wildson@unb.br
mortimer@dedalus.lcc.ufmg.br
p.h.scott@education.leeds.ac.uk
Resumo
Estudos vêm demonstrando a importância da argumentação no ensino de ciências, em particular, nas discussões de aspectos sócio-científicos. Neste artigo, apontamos como a argumentação pode contribuir em tais discussões e a necessidade do desenvolvimento de intervenções pedagógicas pelo professor que contribuam para aumentar a capacidade argumentativa dos alunos. A análise qualitativa de um estudo de caso, em que o professor planejou um debate para desenvolver a argumentação dos alunos, indica que o uso de perguntas que solicitem ao aluno que justifique os seus pontos de vista pode auxiliar para que eles percebam a necessidade de melhorar a sua argumentação. O estudo demonstra a dificuldade do professor em conduzir o discurso argumentativo em sala de aula e aponta a necessidade de serem desenvolvidas mais pesquisas que auxiliem os professores a melhorar a argumentação dos alunos.
Abstract
Studies have demonstrated the importance of argumentation in science education, particularly in discussions on socio-scientific issues in classrooms. This article points out the role of argumentation in discussions about socio-scientific issues and the need to develop pedagogical interventions that enhancing the students’ argumentation. A case study, in which the teacher carried out a debate in the classroom to enhance students’ argumentation, illustrates how attempts from the teachers to ask students to support their views can help students to pay more attention in their arguments. Furthermore, the case study shows the difficulty of the teacher in organizing and supporting argumentative discourse within the classroom and the need to develop more research to support the teachers in the target to improve argumentation in classroom.
PATRONIS, POTARI e SPILIOTOPOULOU (1999) consideram a argumentação como um processo social, onde indivíduos em cooperação tentam ajustar suas intenções e interpretações em torno de uma apresentação verbal da razão para as suas ações. Para isso, torna-se fundamental que os estudantes compreendam as bases racionais de suas ações, de modo que cheguem a uma posição consistente e aceitável, que possa ser defendida persuasivamente, levando em conta outros pontos de vista (GEDDIS, 1991; SOLOMON, 1998).
A partir de pesquisas sobre atividades em grupo de tomada de decisão sobre aspectos sócio-científicos, RATCLIFFE (1996, 1997 e 1998) concluiu que o incentivo e auxílio para que os alunos fundamentem os seus argumentos, explicitando a natureza e aceitabilidade das informações por eles usadas, é um importante fator para auxiliá-los a desenvolver a capacidade de tomada de decisão.
A perspectiva sociolingüística desvia o foco anteriormente centrado no aluno para a análise discursiva que leva em conta o contexto social da sala de aula. Para VYGOTSKY (1987 [1934]), a elaboração conceitual ocorre como prática social imersa nos contextos institucionais. Para ele, todas as funções psíquicas superiores são processos mediados, e os signos constituem o meio básico para dominá-las e dirigi-las (WERTSCH, 1988).
Se os processos mentais superiores se desenvolvem no plano intermental, isso implica que as interações discursivas entre professor e aluno tornam-se essenciais na sala de aula. De acordo com a perspectiva teórica de VYGOTSKY (1991 [1930-1935]), o professor tem um papel fundamental na mediação do conhecimento para os alunos. Esse processo de mediação torna-se mais efetivo quando ocorre de forma dialógica, na perspectiva desenvolvida por Bakhtin.
Para Bakhtin, a cognição não depende apenas do indivíduo, mas das condições sociais de produção das interações humanas. Segundo ele, o sentido de uma palavra é totalmente determinado pelo contexto de sua produção, ou seja, o significado da palavra não está nela mesma, como algo já dado. O significado é fruto de um processo construído no contexto das enunciações concretas.
