ANALISANDO AS RELAÇÕES ENTRE EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E EDUCAÇÃO RELIGIOSA: I. PROFESSORES DE CIÊNCIAS PODEM EVITAR O FISICALISMO?

Charbel Niño El-Hani[1]

Cláudia Sepúlveda[2]

Resumo

    Neste artigo, nós examinamos os argumentos de Settle quanto às relações entre fisicalismo e ensino de ciências, procurando demonstrar que (i) eles não se aplicam a toda e qualquer forma de fisicalismo, mas apenas a uma forma específica desta doutrina, o fisicalismo redutivo ou reducionismo; (ii) não há meios de professores de ciências evitarem o fisicalismo, na medida em que ele é uma premissa metafísica dos discursos científicos, pelo menos desde meados do século XIX. Em vista disso, nós discutimos como um professor pode ensinar ciências sem abandonar esta premissa metafísica e, ainda assim, ter na devida conta o respeito às visões de mundo dos alunos e professores não-fisicalistas.

Abstract

    In this paper, we examine Settle’s arguments concerning the relations between physicalism and science teaching. We try to show that (i) these arguments do not apply to each and every form of physicalism, but only to a specific version of this doctrine, redutive physicalism or reductionism; (ii) science teachers cannot avoid physicalism, as this is a metaphysical premise of the scientific discourses, at least since the middle of the nineteenth century. Thus, we consider how a teacher can teach science without giving up this metaphysical premise, while taking in due account the respect for the worldviews of non-physicalist students and teachers.

Fisicalismo e ensino de ciências: a crítica de Settle

    No começo da década de1990, Settle publicou um artigo intitulado ‘How to avoid implying physicalism is true: A problem for teachers of science’, no qual discutia (i) a dificuldade de ensinar conteúdos de ciências sem que esteja implicada a idéia de que o fisicalismo é verdadeiro, e (ii) maneiras de evitar esta promoção implícita da visão fisicalista nas aulas de ciências, indesejável para aqueles que, como ele próprio, não se consideram fisicalistas. Este artigo propicia um bom ponto de partida para uma discussão das relações entre educação científica e educação religiosa.

    Primeiro, é preciso definir com clareza o que significa ‘fisicalismo’. Alguns autores (e.g., Mayr 1982; Blitz 1992; Mahner & Bunge 1996) utilizam o termo ‘fisicalismo’ como sinônimo de ‘reducionismo’. No entanto, este termo pode ter outros significados. Na filosofia da mente contemporânea, por exemplo, ele tem sido usado para indicar apenas uma crença na universalidade da física. Neste campo, o termo é freqüentemente acompanhado da qualificação ‘ontológico’ (p. ex., Kim 1993; Kim 1996; Boyd et al. 1991:779). Utilizaremos aqui o termo ‘fisicalismo’ da maneira usual na filosofia da mente, podendo ser definido da seguinte maneira:

[Fisicalismo] Doutrina ontológica afirmando que todas as coisas que existem no mundo são partículas elementares reconhecidas pela física atual ou agregados mereológicos, ou, ainda, interações de partículas elementares.     O fisicalismo, entendido desta maneira, é a base de uma visão de mundo que pode ser chamada de ‘monismo materialista’, sustentando que há apenas um tipo de constituinte básico das coisas no mundo, a matéria. ‘Fisicalismo’ e ‘materialismo’ são, assim, utilizados como sinônimos neste trabalho. O fisicalismo ontológico confere ao físico um certo tipo de prioridade: a diversidade das coisas deve resultar de diferentes arranjos da mesma matéria básica. Outras formas de monismo propõem constituintes básicos diferentes, como o espírito, no monismo idealista, e algum material neutro, que não é nem matéria nem espírito, no monismo neutro. As visões monistas se opõem ao dualismo, que, em sua forma mais usual, o dualismo mente-corpo, sustenta a existência de dois domínios de particulares (substâncias) que não se superpõem, cada um com suas propriedades e leis próprias, a matéria e a mente (ou espírito, ou ainda, alma). Nesses termos, o mundo consistiria de dois modos de existência metafisicamente independentes, ainda que interconectados (Kim 1993: 336; Kim 1996:211). Uma teoria física completa dos fenômenos físicos não seria possível, uma vez que estes não poderiam ser explicados apenas por meio de leis e antecedentes físicos, sendo necessário invocar agentes e leis causais não-físicas. O dualismo é parte da filosofia do senso comum, ao menos no mundo Ocidental, e da maioria das religiões. Ele é a forma mais simples, mas não a única, de pluralismo ontológico.

    É preciso inquirir, então, em que sentido Settle utiliza o termo ‘fisicalismo’. Ele afirma que o ‘fisicalismo’ ou ‘materialismo’ consiste num conjunto de doutrinas, sendo a primeira:

(i) Apenas qualidades primárias são qualidades reais dos corpos físicos.     O que ele tem em vista é a distinção entre ‘físico’ e ‘não-físico’, tomando como base o contraste entre o mundo construído, desde os tempos de Galileu, pela teoria física e o mundo da experiência de cada pessoa. O mundo da física clássica não apresenta qualidades familiares à nossa experiência, como cor, som, cheiro, gosto etc., mas apenas as qualidades que Locke chamava de ‘primárias’, como número, extensão no espaço, movimento e solidez. Enquanto as qualidades primárias pertenceriam, de acordo com Locke, às coisas no mundo exterior, as demais qualidades, denominadas ‘secundárias’, não pertenceriam realmente aos corpos, sendo apenas o resultado de seu ‘poder’ de produzir efeitos nos seres humanos (Joad 1967:31-32). Settle argumenta que, para os fisicalistas, as qualidades secundárias seriam idéias na mente, e não propriedades das coisas reais, enquanto, na visão do senso comum, elas seriam reais. A ciência reforçaria, então, uma visão fisicalista, ao propor que, na construção de uma história causal acerca de algum fenômeno, não se deve recorrer a qualidades secundárias, ou, como afirma Settle, "a estória será contada em termos fornecidos pelas teorias da física e da química" (Settle 1991:227).

