Décio Auler [1]
auler@ce.ufsm.br
Depto. Metodologia de Ensino - UFSM
Demétrio Delizoicov
Depto. Metodologia de Ensino - UFSC
demetrio@ced.ufsc.br
Resumo
A Alfabetização Científica-Tecnológica
(ACT), cada vez mais, tem sido postulada enquanto dimensão fundamental
numa dinâmica social crescentemente relacionada ao desenvolvimento
científico-tecnológico. Contudo, o rótulo ACT abarca
um espectro bastante amplo de significados. Os objetivos balizadores são
diversos e difusos. Nesse trabalho, discute-se ACT segundo duas perspetivas,
denominadas de reducionista e ampliada. A reducionista, em nossa análise,
desconsidera a existência de construções subjacentes
à produção do conhecimento científico-tecnológico,
tal como aquela que leva a uma concepção de neutralidade
da Ciência-Tecnologia. Relacionamos a esta compreensão de
neutralidade os denominados mitos: superioridade do modelo de decisões
tecnocráticas, perspectiva salvacionista da Ciência-Tecnologia
e o determinismo tecnológico. A perspectiva ampliada, proposta nesse
trabalho, busca a compreensão das interações entre
Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS), associando o ensino de conceitos
à problematização desses mitos vinculados às
interações entre CTS.
Abstract
Increasingly, technological-scientific literacy has
been postulated while fundamental dimension in the social dynamics related
to technological-scientific development. However, technological-scientific
literacy covers a wide spectrum of meanings. The objectives are diverse
and diffuse. This paper discusses technological-scientific literacy according
to reductionistic and broad perspectives. The reductionism, in our analysis,
does not consider the existence of constructions that underlie the production
of technological-scientific knowledge, such as the one that leads to the
conception of science and technology neutrality. This conception can be
related to myths that is called: superiority of technocratic decisions’
model, the technological-science saving perspective and the technological
determinism. The broad perspective, proposed in this work, aims to comprehend
the interactions among Science-Technology-Society (STS), associating the
concepts learning to the myths discussions linked to the interactions among
STS.
1. Introdução
Possivelmente potencializada pelos recentes avanços da Ciência-Tecnologia (CT), particularmente no campo da clonagem-engenharia genética, ganha vigor a idéia da Alfabetização Científica-Tecnológica (ACT). Parte-se da premissa de que a sociedade seja analfabeta científica e tecnologicamente e que, numa dinâmica social crescentemente vinculada aos avanços científico-tecnológicos, a democratização desses conhecimentos é considerada fundamental.
Contudo, o rótulo Alfabetização Científica e Tecnológica abarca um espectro bastante amplo de significados traduzidos através de expressões como popularização da ciência, divulgação científica, transposição didática, entendimento público da ciência, democratização da ciência. Os objetivos balizadores são diversos e difusos. Vão desde a busca de uma autêntica participação da sociedade em problemáticas vinculadas a CT, até aqueles que colocam a ACT na perspectiva de referendar, de buscar o apoio da sociedade para a atual dinâmica do desenvolvimento científico-tecnológico. Em outros termos, há encaminhamentos mais próximos de uma perspectiva democrática, por um lado, e, de outro, encaminhamentos que direta ou indiretamente respaldam postulações tecnocráticas.
Este trabalho apresenta uma síntese de categorias empregadas em uma pesquisa em andamento (Auler, 2001), a qual busca encaminhamentos, no processo de formação de professores de ciências e, conseqüentemente, para o ensino de ciências, no sentido de contemplar interações entre Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS). No decorrer dessa, foi-se constatando a necessidade da explicitação e clarificação de algumas construções subjacentes à produção do conhecimento científico e tecnológico, realizadas historicamente, as quais, vinculadas a uma concepção que atribui neutralidade a CT, expressam, segundo análise apresentada nesse trabalho, idéias pouco consistentes sobre a atividade científico-tecnológica. Nesse sentido, essas construções, que tornaram-se categorias balizadoras para análise, foram aqui denominadas de mitos, considerando que, tal qual um mito, em vários contextos, estão fora do alcance de uma reflexão crítica.
Nesse sentido, realizamos um estudo exploratório inicial no qual buscamos conhecer as compreensões de professores de ciências sobre as interações entre CTS. Os resultados dessa investigação preliminar, apresentados e discutidos no II ENPEC (Auler e Delizoicov, 1999), sinalizaram para a presença, na compreensão desses professores, de aspectos que estamos relacionando a esses mitos.
