ANÁLISE DO PROCESSO DE RE-ELABORAÇÃO DISCURSIVA DE UM TEXTO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA PARA UM TEXTO DIDÁTICO

Isabel Martins[1]

Mariana Cassab

Marcelo Borges Rocha[2]

Resumo

    Neste artigo um movimento de recontextualização discursiva no qual um texto de divulgação científica foi adaptado e incluído num livro didático de Biologia para o Ensino Médio. Discutimos mudanças na linguagem, vocabulário, estruturas genéricas, formas de argumentação, uso de recursos visuais e suas implicações e suas implicações em termos da visão de natureza da ciência nos dois textos. Nossos resultados apontam para a complexidade do processo de recontextualização discursiva de textos científicos para uso didático e reforçam a necessidade de um papel ativo para o professor enquanto leitor crítico destes materiais e mediador na suas incorporações em sala de aula.
 


Abstract

    This paper discusses aspects of the adaptation of a text from a popular science journal to a secondary school Biology textbook. Changes in features such as textual patterns, vocabulary, generic structure, forms of argumentation and use of visual resources are documented and analyzed in terms of their impact on the views of the nature of science embedded in each text. Our results point out to the complexity involved in the process of discursive re-contextualisation of science texts for pedagogic use and reinforce the need for an active role of the teacher as a critical reader of these materials and as a mediator of their use in the classroom.

O Problema: movimentos textuais em espaços discursivos

    Recomendações curriculares recentes incluem sugestões de estratégias didáticas que valorizam, durante o período de escolarização básica, o contato dos alunos com diferentes tipos de textos científicos que expressam uma variedade de formas de argumentação e pontos de vista.

"Além do livro didático, outras fontes oferecem textos informativos: enciclopédias, livros para-didáticos, artigos de jornais e revistas, folhetos de campanhas de saúde, de museus, textos da mídia informatizada, etc. É importante que o aluno possa ter acesso a uma diversidade de textos informativos, pois cada um deles tem estrutura e finalidades próprias" (Parâmetros Curriculares Nacionais – Ciências Naturais, 2000: 124)     Entre os benefícios gerados por este contato ampliado ressalta-se: acesso a uma maior diversidade, e até divergência de informações; o desenvolvimento de habilidades de leitura e; o domínio de conceitos, de formas de argumentação e de elementos da terminologia científica. Embasando esta visão está uma concepção na qual a leitura confere aos indivíduos a possibilidade de se envolver e se incorporar às práticas sociais que estas demandam (Soares 1999). Assim, passar a conhecer uma variedade de tipos de textos científicos, desde reportagens da mídia até originais de cientistas, é uma condição para tornar-se um participante da cultura científica (Cumming e Wyatt-Smith 2001) permitindo sua participação em diferentes comunidades discursivas.

    Pode-se dizer que o discurso científico engloba uma série de formações discursivas (o ensino de ciências na escola, a divulgação nos meios de comunicação, a disseminação de resultados de pesquisa na comunidade de pares), cada uma delas relacionadas a um conjunto particular de textos com estruturas genéricas distintas (livros didáticos, reportagens, artigos científicos). O que as recomendações curriculares sugerem é que a utilização didática de uma variedade destes textos se traduz em possibilidades ampliadas de experiências de aprendizagem para os alunos. Contudo, a apropriação didática destes textos não se dá de forma automática. Para efetivá-la é necessário um entendimento do funcionamento destes textos em cada contexto, das suas condições de produção e de seus efeitos sobre suas audiências, da natureza das re-elaborações discursivas envolvidas nas re-contextualizações dos mesmos, em particular da natureza das adaptações de textos científicos para sua utilização em contextos educacionais. Por esta razão, as recomendações curriculares colocam a necessidade de uma leitura crítica destes textos pelos professores no sentido de melhor explorar seu potencial didático, promover articulações entre seus conteúdos principais e conteúdos curriculares. Em outras palavras, fazer uso didático de materiais que não foram originalmente concebidos para este fim.