    A segunda doutrina associada por Settle ao fisicalismo é a seguinte:

        (ii) O espaço e o tempo reais são o espaço-tempo da teoria física.

    De acordo com esta doutrina, nem mesmo o espaço e o tempo da experiência cotidiana poderiam ser considerados reais. Settle complementa esta proposição com uma referência explícita à teoria geral da relatividade de Einstein, por ser esta a teoria do espaço-tempo à qual se dá preferência no discurso científico contemporâneo. Ele observa, contudo, que há teorias da relatividade, como a de Whitehead, que são fundamentalmente diferentes daquela de Einstein, enfatizando que "o ponto de vista de Einstein é fisicalista; o de Whitehead, não" (Settle 1991:227).

    Settle discute, então, três doutrinas fisicalistas sobre a causalidade. Primeiro, a "doutrina da exclusividade da causação ascendente" (Settle 1991:228):

        (iii) O comportamento de um todo é um efeito do comportamento de suas partes.

    Ele está referindo-se à tendência dos fisicalistas de não admitirem "a espontaneidade em qualquer coisa a não ser no nível mais inferior de organização da matéria. Isto tem sido tradicional na física e na química. Se qualquer coisa parece espontânea, analise-a para mostrar como a atividade das partes é o que realmente causa a aparente espontaneidade do todo" (Settle 1991:228). Não é claro o que ele quer dizer com o termo ‘espontaneidade’ e seus derivativos, visto que não os define ou explica em momento algum. Observando que as leis mais fundamentais em ciências como a física, a química e a biologia são estatísticas, ele argumenta que, como "nossas melhores leis sempre subdeterminam o resultado de qualquer coisa", segue que "as leis do comportamento das partes sempre subdeterminarão o comportamento dos todos". Em seguida, contrapõe ao desejo dos fisicalistas de eliminar a lacuna entre os comportamentos das partes e do todo por meio da redução à crença de que a ‘espontaneidade’ do todo seria capaz de preenchê-la (Settle 1991:229).

    A quarta doutrina discutida por Settle é a seguinte:

(iv) As leis do comportamento das totalidades físicas em qualquer nível são redutíveis, em princípio, às leis do comportamento de suas partes.     A quinta doutrina, por sua vez, estabeleceria que tipo de coisa pode ser uma causa:

        (v) Apenas objetos físicos podem ser efetivos em termos causais.

    De acordo com Settle (1991:229), o que está em questão, nesse caso, é "se as vidas interiores das coisas podem ser efetivas em termos causais ou, de modo mais geral, se as experiências subjetivas são parte da estória causal do universo". Em sua visão, é difícil entender como uma experiência subjetiva poderia ser causada por algo físico, tendo-se em vista que as qualidades secundárias, que constituem grande parte do mundo de nossas subjetividades, não são consideradas reais pelos fisicalistas. Em suma, ele aponta dificuldades do fisicalismo na explicação dos qualia (Flanagan 1992; Kim 1996, 1998), sendo o problema colocado num quadro ontológico no qual se admite somente um modo causal, a causa eficiente, restrita ao domínio dos objetos físicos.

    A sexta doutrina sintetiza, na visão de Settle, o que é o fisicalismo:

(vi) Apenas coisas físicas, portadoras de qualidades primárias, existem: corpos materiais e campos físicos.     Para ele, "o mundo físico descrito pela nossa melhor ciência não é o mundo real, mas um modelo do mundo real", que não se mostra um modelo ruim, quando se considera sua adequação ao mundo, mas "é um modelo ruim [...] no que deixa de fora. Ele deixa de fora tudo que não é físico" (Settle 1991:230).

    Ao examinar-se o conjunto de doutrinas atribuído por Settle aos fisicalistas, um problema importante pode ser detectado: A visão que ele descreve não corresponde ao fisicalismo no sentido geral atribuído por ele próprio ao termo no começo de sua argumentação (quando o trata como sinônimo de ‘materialismo’), mas a uma variedade específica de fisicalismo, de natureza reducionista. Ou seja, ele inicia sua argumentação empregando o termo ‘fisicalismo’ no sentido que é corrente na filosofia da mente, mas passa a utilizá-lo, no decorrer do argumento, em outro sentido, tomando-o como sinônimo de ‘reducionismo’. Este tipo de confusão é bastante comum e tem prejudicado significativamente os debates sobre os níveis de explicação na ciência. Trout (1991:390), por exemplo, comenta que "se tornou [...] lugar-comum entre filósofos e cientistas a defesa de uma versão bastante forte de reducionismo com base em evidência a favor apenas do fisicalismo". Hellman e Thompson (1975:551-552) afirmam: "recentemente, tem havido uma consciência crescente [...] de que o reducionismo é uma tese excessivamente forte. Juntamente com isso, veio o reconhecimento de que o reducionismo deve ser distinguido de uma tese puramente ontológica concernente aos tipos de entidades dos quais o mundo é constituído. Essa separação é importante: mesmo que o reducionismo físico não tenha fundamento, o que pode ser chamado de ‘emergência’ de fenômenos de nível superior é admitido sem afastar-se da ontologia física". Fodor, de maneira similar, comenta: "Eu penso que muitos filósofos aceitam o reducionismo principalmente porque desejam endossar a generalidade da física em relação às ciências especiais: a grosso modo, a visão de que todos os eventos que estão sujeitos às leis de qualquer ciência são eventos físicos e, portanto, estão sujeitos às leis da física. Para tais filósofos, dizer que a física é a ciência básica e dizer que teorias nas ciências especiais devem ser reduzidas a teorias físicas parecem ser duas maneiras de dizer a mesma coisa, de modo que a última doutrina se tornou uma explicação típica da primeira" (Fodor [1974]1991:429). Tendo-se em vista que os reducionistas pretendem, tipicamente, defender uma posição muito mais forte do que a crença na universalidade da física, é conveniente manter clara a distinção entre ‘fisicalismo’ (ou ‘materialismo’) e ‘reducionismo’. A disponibilidade de definições claras para esses termos pode evitar dificuldades nos debates a seu respeito (Levine et al. 1987; El-Hani & Pereira 1999; El-Hani 2000), algumas das quais são encontradas no artigo de Settle.

