aspas feitas através de gestos com as mãos), digamos assim/ "

    Revela-se, na fala acima, uma componente agressiva no interior do grupo através da decepção originada por um líder que também proporcionava frustração e queixa quanto à própria passividade em que o grupo se encontrava. Outro coordenador será eleito pelo grupo, iniciando-se outra fase grupal.

b) O 2º Organizador Grupal – O envelope grupal

    Esta fase, segundo o relato do grupo, iniciou-se com o Projeto Arte de Viver, em 1996. Podemos caracterizar o início desta fase como o momento de uma identificação histérica: o grupo, a partir de novos desafios que são colocados pela nova organização escolar, apropria-se, a partir da identificação inicial com o desejo do diretor, de uma parte de seu desejo e de sua identidade.

    Esta nova forma de identificação permitiu ao grupo assumir os problemas vivenciados no turno como um desafio a ser enfrentado por todos. Estes desafios e o surgimento de novas tarefas (O Projeto Arte de Viver seria construído em parceria com os alunos) garantiram um investimento libidinal de cada um em uma outra dimensão, provocando relações novas de solidariedade e coordenação de tarefas. Surgiu um projeto dentro da situação concreta, em que cada professor passou também a ser responsável pela ausência do colega como mecanismo de garantir o funcionamento e a credibilidade do empreendimento proposto. Os trechos abaixo retratam dois destes desafios:

"G - (...) eu acho que um dado importante é (+), e que tem a ver com a nossa proposta de trabalho, é que quando começamos lá no Paulo Mendes Velho (prédio antigo da escola) é (+) um dos grandes desafios nossos era com relação à freqüência (...)"

"Q - Já em 96, por exemplo, já surgiu um resultado melhor mas surgiu também, no iniciozinho, o pessoal tava tendo menos aulas também, e eles reclamavam que num tava tendo aula, e teve um outro acordo no grupo que foi aquele negócio de substituir, um substituir o outro, por exemplo, e isso amadureceu a idéia do coletivo em si né?"

    Em outra parte da entrevista o seguinte diálogo amplia a citação acima:

"Q – Eu queria voltar J. Eu acho que em 96, com aquele negócio de professor faltando, que a gente resolveu cobrir esse espaço vago, e eu lembro que fui falar numa escola lá no Taquaril (bairro de BH) e eles perguntaram: "Como é que vocês conseguiram isso que o pessoal cobrisse (+) o horário do outro (+), né?" Aí na época (+) eu não pensei muito, mas agora, e voltando, acho que foi engajamento mesmo do (+) do grupo em ver as coisas funcionando. Do coletivo mesmo/"

"[G – Solidariedade. Compromisso.]" "[ Co – Solidariedade. Respeito.]"

"Q – O coletivo de fazer a escola funcionar. Porque na verdade não teria obrigação nenhuma, entre aspas, de tá cobrindo o outro. Mas como ficava o caos em vários aspectos, né? (+) aí a solidariedade, o espírito de coletivo, de (+) de por o negócio prá funcionar, para trabalhar dentro do grupo, e isso foi um ganho que (+) que eu acho difícil de encontrar em outras escolas por aí."

    Este momento pode ser identificado com o 2º organizador grupal proposto por Kaës, ou seja, uma tensão dialética entre a parte e o todo que sustenta a construção do espaço grupal. A identificação completa entre os membros, e entre estes e o grupo, não é mais visada, pois o sujeito e o grupo começam a admitir diferenciações nas relações interpessoais (homomorfismo).