    Neste trabalho, investigamos um aspecto deste uso através de um exemplo no qual um texto de divulgação científica, originalmente publicado na revista Ciência Hoje, foi adaptado e incluído em um livro didático de Biologia para o Ensino Médio. Inicialmente discutimos as bases teóricas de investigações acerca da relação entre textos e discurso no contexto da educação científica, discutindo algumas possibilidades de análise. Apresentamos uma breve descrição do material analisado e discutimos aspectos relacionados ao uso da linguagem em cada uma dos textos, às formas de argumentação neles presentes, ao uso de recursos visuais e às visões da natureza da ciência. Destacamos também em nossas análises alguns exemplos de re-elaborações textuais resultantes da adaptação do texto original para o livro didático, relacionando-as com os aspectos acima.

Fundamentação Teórica

    Na Educação em Ciências, são muitos os exemplos de movimentos textuais por espaços educativos: professores utilizam vídeos em sala de aula; originais e adaptações de textos publicados em revistas de divulgação científica passam a integrar o texto do livro didático; alunos utilizam cada vez mais a Internet como fonte de informações em pesquisas escolares; artigos dirigidos à comunidade de pesquisadores, relatando resultados de pesquisa em ensino de ciências são discutidos em espaços de capacitação de professores na busca de suas implicações didáticas; organizações textuais e atividades típicas da sala de aula são incorporadas a exposições de museus de ciências.

    Estes exemplos se relacionam, mais amplamente, ao fato do discurso científico estar presente em diferentes contextos na sociedade, sendo extremamente pervasivo e influente, transcendendo fronteiras entre comunidades e formações discursivas específicas, e se adaptando e reformulando de modo a atender a novos propósitos e contextos. Esta característica, denominada de maleabilidade, é considerada por Martin e Veel como sendo inerente ao discurso científico (1998). Partindo de uma visão na qual consideram que a ciência sempre se desenvolveu em contextos específicos e de modo a atingir determinadas necessidades, estes autores reforçam uma idéia proposta por Halliday (1993) de que "sempre que surgem novos contextos para a atividade científica existe uma tendência de tomar emprestadas significações próprias de contextos já existentes, reconfigurando e reordenando-as de acordo com os princípios dos novos contextos" (Martin e Veel, 1998: 83). Este processo corresponde ao que Bernstein chamou "re-contextualização" e, ainda segundo Martin e Veel (1998), ocorre por três razões principais que se relacionam ao surgimento de: (i) novos campos de atividade científica; (ii) novas relações sociais entre discurso científico e seus usuários; (iii) novos modos de representação e de produção do conhecimento. Estas razões são discutidas abaixo.

    O surgimento de novos campos de atividade científica, ou a especialização de um campo já existente exigem que entidades científicas passem a integrar e compor novas redes de significação. Assim, conceitos e procedimentos de um campo têm suas relações hierárquicas alteradas, se transformam, se especializam, de forma a constituir um novo corpo de conhecimentos.

    Existe também um tipo de re-contextualização, típico dos ambientes escolares ou educacionais, que se faz necessário pela necessidade de tornar o discurso científico inteligível e significativo para comunidades de não-especialistas. Neste tipo de re-contextualização surgem novos papéis sociais (professor, aluno, especialista, jornalista, etc.), novas possibilidades de relações entre sujeitos e conhecimento científico (fruição, estudo, recepção de informação, etc.), contextos e ambientes de interação (salas de aula, bibliotecas, laboratórios, etc).

    Um terceiro tipo de re-contextualização acontece quando surgem novos modos de representação e de produção de conhecimento. O caráter multimodal do discurso científico (Lemke 1998, Kress e van Leeuwen 1996) é uma característica inerente ao discurso científico e que tomou proporções de vulto no contexto de recentes desenvolvimentos nas tecnologias informáticas, que confere um dinamismo e uma riqueza de possibilidades de construção de novas significações a partir das contribuições de diferentes modos semióticos.