    Em momento algum, Settle considera a possibilidade de uma variedade não-redutiva de fisicalismo. Esta omissão resulta numa polarização entre fisicalismo (redutivo) e antifisicalismo, de modo que um professor que não estivesse disposto a aceitar a controversa redutibilidade de todas as descrições e explicações do mundo aos termos da física e da química não teria outra opção senão romper com o fisicalismo ontológico e, assim, com o monismo materialista. O fisicalismo não-redutivo propicia uma via média entre fisicalismo redutivo e antifisicalismo que não é examinada por Settle, mas pode mostrar-se convincente para professores de ciências que não estão inclinados a aceitar o reducionismo (El-Hani 2000). Para demonstrar este ponto, examinaremos as doutrinas fisicalistas apresentadas por Settle à luz do fisicalismo não-redutivo. É preciso, no entanto, definir mais precisamente o que se entende neste trabalho por fisicalismo ‘redutivo’ e ‘não-redutivo’ (ver El-Hani 2000). Um fisicalista redutivo argumenta que o objetivo da investigação científica é reduzir todas as explicações a níveis de análise cada vez mais microscópicos, de modo que, em última análise, apenas explicações formuladas nos termos da física seriam admitidas na ciência. Não se trata apenas de propor que micro-explicações devam ser adicionadas às macro-explicações, mas que seria desejável, em princípio, substituir estas últimas pelas primeiras (Levine et al. 1987:75). É este tipo de visão que Settle está atribuindo a todo fisicalista. No entanto, há cientistas e filósofos comprometidos com uma visão fisicalista ou materialista que não consideram defensável uma posição tão radical quanto o fisicalismo redutivo. Estes usualmente se intitulam ‘fisicalistas não-redutivos’, sustentando que o compromisso mínimo de uma posição fisicalista se limita à crença na universalidade da física, não sendo necessário comprometer-se com a idéia mais forte de que todas as explicações devam ser reduzidas, de modo completo, aos termos das teorias físicas mais fundamentais. A defesa desta segunda posição como uma conseqüência lógica da primeira corresponderia a uma confusão entre uma questão ontológica, concernente à unidade básica das coisas em sua natureza material, e uma questão epistemológica, a respeito do nível apropriado para a explicação de um dado fenômeno. Uma tese ontológica sobre a constituição das coisas não seria suficiente para sustentar uma tese epistemológica sobre nossas teorias acerca dessas mesmas coisas. Mesmo que todas as coisas encontradas no mundo, de moléculas a organismos, de mentes a sociedades, não sejam mais do que tipos especiais de sistemas físicos, isso não significa que, em termos epistemológicos, elas devam ser compreendidas apenas nos termos da física.

    Um aspecto importante do debate contemporâneo entre reducionistas e seus críticos que escapa à atenção de Settle é o de que o fisicalismo ontológico não é geralmente colocado em questão. Ele é o ponto de partida do debate, e não uma conclusão a ser estabelecida, com a questão central colocando-se em termos da maneira como propriedades em níveis adjacentes se relacionam umas com as outras. Ambos os tipos de fisicalistas (reducionistas e não-reducionistas) concordam quanto à crença na universalidade da física, mas discordam quanto à redutibilidade de teorias, propriedades, estados, eventos etc. descritos em sistemas complexos como organismos, mentes e sociedades a teorias, propriedades, estados, eventos físico-químicos.

Analisando a crítica de Settle do ponto de vista do fisicalismo não-redutivo

    A questão a ser examinada, então, é a de quais doutrinas, entre aquelas atribuídas por Settle a um ‘fisicalista’, não seriam aceitas por um ‘fisicalista não-redutivo’, conforme definido acima. Considerando-se a primeira doutrina, a identificação das qualidades ‘reais’ de um corpo depende, é claro, de uma visão prévia sobre o que significa dizer que uma qualidade seja ‘real’. A distinção entre qualidades primárias e secundárias na física clássica é tributária de uma visão fortemente realista, na qual se supõe que algumas qualidades não dependem de modo algum da mente e, portanto, são reais, enquanto outras, que variam na dependência do observador, nada mais são que idéias na mente, e não qualidades reais dos corpos materiais. Há, no entanto, variedades mais moderadas de realismo, como aquela defendida por Dennett (1991. Ver tb. El-Hani 2000, 2001), nas quais itens mentais, como crenças, idéias, intenções etc., são consideradas ‘reais’ quando propiciam uma maneira mais eficiente de transmitir informação acerca do estado cerebral de uma pessoa do que uma descrição da localização, do conjunto de conexões e do estado de ativação de cada neurônio que é parte dos mapas neuronais que realizam aquela categoria intencional. Do ponto de vista deste realismo mais moderado, tanto as qualidades primárias como as secundárias, conforme explicadas no contexto da física clássica, seriam consideradas reais. É possível conceber-se, assim, uma posição fisicalista não-redutiva que não esteja comprometida com a primeira doutrina apontada por Settle. Uma das características do fisicalismo não-redutivo é, exatamente, o compromisso com a realidade das propriedades de nível superior (El-Hani & Pereira 2000; El-Hani 2000; El-Hani & Emmeche 2000; El-Hani 2001), sendo este o principal motivo pelo qual um fisicalista não-redutivo, sem abandonar o fisicalismo como premissa metafísica, não está inclinado a concordar com a visão de que as histórias causais sobre os fenômenos devem ser contadas apenas nos termos das teorias físicas e químicas.