Para Bakhtin, a comunicação verbal se dá por meio de enunciados que formam um elo na cadeia comunicativa. Cada enunciado relaciona-se com os outros que o antecedem e com os que virão posteriormente, refletindo-se mutuamente. Um enunciado, portanto, não pode ser separado dos elos anteriores que o determinam e provocam nele reações-respostas imediatas e uma ressonância dialógica (BAKHTIN, 1992 [1952-1953]). Tal processo ocorre por meio de um diálogo de aproximação entre as vozes do outro e a sua própria. A compreensão do sentido da enunciação implica estabelecer um diálogo, em que à palavra do locutor opõe-se uma contrapalavra.
Nessa perspectiva sócio-cultural, o professor tem a responsabilidade de apresentar aos estudantes o conhecimento sistematizado. Para WERTSCH (1998), o professor ocupa uma posição de autoridade na sala de aula e tem um papel relevante de guiar o discurso da aula, uma vez que toda ação humana é sócio-culturalmente situada e envolve poder e autoridade.
A compreensão do papel de mediação do professor na visão sócio-cultural tem sido desenvolvida a partir das idéias de dualismo funcional elaboradas pelo semiólogo Lotman, que ampliou a análise de Bakhtin. LOTMAN (1988) distingue duas funções de um texto[4]: a de transmitir significados e a de gerar novos significados.
A primeira função é melhor preenchida quando os códigos do falante e do ouvinte coincidem o mais completamente possível e, conseqüentemente, o texto tem um grau máximo de univocidade. (LOTMAN, 1988, p. 34).
A segunda função do texto é gerar novos significados. Nesse aspecto, um texto deixa de ser um elo passivo, que transporta determinadas informações constantes entre emissor e receptor. Enquanto no primeiro caso, a diferença entre a mensagem emitida e a mensagem recebida de um circuito de informação só pode ocorrer como resultado de um defeito no canal de comunicação e deve ser atribuída às imperfeições técnicas do sistema, no segundo caso, tal diferença é a própria essência da função de um texto como instrumento de pensamento. Aquilo que, do primeiro ponto de vista, é um defeito, do segundo, é uma norma, e vice-versa. (LOTMAN, 1988, p. 36-37) [tradução nossa].
Essas funções foram denominadas por WERTSCH (1991), respectivamente, como função unívoca e função dialógica. Segundo ele, tais funções têm relação com as idéias de Bakhtin sobre a distinção entre discurso de autoridade e discurso internamente persuasivo. O discurso de autoridade tem uma função unívoca, é fixo, fechado, não se modifica quando em contato com novas vozes, ou seja, não gera novos significados. Já o discurso internamente persuasivo, o discurso dialógico, é aberto, permite a interação dialógica, permite a interação de várias vozes, gera novos significados.
MORTIMER (1998) tem identificado essas funções na análise de episódios de sala de aula de ciências. Como conclusão de seu trabalho, ele indica que alternância das duas funções parece inerente ao discurso desenvolvido na sala de aula. “Enquanto o discurso internamente persuasivo permite considerar explicações alternativas e versões contraditórias por meio da argumentação e justificação, o discurso de autoridade enfatiza o conhecimento compartilhado já construído” (MORTIMER, 1998, p.79).
A alternância das duas funções do discurso nas salas de aula caracteriza o que Mortimer chama de um ritmo do discurso nas aulas. Assim como MORTIMER (1998), SCOTT (1998) também enfatizou a importância dessa alternância nas funções do discurso para desenvolver o pensamento conceitual no plano intramental. As intervenções do professor com a função dialógica incentiva os alunos a desenvolverem suas idéias, a explorar e a debater pontos de vista. Segundo SCOTT (1998),
WERTSCH e TOMA fazem uma relação explícita entre atividade nos planos interpsicológicos e intrapsicológicos, sugerindo que ‘os estilos da função interpsicológica empregados na sala de aula serão refletidos na função intrapsicológica subseqüente’. Assim se a função dialógica é dominante na sala de aula, então poderia ser esperado que os alunos ‘tratarão as falas dos outros e deles como invenção de pensamento. Em vez de as aceitarem como informação a ser recebida, codificada e armazenada, eles tomarão uma posição ativa para questioná-las e ampliá-las, incorporando-as nas suas próprias falas externas e internas. Quando a função unívoca for dominante, pode ser esperado razoavelmente que o caso seja oposto’ (ibid., 1991) (SCOTT, 1998, p. 64) [tradução nossa].