    Neste estudo concentramo-nos nas implicações dos dois últimos tipos de re-contextualização para a Educação em Ciências. Isto nos leva, primeiramente a considerar a atividade e o conhecimento científicos são entendidos como resultados de construções sociais, situadas historicamente, influenciando e sofrendo a influência de outros discursos, adaptando-se e construindo-se de forma dinâmica. Ao pensarmos nas necessidades de comunicar idéias científicas a audiências de não-especialistas discutimos funções e papéis para instituições educativas, de caráter formal e não formal, ampliando possibilidades de inserção de sujeitos em comunidades discursivas e "empoderando-os" para a tomada de decisão informada, no nível pessoal ou coletivo. Em segundo lugar, consideramos como, construções e apropriações do discurso científico são facilitadas ou dificultadas pela integração de vários sistemas de representação ou modos semióticos.

A Investigação

Os textos analisados

    Escolhemos analisar o exemplo da adaptação de um texto que trata das relações entre o fogo e o cerrado, originalmente publicado em um número especial da revista Ciência Hoje, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que reúne artigos relacionados a ECO 92[3] para compor uma seção de leitura que conclui um capítulo sobre ecossistemas no livro Biologia de César & Sezar, volume 03, atualmente um dos principais textos didáticos para o Ensino Médio em termos de percentual de vendas e utilização nas escolas.

    O texto de divulgação, ou texto fonte, de autoria de um pesquisador da USP Leopoldo Magno Coutinho, é "O Cerrado e a Ecologia do Fogo" e contém aproximadamente 5.000 palavras distribuídas em oito páginas da revista. O texto está diagramado em três colunas numa página de 21 cm de largura por 29,5 cm de comprimento. Há figuras coloridas em todas as páginas, porém na maior parte destas predomina o texto escrito, que ocupa aproximadamente dois terços do espaço de página. Entre as 14 figuras constantes no texto de divulgação temos: um conjunto de fotografias de abertura na primeira página, uma imagem de fundo do texto complementar na última página, cinco fotografias ilustrativas de aspectos da fauna e da flora do cerrado, três gráficos, uma tabela e três esquemas. O texto descreve características fisionômicas da paisagem do cerrado, fala de questões relacionadas ao seu desmatamento e exploração, coloca a necessidade de sua conservação, destacando numa discussão sobre queimadas, naturais e intencionais, as relações entre o fogo e o ecossistema do cerrado e ressaltando, para tanto, a contribuição das pesquisas científicas.

    O texto didático, adaptado a partir do original da revista, é intitulado "O Fogo e os Cerrados no Brasil". Contém cerca de 1300 palavras, distribuídas em 2 colunas numa página de 15 cm de largura e 21 cm de comprimento, contando com três figuras coloridas: uma fotografia da paisagem do cerrado e dois esquemas. O texto apresenta informações acerca das relações entre fogo e cerrado, descreve os diferentes tipos de cerrado e suas vegetações características. No seu desenvolvimento, o texto discute as queimadas (intencionais) e seus efeitos no cerrado, concluindo pela necessidade de um maior número de pesquisas científicas que estabeleçam os efeitos do fogo neste ecossistema.

    Ambos os textos afirmam que são necessárias mais pesquisas para que seja possível compreender melhor como funciona o cerrado, mas, ao contrário do texto de divulgação, o texto didático não faz nenhuma menção a questões relativas à destruição deste ecossistema e à necessidade de sua conservação.

Análise

    Iniciamos nossas análises discutindo aspectos relacionados às transformações sofridas pelo texto fonte ao ser adaptado para o livro didático em termos de layout, recursos visuais, e linguagem.