    A segunda doutrina apresentada por Settle, por sua vez, se aplica ao fisicalismo tanto em suas versões redutivas como não-redutivas. É provável que muitos fisicalistas não-redutivos não se sintam desconfortáveis com a idéia de que o espaço e o tempo devam ser entendidos de acordo com a teoria da relatividade geral de Einstein. O recurso de Settle ao espaço e ao tempo da experiência cotidiana não parece fornecer um parâmetro adequado para avaliar-se a adequação do espaço-tempo, conforme definido por Einstein. Em que sentido o espaço e o tempo absolutos das percepções cotidianas podem ser considerados ‘reais’? Na medida em que a teoria da relatividade de Einstein demonstre que o espaço e o tempo cotidianos não são reais, isso deve ser considerado um problema para a teoria? Por que deveríamos apegar-nos de tal maneira ao que se afigura ‘real’ para o senso comum, se a ciência se caracteriza, exatamente, por seu ‘senso incomum’ (Cromer 1993) e por sua ‘natureza não-natural’ (Wolpert 1992)? Como Wolpert (1992:11) comenta, "se algo se conforma ao senso comum, quase certamente não é ciência. [...] a maneira como o universo funciona não é a maneira como o senso comum funciona".

    A terceira doutrina mostra claramente que Settle não tem na devida conta a possibilidade do fisicalismo não-redutivo. A idéia de causação descendente é um dos compromissos fundamentais dessa posição filosófica. Desse modo, a doutrina da exclusividade da causação ascendente não é característica de toda e qualquer forma de fisicalismo. Muitos críticos do fisicalismo redutivo (e.g., Campbell 1974; Salthe 1985; Emmeche et al. 1997, 2000; El-Hani 2000; El-Hani & Pereira 1999, 2000; Andersen et al. 2000; El-Hani & Emmeche 2000; El-Hani & Videira 2001) consideram que a compreensão da causação descendente, i.e., de como um fenômeno de nível superior pode causar, ou determinar, ou estruturar um fenômeno de nível inferior, é o ponto chave numa formulação consistente de uma variedade não-reducionista de fisicalismo. Deste ponto de vista, não se defende que o comportamento do todo nada mais seja que um efeito do comportamento de suas partes; ao contrário, compreende-se a relação parte-todo como uma relação simétrica, devido a uma conjunção de duas relações de dependência distintas, ambas assimétricas, a superveniência das propriedades do todo às propriedades das partes (ver Kim 1993, 1996; El-Hani & Emmeche 2000) e a restrição do comportamento das partes pelos princípios organizacionais do todo, a causação descendente (El-Hani & Emmeche 2000, El-Hani 2001). A referência de Settle a uma ‘espontaneidade’ que não seria admitida pelos fisicalistas pode ser entendida, a despeito da ausência de uma definição precisa do termo, como o surgimento de propriedades novas em níveis mais complexos de organização. Se esta for, de fato, uma interpretação adequada, não se deve perder de vista que uma das correntes mais importantes do fisicalismo não-redutivo, o emergentismo, se ocupa exatamente do surgimento de propriedades genuinamente novas (emergentes) no curso da evolução da matéria.

    Em relação à quarta doutrina examinada por Settle, deve-se considerar que o objetivo principal do fisicalismo não-redutivo é, exatamente, contrapor-se à ‘redutibilidade’, em princípio, de leis sobre o comportamento do todo a leis sobre o comportamento das partes (mas sem violar o fisicalismo ontológico como premissa). No entanto, há uma dificuldade na análise da posição de Settle. Ele se refere a ‘redução’ e ‘redutibilidade’ de maneira genérica, sem definir claramente estes termos ou delimitar quaisquer distinções possíveis entre tipos ou modos de redução. Um dos pontos mais polêmicos, contudo, nos debates sobre o reducionismo diz respeito ao significado preciso dos termos ‘redutibilidade’, ‘irredutibilidade’ e ‘redução’. Não é claro, assim, se ele estaria disposto, em sua postura antifisicalista, a negar qualquer papel à redução na explicação dos fenômenos, ou se estaria propenso a rejeitar apenas a redução ontológica ou epistemológica completa do todo às partes, aceitando a necessidade de micro-explicações de macrofenômenos, ou seja, alguma forma de redução com papel apenas explicativo (Bunge 1977; El-Hani & Pereira 1999; El-Hani & Emmeche 2000; El-Hani 2000, 2001). No primeiro caso, ele estaria mais próximo de uma posição holista radical (El-Hani 2000), freqüentemente aliada a visões antifisicalistas. No segundo, uma posição fisicalista não-redutiva seria suficiente para dar conta da rejeição a esta quarta doutrina.

    De acordo com a quinta doutrina, apenas objetos físicos poderiam ter um papel causal. No fisicalismo não-redutivo, propõe-se, de fato, que todos os objetos que têm poderes causais são físicos, por haver uma relação de inclusão entre os níveis da realidade (Emmeche et al. 2000). Ou seja, os níveis seriam inclusivos no sentido de que cada nível é construído sobre o nível anterior, o que permite a coexistência local de diferentes ontologias, todas incluídas no nível físico. No entanto, a tese ontológica de que o nível físico inclui todos os outros níveis não implica a tese epistemológica de que a explicação de todos os fenômenos deva ser completamente reduzida aos termos da física. A tese de que os níveis são inclusivos implica apenas que o surgimento de um novo nível de organização não pode resultar em violação ou modificação das leis e dos princípios de organização descritos para os níveis anteriores e, em última análise, das leis físicas e dos princípios gerais de organização da matéria.

