ARGUMENTAÇÃO: ANÁLISES A PARTIR DE UM PRINCÍPIO DE PESQUISA VIVENCIADO EM SALA DE AULA
 

Valderez Marina do Rosário Lima
val.lima@terra.com.br

Roque Moraes
searom@pucrs.br

Maurivan Guntzel Ramos
mgramos@pucrs.br
 

Resumo

    Pesquisa em sala de aula é o tema dessa investigação que busca compreender a prática de um professor universitário que utiliza a pesquisa como metodologia de trabalho. O presente artigo focaliza o modo pelo qual um dos princípios de pesquisa, a argumentação, é trabalhado em sala de aula nas disciplinas didático-metodológicas de ensino de Química. O presente estudo é originado de uma investigação narrativa inscrevendo-se numa perspectiva qualitativa de pesquisa.

Abstract

    The inquiry in the classroom is the subject of the present study. It intends to understand the practice of a university professor that uses inquiry as a working methodology in the classroom. This paper presents some results on the study of one of the principles of teaching through inquiry, the working with arguments. The data analyzed were collected in classrooms of didactic and methodological disciplines in Chemistry teaching. The investigation was conducted as a narrative inquiry, based on a qualitative research framework.

Introdução

    Com o intuito de estudar as características pessoais e profissionais de um professor que pesquisa em sala de aula com seus alunos foi estruturada uma investigação que resultou no acompanhamento , durante um semestre, das aulas de Tutoramento, Metodologia do Ensino de Química e Prática de Ensino de Química, ministrada por um professor, a quem nos referimos como professor Pedro, sendo esse nome fictício escolhido pelo próprio participante da pesquisa. Nesse artigo apresentam-se alguns resultados dessa investigação ao focalizar o modo pelo qual a argumentação, considerada por nós como um princípio de pesquisa, pode ser trabalhada em sala de aula.

    Sendo a investigação narrativa uma das perspectivas metodológicas assumidas nesse estudo, escolhemos produzir o relatório do mesmo em forma de correspondência enviada ao professor cujo trabalho acompanhamos. Optamos, ainda , em escrever utilizando o pronome pessoal na primeira pessoa a fim de assegurar o caráter natural que caracteriza uma troca de correspondência . A carta que ora apresentamos refere-se à análise realizada sobre o modo como esse professor cria, sistematicamente, espaços para que os alunos experenciem o processo de argumentação de modo a imprimir consistência e coerência aos discursos por eles produzidos.

O vivenciar do processo argumentativo em sala de aula

    O texto visível é o texto total

    O antetexto, o antitexto

    Ou as ruínas do texto?

    O texto abole?

    Cria

    Ou restaura?

    Prezado Pedro,

    Hoje é sábado e, ao ler o jornal pela manhã, me deparei, no Caderno de Cultura, com o excerto de um poema de Murilo Mendes( l901-l975), com o qual inicio essa carta, por entender que o mesmo encontra-se associado ao tema de nossa discussão de hoje: argumentação.

    Outro dia encontrei num livro de filosofia a seguinte definição de argumentação: "é um tipo de operação discursiva do pensamento, consistente em encadear logicamente juízos e deles tirar uma conclusão.(Aranha; Martins, l999, p.80 ) Pois bem, e o que é o texto senão uma das formas de expormos, por meio de palavras, nossas idéias, de darmos corpo ao nossos pensamentos? Foi fazendo esse raciocínio, que as palavras do poeta me fizeram sentido. Tenho convicção de que aprender a escrever é aprender a pensar (Garcia, l986; Bernardo,2000), ou, dito de outra maneira, de que escrita e argumentação estão sempre muito próximas embora, para fazer uma melhor discussão neste trabalho, eu as esteja dicotomizando. Na verdade, ambas são concomitantes e uma alimenta a outra, pois escreve-se para pensar e somente consegue escrever quem tem idéias a comunicar. Mas, objetivando nossa conversa neste momento, pretendo discutir como tratas da argumentação com teus alunos em sala de aula.