No processo de desenvolvimento da argumentação, a função dialógica tem um papel fundamental, uma vez que nesse processo o aluno tem que expressar o seu ponto de vista e justificá-lo. Daí a importância da análise discursiva em aula que se objetiva desenvolver a argumentação dos alunos.
SCOTT (1998) e MORTIMER e SCOTT (2000), analisando a fala dos professores em ensino de ciências na perspectiva sociocultural de Vygotsky, focalizaram as atividades de sala de aula em que o professor guia o discurso do aluno no plano interpsicológico. A partir de dados empíricos e usando como referência os trabalhos de EDWARDS e MERCER (1987) e MERCER (1995), SCOTT (1998) categorizou as intervenções pedagógicas em três grandes grupos: desenvolvendo o conhecimento científico, dando suporte ao processo de significação dos alunos e mantendo a narrativa. A essas formas de intervenções, SCOTT chamou de narrativas de ensino.
No presente trabalho,
de forma similar, vamos categorizar as intervenções pedagógicas
do professor desenvolvidas em uma aula específica que foi feito
um debate com toda a turma. Essa categorização objetiva identificar
as estratégias utilizadas para melhorar a argumentação
dos alunos.
Ao final da aula, o professor nos disse que inicialmente havia pensado em predeterminar o que cada um ia discutir, mas resolveu deixar o debate livre. Em sua opinião, ele percebeu que os alunos não estavam sabendo argumentar e que apresentavam pontos de vistas sem justificar. Decidiu, então, retomar o debate, mas dessa vez exigindo dos alunos uma melhor argumentação. Esse debate foi marcado para dali a quinze dias.
A aula do segundo debate começou da mesma forma, com o professor copiando a agenda no quadro, na qual pedia para os alunos responder as questões: (1) A magia, ciência e religião são boas ou ruins? Por quê? (2) O que difere a magia da ciência e da religião? Os alunos discutiram em grupo e depois o professor recolheu a folha resumo de cada grupo e fez um esquema no quadro a partir do que cada grupo respondeu, sem indicar de quem era a resposta. A seguir, a turma fez um grande círculo e o professor deu início ao debate.
O professor iniciou o debate pedindo aos alunos que selecionassem, dentre os argumentos que cada grupo usou para responder as questões, aqueles que consideravam mais plausíveis. Solicitou ainda que justificassem sua opinião. Depois passou a fazer perguntas diversificadas para todos os grupos.
Os
alunos não responderam a pergunta do professor sobre a razão
que os levava a escolher determinada resposta. O professor passava a questão
para outro aluno e ninguém conseguia dar uma resposta. Afirmavam
que não sabiam justificar a escolha. O professor passou, então,
a fazer outras questões. Como ele mesmo relata em sua última
entrevista, ele teve muita dificuldade de fechar as questões e o
debate encerra-se antes de tocar o sinal. Os alunos também parecem
sair com uma sensação de frustração, sem saber
a conclusão. Em outras palavras, o debate acabou sem terminar.
As intervenções pedagógicas das categorias ‘desenvolvendo o conhecimento científico’ e ‘dando suporte ao processo de significação dos alunos’ na aula analisada por SCOTT (1998) tem um papel diferenciado em relação a aula do presente estudo de caso. Aqui o professor tem a função de explorar as idéias do aluno, dando suporte para que eles entendam a natureza do argumento. Nesse sentido, desenvolvemos um sistema de categorização para analisar a narrativa de ensino de forma a explicitar se as intervenções de ensino encorajavam os alunos a explicitar os seus argumentos e se davam suporte para eles entenderem a natureza do argumento, ou seja, se levavam os alunos a estabelecerem relação entre ponto de vista e razões que a justifiquem.