    Para que o grupo funcionasse seria necessário a produção de regras próprias para o funcionamento do grupo. O primeiro passo seria que os professores se dedicassem integralmente ao 1º Grau, pois em caso contrário não se poderia contar com a disponibilidade plena de cada um para enfrentar os desafios que surgissem. No diálogo transcrito abaixo vemos a primeira regra, quando os entrevistados recordam do retorno do prof. G. à escola após cursar a pós-graduação, e os novos sentidos elaborados em conjunto:

"G - Pouquinho nada. No meu caso foi por decreto mesmo"

"Q - Exatamente"

"G - Eu queria trabalhar no 1º e 2º Graus"

"Q - Eu vou falar. Eu lembro no caso dele que ele queria trabalhar nos dois (+). (Risos de todos). Mas ele foi intimado a trabalhar no Ensino Fundamental"

"Co - Foi mesmo. (Risos)

"Q - A princípio com (+) ele tinha um argumento (+) claro (+) lá

"G - Os argumentos que me apresentaram, na verdade, foram muito convincentes"

    A existência de uma produção normativa implicava, assim, o ‘grupo’ como possibilidade de realização para seus componentes. Os desafios colocados pela implantação do Projeto Arte de Viver e as normas de convivência tornavam indispensáveis, para o grupo, correr riscos: o de passar de um grupo dependente e seguidor irrefletido de um líder, lugar da indiferenciação, para uma outra forma de agrupamento, responsável, produtivo, fruto do trabalho organizado dos seus membros. Este desafio foi o indício do despertar do terceiro organizador grupal, decorrente da quebra do pacto narcísico, e que conduziu a uma nova reorganização da grupalidade. Dentro desta organização cada membro começou a perceber o outro como diferente. O diálogo abaixo reflete esta nova configuração que despontava:

"Co- Aqui no grupo não tinha ninguém querendo aparecer mais do que o outro, inclusive querendo se mostrar. Isso não ocorreu. E isso se vê em outras escolas. Eu trabalho em outra escola de 1º Grau. E parece que tem gente que fica segurando com medo de ser (gesto de reter informações)"

"Q – Tem uma qualidade também que é saber ouvir muito (+) dá opinião na hora certa, de tentar resolver, mas ouve muito a(+) as discussões, as outras opiniões, e/" "[Co- E pondera também]"

"Q – Exato. Até prá chegar nesse ponto que o G. falou da Ficha (ficha de avaliação), né, que a gente passou muito tempo ouvindo, discutindo, lamentando, voltando (olha para o grupo)"

    E mais à frente da entrevista o Professor Q completa:

"Q - É, meio assustado, reclamava, mas apostava no risco, né? (Olha para o Grupo). Eu acho isso fundamental no nosso grupo, esta questão. Tá sempre aberto prá discussão, mesmo que não concorda, assim (+) discute (+) volta atrás. (gesto de discussão)"

    "Apostar no risco" é o elemento mobilizador do desejo de cada um e a impossibilidade de um retorno ao momento originário. A própria intersubjetividade é colocada em risco nesta situação, pois é indispensável o intercâmbio de investimentos, de fantasias subjetivas, e na criação de novos laços de confiança e cooperação.

    No folder feito pelos coordenadores para o relato do projeto em outras escolas e instâncias da Rede Municipal de Educação foram destacadas as estratégias coletivas de trabalho como o grande avanço conseguido, mas também foi mencionado o não engajamento e a saída de dois professores do projeto naquele ano. Esta saída é também condutora de uma nova reorganização considerando que, na configuração deste momento, partidas e novas adesões reforçam a tomada de consciência da experiência e das relações no grupo, permitindo o reconhecimento de renúncias e lutos frente ao trabalho desenvolvido. Este é um momento importante na consolidação de novos passos, pois o abandono do ‘narcisismo’ do momento anterior permite que o grupo adquira uma maior segurança e estabilidade.

c) O 3º Organizador Grupal – a fase mitopoética

    A partir deste momento o grupo impulsionou-se no sentido de ser mais criativo, autônomo e independente. Os seus membros assumiram o compromisso de identificar os problemas, propor idéias e enfrentar os desafios. O coordenador que conduziu o grupo era mais um membro que contribuía na produção e execução das atividades de trabalho. As reuniões pedagógicas passaram a ser um espaço dentro do qual as contradições e conflitos eram explicitados, onde cada um apresentava as suas opiniões e sugestões para o trabalho, agora sem receio de perder sua identidade, sem medo de se defrontar com o diferente. Neste momento as fronteiras disciplinares são abolidas, e metodologias compartilhadas foram construídas através de negociações e contrastes de pontos de vistas diversos. Vejamos algumas citações dos professores quando fazem referências ao ano de 1997 (Projeto BH 100):

"Q - Na verdade conseguimos traçar os objetivos primeiros né?"