    Talvez estejas te perguntando por que escolhi esse princípio da pesquisa para aprofundar em meu estudo. Pois bem, decidi abordar esse tema por ser o incentivo a ele recorrente em tuas aulas. Lembro-me, por exemplo que na primeira aula de Prática de Ensino da qual participei em um determinado momento, J, me disse: "Não precisas ficar apavorada por nós falarmos tanto assim, mas é que desde o primeiro dia de aula o professor nos incentivou a falar e agora, a cada aula, a gente traz um monte de questões para discutir aqui." É claro que a conversa referida por J, ocorrendo em situação escolar, estava longe de configurar mero bate-papo e, assim sendo, tu solicitavas permanentemente aos alunos que fundamentassem as colocações que faziam sobre o trabalho dos professores que eles vinham observando nas escolas. Por existirem várias situações semelhantes a essa registradas em meu diário de campo percebi a importância de compreender mais profundamente o trabalho com a argumentação na proposta de educação por meio da pesquisa.

    Bem, como de costume, ao me preparar para escrever sobre esse tema, realizei algumas leituras e, para iniciar, vou comentar contigo algo que li e achei super interessante.

    Sabes o que é testemunho autorizado? É quando os sujeitos realizam consultas a autoridades respeitáveis a fim de obterem informações que os auxiliem a construir um raciocínio indutivo. Seria a busca de informações confiáveis, prática muito comum em nosso dia-a-dia, quando, por exemplo procuramos – e seguimos- a prescrição de um médico ou de um advogado. Aí, evidentemente, estão incluídos os autores que lemos ao realizar algum estudo. Garcia(1986) discorre sobre o importante papel do testemunho autorizado para o avanço das ciências, na medida em que o conhecimento é fruto de um esforço coletivo sendo, portanto, legítimo e indispensável a ancoragem dos pensamentos em idéias já desenvolvidas por outros. Ressalta, porém, com muita ênfase, a importância de que esse trabalho seja feito de forma crítica não representando um acolhimento incondicional, subserviente, de idéias já desenvolvidas.

    Muito bem. Voltemos às minhas leituras sobre argumentação. À medida que avançava, fui me dando conta de como eram abundantes – e complexas – as informações sobre o processo da argumentação, ao mesmo tempo em que eram parcimoniosas aquelas referentes às razões pelas quais é importante argumentar com eficiência. Mesmo assim, nessas primeiras leituras dois temas chamaram minha atenção: o discurso epidíctico (Perelman, 1996), pelas relações que podemos estabelecer com nosso fazer em sala de aula; e um dos âmbitos do discurso, proposto pelo mesmo autor, a deliberação consigo mesmo.

    O gênero oratório, que os antigos denominavam epidíctico, relacionava o discurso com um espetáculo e tinha na virtuose do orador seu ponto principal. Nesse tipo de discurso, não havia lugar para temas controversos e, por decorrência, não havia oposição às idéias apresentadas. Hoje, conforme Perelman (1996), é possível afirmar que o discurso epidíctico tem significativa importância na difusão de valores tradicionais em nossa sociedade, pois, segundo ele, esse gênero de discurso encontra-se muito mais fortemente associado às idéias que já circulam do que àquelas que, por serem novas, estão sujeitas à polêmica e à controvérsia.

    O autor faz ainda uma aproximação explícita com a educação e afirma: "na educação, seja qual for o objeto, supõe-se que o discurso do orador, se nem sempre expressa verdades, ou seja, teses aceitas por todos, pelo menos defende valores que não estão, no meio que o delegou, sujeitos a controvérsias" (Perelman,1996, p.59).