A transcrição do debate foi feita demarcando os turnos de fala de cada aluno ou do professor[6]. No primeiro debate foram contabilizados 375 turnos e no segundo 285 turnos, os quais chamaremos de intervenções. O professor fez 106 intervenções no primeiro debate e 99 no segundo, as quais foram categorizadas em um sistema, inspirado no trabalho de MERCER (1995). Todas intervenções do professor foram categorizadas em três grandes categorias: provocando a participação, organizando o debate e respondendo ao aluno. As tabela 1 e 2 apresentam o percentual de cada intervenção que foi calculado a partir do total de intervenções classificadas.
Tabela 1 – Percentual
de categorias das intervenções do professor no 1o
debate
|
|
|
1. Provocando a participação
do aluno
|
O quê? Por quê?
Qual? Como? Sim ou não? Fala, fulano. Vai fulano. Mais alguma coisa?
|
|
3. Organizando o debate
|
Calma. Um de cada vez. Espera
aí. Esta pergunta é para o grupo um.
|
|
4. Respondendo ao aluno
|
Repetições,
reformulações, resposta a uma pergunta.
|
|
Tabela 2 – Percentual
de categorias das intervenções do professor no 2o
debate
|
|
|
1. Provocando a participação
do aluno
|
O quê? Por quê?
Qual? Como? Sim ou não? Fala, fulano. Vai fulano. Mais alguma coisa?
|
|
3. Organizando o debate
|
Calma. Um de cada vez. Espera
aí. Esta pergunta é para o grupo um.
|
|
4. Respondendo ao aluno
|
Repetições,
reformulações, resposta a uma pergunta.
|
|
A análise da tabela acima mostra que a maioria das intervenções do professor foi com o objetivo de provocar o engajamento dos alunos no debate, pedindo-lhes que apresentassem o seu ponto de vista sobre o assunto, convidando os alunos que não estavam participando diretamente do debate a emitirem a sua opinião e provocando cada um a explicitar melhor o que pretendia afirmar.
A seqüência de falas da apresentação do grupo religião ilustra como o professor provocava a participação dos alunos[7]
1) Prof.: Religião, [xxx] prá religião. Vai apresenta.
2) A12: [###] é uma seita religiosa do cristianismo proveniente dos Estados Unidos. Seus membros acreditam na segunda vinda de Jesus Cristo a mais ou menos mil anos, eles afirmam que os mortos ressuscitarão a começar pelo [xxx] reinarão [xxx] pelo juízo final com... [Aluno lê sobre religião em um livro.].
3) Prof.: Ok. O que é religião prá vocês? Entendem isso o que é religião?
4) A13: É acreditar.
5) Prof.: É acreditar. Acreditar em quê?
6) A13: É uma seita.
7) Prof.: É acreditar em alguma coisa?
8) A13: Claro.
9) Prof.: Mas [xxx] as palavras budista, católica, e outras coisas. Prá quê que ela serve? Principalmente, prá que serve a religião? Serve, mais alguma coisa? Sim ou não?
10) A13: [xxx].
11) Prof.: Ham?
12) A13: Ter fé.
13) Prof.: Quê que é ter fé?
14) A13: É crer em alguma coisa, não é não?
15) Prof.: Acreditar?
16) A13: É.
17) Prof.: Psiu!
18) A13: Obedecer, por exemplo, igual eu sou católico, eu obedeço as regras de Deus, da igreja católica.