"G- Então aqui a gente conseguia alcançar os objetivos porque o planejamento era coletivo, o pessoal tava unido, tínhamos este esquema de um estar substituindo o outro"

"G - (...) Sim. Porque no BH 100 (+) é:: (+) eu acho que nas reuniões pedagógicas houve uma instância muito democrática todo mundo apresentou soluções (...)"

    O grupo passou a funcionar como um verdadeiro espaço para o diálogo e reflexões de todos. Cabe aqui revelar a grande diferença entre o grupo neste momento e no momento originário. Estamos nos referindo basicamente: a) uma melhora na comunicação do grupo; b) os membros passam de uma situação de passividade para outra de grande receptividade e criatividade; e c) na forma de perceber as relações com outros grupos, internos e externos à escola.

    Essa visão pode ser ampliada pelo seguinte trecho:

"Q- Isso aí que o G. falou é mesmo. Funciona como grupo de reflexão. Tem vez que você tá em dificuldade e tá procurando uma saída prás coisas. Pode não ser a melhor, pode ser a que nem vai concretizar, mas o pessoal tá pensando (+) tá refletindo né. Aí já é uma grande vantagem do grupo, do trabalho em grupo né? A reflexão".

    Eis a imagem que o grupo tem dele próprio ao vivenciar este momento:

"G - Agora, voltando um pouquinho atrás, é interessante que esse, essa experiência Arte de Viver, BH 100, etc (+), ela serviu um pouco de estímulo prá gente porque a gente estava insatisfeita com a questão da Escola Plural, como tava sendo colocada. Não que discordássemos de muitas coisas interessantes que existem na proposta. E a gente acabou apresentando uma proposta de trabalho diferente, que para alguns seria uma contraproposta, e que de repente a Prefeitura, em suas várias instâncias, acabou usando a nossa própria proposta de trabalho como exemplo do que ela queria. Então, a gente não rezou integralmente na cartilha, a gente teve liberdade prá criar, prá pegar o que realmente a gente achava interessante, né, e formamos essa outra identidade aí."

    É interessante perceber no trecho acima a autonomia que o grupo, a nosso ver, conseguiu atingir. Bion nos aponta que os grupos especializados de trabalho, entre eles o Exército e a Igreja, funcionam utilizando um dos pressupostos básicos que garanta o reconhecimento social. Os mecanismos de controle social tendem a fazer com que os sujeitos sintam-se alijados de sua própria capacidade de operar, apesar de conseguir resultados coletivos importantes. A utilização da negativa do verbo – ‘não rezar’- na fala acima, coloca exatamente a situação oposta, na qual o grupo operava na modalidade de Grupo de Trabalho, no sentido formulado por Bion, e os pressupostos básicos estavam, neste momento, administrados. Os modos de organização do trabalho em equipe diferenciavam-se, segundo a narrativa do grupo, daquelas propostas pelo Outro (diretor) no momento originário do grupo.

    O grupo, ao desenvolver todos estes recursos, passa a funcionar sob o princípio da realidade, isto é, tenta encontrar uma realidade na qual o prazer é possível. O grupo não se fixa no princípio do prazer, e a satisfação é simbolizada, mesmo que alcançá-la tenha sido ‘desgastante’:

"Q - Sim. Isso que eu quero falar. Era necessário para se fazer um trabalho melhor essa questão do grupo, né? Não adianta então, como você falou agora, essa questão do decreto, que todo mundo vai trabalhar no coletivo. Tem que haver os desafios que vão fazendo com que as pessoas pensem sobre o assunto, comecem a produzir, por exemplo, né?"