    Penso que nessas palavras encontra-se materializada a idéia que me fez ficar interessada pelo gênero epidíctico de oratória, pois, além de haver um entendimento de que a sociedade tacitamente outorga a nós, professores, o poder para trabalhar com os valores por ela aceitos, ainda – na maioria do tempo – expressamos teses pouco contestadas. Penso não estar errando se afirmar que, majoritariamente, os professores organizam o processo de ensino privilegiando o estudo de fatos, conceitos e princípios já consolidados e pouco polêmicos, ao mesmo tempo em que seu fazer pedagógico transmitem valores, alguns deles questionáveis como, por exemplo a submissão ao conhecimento – e aos valores – que fazem parte, hoje, do acervo cultural da humanidade. Nesse sentido representamos o orador clássico do discurso epidíctico. Mas não precisa ser sempre assim, não é mesmo?

    A princípio, creio que o professor que escolhe o caminho da pesquisa em sala de aula por inúmeras razões – e sobre muitas delas já conversamos na primeira carta – se encontra entre aqueles que não se reconhecem como transmissores de conhecimentos condizentes com uma concepção de ciência pronta, acabada e indiscutível – portanto, isenta de controvérsias – , tampouco como reprodutores de valores que interessam apenas a uma determinada classe socioeconômica. Penso que para esses professores faz mais sentido a idéia trazida por Santos(2000), de conhecimento-emancipação: um conhecimento livre dos preconceitos do senso comum, ao mesmo tempo em que distanciado, também, de uma concepção inacessível de ciência. Diz ele:"O conhecimento-emancipatório tem de converter-se num senso comum emancipatório: impondo-se ao preconceito conservador e ao conhecimento prodigioso e impenetrável, tem de ser um conhecimento prudente para uma vida decente."(p.107)

    O segundo tema que despertou minha atenção nas leituras foi o aspecto por Perelman(1996) denominado deliberação consigo mesmo. Esse é um âmbito da argumentação que, conforme meu entendimento, trata das reflexões do sujeito consigo mesmo, sendo, portanto, uma ação individual e interior. É um ato no qual muito mais do que buscar argumentos que corroborem determinada tese, exige do sujeito o levantamento de todos argumentos que possam ser de alguma valia ao esclarecimento de um determinado ponto de vista para, só depois de avaliá-los conscientemente, poder optar por aquele que sinceramente represente a melhor solução.

    No aspecto mais relacionado à prática da docência, esse âmbito da argumentação parece se aproximar do que nós chamamos de reflexividade, ou seja, o professor reflexivo utiliza essa espécie de argumentação para pensar e para refazer sua prática pedagógica. Pela significação desse tema, quero discuti-lo calmamente contigo em outra oportunidade. Mas penso que serve ,por hora, apresentar algumas considerações de uma aluna tua, T, que estava concluindo o estágio, para ilustrar o que estou querendo dizer e antecipar um pouco da discussão que faremos oportunamente. Nessa ocasião, quase ao final do semestre, T inicia relatando suas duas últimas aulas de estágio e conta que, nos primeiros encontros com os alunos , ela não conseguiu se distanciar do modelo de professor que foi preponderante em sua vida enquanto aluna. Com o passar do tempo, porém, ela foi pensando em sua atuação e foi modificando o trabalho que vinha realizando. Diz ela: "eu fui me dando conta, durante o estágio, de que minha aula estava muito chata e que nem eu agüentava mais a minha aula, que era só eu falando, explicando, e eles fazendo exercício, parecia que estava faltando alguma coisa aí eu achei importante fazer aquele trabalho de nox". Neste momento tu questionas se ela localiza em que circunstância decidiu promover essa modificação, e ela menciona ter sido dando aula, quando percebeu que os alunos gostavam de ter uma aproximação com o professor. Tu indagas, então, o que ela havia sentido, e T comenta haver gostado de perceber "que eles gostaram dessa aproximação, por que eu passei a ser importante e eu não era mais aquele objeto que andava ali de um lado para outro só explicando a matéria. Aí eu fui me dando conta de que a gente não tem o direito de simplesmente atirar o conteúdo no quadro, eu fui me dando conta de que era importante, para mim, o crescimento deles em termos educacionais."