O Layout e os Recursos Visuais

    Observamos que o texto adaptado (TD) preserva uma diagramação que se assemelha a de um texto jornalístico, disposto em colunas, que é diferente da diagramação do texto principal do livro didático no qual ele se insere, sugerindo uma diferenciação entre estes dois textos e seus modos de leitura. Observa-se também uma drástica diminuição do número de figuras (14 no texto original (TDC) e apenas 3 no TD). Esta redução é, no entanto, proporcional à redução do texto escrito, de forma que a relação texto imagem permanece praticamente a mesma. Percebe-se, não obstante, uma alta seletividade na escolha das imagens escolhidas para compor o texto didático, ressaltando-se que estas são, tal como o texto escrito, resultantes de adaptações das figuras originais. Na adaptação para o livro didático, em quatro casos há eliminação das figuras, mas as informações às quais elas se referem permanecem no texto (como, o gráfico que representa a variação de pluviosidade durante os meses no cerrado). Nos outros casos, a eliminação da figura é acompanhada da eliminação do conteúdo ao qual ela se refere, exemplo, o mapa que indica a distribuição do cerrado no território brasileiro. No texto de divulgação as figuras desempenham diferentes papéis, tais como: destacar aspectos do conteúdo a ser discutido, motivar o interesse do leitor, acrescentar informação e detalhe, exemplificar, explicar através da visualização e tornar o texto esteticamente mais agradável à leitura. Na adaptação para o TD foram suprimidos sete fotos, três gráficos, um esquema e uma tabela. A única foto que encontramos no texto didático não estava presente no texto de divulgação. Ela mostra uma paisagem do cerrado e sua legenda chama atenção para a tortuosidade dos galhos das árvores encontradas neste ecossistema. No texto original, encontra-se uma foto detalhando um galho que exibe fortemente esta característica. Os gráficos suprimidos mostram resultados de pesquisas investigando diferentes efeitos do fogo no ecossistema, por exemplo, como variação do teor de nutrientes minerais no solo, após queimada em função da profundidade. Os esquemas omitidos tratam da distribuição dos cerrados no Brasil. O esquema mostrado no texto didático foi redesenhado a partir do original e descreve aspectos da reciclagem dos nutrientes após as queimadas. O outro esquema descreve as diferentes fisionomias da formação de cerrado em função da altura da vegetação.
 

A Linguagem dos Textos e formas de argumentação presentes nestes

    Os textos analisados possuem características próprias dos gêneros aos quais se relacionam. No entanto, ambos guardam relações com o texto científico. O texto científico se caracteriza por determinadas estruturas lingüísticas, gramaticais e léxicas, que colocam dificuldades para os não especialistas, mas que permitem organizações especiais de conteúdos e ajudam a estabelecer relações entre conceitos que resultam em possibilidades de desenvolvimento do conhecimento científico (Halliday 1993).

    Em nossas análises utilizamos as categorias propostas por Halliday (1993), de forma a caracterizar a linguagem utilizada em cada um dos textos e perceber possíveis aproximações e distanciamentos existentes entre estes.As características mais freqüentemente observadas, tanto no texto de divulgação científica quanto no texto didático, foram: uma alta densidade léxica, ou seja, uma grande concentração de termos léxicos numa mesma sentença; o uso de expressões especiais, características de um dado domínio de conhecimento e; descontinuidades semânticas, isto é, quando ficam implícitas ou ausentes referências a mecanismos, relações ou fatos necessários para se chegar a conclusões. O texto de divulgação apresenta uma presença mais marcante das três características supracitadas, o que sugere uma maior aproximação com o texto científico. Segue o exemplo de um trecho do texto de divulgação com alta densidade léxica: "temperaturas mínimas absolutas positivas, mas inferiores a 10o C, costumam acelerar o processo de envelhecimento". No caso do texto didático, mesmo nos trechos nos quais observa-se uma alta densidade léxica, esta não é comparável aos trechos correspondentes do texto de divulgação. Como o texto de divulgação foi drasticamente reduzido, a densidade léxica diminuiu mais por eliminação de informação do que por acréscimo de explicações para os termos léxicos que poderiam estar dificultando a leitura por parte de não-especialistas. O uso de expressões especiais e a presença de descontinuidades semântica não são tão freqüentes no texto didático. Neste último caso observou-se a eliminação total de blocos de informação ou substituição lexical. Outro paralelo importante é que em nenhum dos dois textos, foram localizados exemplos de definições encadeadas, taxionomias técnicas, metáforas gramaticais ou ambigüidade sintática.