"[Q- Foi muito bom]" "[ Co- Foi. Foi ótimo.]"

"G - Desgastante. Mas foi bom."

    E esta satisfação pode ser notada em outra parte da entrevista:

"G - Então eu acredito que isso é um feedback muito importante. Pôxa, se você é chamado a falar de uma coisa que você faz, QUE VOCÊ ACREDITA, como eu creio que é o nosso caso em vários momentos, isso é muito gratificante. Isso dá um retorno legal prá escola. O pessoal tem prazer de trabalhar."
 
    Podemos ver que na fase mitopoética existe pertinência entre aquilo que se fala e a tarefa. Cada elemento coopera voluntariamente na atividade de acordo com a sua capacidade individual e defronta-se, em estreito contato com a realidade externa, com a necessidade de resolver os obstáculos que vão surgindo.

V - Conclusões preliminares

    Este trabalho aponta, a partir do modelo proposto por Kaës, para uma evolução das relações do grupo que parece ser, em sua forma organizadora, independente do contexto. O caminho começou no primeiro encontro dos diversos sujeitos num agrupamento, seguindo ritmos e modalidades diferentes para cada um, até uma posição na qual o grupo apareceu como uma organização de relações simbólicas entre diferentes sujeitos, denominada posição mitopoética. Uma fase intermediária (envelope grupal) se fez necessária, quando foram elaboradas as normas e as representações comuns do grupo. Podemos agora delinear uma espécie de caminho que um grupo pode trilhar e interpretar os desencontros em nossas escolas.

    O momento inicial constitui-se na busca de mecanismos identificatórios que promovem uma mediação entre cada indivíduo e o grupo, e vinculam o espaço imaginário com um outro espaço determinado pelo contexto institucional. Neste estado nascente cada membro não apenas tenta se colocar em sintonia com os demais como também contribui para determinar o momento da constituição do grupo. É decorrente da dimensão imaginária o paradoxo do sujeito estar em um lugar no grupo ao custo de uma renúncia do seu eu singular. O início da grupalidade reflete esta marca: o indivíduo tenta através do grupo realizar o seu resgate como sujeito singular, bem como, por efetuá-lo, ele paga o preço do dilaceramento. O apagamento parcial dos limites do ego e da identidade do sujeito singular, resultado de sua renúncia devido à sua adesão aos ideais do conjunto, parece ser um momento necessário no estabelecimento de identificações e na construção dos laços no grupo. Em troca este servirá de apoio para o resgate do espaço da experiência e desenvolvimento do sujeito. É necessária a fantasia da unidade - crenças, representações e sentimentos partilhados – para acalmar toda esta angústia de cisão do sujeito e possibilitar, em um outro momento, a sua restauração. Fruto destas identificações, podemos dizer que o sujeito individual encontra-se entre o afã e a insolvência: as marcas de uma divisão agora também em uma dimensão simbólica, entre preservar a segurança de um trabalho habitual ou comprometer-se frente as possibilidades que o trabalho em grupo poderá proporcionar. Se na dimensão imaginária ele teme o que ele desconhece nele próprio, o que pode ser ‘descortinado’ na situação de grupo, na dimensão simbólica o sujeito teme a perspectiva do trabalho inovador.

    O fundador do grupo desempenha um importante papel no momento originário. Se capturado pelo discurso da inovação, ele transforma as expectativas e medos de cada participante quando de sua adesão ao projeto em formas de co-participação, de maneira que as primeiras identificações entre os membros são inseridas em uma experiência fusional messiânica, prevalecendo no grupo uma fantasia e uma vivência de positiva potencialidade. Essa fantasia ‘acompanhará’ o grupo em seu percurso, e a sua manutenção significa para o grupo uma garantia de esperança e, eventualmente, uma volta a esse estado imaginário de fecunda funcionalidade. São estas fantasias imaginárias e as formas de participação e decisão que permitirão, em um momento posterior da evolução do grupo, uma identificação parcial com a fantasia do fundador ou de algum membro da escola, e os desafios serão assumidos como uma responsabilidade de todos.