    Foi pensando sobre os acontecimentos da sala de aula que T conseguiu perceber as finalidades da docência, ou seja, a natureza do compromisso dela com a educação de seus alunos. Foi ainda imbuída nessa compreensão, que a aluna-estagiária decidiu reformular sua prática. Partindo desse exemplo, ficam evidentes para mim algumas relações com o âmbito da argumentação denominado deliberação consigo mesmo, pois T ponderou sobre a validade de uma série de questões com as quais vinha lidando e acabou decidindo pela reformulação de sua prática por acreditar sinceramente que este seria o melhor caminho para si e para os seus alunos. Claro que essa minha explicação é simples e provisória, pois da fala de T podemos extrair uma série de pontos importantes para serem aprofundados, mas neste momento me interessa apenas mostrar a estrita relação existente entre a reflexividade do professor e o deliberar consigo mesmo.

    Não sei se lembras, mas esse diálogo com T tem momentos muito bonitos, pois a aluna-estagiária fala com muita honestidade e com muito entusiasmo sobre o trabalho desenvolvido durante o semestre. Ela afirma reconhecer que as alterações por ela introduzidas, em termos metodológicos, foram tímidas e comenta que precisa aprender a melhor ensinar o aluno, denotando sua percepção de quão longa é a caminhada a percorrer. Ela conta, ainda, que ficou muito nervosa quando da realização da atividade, especialmente pela consciência da responsabilidade que tinha com aqueles trinta rostinhos que estão ali te olhando."

    Ao escutar esse diálogo, também fiz uma associação com o discurso epidíctico, do qual falava anteriormente. T afirma que no início repetiu o modelo de professor que para ela era mais conhecido. Tu fazes uma intervenção, dizendo que esse assunto era de teu interesse ,pois desde as aulas de Metodologia discutias com ela – e com os outros – alternativas metodológicas ao modelo tradicional, mas ela, ao entrar pela primeira vez em sala de aula, escolhe trabalhar de uma forma tradicional. Dizes assim: "Para mim é muito importante esse assunto, porque às vezes eu tenho a impressão de que basta eu trabalhar de modo experimental, fazer o aluno pensar aqui em minhas aulas, e eu já fico imaginando que o futuro professor, quando estiver com seus alunos irá trabalhar com essas propostas novas."

    Lembrei ainda de uma outra aula de Prática de Ensino, no início do semestre, quando esses mesmos alunos estavam realizando observações nas turmas em que iriam trabalhar. Eles comentavam sobre a forma como o professor titular dava aula, e lá pelas tantas um deles diz: "Que bom seria se as pessoas que saem daqui com idéias inovadoras as mantivessem durante toda sua vida, pois o professor que estou observando foi teu aluno, Pedro, e não faz muito tempo." Tu, então, respondes: Olha, eu não tenho tanto poder assim para transformar as pessoas!

    Deves, a essa altura, estar te perguntando pelo discurso epidíctico, não?

    Fiquei pensando que aí talvez esteja figurando uma outra face desse discurso, pois a intenção de argumentar e a presença de bons argumentos - neste caso as atividades que propões em aula - nem sempre são suficientes para produzir o efeito desejado. O que acontece nestas ocasiões? A argumentação falha? Não creio que seja isso. Penso, isto sim, que precisamos considerar a argumentação para além da técnica. Argumentar é um ato complexo na medida em que se processa na interação entre sujeitos, daí porque não seja possível olhar para ela de forma mecânica, esperando encontrar relações diretas de causa/efeito.