Na seqüência acima, quando o professor interrompe a leitura do aluno no turno 3 e diz: “Ok. O que é religião prá vocês?”; ele mostra implicitamente que ele queria saber a opinião dos alunos e não do livro. Nos turnos 5, 7, 9, 13 e 15, o professor lança perguntas a partir da fala do aluno com o objetivo de requisitar a ele que amplie o seu ponto de vista, o seu argumento. Nessa seqüência e nas que seguem, o professor não emite julgamento de valor sobre a natureza dos argumentos. O que ele buscou nas intervenções acima foi explorar os pontos de vistas dos alunos sobre o assunto, ou seja, requisitar mais clareza na sua argumentação.
Essa estratégia do professor, de buscar extrair dos alunos o que eles pensavam sobre o assunto, também foi adotada no segundo debate. Podemos dizer assim que as intervenções do professor nos debates foram predominantemente de natureza provocativa (82 e 79%). Essa análise nos indica que essa estratégia de intervenção do professor pode ter tido um papel importante em manter o debate e a motivação dos alunos, encorajando-os a apresentar argumentos, conforme foi relatado na entrevista final com quatro alunos. Nesses debates, mais de 60% dos turnos de fala foram dos alunos e foi identificada a fala de, pelo menos, quinze alunos. Considerando que não foi possível identificar no vídeo a imagem de todos os alunos, isso nos dá um indicador de que o debate transcorreu com uma grande participação dos alunos, os quais se envolveram com muito interesse e entusiasmo, conforme pôde ser observada nas imagens registradas.
As intervenções do professor na categoria “respondendo aos alunos” foram basicamente de dois tipos: “compartilhando as idéias dos alunos” e “emitindo o seu ponto de vista”. No primeiro debate, das dezessete intervenções do professor da categoria “respondendo aos alunos”, treze intervenções foram do tipo “compartilhando idéias dos alunos” e apenas quatro foram de ponto de vista do professor. Isso significa que o professor não participou do primeiro debate, apenas provocou e organizou o debate. No segundo debate, das dezoito intervenções, apenas uma foi de compartilhamento de idéias com os alunos. As demais foram de opinião do professor, sendo que essas foram apresentadas ao final do debate. Isso nos indica que, também no segundo debate, o professor provocou e coordenou o debate e encerrou o mesmo emitindo a sua opinião. Deve-se considerar, no entanto, que as opiniões do professor foram vagas e não responderam as questões básicas que estavam sendo discutidas no debate.
Se nesse segundo debate o professor tinha como objetivo melhorar a argumentação dos alunos, no sentido de que eles justificassem seus pontos de vista, era de se esperar que ele fizesse intervenções que conduzissem a uma avaliação da natureza do argumento. Isso poderia ter sido feito solicitando ao alunos que estabelecessem relações entre suas justificativas e seus argumentos. Na medida em que nos dois debates não houve explicitação pelo professor sobre a natureza do argumento, isso nos indica que tais aulas provavelmente pouco contribuíram para melhorar a qualidade do argumento dos alunos.
Com relação ao segundo objetivo do professor para aquela aula, que se referia à compreensão da natureza da ciência, a narrativa de ensino seria similar a da aula analisada por SCOTT (1998). Nesse caso era de se esperar que o professor apresentasse intervenções dos tipos “desenvolvendo o conhecimento científico”, que são aquelas que têm por objetivo disponibilizar o conhecimento científico no plano interpsicológico e a do tipo “mantendo a narrativa”, que consiste naquelas pelas quais o professor comenta sobre o desdobramento da narrativa de ensino, e tem por objetivo ajudar os alunos a seguir o desenvolvimento da “história científica” que está sendo contada, ou seja, a perceber o desenvolvimento do temas e conteúdos que constituem o currículo. Para discutir a natureza da ciência, seria fundamental que tivessem sido desenvolvidas as intervenções pedagógicas identificadas no estudo de caso de SCOTT (1998) como “desenvolvimento da linha epistemológica”. Como discutido acima, as intervenções do professor praticamente não apresentaram conceitos científicos e nem comentários sobre a “história científica narrada”.