Três mitos foram particularmente examinados, levando em conta sua importância para efeito de problematização: superioridade do modelo de decisões tecnocráticas, perspectiva salvacionista da CT e o determinismo tecnológico, encarados como manifestações, como originados direta ou indiretamente da concepção de neutralidade da CT, à qual denomina-se de "mito original". Refletir, problematizar essas construções não significa, de forma alguma, uma posição anti-ciência e anti-tecnologia. Pelo contrário, contribui, no nosso entender, para a construção de uma imagem mais realista da atividade científico-tecnológica. Além disso, mitos não combinam com postulações democráticas.
Ter como pano de fundo a neutralidade ou a não neutralidade da CT, leva a encaminhamentos muito diferenciados em relação ao ensino de ciências. Concebendo CT como neutras, derivando dessa concepção os referidos mitos, pode-se, facilmente, cair em reducionismos relativamente a Alfabetização Científico-Tecnológica. Apresenta-se, a seguir, uma reflexão sobre dois encaminhamentos, distintos, relativamente a ACT, cuja bifurcação centra-se na consideração ou não desses mitos no processo educacional.
2. Os mitos
2.1. Superioridade do modelo de decisões tecnocráticas
Conforme Amilcar Herrera (2000), uma das maneiras mais efetivas de terminar com uma discussão consiste em dizer que algo está cientificamente provado. Segundo ele, isso deixa o adversário desarmado. Destaca que, em épocas passadas, obtinha-se o mesmo resultado com a afirmativa de que estava respaldado na Bíblia.
Para Luján et al. (1996), o cientificismo, sustentáculo da tecnocracia, é lastreado na crença da possibilidade de neutralizar/eliminar o sujeito do processo científico-tecnológico. O expert (especialista/técnico) poderia solucionar os problemas sociais de um modo eficiente e ideologicamente neutro. Para cada problema existe uma solução ótima. Portanto, deve-se eliminar os conflitos ideológicos ou de interesse.
O cientificismo, na compreensão de Chassot (1994), pode ser sintetizado por dois "axiomas", quais sejam, a superioridade teórica e prática da ciência para qualquer situação. A nível teórico, seria um conhecimento superior a todos os demais. No campo prático, seria a melhor forma de conhecimento para resolver problemas situados desde o campo técnico até o ético.
No entender de Pacey (1990), a perspectiva tecnocrática refere-se a uma visão de mundo que praticamente não deixa espaço para a democracia nas decisões que afetam a tecnologia, considerando que essa está presa a uma visão de progresso, de resolução de problemas que exclui ambigüidades. A intolerância frente a ambigüidades inviabiliza o debate sobre o futuro: só há uma forma de avançar e o especialista, melhor do que ninguém, pode comandar o processo. A participação pública, na escolha, entre enfrentamentos possíveis a uma determinada situação, introduz, segundo a perspectiva tecnocrática, um elemento de incerteza, inaceitável nessa visão.
Thuillier (1989) destaca que a ciência é valorizada, na sociedade moderna, como instância absoluta, exatamente como Deus é visto na Igreja. Assim como diziam os padres que queimavam hereges na inquisição "não sou eu, é Deus quem o quer", assim nossos tecnocratas, ao tomarem decisões, dizem que não são eles os responsáveis, mas a ciência. Destaca Thuillier,
2.2. Perspectiva salvacionista da CT
Na concepção tradicional/linear de progresso[2], CT, em algum momento do presente ou do futuro, resolverão os problemas hoje existentes, conduzindo a humanidade ao bem-estar social. Duas idéias estão associadas a isso: CT necessariamente conduzem ao progresso e Ciência e Tecnologia sempre vêm, são criadas para solucionar problemas da humanidade, para tornar a vida mais fácil.
Porém, o desenvolvimento científico-tecnológico não pode ser considerado um processo neutro que deixa intactas as estruturas sociais sobre as quais atua. Nem a Ciência e nem a Tecnologia são alavancas para a mudança que afetam sempre, no melhor sentido, aquilo que transformam. O progresso científico e tecnológico não coincide necessariamente com o progresso social e moral (Sachs, 1996).