    Esclareci, no início dessa carta, haver me interessado pelos dois temas que acabo de mencionar, mas comentei ainda ter sentido, desde o começo, que as leituras realizadas não continham informações suficientes sobre a argumentação numa perspectiva mais complexa, para além da técnica. Evidentemente autores como Perelman( 1996) e Garcia(1986) discutem um pouco as razões da argumentação, entretanto, em meu entendimento, a tônica para eles se localiza na produção da argumentação, que, para ser consistente, deve fundar-se em padrões concretos de verdade. Ou seja, são as evidências das provas – fatos e dados – que vão produzir a boa argumentação. Garcia(1986) , por exemplo, refere: "argumentar é a arte de convencer ou tentar convencer mediante a apresentação de razões, em face da evidência de provas à luz de um raciocínio coerente e consistente."(p. 370)

    Sentia-me insatisfeita pela ausência de um elo que nem eu conseguia precisar qual era mas que a pouca importância atribuída pelos autores à questão de por que argumentar me sinalizava uma lacuna.

    É importante argumentar, eu me perguntava. Sim, mas exatamente por quê?

    Perelman( 1996) fala em persuasão e convencimento. A primeira me parecia forte demais, manipuladora demais, mas não tinha certeza de que a segunda pudesse dar conta de minhas interrogações.

    Foi então que encontrei algumas respostas em Santos(2000). A apresentação do sociólogo sobre o que representa a nova retórica, ou a retórica da modernidade, contrastando-a com o que ele denomina de novíssima retórica, ou a retórica da pós-modernidade, me fez encontrar – pelo menos para o momento – boas razões para justificar a importância de insistir com os alunos para que argumentem em nossas aulas.

    Sei que lês e escreves sobre argumentação, tendo em vista que para nós, professores que utilizamos a pesquisa como recurso didático, esse tema é importante para nosso trabalho. Entretanto, não sei se tiveste oportunidade de ler, - no livro "A crítica da razão indolente", as considerações de Santos (2000) sobre a retórica da ciência moderna, e o entendimento dele sobre a novíssima retórica do conhecimento, que está se constituindo junto com o paradigma emergente. Por essa razão, vou apresentá-las brevemente para ti.

    Conforme o autor, os discursos marginais da ciência moderna seriam o lugar de veiculação de informações sobre o conhecimento-emancipação, já mencionado anteriormente, definido por ele como conhecimento pós- moderno "construído a partir das tradições epistemológicas marginalizadas da modernidade ocidental ( p.103). No entanto, pondera ele, esse discurso ainda não tem muito a dizer, revelando apenas que esse é o conhecimento que poderá contribuir para que as comunidades periféricas possam usufruir de uma vida decente. Segue ele dizendo que a retórica da modernidade, ou seja, a forma de argumentar da modernidade, não serve para esse período de transição paradigmática por duas fortes razões. Primeiro porque a mesma é excessivamente centrada na técnica; segundo, porque, nessa perspectiva, o orador coloca-se diante do auditório –considerado imutável- com a pretensão de influenciá-lo, mas sem nunca deixar-se influenciar por esse auditório. Para que a nova retórica possa contribuir com o conhecimento- emancipação, é necessário que ela se revista de outras características, dando lugar ao que o autor vem chamando de novíssima retórica.

    Que características fariam parte de uma retórica afinada com o paradigama emergente?

    Partindo da nova retórica – e aqui Perelman é o referencial, segundo Santos – , o autor propõe a revisão de três dimensões: o tipo de adesão pretendida pelo orador, a relação auditório/orador e as premissas da argumentação.

    Na modernidade, a retórica tem na persuasão e no convencimento duas formas de influenciar o auditório, sendo que a utilização de uma ou de outra depende dos propósitos do orador. Se o objetivo é o resultado final, isto é, fazer com que o sujeito produza uma ação, então o orador vale-se da persuasão. Se, entretanto, o objetivo do orador não é o resultado, mas a adesão, pelo auditório, aos argumentos apresentados após avaliá-los, então o orador vale-se do convencimento. Perelman limita-se a mostrar as duas formas sem posicionar-se por uma delas. De modo distinto, Santos (2000) afirma que a novíssima retórica deve privilegiar a ênfase nos bons argumentos, nas boas razões, ou seja, para que a retórica possa contribuir com o conhecimento- emancipatório, é preciso haver um fortalecimento do convencimento em detrimento da persuasão, pois o conhecimento-emancipatório se pretende crítico e tende a valorizar as razões e a buscar um equilíbrio entre razões e resultados.