Nesse sentido, a análise das intervenções do professor evidencia a ausência de suporte de sua parte para auxiliar o aluno a entender a natureza de seus argumentos e do conhecimento científico.
Prof.: É complicado.
Entr.: É complicado, né? E é você acha que eles conseguiram compreender esse significado?
Prof.: Eu acho que eu deveria ter trabalhado mais com eles.
Entr.: Sei.
Prof.:Por isso que eu acho que eu pequei nesse assunto. Teve alguns assuntos que eu abri e não conseguia fechar.
Entr.: Quais por exemplo?
Prof.: Por exemplo a parte de alquimia. Eu abri um texto, conversei com eles, mas eu não consegui fechar qual a diferença de alquimia prá química, foi só depois quando eu entrei em reação química.
Entr.:Por que você teve essa dificuldade em fechar?
Prof.: Porque, por causa da discussão, eles empolgam e começam a falar, falar. E também foi uma inexperiência minha, porque a gente quase não vê isso em sala de aula.
Entr.: Como assim inexperiência sua?
Prof.: Que nem minha formação na UnB. Eu não fui preparado prá esse tipo de discussão com os alunos.
Apesar de tais dificuldades, ele considerou que conseguiu despertar nos alunos uma preocupação sobre o assunto, o que foi reconhecido pelos alunos entrevistados, os quais revelaram na entrevista final que a turma teve um grande interesse pelo debate e que eles sentiram a necessidade de apresentar argumentos mais consistentes.
AE3: Sei lá, professor, o caso do debate, o debate levou mesmo, que nem a AE1 falou, a gente a se questionar também ao ponto de querer você ter um pensamento de você querer conhecer mais do que a gente estava estudando. Você não poderia falar de uma coisa que você não conhecesse direito, nesse ponto foi um ponto bem interessante que levou a gente a estudar, querer saber mais sobre as ciências, querer saber mais sobre a magia, englobando ela dentro do seu caráter, as duas ciências assim, não é. Então, foi uma aula assim que, sei lá, puxou bastante o interesse dos alunos, entendeu?
Entr.: Ah, vocês acharam que os colegas ali estavam interessados no assunto?
AE3: Sim, estavam interessados no assunto realmente.
AE1: Eu acho também que rolou uma disputa, não é, e o pessoal queria, a turma diante de si, diante de cada grupo, eles queriam uma disputa um pouco. Talvez, eu falava “o meu grupo vai ganhar dessa vez”, entende? Então, ficou aquela disputa. “E aí, vai pergunta para ele, quero ver se ele sabe responder”. Então, eu acho que muita gente, não sei todos, eu não posso chegar ao pensamento de cada um, mas, enfim, o que eu vi foi que 99% da turma estava interessada e estava lá discutindo, e aí? Vamos...
Quando,
porém, pedimos na entrevista final para que os alunos explicassem
o que entenderam sobre o que é ciência, religião e
magia, as respostas foram evasivas e eles mais exemplificaram o que era
magia, ciência e religião do que conseguiram elaborar um conceito.
O que eles revelaram na entrevista foi o mesmo comportamento observado
no debate: um grande interesse em discutir a temática, apesar de
manifestarem uma nítida confusão entre a diferença
entre magia e religião e entre a relação entre ciência,
religião e magia.
A complexidade do assunto parece ter sido um fator que dificultou o desenrolar da aula pelo professor e, portanto, era de se esperar que os alunos manifestassem dificuldade em compreender a natureza epistemológica da ciência, da religião e da magia. Todavia, deve-se considerar que não só a complexidade do assunto foi um fator limitante, mas também a própria dificuldade do professor em conduzir os debates no sentido de discutir a natureza dos argumentos.