    Settle levanta a questão dos poderes causais das experiências subjetivas, enfatizando as dificuldades envolvidas na proposição de que uma experiência subjetiva poderia ser causada por algo físico. Dois pontos devem ser mencionados: primeiro, não se pode perder de vista a existência de hipóteses fisicalistas (inclusive não-reducionistas) que procuram explicar os qualia (ver, p. ex., Flanagan 1992; Kim 1996, 1998); segundo, Settle coloca o problema no contexto de uma ontologia que admite apenas um modo causal, a causa eficiente. No entanto, vários autores (e.g., Salthe 1985; Riedl 1997; Van de Vijver et al. 1998; El-Hani & Pereira 2000; Emmeche et al. 2000; El-Hani & Emmeche 2000; El-Hani 2001; El-Hani & Videira 2001; Vinci & Robert, em prep.), de orientação ao mesmo tempo fisicalista e não-reducionista, têm proposto que uma compreensão aristotélica da causalidade poderia ajudar-nos a compreender alguns problemas causais que vêm desafiando as interpretações baseadas apenas em causas eficientes, como, por exemplo, a natureza da influência do todo sobre as partes que o compõem. Uma visão que faça justiça às conseqüências ontológicas e epistemológicas da proposição de que existem múltiplos níveis de organização na natureza parece requerer uma reavaliação da visão moderna sobre a causalidade, de modo a admitir outros modos causais, como as causas formal e final (Emmeche et al. 2000). Deste ponto de vista, o papel causal de uma experiência subjetiva poderia ser, a princípio, explicado em termos fisicalistas, tomando-se como base os padrões de organização extremamente complexos observados no cérebro. O fato de que Settle coloca o problema em termos de uma dicotomia entre a atribuição de poderes causais apenas a objetos físicos ou também a objetos não-físicos resulta da ausência de uma via média entre o fisicalismo redutivo e o antifisicalismo em sua argumentação.

    A sexta doutrina discutida por Settle é admitida pelo fisicalista não-redutivo, na medida em que ele está comprometido com a tese metafísica de que todos os existentes são físicos. Por uma questão de consistência lógica, o fisicalista não-redutivo não pode abandonar as premissas assumidas por seu discurso e, assim, deixa de fora, de fato, tudo que não é ‘físico’. Mas é preciso especificar claramente o que significa o termo ‘físico’. Tendo em vista a idéia de que os níveis da realidade são inclusivos, a proposição de que não há coisas que não sejam ‘físicas’ não implica que todos os fenômenos devam ser explicados somente em termos da física e da química, como sugere Settle. Esta segunda tese é característica de uma forma particular de fisicalismo, de natureza reducionista.

    Em suma, a argumentação de Settle é prejudicada pelo fato de que ele somente reconhece a variedade redutiva do fisicalismo. Isso resulta numa polarização entre fisicalismo e antifisicalismo, que, por sua vez, impede o reconhecimento de que muitas das críticas dirigidas por ele ao primeiro não se aplicam e, inclusive, são formuladas por uma variedade mais moderada de fisicalismo, de natureza não-reducionista. O artigo de Settle que estamos analisando parece ser tributário da confusão freqüente entre o fisicalismo, como uma posição ontológica mais geral, e sua variedade reducionista. É possível que Settle também considere o fisicalismo não-redutivo uma posição indesejável, mas, nesse caso, só poderia contrapor a esta posição a segunda e a última das doutrinas que apresenta, devendo evitar as proposições (i) e (iii)-(v).

    Mahner e Bunge (1996:111) criticam Settle pela mesma razão que apontamos acima, embora não explorem esta crítica em profundidade. Eles consideram os argumentos de Settle como um exemplo da confusão freqüente entre materialismo e materialismo redutivo. Ele teria perdido de vista o materialismo emergentista, que não apenas admite a novidade qualitativa no curso da evolução como também a existência de vários níveis distintos de organização.

Professores de Ciências podem evitar o fisicalismo?

    Após discorrer sobre as "doutrinas indesejáveis do fisicalismo", Settle procura demonstrar que a ciência não favorece logicamente esta posição. Ele afirma que há muitas questões interessantes e importantes que a evidência empírica não pode decidir, incluindo a verdade ou falsidade do fisicalismo. O ponto que pretende enfatizar é o de que a evidência não pode ser decisiva em questões metafísicas nas quais há mais do que uma hipótese plausível e não-refutada. Ele argumenta que a ciência não pode apoiar de maneira decisiva o fisicalismo, porque há teorias metafísicas alternativas que não se defrontam com maiores problemas do que aquele, como, por exemplo, a filosofia de Whitehead, ou a hipótese de uma criação divina das espécies, ainda que não uma criação única. A escolha entre uma visão fisicalista e outra antifisicalista teria de ser feita em outras bases, e não a partir da evidência empírica (Settle 1991:230-232).

    O fisicalismo não é uma posição que possa ser demonstrada empiricamente. É mais apropriado concebê-lo como uma premissa do discurso científico, pelo menos desde meados do século XIX. Não se trata de demonstrar sua validade, seja empírica ou logicamente, mas de aceitá-lo ou não como uma premissa, um ponto de partida para a constituição de um discurso sobre o mundo. Teorias e evidências científicas não podem, de fato, demonstrar o fisicalismo, por um motivo mais sério do que aquele apontado por Settle: um discurso não pode demonstrar logicamente os princípios primeiros que ele próprio assumiu.

    Com o declínio do positivismo lógico, admite-se de um modo geral que as ciências estão apoiadas em suposições metafísicas. A questão mais relevante é a do tipo de metafísica que as ciências pressupõem. As propostas de Settle sobre o ensino de ciências devem ser analisadas no contexto desta pergunta fundamental. Para Mahner e Bunge (1996), é óbvio que uma perspectiva naturalista e materialista tem grande penetração na ciência. Eles chegam a afirmar que este aspecto é tão óbvio que "alguns autores (e.g., Settle [...]) de uma persuasão diferente se sentem compelidos a advertir contra o endosso explícito deste tipo de metafísica" (Mahner & Bunge 1996:101). A ontologia da ciência não contempla a existência de entidades sobrenaturais e eventos miraculosos, como a ontologia das religiões em geral. Entidades imateriais ou sobrenaturais não são encontradas como referentes de teorias científicas, não importam as crenças dos cientistas que as propuseram. Admitindo-se a perspectiva naturalista e materialista como base metafísica das ciências modernas, não se pode demandar, como faz Settle, um ensino de ciências que não implique esta base, mas apenas um ensino de ciências que tenha consciência dos pressupostos metafísicos das ciências e possa colocá-los ao alcance da apreciação crítica dos alunos.