    Outra dimensão importante de continuidade entre os dois textos é o fato de que ambos se valem de metáforas para comunicar determinadas idéias, auxiliando o entendimento de novos conceitos e de idéias abstratas. No texto didático destacamos alguns exemplos da introdução de metáforas. Em um deles, o autor ao se referir ao papel das saúvas após uma queimada lança mão da idéia de que estas adubam suas plantações de fungos. A metáfora foi utilizada para explicar, a partir do que se presume que o leitor conheça sobre plantações e sobre o que seja adubar, uma das tarefas da formiga saúva que recolhe restos de folhas contendo fungos, servindo estes de alimento para elas. Em outro caso, ao descrever o que ocorre com a vegetação logo após o fogo, o autor usou a expressão "o cerrado se enfeita", ajudando o leitor a visualizar e a sensibilizar-se com a paisagem florida dos cerrados após a queimada. Um exemplo de metáfora que aparece em ambos os textos surge quando se diz que os resíduos pelas formigas são levados para as panelas de lixo, um termo técnico, mas cuja raiz é inegavelmente metafórica. Um fator interessante é que nos três casos, o autor do texto didático colocou aspas nos termos (adubar, lixo e enfeita), sinalizando através destas marcas textuais uma leitura metafórica destas expressões.

    No que diz respeito à linguagem empregada, tanto o texto de divulgação quanto o texto didático estão organizados a partir de pressupostos acerca do público-alvo, seus interesses, necessidades e competências enquanto leitores. Assim vemos o texto de divulgação lançar mão de recursos narrativos, recriando cenários, evocando possíveis experiências dos leitores, apresentando um argumento de forma estendida, construindo e tratando de forma complexa as questões envolvendo relações entre o fogo e a sobrevivência do cerrado, argumentando e dialogando com opiniões já formadas, utilizando uma linguagem mais elaborada e incluindo termos técnicos e científicos. Por exemplo, no texto de divulgação, as características fisionômicas da formação de cerrado e suas alterações em face às diferentes estações são descritas em termos de entidades científicas, como temperatura, estresse hídrico e ecoclínio. Já no texto didático a maior parte destas referências é eliminada e a descrição é feita numa linguagem mais próxima à linguagem do cotidiano. A referência a alguns conceitos importantes, porém difíceis como, por exemplo, ecoclínio, é feita visualmente através de um esquema que apresenta as diferentes fisionomias da formação de cerrado em função da altura da vegetação.

    O texto didático é menos argumentativo e mais descritivo, contendo explicações objetivas, apresentando de início a questões específicas da relação entre o fogo e a sobrevivência do cerrado e respondendo as perguntas que coloca. O texto de divulgação é mais problematizador, abrindo possibilidades de discussão, enquanto o texto didático parece estar comprometido com transmitir informações Neste, as informações adquirem um caráter indiscutível, não se caracterizando como objeto de questionamento.

    Outro exemplo de diferença entre os dois textos é a utilização de estruturas apassivadoras, com o auxílio do pronome se ("calculou-se, acredita-se"), no texto didático e o predomínio do uso da primeira pessoa do plural ("calculamos, encontramos, sabemos"), no texto de divulgação. Enquanto o primeiro tipo de construção, impessoal, esconde os agentes das ações relacionadas à obtenção de determinados conhecimentos, o uso da primeira pessoa do plural, além de conferir um caráter de parceria entre o leitor e a autor, permite mostrar a ciência como um conhecimento construído, elaborado pelo homem. Esta observação nos remete a considerações acerca de como os textos tratam aspectos da natureza da ciência, discutidos na próxima seção.