    Essa construção psíquica comum permite a travessia entre os sujeitos singulares e a situação grupal. Essas formações imaginárias tornam-se particulares de cada grupo, o algo comum ao grupo e não à tarefa. Neste sentido a tarefa convoca mas não estrutura o grupo. Conforme Kaës, só existe grupo quando temos uma construção psíquica comum; senão, teremos apenas um ‘ajuntamento’ de indivíduos. Para que o grupo possa se desenvolver é necessário um líder, que pode ser uma pessoa diferente do fundador do grupo. Ele emerge em um contexto particular da organização grupal, tornando-se um elo entre o grupo e o projeto a ser construído. Os membros passam a se identificar com uma única pessoa para superar uma experiência confusa e caótica, que dificulta a capacidade de centrar o pensamento na tarefa.

    Podemos assim compreender melhor os movimentos que acontecem em nossas escolas diante de propostas alternativas de trabalho. O indivíduo, na tentativa de preservação do seu eu singular, apega-se a queixas e denúncias da impossibilidade de construir um trabalho coletivo. Estas queixas provocam ressonâncias nos outros colegas, impedindo a passagem da série à grupalidade. É significativo também, nestas situações, que a imagem criada refere-se quase sempre a aspectos cognitivos, chegando inclusive a interferir na proposição de trabalhos interdisciplinares. Um professor é contra, pois considera que não poderá ministrar toda a sua matéria; um outro acha que não tem conhecimentos adequados e, assim, dificuldades de outra natureza tornam-se ocultas. De fato, o professor experimenta, principalmente, um conflito emocional frente a propostas inovadoras.

    Nestas relações podemos perceber algumas possibilidades para a evolução, ou não, do grupo. Se o líder criar situações que favoreçam a problematização dos conflitos, reconhecendo que o grupo é colaborador e possui seus próprios recursos, pode-se atingir a fase de diferenciação entre os membros; se não permitir o afastamento individual ele permanecerá no pólo isomórfico, provocando a dependência e a inércia. Estas transferências projetadas pelos indivíduos no espaço grupal podem então se constituir na permanência sem mudanças dentro das escolas. Podemos dizer que essa tendência configura uma ‘prisão narcísica’, com os professores vivenciando a união em torno de interesses individuais, com estruturas de desigualdade e relações inconscientes de ciúmes, fofocas e atritos entre colegas.

    A busca de uma diferenciação entre os membros, e que seja ao mesmo tempo garantia da unidade (homomorfismo), deve ser acompanhada pelo manejo das cargas destrutivas e conflitivas quando da integração do sujeito no grupo, e pela possibilidade de uma reconstrução subjetiva através da criação de um espaço potencial para o debate de idéias, refletindo uma experiência de convivência com a diferença. Durante esse processo a escola gera um clima que permite a aprendizagem de viver em grupo e a lidar com os conflitos e opiniões distintas, e a busca de uma maior articulação da tarefa a ser desenvolvida. Quase podemos concluir que, nas escolas que alteram seus quadros de professores a cada ano, dificilmente teremos um ‘grupo’.

    No momento em que o grupo elabora para si próprio as regras mínimas de funcionamento(envelope grupal) é que se ativa uma circulação fantasmática e identificatória entre seus membros, criando uma fronteira material e intelectual com a realidade externa. Existe aqui uma região de conflitos entre a autonomia do grupo, a partir da simbolização de seu aparelho grupal, e os organizadores e códigos socioculturais. Aqui surge uma dificuldade, pois nem sempre há uma passagem ‘permitida’ ao grupal pela instituição, pois implicaria em uma gestão coletiva da vida escolar. As escolas, de uma forma geral, não sustentam o grupo, pois estão amarradas a normas institucionais que desencorajam as possibilidades de mudanças a partir de novos questionamentos. Atingindo a posição mitopoética, o grupo proporciona uma maior capacidade crítica aos seus membros, e os processos de motivação e a ação são favorecidos pelos mecanismos de tomada de decisão dentro do coletivo.