    Quando se discute a relação entre ciência e religião, é comum a referência a autores, inclusive cientistas, que argumentam a favor de uma possível ontologia mais ampla no contexto da ciência, que incluísse também uma perspectiva religiosa. Um dos eventos mais usuais quando colocamos este tópico em sala de aula é a referência a cientistas com crenças religiosas, tanto no passado (Newton, Boyle, Cuvier etc.) como no presente (Capra, Paul Davies etc.). A partir desta referência, infere-se que ciência e religião podem ser compatíveis ou até mesmo busca-se uma síntese entre os compromissos metafísicos de ambas. Um ponto interessante, então, diz respeito às conseqüências que se pode deduzir do fato inegável de que houve e há cientistas com visões religiosas. Primeiro, é preciso reconhecer que o discurso científico somente se tornou laico a partir da segunda metade do século XIX, de modo que o exame de casos como os de Newton e Cuvier, embora úteis para outros propósitos, não pode ser tomado diretamente como base para a análise das relações contemporâneas entre ciência e religião. Segundo, uma abordagem contextual do ensino de ciências implica a conclusão de que, ao ensinar-se as contribuições científicas de pesquisadores com inclinações religiosas, estas últimas não podem ser simplesmente ignoradas, como usualmente se faz (Woolnough 1989; Matthews 1994; Mahner & Bunge 1996). Terceiro, a conclusão de que pressupostos naturalistas e materialistas poderiam ser evitados no ensino de ciências ou, numa tese mais radical, explicações religiosas e científicas dos mesmos fenômenos poderiam ser consideradas nas salas de aula de ciências (como propõem os fundamentalistas cristãos quanto ao ensino de evolução), não segue da constatação de que há cientistas com inclinações religiosas. Este é um argumento puramente ad hominem (Mahner & Bunge 1996). Caso ele fosse válido, poderíamos também concluir, por exemplo, que Vitasay faz bem à saúde pelo simples motivo de que Pelé, que parece ser saudável, disse na televisão que utiliza Vitasay. Os casos de cientistas que abraçam crenças religiosas indicam apenas que as pessoas dificilmente alcançam uma consistência total de seus sistemas de crenças (Mahner & Bunge 1996:112), sendo plausível afirmar-se que uma pessoa pode viver sem problemas com enormes quantidades de dissonância cognitiva (Matthews 1994:185). Dentro de um indivíduo, visões de mundo mutuamente inconsistentes podem coexistir sem que isso represente um problema para ele próprio, na medida em que as crenças contraditórias sejam utilizadas em contextos diferentes (El-Hani & Bizzo 1999). Esta é uma situação provável no caso de cientistas com crenças religiosas. Em outro artigo (Sepúlveda & El-Hani 2001), nós discutimos o uso de exemplos de cientistas que nutrem crenças religiosas na abordagem das relações entre ciência e religião na formação de professores de ciências.

    Mahner e Bunge (1996:102) chegam a afirmar que uma educação religiosa é prejudicial para a educação científica. Não pretendemos subscrever esta tese, na medida em que a consideramos inteiramente contrária à perspectiva de uma educação que respeite as diferenças entre a visão de mundo dos estudantes e as suposições metafísicas usuais no discurso das ciências (Cobern 1991, 1996; El-Hani & Bizzo 1999). Lacey (1996:145) afirma que a proposta de Mahner e Bunge de excluir as práticas religiosas da educação pública corresponde a uma defesa do monopólio das escolas por uma forma particular de prática científica idólatra, propondo uma maneira alternativa de considerar a religião, na qual não haveria incompatibilidades, mas tensões construtivas entre ciência e religião. De qualquer modo, concordamos com Mahner e Bunge quanto à pressuposição pela ciência de uma metafísica naturalista e materialista, o que torna frágeis os argumentos de Settle a respeito da postura de um professor de ciências diante de tais pressupostos. No entanto, estamos mais propensos a utilizar a caracterização destes pressupostos apresentada por Lacey (1996:145), de acordo com a qual a prática da ciência pressupõe (i) que há fenômenos que podem ser explicados em termos materialistas, (ii) que o espectro de fenômenos que podem ser explicados dessa maneira pode ser, em princípio, expandido indefinidamente, e (iii) que é uma questão em aberto se há ou não fronteiras para o alcance da explicação científica.

    É evidente que a tese de que a ciência está comprometida com uma metafísica materialista e naturalista requer uma caracterização precisa do que se está chamando de ‘ciência’. É difícil propor uma caracterização consensual da ciência e de como esta poderia ser demarcada de outras formas de conhecimento, visto que o problema da demarcação é uma questão polêmica entre os próprios filósofos da ciência. Mahner e Bunge evitam adentrar este debate, simplesmente oferecendo uma caracterização própria do que seja a ciência. Trata-se de uma caracterização que se mostra válida para a ciência contemporânea, mas não necessariamente para a ciência praticada nos séculos XVII e XVIII, freqüentemente caracterizada como uma ‘teologia natural’. Uma vantagem desta caracterização é que ela delimita claramente a ‘ciência’ como uma instituição social específica, que se estabeleceu na forma como nós a conhecemos a partir da segunda metade do século XIX, e, como qualquer instituição social, tem mecanismos de reprodução, no caso, o ensino de ciências, e locais nos quais é especificamente praticada e/ou ensinada (universidades, centros de pesquisa, salas de aula de ciências etc.). Desse modo, evitam-se caracterizações muito abrangentes, como, por exemplo, a de que ‘ciência’ significa ‘toda e qualquer forma de conhecimento’, que são pouco úteis, na medida em que não delimitam qualquer forma de atividade, mas terminam por abarcar todas as atividades humanas. Mahner e Bunge (1996:103) definem a ciência como um conjunto de 9 elementos: CIÊNCIA = <C, S, D, G, F, P, K, A, M>, onde C = comunidade científica; S = sociedades que abrigam e toleram C; D = o domínio de fatos estudados pelos membros de C; G = a visão de mundo ou filosofia sustentada pelos membros de C "em sua capacidade como pesquisadores"; F = a base formal, i.e., a totalidade das teorias lógicas e matemáticas conhecidas num dado período e empregadas pelos membros de C; P = a problemática, i.e., o conjunto de problemas cognitivos que podem ser manipulados cientificamente no período; K = o corpo de conhecimentos, i.e., o conjunto de dados, hipóteses e teorias disponíveis no período; A = os objetivos da pesquisa, caracterizados como "a descoberta ou utilização de leis objetivas e teorias verdadeiras capazes de sistematizar, explicar ou prever" (o que envolve questões epistemológicas controversas), M = a metódica, i.e., a coleção de todos os métodos utilizáveis na ciência. Uma outra característica da ciência que Mahner e Bunge destacam é que ela constitui um sistema no qual cada subsistena (e.g., física, biologia, química etc.) é intimamente conectado com outros subsistemas. Essa colocação oferece um caminho interessante para tratar o problema da demarcação: uma disciplina que não faz qualquer contato com outras disciplinas científicas não seria, deste ponto de vista, considerada ‘científica’. Esta poderia ser uma razão, por exemplo, para a reação usual da comunidade científica em relação a estudos como a ufologia, parapsicologia, projeciologia etc.