Natureza da Ciência

    O texto didático e o texto de divulgação trazem informações semelhantes sobre a relação entre o fogo e a ecologia do cerrado, porém se referindo ao conhecimento que as fundamenta de forma diferente. O texto de divulgação apresenta uma descrição dos efeitos do fogo na vegetação do cerrado, sempre se remetendo a estudos científicos, e declara que as informações a respeito do efeito do fogo sob a fauna são incipientes e que são necessários mais estudos neste campo visto que resultados de pesquisas são essenciais para ações práticas que garantam a sobrevivência deste ecossistema. Já o texto didático, diferentemente do texto científico, omite referências a trabalhos científicos, não há citações de nomes de instituições e pesquisadores nem referências às metodologias de estudos que envolvem queimadas experimentais. Isto parece reforçar a idéia de Salém e Kawamura (1996) de que, em geral, os textos didáticos tendem a transmitir uma visão de ciência objetiva e neutra, não apresentando explicações a respeito de aspectos relacionados à natureza da ciência.

    Um outro ponto de similaridade entre os dois textos é o breve paralelo entre o saber científico e o saber popular dos habitantes do cerrado, considerado por ambos os textos como inferior. Além de pontuar divergências quanto ao status do conhecimento, científico e popular, os textos também distinguem algumas informações científicas do ponto de vista epistemológico. Um movimento interessante, ilustrado no exemplo abaixo, é o fato de que enquanto no texto de divulgação algumas informações são apresentadas como hipóteses ou possibilidades, no texto didático estas mesmas informações são apresentadas como fatos já consolidados.
 
 

Texto de Divulgação
Texto Didático
"Segundo o biólogo Bráulio Ferreira de Souza Dias, coordenador do projeto, também será testada a idéia de que o fogo de quatro em quatro anos evitaria o acúmulo excessivo da biomassa combustível (folhas e gravetos secos depositados no solo), que facilita as queimadas acidentais, e possibilitaria o crescimento aéreo de certas plantas". "Outra vantagem das queimadas controladas seria evitar o acúmulo de material combustível no solo, como folhas e gravetos secos".

Re-elaborações Discursivas

    Na análise da natureza das re-elaborações observadas nos textos buscamos inspiração no trabalho de Gomes (1995) que investiga as elaborações de materiais de divulgação científica publicados em jornais a partir de entrevistas com pesquisadores. Ela irá destacar as seguintes operações: reordenações, eliminações, substituições e acréscimos, as quais utilizaremos ao analisar blocos de informação e léxicos.

    De forma geral, pode-se dizer que a adaptação do texto preservou o sentido do original na medida em que a ordem das informações permaneceu praticamente inalterada. No entanto, há uma considerável eliminação de informações que resultou numa grande redução do texto e também alguns eventos de reordenação de informação. Esta se justifica na medida que possibilita o autor construir uma linha de argumentação que facilite o leitor a melhor compreender o objetivo do texto. É importante ressaltar que a leitura de um texto de divulgação científica envolve competências de leitura diferentes daquelas envolvidas na leitura de um texto didático. No caso analisado, o texto de divulgação exige que o leitor seja capaz de manter uma linha de raciocínio, dando sentido ao conjunto de informações que são apresentadas de forma estendida. Isto já não se aplica a leitura do texto didático que, através de reordenações de informação, cria uma seqüência onde perguntas colocadas no início do texto servem como âncora e fio condutor para a leitura. Por exemplo, o texto de divulgação começa relatando os tipos de queimadas, o efeito da freqüência destas nas diferentes formações de cerrado, a questão da ciclagem de nutrientes no ambiente relacionada ao fogo e também seus efeitos para a fauna e flora deste ambiente. Já no texto didático, o autor inicia o texto com a apresentação de perguntas dirigidas ao leitor que irão organizar sua linha de argumentação, criando assim uma motivação para leitura. A organização das informações que se seguem buscam responder estas perguntas iniciais, assim, ele relata os tipos de queimada e a questão da ciclagem dos nutrientes de maneira muito mais reduzida e, então, discute o efeito da freqüência das queimadas no ambiente, destacando apenas as suas vantagens.

    Examinando os dois textos, observamos também oito casos de substituição lexical. A substituição de termos científicos ou de vocabulário mais elaborado ou específico por termos mais próximos da linguagem do cotidiano, talvez expresse a tentativa de aumentar a acessibilidade do texto para leitores não especialistas.
 