    O senso comum considera que o grupo dissolve o sujeito. Aqui percebermos uma situação oposta, um caminho no qual os efeitos subjetivos são constituídos pelo que cada um deposita, investe, rejeita e coloca à disposição do grupo, e este, por sua vez, é utilizado como âncora para o sujeito. Em nosso referencial o sujeito individual inscreve-se dentro do restabelecimento funcional e evolutivo da grupalidade. Porém, devemos considerar a formação e os processos de estruturação deste caminho. O grupo não é um conjunto harmônico, e sim, uma multiplicidade de movimentos heterogêneos que estão em uma tensão constante entre os pólos isomórfico e homomórfico, em uma oscilação entre graus variáveis de dispersão e coesão diante dos dilemas e angústias oriundas das atividades, imprevistos e inovações pedagógicas que perpassam o cotidiano escolar.

    Neste contexto, o diretor e/ou coordenador pedagógico da escola, ao desconsiderarem os vínculos que constituem o grupo, podem negar de forma implícita a possibilidade de modificá-los. Assumem o papel de porta-voz das ansiedades dos professores e transformam-se no líder de resistência à mudança, mantendo um grupo estereotipado e provocando um fechamento de perspectivas. Ao contrário, quanto mais aberta for a rede de relações no cotidiano mais polissêmico será o grupo de professores. O coordenador, ao olhar os vínculos do grupo, deve manter um nível ótimo de ansiedade (Pichón-Rivière, 1998b), momento em que pode admitir que desconhece a solução do desafio que enfrenta e favorecer a problematização e o entusiasmo pela busca conjunta dos instrumentos de indagação e resolução dos dilemas. Saber respeitar e aproveitar o estilo e a escolha do outro é uma das características da abordagem psicanalítica. Acreditamos que esta "familiaridade com a falta" enriquece o grupo e contagia os seres humanos. A pretensão por parte do coordenador em saber sobre o desejo captado no grupo, se fixando na posição de Sujeito Suposto Saber, pode trazer efeitos desastrosos para o trabalho coletivo, gerando um grupo dependente. E aqui introduzimos mais um conceito da psicanálise para auxiliar-nos: o de uma "escuta livremente flutuante", na qual o movimento de presença-ausência do coordenador junto ao grupo permite que este não permaneça em uma posição imaginária que idealiza, levando o grupo a sair de um patamar de inércia passiva para outro, de produção criativa (Villani & Barolli, 2000).

    O grupo, enquanto conjunto intersubjetivo, produz efeitos inéditos e particulares. Uma vantagem de um olhar psicanalítico sobre estas práticas é desvelar aqueles conflitos que estão ocultos, intencionalmente ou não, proporcionando intervenções específicas. Longe de acreditarmos em reduzir toda a análise da grupalidade no âmbito apenas dos processos psíquicos, carregamos conosco a expectativa de entender como os laços entre os sujeitos podem contribuir de forma significativa na compreensão do fenômeno grupal. A introdução de uma outra dimensão para análise deve-se, inicialmente, à complexidade da constituição dos sujeitos, permitindo ver lacunas onde se pensava ter homogeneidade, ver problemas onde se acreditava existir apenas soluções. Temos o propósito de produzir uma nova relação com o saber, uma clareza da não-consciência que pode determinar as nossas ações e condutas.