    Ao discutir a visão de mundo da ciência, Mahner e Bunge (1996:103-104) se referem a três elementos: uma ontologia (ou metafísica) naturalista, uma epistemologia realista e um sistema interno de valores (ou endoaxiologia). Embora muitas questões epistemológicas e axiológicas sejam dignas de discussão na caracterização de ciência de Mahner e Bunge, o que mais interessa para este artigo são as questões ontológicas. Mahner e Bunge afirmam decididamente que a metafísica da ciência tem uma natureza materialista e naturalista, ou seja, somente admite como entidades existentes coisas que sejam formadas, em última análise, por um único constituinte fundamental, a matéria, e que sejam naturais, encontrando-se situadas num quadro de referência espaço-temporal. Settle (1996) admite que o materialismo (ou o naturalismo) e a religião são incompatíveis. Ele também admite que a maioria dos filósofos da ciência concorda com a visão de que a ciência é baseada numa ontologia naturalista. No entanto, ele opta por discordar desta maioria. Settle (1996:129) afirma que o núcleo de seu argumento contra Mahner e Bunge é o de que "quando duas ou mais posições metafísicas são igualmente compatíveis com os achados da ciência, a própria ciência não pode discriminar entre elas no que diz respeito àquela que uma pessoa deve endossar". O problema, como em seu artigo de 1991, é que Settle trata da relação entre ciência e metafísica não ao nível dos pressupostos assumidos no discurso das ciências, mas ao nível empírico. Por certo, uma opção metafísica afetará as explicações pelas quais uma pessoa haverá de optar. No entanto, se considerarmos a escolha entre explicações alternativas no contexto da ciência, onde, considerando-se a ciência como discurso sistemático e organizado sobre o mundo (contra a visão pessoal de cada cientista), há bases para a opção por uma explicação materialista ou naturalista, mesmo que uma explicação metafisicamente distinta possa de algum modo ser compatível com os achados da ciência. Considere-se, primeiro, o problema da consistência lógica. Se a ciência é de fato materialista e naturalista, como admite a maioria dos filósofos da ciência, então a explicação rival em termos metafísicos não pode ser admitida, para evitar-se contradições, dentro do domínio da ciência. Fora do domínio da ciência, a questão, é claro, é outra. Uma segunda base possível para uma decisão, no caso apontado por Settle, se refere ao uso de um critério de parcimônia. Se ambas as explicações são compatíveis com a ciência, parece razoável optar-se pela explicação metafisicamente mais econômica e pode-se sustentar que esta é a naturalista, na medida em que não povoa o mundo de mais entidades do que partículas materiais e seus agregados.

    Após caracterizar a ciência, Mahner e Bunge procuram definir o que entendem por ‘religião’. Eles salientam que alcançar um consenso na caracterização da religião é tão difícil e controverso quanto no caso da ciência, talvez até mais, dada a diversidade de religiões (Mahner & Bunge 1996:105). Ainda assim, eles propõem uma caracterização geral de ‘religião’ como um conjunto de 11 elementos: : RELIGIÃO = <C, S, D, G, F, B, P, K, V, A, M>. Nove elementos são similares àqueles designados pelas mesmas letras na caracterização de ciência. Os dois elementos novos são B = a base factual da religião, i.e., o corpo de conhecimento factual admitido pela comunidade religiosa, e V = o sistema de valores externos ou exoaxiologia dos membros de C. Analisando-se estes elementos, Mahner e Bunge (1996:105-107) encontram diferenças importantes entre as ciências e as religiões nos níveis doutrinário, metafísico, metodológico e atitudinal. A partir de tais diferenças, eles concluem que ciência e religião são não apenas diferentes, mas incompatíveis. Para os nossos propósitos, as diferenças que mais interessam são as de natureza doutrinária e metafísica. Na medida em que as religiões formulam enunciados cognitivos sobre o mundo, são inevitáveis os conflitos gerados pela incompatibilidade de suas doutrinas e seus pressupostos metafísicos. Conflitos são inevitáveis nas áreas de superposição entre ciência e religião, envolvendo questões como a evolução do universo, a evolução da vida e do homem, a natureza da mente, a existência de vida após a morte, e as próprias origens e funções sociais da religião. Mesmo que não houvesse incompatibilidades na descrição factual da realidade, surgiriam conflitos num nível mais profundo, porque os pressupostos metafísicos das ciências e das religiões não são compatíveis.

    É pertinente colocar, no contexto do ensino de ciências, o problema das relações entre a visão de mundo de professores e alunos (que pode não ser fisicalista) e a maneira como o mundo é retratado no discurso científico (Cobern 1991, 1996; El-Hani & Bizzo 1999). A solução, no entanto, não é tão simples como sugere Settle. Não há meios de o fisicalismo não estar implicado no ensino de ciências, uma vez que ele é uma das premissas fundamentais das próprias ciências modernas. Se a crença em entidades não-físicas (i.e., imateriais) for incluída em um discurso, isto fará dele, por uma questão de princípio, um discurso não-científico. Um professor não deve perder de vista as fronteiras entre os diferentes discursos sobre o mundo, passando inadvertidamente de um a outro, sob pena de apoiar seu pensamento sobre fundações inconsistentes.