    Na discussão sobre a segunda dimensão - a polaridade auditório/orador-, o autor propõe a ênfase no diálogo, convertendo-o no princípio regulador da prática argumentativa. Salienta ele que na retórica moderna,, embora a argumentação preveja uma certa interação, essa é fraca e tem por meta possibilitar ao orador entrar em contato com o conhecimento prévio do auditório. Para a retórica pós-moderna o conhecimento do auditório deve ser "multidirecional e acabar por ser a soma total do conhecimento de cada um dos oradores."(p.105) Complementa ele que a retórica dialógica faz o conhecimento avançar porque possibilita que o autoconhecimento avance junto.

    Não sei se compreendes porque finalmente me senti satisfeita ao ler as reflexões de Santos (2000). Para mim ficou claro que promover em aula situações para o aluno desenvolver a sua capacidade de argumentar e de se envolver num debate construtivo é nosso compromisso com o conhecimento-emancipatório.

    Assim, com olhar alargado pelo estudo das teorias de Santos(2000), retornei à leitura dos autores da modernidade para extrair deles questões úteis à construção de argumentos que fossem, ao mesmo tempo, coerentes com a proposta da novíssima retórica. Ainda com esse entendimento, voltei aos textos de campo. Neles penso ter encontrado situações de trabalho com a argumentação nas quais é possível reconhecer indícios da teoria até aqui discutida.

    Uma delas ocorreu em uma aula de Tutoramento, com alunos do terceiro semestre. Esse grupo desde o início das aulas - quando começaram a vivenciar , como alunos, uma proposta metodológica diferente da tradicional- passou a manifestar distintos sentimentos, que variaram desde a resistência velada – não realização das atividades, não participação nos debates em aula- até a descrença na proposta, as vezes expressa de modo muito claro. Em dado momento, J, como sabes um dos mais falantes da turma, menciona achar complicado trabalhar numa perspectiva interacionista e aponta como um dos obstáculos exatamente a resistência dos alunos. Tu concordas e comentas o fato de alguns alunos preferirem ficar sem falar por considerarem que dá trabalho pensar, escrever, argumentar. E continuas: "que tipo de sujeito estará constituindo a sociedade nessas condições? Sujeitos acostumados a ser mandados, sem nenhuma autonomia, sujeitos que aprendem a serem obedientes. Será que este é o tipo de professor que queremos ser?

    Penso que esse diálogo entre vocês contém, implicitamente, a idéia de conhecimento-emancipatório. Buscar vencer as resistências dos alunos, convidando-os a pensar nas razões pelas quais resistem a novas propostas, e instigá-los a defender essa posição inicial é modo de abrir caminho para que eles não só percebam a fragilidade das razões que os fazem resistir, mas também para que possam refletir sobre os argumentos que nós, professores, estamos apresentando.

    A conversa entre vocês continua por mais um tempo e, embora eu não ouse dizer que ao final do diálogo J abandonou suas resistências, reitero a importância desse tipo de oportunidade aberta para o aluno poder pensar sobre seus argumentos e escutar outras ponderações diferentes das suas.

    Gostaria ainda de comentar dois outros episódios ocorridos em aulas de Metodologia, pois relê-los me fez lembrar das considerações de Bernardo (2000) em seu livro "Educação pelo argumento". Eu, particularmente, gosto muito desse autor tendo em vista o mesmo desenvolver suas teorias levando sempre em conta a sala de aula. A presença desse cenário familiar desencadeia facilmente em mim idéias para aperfeiçoar o trabalho com argumentação junto aos meus alunos.

    Bem, mas nessa carta estamos tratando de tuas experiências, e não das minhas. Então, de início vou contar os acontecimentos sucedidos em uma determinada aula de Metodologia do Ensino de Química, ocorrida no final de setembro do ano passado.