Os resultados de outras pesquisas fazem considerações no mesmo sentido de nossa suposição. NEWTON, DRIVER e OSBORNE (1999) sugerem, a partir da análise de seus dados, que o desenvolvimento de discussões em sala de aula depende de quatro fatores restritivos: um planejamento prévio, um espaço de tempo apropriado no currículo, um conhecimento básico de pré-requisitos e um estabelecimento claro de procedimentos da dinâmica de discussão do grupo. No caso aqui apresentado, o professor conseguiu encaixar no seu currículo um tempo para os debates, o que parece ter trazido resultados positivos para os alunos. Todavia, faltou um suporte para que ele conseguisse superar as demais dificuldades, relativas ao planejamento, condução do debate e suporte conceitual dos alunos.
KUHN (1993) constatou que é fundamental que os estudantes compreendam a relevância do pensamento científico e ressaltou que o ensino de ciências tem um papel importante em ensinar os alunos a pensar cientificamente. Segundo as suas análises, os alunos já aplicam no seu cotidiano uma estrutura argumentativa, mas a compreensão do pensamento científico não é um processo que é aprendido naturalmente, portanto a escola tem um papel fundamental em desenvolver uma prática argumentativa.
RUSSEL (1983), fazendo uma análise qualitativa de questões que o professor faz em sala de aula, em termos de argumentar para estabelecer razões para o conhecimento científico, constatou que as questões têm um papel significativo. Ele sugere que o uso de diferentes formas de questionar os alunos pode auxiliá-los no processo argumentativo.
GEDDIS (1991) também constatou a influência do contexto pedagógico em melhorar a argumentação. Em seu estudo ficou evidenciado, como no nosso, que os professores têm uma inexperiência em gerenciar as discussões em que os alunos apresentam diferentes pontos de vistas.
Confrontando esses resultados com os nossos dados, podemos considerar que a prática do professor deste estudo de caso possibilitou a iniciação dos estudantes em um processo de argumentação. Por outro lado, nos parece que devemos não só pedir aos alunos que apresentem argumentos, mas também que busquem fazer julgamentos sobre a natureza de seus argumentos. Nesse sentido, precisamos investigar mais sobre que tipos de intervenções pedagógicas podem auxiliar os alunos a melhorar a qualidade de sua argumentação.
Os estudos têm demonstrado que, tradicionalmente, o ensino de ciências tem dado pouca atenção para a argumentação e que poucos professores dão oportunidade para os seus alunos argumentarem em sala de aula (NEWTON, DRIVER e OSBORNE, 1999).
Neste
sentido, podemos considerar que alguma mudança poderá ter
início, se os professores, pelo menos, começarem a questionar
os seus alunos, fazendo intervenções para que os alunos expliquem
o que sabem, porque e como. Todavia, se desejamos que este processo vá
além da motivação e do reconhecimento da importância
da argumentação, é necessário aprofundar as
pesquisas para entender tal processo e para subsidiar o professor a fazer
intervenções pedagógicas que possam melhorar a qualidade
da argumentação dos alunos.
BAKHTIN, M. M. (1992). Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes.
DAGHER, Z. R. and BOUJAOUD, S. (1997). Scientific views and religious beliefs of college students: the case of biological evolution. Journal of Research in Science Teaching, v. 34, n. 5, p. 429-445.
DRIVER, R., LEACH, J. MILLAR, R. and SCOTT, P. (1996). Young people’s images of science. Buckingham and Philadelphia: Open University.
DRIVER, R., NEWTON, P., and OSBORNE, J. (2000). Establishing the norms of scientific argumentation in classrooms. Science Education, v. 84, n. 3, p. 287-312.
EDWARDS, D. and MERCER, N. M. (1987) Common Knowledge: The development of understanding in the classroom. London, Methuen.
GEDDIS, A. N. (1991). Improving the quality of science classroom discourse on controversial issues. Science Education, v. 75, n. 2, p. 169-183.
KORTLAND, K. (1996). An STS case study about students’ decision making on the waste issue. Science Education, v. 80, n. 6, p. 673-689.