Conclusão

    Como seria possível, então, ensinar ciências, com a premissa fisicalista dos discursos científicos mantida em seu lugar, e, ainda assim, ter na devida conta o respeito às visões de mundo de alunos e professores não-fisicalistas? As sugestões de Settle não são muito úteis frente a esta questão difícil:

Ensine ciência de uma maneira que torne claro um conjunto de aspectos não-controversos da ciência — a natureza inacabada da pesquisa; o uso de idealizações na teoria científica; o fato de que agora se sabe que teorias científicas mais antigas são, em termos estritos, falsas, embora ainda se conformem aos fatos até um certo ponto. Estas questões chamarão a atenção de seus estudantes para o fato de que a evidência científica não é decisiva quanto a se teorias atualmente não-refutadas são literalmente verdadeiras, ou apenas aproximadamente verdadeiras [...], ou se não são nem verdadeiras nem falsas, mas apenas úteis. Portanto, o fisicalismo não é decisivamente apoiado (Settle 1991:234).     Como chegar à situação descrita por Settle no final de seu artigo: "Estudantes interessados são deixados à vontade para decidir sobre esta [a opção por uma visão fisicalista] e outras questões similares em bases mais apropriadas [...]. Ou, para deixá-las em aberto, se assim desejarem" (Settle 1991:234)? Como evitar uma ‘conversão’ subliminar dos estudantes a uma visão fisicalista e ainda assim não privar os discursos científicos, ao ensiná-los, de uma de suas premissas metafísicas fundamentais? O construtivismo contextual de Cobern (1991, 1996) torna possível avançar nessa discussão. No ensino de ciências, os aprendizes estão, em geral, entrando em contato com uma segunda cultura, sendo necessário, para uma aprendizagem significativa, que o conhecimento científico encontre um nicho em sua visão de mundo. Por visão de mundo, entende-se a organização fundamental da mente de uma pessoa, incluindo suposições cognitivas básicas, interrelacionadas de forma dinâmica, que determinam grande parte de seu comportamento e de sua tomada de decisões, bem como organizam seu corpo de criações simbólicas (Kearney 1984; Cobern 1991, 1996). Estes pressupostos servem como critérios centrais para a apreciação, por um indivíduo, das idéias ou crenças que lhe são apresentadas Não é apropriado supor, como em algumas abordagens propostas para o ensino de ciências, como o modelo da mudança conceitual (ver Cobern 1996, El-Hani & Bizzo 1999), que os estudantes devam ser levados a um rompimento com sua maneira de ver o mundo. Se a expectativa é a de que venham a utilizar as idéias científicas em seu cotidiano, estas idéias devem fazer sentido à luz de sua visão de mundo, e não apesar dela. Uma das teses centrais do construtivismo contextual é a de que, se aprender ciências é aprender uma segunda cultura, a sala de aula não pode ser entendida como um local no qual todos, alunos e professores, estão operando na mesma visão de mundo. Conflitos entre visões de mundo podem ocorrer, como no caso examinado por Settle. Nessa situação, pode ser apropriado concentrar-se sobre a tentativa de que os alunos compreendam as novas concepções, mesmo que possam eventualmente não apreendê-las. Há uma diferença fundamental entre compreender (i.e., ter o domínio do significado) e apreender uma idéia (i.e., assumi-la como válida ou verdadeira) e a compreensão parece não necessitar da apreensão (Cobern 1996; El-Hani & Bizzo 1999). Um conceito que é completamente compreendido por uma pessoa pode ser rejeitado por ela, por não se mostrar válido no contexto de sua visão de mundo. Desse modo, um professor que, como Settle, não pretende que suas aulas convençam os alunos, de maneira subliminar, a aceitarem o fisicalismo como verdadeiro, pode desenvolver sua prática de ensino de modo que eles compreendam que os discursos científicos estão assentados sobre premissas fisicalistas ou materialistas, garantindo-lhes, assim, o acesso a estes pressupostos, de modo que possam apreciá-los criticamente e optar por aceitá-los ou não (ou, ainda, por deixar a questão em aberto). É importante, no entanto, que o próprio professor tenha uma visão clara sobre o papel destes pressupostos no discurso científico, um ponto para o qual o trabalho de Settle não contribui. Não é possível, em nossa visão, ensinar ciências sem pressupor o fisicalismo, mas isso não significa que este pressuposto não possa ser apreciado criticamente. A apreciação crítica do fisicalismo é favorecida na medida em que os professores, informados pela história e filosofia das ciências, se mostrem capazes de explicitá-lo, retirando-o do currículo oculto. Desse modo, em vez de enfatizar-se apenas a existência de conflitos entre ciência e religião, como fazem Mahner e Bunge, chegando ao extremo de afirmar que a educação religiosa deve ser evitada para que uma visão de mundo científica seja desenvolvida, é possível vislumbrar-se, como Lacey, a possibilidade de diálogos férteis entre estes dois campos do conhecimento humano.

    Os argumentos de Settle, na medida em que se aplicam especificamente ao fisicalismo redutivo, sugerem um outro problema: A promoção indevida, no ensino de ciências, do reducionismo como a única posição metodológica compatível com a atividade científica. Nesse caso, é possível propor-se uma separação entre a educação científica e os compromissos reducionistas, dado que há alternativas ao reducionismo que são compatíveis com a empreitada científica, como o fisicalismo não-redutivo.

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[1] Departamento de Biologia, Instituto de Biologia, UFBA. Mestrado em Ecologia e Biomonitoramento, UFBA. Mestrado em Ensino, Filosofia e História das Ciências, UFBA/UEFS.
[2] Departamento de Educação, UEFS. Mestrado em Ensino, Filosofia e História das Ciências, UFBA/UEFS.