    Para introduzir o assunto que pretendes trabalhar ,perguntas: "O que causa a efervescência do Sonrisal?" Em seguida, demonstras a dissolução de um comprimido, mas antes entregas uma folha ao alunos solicitando que escrevam sobre a reação que está ocorrendo e sobre as possíveis causas da efervescência do Sonrisal. Propões, então, uma leitura do que eles escreveram e daí emergem muitas dúvidas sobre o fenômeno observado. Entregas, a seguir, materiais concretos- reagentes,.....- e solicitas que os estudantes levantem hipóteses, testem-nas e concluam apresentando uma argumentação consistente na defesa de uma dessas hipóteses. Esse trabalho ocupa mais da metade da aula e, ao final, pedes que eles comparem a primeira resposta com a argumentação estruturada mais tarde, após a experimentação.

    O outro episódio do qual me lembrei ocorreu na aula da semana seguinte, ainda na disciplina de Metodologia do ensino de Química. Vou mencioná-lo não só para fortalecer minha posterior argumentação, mas também para assinalar a coerência existente em teu fazer pedagógico. Nessa aula, ao iniciar o trabalho com as Funções Químicas dizes: "Como sempre vou começar com uma pergunta: Como varia o volume de uma solução básica em função do volume de uma solução ácida, quando as mesmas reagem entre si?" Os alunos apresentam algumas tentativas de explicação e tu estipulas algumas condições para facilitar essa construção. A seguir propões uma atividade prática, distribuindo material para que os grupos realizem as experimentações.

    Bernardo(2000) estabelece como premissa para construção de argumentação a existência da dúvida. Na carta anterior, conversamos bastante sobre o papel da pergunta, mas não lembro se olhei para o questionamento nessa perspectiva, isto é, de ser um dos modos pelo qual o professor pode fazer emergir a dúvida em relação aos fenômenos trabalhados. Em ambos os casos apresentados, começas apresentando perguntas como estratégia para que os alunos argumentem e ao mesmo tempo duvidem de suas próprias argumentações. Por outro lado , quando os alunos estão duvidando das opiniões que estão construindo, propões a eles atividades concretas com o objetivo de possibilitar que reunam outros elementos, a fim de refazerem suas argumentações iniciais. Garcia (1986), ao comentar o trabalho com a argumentação na escola e/ou na universidade, menciona que às vezes os professores solicitam aos alunos o desenvolvimento de argumentação em torno de alguma tese a ser defendida e, via de regra, acabam frustrados, pois os textos dos alunos não atendem às expectativas do professor tendo em vista ser seu conteúdos inconsistente. Segundo ele quando sugerimos um tema ao aluno sem darmos pistas, sem fertilizarmos sua mente com sugestões, roteiros ou exemplos, o resultado é desalentador, pois os mesmos não podem falar sobre o que eles não têm na cabeça e, mesmo que eles conheçam as palavras e tenham noções sobre a estrutura das frases, "palavras não criam idéias"( p.291). Penso que, nas situações apresentadas, estão explícitas algumas possibilidades que professores da área da ciências naturais podem utilizar para fertilizarem as idéias dos alunos, pois as atividades experimentais constituem o substrato sobre o qual o estudante pode edificar novos argumentos. Assim, é possível dizer que as perguntas iniciais revelam ao estudante a precariedade das hipóteses por ele formuladas, e nesse instante instaura-se a dúvida. No momento seguinte, o contato com material concreto faz o aluno pensar sobre suas conjecturas iniciais, ao mesmo tempo em que constrói novas idéias sobre o tema trabalhado. A organização dessas outras idéias e a expressão das mesmas com clareza constituem os novos argumentos construídos. Complemento a reflexão sobre os dois exemplos extraídos de tuas aulas de Metodologia do Ensino de Química ressaltando a idéia de que atividades experimentais colocam em cena elementos essenciais para construção da argumentação. A eles Garcia(1986) denomina "evidência de provas", referindo-se aos fatos e aos dados que vão contribuir para a coerência e a consistência dos argumentos. Perelman(1996)fala dos fatos e das verdades como constituintes das premissas da argumentação. Conforme já mencionei, Santos(2000) não retira a importância dos mesmos, apenas relativiza seu caráter dogmático e sugere que essas premissas da argumentação sejam debatidas com muita profundidade, assumindo, portanto, um sentido dialético. Essa diferença, que a princípio pode parecer tênue, é fundamental para que teus alunos –futuros professores de Química – trabalhem o conhecimento na perspectiva de Santos (2000), ou seja, na perspectiva do conhecimento-emancipatório. Fica, então, uma pergunta que todos nós, professores acostumados a trabalhar atividades experimentais, devemos nos fazer, sistematicamente : Estou encaminhando essas atividades de modo a oportunizar o diálogo entre o estudante e a teoria envolvida ? Ou, dito de outra maneira, estou propondo atividades que possibilitam ao aluno debater resultados e não apenas aceitar verdades?