Texto de Divulgação
Texto Didático
"... pelas plantas predominantes no estrato herbáceo que possuem sistemas radiculares mais superficiais." " ... apenas pelas plantas de raízes mais superficiais..."
"... os insetos polinívoros e nectarívoros se beneficiam da resposta floral das plantas." "Assim, insetos que se alimentam de néctar e de pólen se beneficiam na época da floração".

 

    Possivelmente também relacionada a uma tentativa de tornar a informação mais compreensível registra-se uma ocorrência de acréscimo de informação no texto didático.
 

Texto de Divulgação
Texto Didático
"As saúvas parecem exercer um papel antagônico ao do fogo". "No entanto, as formigas saúvas parecem ter, quanto à devolução dos minerais, um papel diferente do fogo".

Considerações finais

    No processo de adaptação do texto de divulgação para o uso didático podemos notar uma redução significativa de informações que além de eliminar conteúdo também altera o próprio caráter do texto. Por exemplo, ao serem eliminadas informações referentes a pesquisadores e procedimentos de investigação, há uma mudança na visão da natureza da ciência, que é apresentada no texto didático como uma atividade neutra, objetiva e que busca a verdade. Outras características marcantes no processo de re-elaboração do texto de divulgação são os eventos de substituição lexical e a menor densidade léxica do texto didático. Se por um lado elas permitem tornar a leitura do texto mais acessível a um público de não especialistas, por outro nos cabe perguntar em que medida estas operações transformam padrões lingüisticos talvez fundamentais que caracterizam o pensamento e atividade científica.

    Em relação às imagens presentes no texto didático, constatamos que além de haver uma redução significativa em seu número, há uma perda quanto à diversidade das funções que uma imagem pode desempenhar em um texto. Prova disto, observa-se que funções como acrescentar informação e detalhe, exemplificar e explicar através da visualização deram lugar no texto didático apenas a um função ilustrativa.

    Nossas conclusões apontam para a complexidade do processo de re-elaboração dos textos. Todavia, a simples utilização de textos informativos de outras áreas do conhecimento em contextos educacionais, mesmo que re-elaborados, não garante necessariamente que o aluno tenha acesso a conhecimentos científicos atuais ou que desenvolva um vocabulário mais estendido como também diferentes formas de argumentação. A re-elaboração, apesar de ser indispensável, não redime o professor de desenvolver a leitura crítica que sugere os parâmetros curriculares e de promover e estabelecer mediações sociais e semióticas na sala de aula.
 

Bibliografia

GOMES, E. (1995). Dos laboratórios aos jornais: Um estudo sobre o jornalismo científico. Dissertação de mestrado do Programa de Pós-graduação em Letras e Lingüística.

KRESS, G. & VAN LEEUWEN, T. (1996). Reading images: The grammar of visual design. London: Routledge.

LEMKE, J. (1998). Multiplying meanings: visual and verbal semiotic in scientific text. In: Martin, J. & Vell, R. (eds.) Reading Science. Lendon: Routledge.

MARTIN, J. & VEEL, R. (eds.). (1998). Reading Science. London: Routledge.

HALLIDAY, M. & MARTIN, J. (1993). Writing Science. London: The Falmer Press.

BRASIL, SECRETARIA DE EDUCAÇAO FUNDAMENTAL. (2000). Parâmetros Curriculares Nacionais: Terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental. Brasília: MEC/SEF.

SALÉM, S. & Kaeamura, M. (1996). O texto de divulgação e o texto didático; conhecimentos diferentes?. Anais do V Encontro de Pesquisadores em Ensino de Física. São Paulo: sociedade Brasileira de Física.

SOARES, M. B. (1999). Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Ed. Autêntica.

CUMMING, J. & WYATT-SMITH, C. (orgs). (2001). Literacy and the Curriculum: Success in Senior Secondary Schooling. Austrália: ACER Press.

[1] Apoio parcial CNPq.
[2] Apoio CNPq.
[3] A ECO-92 foi um encontro internacional realizado em julho de 1992 na cidade do Rio de Janeiro, em que se reuniram pesquisadores, políticos, educadores para discutir a questão ambiental num nível mundial.