    As conclusões acima permitem ampliar o trabalho de análise sobre as relações entre os grupos de professores e a escola em que estão inseridos, tendo como pano de fundo uma diversidade de novos projetos e políticas públicas para a educação, que constituem uma fonte importante de convocação. Entretanto, as diversas proposições sobre trabalhos coletivos que são evidenciadas nestes programas de governo desconhecem as formas de interações que deverão ser articuladas no interior das escolas para a implementação destas práticas. Essas diretrizes, ao considerar os professores como mero implementadores de projetos didáticos prescritos exteriormente à escola, os colocam diante de visões maniqueístas do ensino: ou ser tradicionais ou inovadores, ou aceitar ou recusar. A introdução do inconsciente coloca em questão este binômio do verdadeiro e do falso, uma vez que a fantasia introduz um outro jogo: uma queda de braço entre o princípio do prazer e o princípio da realidade.

Bibliografia

BAROLLI, Elisabete & VILLANI, Alberto (2000): Subjetividade e grupos de sala de aula. VII EPEF - ATAS CD-ROM - 12 pp - Florianópolis.

BION, W.R. (1970): Experiência com grupos. 2ª Ed. - SP: Imago Editora e Editora da Universidade de São Paulo.

BLEGER, José (1998): Temas de Psicologia: entrevistas e grupos. / Trad. Rita Maria de Morais; Revisão Luiz Lorenzo - 2ª Ed. - SP: Martins Fontes (Psicologia e Pedagogia)

KAËS, René & ANZIEU, Didier (1979): Cronica de un grupo. Tradução para o espanhol Hugo Acevedo. - Barcelona: GEDISA S.A.

KAËS, René (1997): O grupo e o sujeito do grupo: elementos para uma teoria psicanalítica do grupo. Tradução José de Souza e Mello Werneck - SP: Casa do Psicológo

KUPFER, Maria Cristina (2000): Educação para o futuro: psicanálise e educação. - São Paulo: Escuta.

MRECH, Leny M. (1999): Psicanálise e Educação: novos operadores de leitura. – SP: Pioneira.

PREFEITURA DE BELO HORIZONTE (1994): Escola Plural: Projeto Político-pedagógico. BH

PICHON-RIVIÈRE, Enrique (1998b): Teoria do Vínculo. Trad. Eliane Toscano/Revisão Mônica Stahel. - 6ª Ed. - SP: Martins Fontes (Psicologia e Pedagogia).

SANTOS, Eloísa H. (1997): Trabalho Prescrito e Real no Atual Mundo do Trabalho. In: Trabalho e Educação. - Revista do Nete. - fev/jul. Nº 1. Belo Horizonte - FAE/UFMG.

VILLANI, Alberto & CABRAL, T.C.B (1998): Subjetividade e Risco no Ensino de Ciências e Matemática. Atas VI EPEF - CD-ROM, 15 pp. Florianópolis.

VILLANI, Alberto & BAROLLI, Elisabete (2000): Um esquema heurístico de análise e interpretação da aprendizagem. ATAS VII EPEF, CD-ROM, 15 pp. Florianópolis.
 
 

[1] Com auxílio parcial do CNPQ /  avillani@if.usp.br
[2] Princípio do Prazer será considerado ao longo deste trabalho como uma atividade inconsciente que tem como objetivo fugir do desprazer pela evitação da tensão desagradável. Opõe-se ao Princípio da Realidade, onde a procura de satisfação já não se efetua pelos caminhos mais curtos, mas pelo enfrentamento com a realidade exterior.
[3] Os projetos serão apenas citados: 1995 – BH Ontem e Hoje; 1996- Arte de Viver; 1997- BH 100; 1998- O Mundo da Copa; 1999- Projeto de Pesquisa; 2000 – Agrupamentos. A partir de 1999 foi alterada a Ficha de Avaliação da Escola.
[4] Sinais que foram utilizados na transcrição- :: alongamento da vogal; (+) pausa curta; (++) pausa longa; / corte brusco; [ ] sobreposição de vozes; {  } dúvidas na transcrição; (frases explicativas de gestos e atos não verbais)
[5] J., o entrevistador, foi um dos diretores da escola na época.