    Como último evento a ser comentado, destaco um outro acontecimento da mesma aula em que foram trabalhadas as Funções Químicas. Esgotada a exploração da atividade prática, tu voltas ao foco principal dessa disciplina perguntando: "Se vocês fossem os professores como é que vocês dariam continuidade a essa aula?" I sugere uma pesquisa, enquanto que M diz que começaria trabalhando ácidos no quadro-verde. Em meio a essas e a outras proposições tu questionas de novo: "Como é que vocês fechariam essa unidade?" A discussão, então, evolui para a produção escrita e comentas que insistes nessa questão, para ti muito importante, pois tua expectativa é de que "quando vocês estiverem atuando na escola também desenvolvam com os alunos de vocês o hábito da escrita". Novamente aparece aqui oportunidade para os alunos pensarem, proporem e sustentarem suas idéias, e optei em comentar esse acontecimento agora, quando me encaminho para o final dessas reflexões sobre argumentação, porque esse episódio, ao introduzir o aspecto da escrita no processo da argumentação, acaba por me remeter ao início dessa carta. Envia-me ao poema de Murilo Mendes e ao comentário que fiz de que deixaria o aspecto em questão- a escrita – à margem de meu estudo sobre argumentação, tendo em vista haver me dado conta de que esse tema merece ser pensado por nós com mais profundidade não somente pelo importante papel que representa no processo de construção da argumentação, mas também por ser fortemente incentivado em tuas aulas, conforme ilustra o exemplo que acabo de referir.

    Assim, encerro essa carta comunicando que em breve te enviarei mais uma, na qual me dedicarei a estudar como e por que incentivas teus alunos a escreverem, ao mesmo tempo em que retorno a alguns aspectos essenciais das reflexões aqui apresentadas.

    O primeiro desses aspectos refere-se ao fato de que o exercício de argumentar em sala de aula é ato essencial, devendo, pois, o professor promover situações para que os alunos exponham suas idéias, submetendo-as à avaliação do grupo como forma de refazê-las com mais clareza e precisão. Um segundo aspecto significativo diz respeito a importância de que o professor e os alunos percebam a argumentação na perspectiva proposta por Santos(2000), ou seja, como forma de auxiliar na construção do conhecimento-emancipatório. E, finalmente, um terceiro ponto a ressaltar refere-se a necessidade de, em sala de aula, existir uma relação auditório/orador de mútuo influenciar, possibilitando, desta forma, o debate profundo e honesto das premissas apresentadas.

    Retornando à leitura do poema de Murilo Mendes, fiquei me perguntando: Este meu texto é o texto visível, ou o texto total?
 

Referências

ARANHA, M. L. de A.; Martins, M. H. P. Filosofando. Introdução à filosofia. São Paulo: Moderna,1999.

BERNARDO, G. Educação pelo argumento. Rio de Janeiro: Rocco , 2000.

GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1986.

PERELMAN, C.; Tyteca, L. O. Tratado da argumentação. A nova retórica. São Paulo: Martins Fontes,1996.

SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.