KUHN, D. (1993). Science as argument: implications for teaching and learning scientific thinking. Science Education, v. 77, n. 3, p. 319-337.
LEDERMAN, N. G. (1992). Students’ and teachers’ conceptions of the nature of science: a review or the research. Journal of Research in Science Teaching, v. 29, n. 4, p. 331-359.
LOTMAN, Y. M. (1988). Text within a text. Soviet Psychology, v. 26, n. 3, p. 32-51.
MERCER, N. (1995). The guided construction of knowledge. Clevedon, Multilingual matters Ltd.
MÓL, G. de S. e SANTOS, W. L. P. dos (coords.) et al. Química na sociedade, Volume 1, módulo 1. Brasília, Editora UnB, 1998.
MORTIMER, E. F. (1998). Multivoicedness and univocality in classroom discourse: an example from theory of matter. International Journal of Science Education, v. 20, n. 1, p. 67-82.
MORTIMER, E. F. e SCOTT, P. H. (2000) Bringing new tools to analyse the teaching and learning of Science. In LEACH, J., MILLAR. R. and OSBORNE, J. (Eds.) Improving Science Education: The contribution of research. Buckingham and Philadelphia, Open University Press.
NEWTON, P., DRIVER, R. and OSBORNE, J. (1999). The place of argumentation in the pedagogy of school science. International Journal of Science Education, v. 21, n. 5, p. 553-576.
PATRONIS, T.; POTARI, D.; and SPILIOTOPOULOU, V. (1999). Students’ argumentation in decision-making on a socio-scientific issue: implications for teaching. International Journal of Science Education, v. 21, n. 7, p. 745-754.
RATCLIFFE, M. (1996). Adolescent decision-making, by individual and groups, about science-related societal issues. In: G. WELFORD, OSBORNE, J. and SCOTT (Eds.), Research in Science Education in Europe: current issues and themes. London, Falmer Press.
_____. (1997). Pupil decision-making about socio-scientific issues within the science curriculum. International Journal of Science Education, v. 19, n. 2, p. 167-182.
_____. (1998) Discussing socio-scientific issues in science lessons – pupils’ actions and the teacher’s role. School Science Review, v. 79, n. 288, p. 55-59.
ROTH, W.-M., and ALEXANDER, T. (1997). The interaction of students’ scientific and religious discourses: two case studies. International Journal of Science Education, v. 19, n. 2, p. 125-146.
RUSSEL, T. L. (1983). Analyzing arguments in science classroom discourse: can teachers’ questions distort scientific authority? Journal of Research in Science Teaching, v. 20, n. 1, p. 27-45.
SANTOS, W. L. P. dos; e MORTIMER, E. F. (2001) Tomada de decisão para ação social responsável no ensino de ciências. Revista Ciência & Educação, v. 7, n° 1.
_____. Uma análise de pressupostos teóricos da abordagem CTS no contexto da educação brasileira. Ensaio – pesquisa em educação em ciências, no prelo.
SANTOS, W. L. P. dos; e SCHNETZLER, R. P (1997). Educação em química: compromisso com a cidadania. Ijuí, Editora da UNIJUÍ.
SCOTT, P. H. (1998). Teacher talk and meaning making in science classrooms: a Vygotskian analysis and review. Studies in Science Education, v. 32, p. 45-80.
VYGOTSKY, L. S. (1991). Pensamento e linguagem. São Paulo, Martins Fontes, 1987.
_____. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores, 4 ed. São Paulo, Martins Fontes.
SOLOMON, J. (1998). About argument and discussion. School Science Review, v. 80, n. 291, p. 57-62.
WERTSCH, J. V. and TOMA, C. (1991). Discourse and learning in the classroom: a sociocultural approach. Presentation made at the University of Georgia Visiting Lecturer Series on Constructivism in Science Education.
WERTSCH, J. V. (1988). Vygotsky y la formación social de la mente. Barcelona, Ediciones Paidos.