A idéia de que os problemas hoje existentes, e os que vierem a surgir, serão automaticamente resolvidos com o desenvolvimento cada vez maior da CT, estando a solução em mais e mais CT, está secundarizando as relações sociais em que essa CT é concebida.
Pacey, já citado, argumenta que, em geral, as pessoas remetem os problemas enfrentados pela sociedade como, por exemplo, poluição, para o campo técnico, pensando que a extraordinária capacidade da tecnologia moderna conduzirá a uma "solução apropriada". Mas, segundo ele, esses problemas têm uma componente social. Esperar por uma solução apenas técnica, que não inclua medidas sociais e culturais, "é mover-se em um terreno ilusório". Destaca que a escassez de alimentos e os problemas de energia são transformados em questões estritamente técnicas, ignorando muitos aspectos relativos a organização e a sua aplicação.
Gana (1995) destaca que a situação social e econômica dos países latino-americanos não é produto da acaso. Obedece a uma série de fatores (econômicos, históricos, culturais, políticos, entre outros), internos ao país e externos em suas relações com o resto do mundo. Argumenta que, em nenhum caso, esta situação será eliminada ou atenuada exclusivamente através da inovação tecnológica.
Por exemplo, para reduzir/acabar com a carência alimentar, com a fome, efetivamente, é necessário produzir alimentos em quantidade suficiente. Nesse aspecto, a CT podem contribuir significativamente, aproveitando, inclusive, os avanços da biologia molecular. Contudo, a CT não possuem nenhum mecanismo intrínseco que garanta a distribuição dos alimentos produzidos. CT são fundamentais no campo da produção. Porém, em termos de distribuição, há outras dimensões a serem consideradas.
No entender de Ayarzagüena et al.,
Segundo Gómez (1997)[3], há duas teses definidoras do determinismo tecnológico: a) o câmbio, a mudança tecnológica é a causa da mudança social, considerando-se que a tecnologia define os limites do que uma sociedade pode fazer. Assim, a inovação tecnológica aparece como o fator principal da mudança social; b) A tecnologia é autônoma e independente das influências sociais.
Na análise de Sanmartín (1990), a concepção do determinismo tecnológico não se configurou como algo isolado, mas no âmbito da "superteoria" (superideologia) do progresso. Contrariamente as superteorias da providência divina e da do eterno retorno, que a precederam, nessa o fator tempo não é mais cíclico[4], mas incorpora a idéia de tempo linear. Caminhamos em direção ao futuro, em direção ao progresso, não há mais volta. Dentre as características dessa superteoria, Sanmartín aponta:
Gómez, já citado, destaca que o avanço tecnológico é uma atividade social, sendo que o curso do mesmo responde à direção imprimida pela sociedade ou por segmentos dessa. Se a tecnologia avança em diversas áreas (agricultura, guerra, etc) e não em outras, isso se deve aos incentivos e recompensas oferecidas. O avanço tecnológico não opera por si mesmo. As mudanças acontecem porque favorecem grupos, sendo que outros grupos oferecem resistências. Influem, no desenvolvimento tecnológico, condições econômicas, políticas e sociais, assim como organizações estatais e privadas. Considera que o endosso ao determinismo tecnológico, consiste numa forma sutil de negar as potencialidades e a relevância da ação humana.
Mesmo sem endossar o determinismo tecnológico, Gana (1995) não cai no outro extremo, o do determinismo social. Acentua que a adoção de determinada tecnologia gera múltiplos resultados, surgindo situações novas, inicialmente não previstas. A configuração de uma nova tecnologia, no "real", dá-se na interação com fatores sociais, culturais e econômicos.
Winner (1987), prefere a expressão "sonambulismo tecnológico" para caracterizar o comportamento conformado, a aceitação passiva da sociedade diante da chamada "marcha do progresso", diante de novos artefatos tecnológicos, sem nenhuma reflexão crítica em relação aos aspectos positivos e negativos dela decorrentes.
Contemporaneamente, no contexto do "caminho único", respaldado pelo discurso do "pensamento único" – "fim da história", "fim das ideologias"-, está havendo um superdimensionamento da tecnocracia em detrimento da democracia. Democracia pressupõe a possibilidade de escolha, de eleição entre várias possibilidades, entre vários caminhos. Por outro lado, a racionalidade tecnocrática sustenta e legitima o pensamento do caminho único. Segundo essa lógica, para cada problema existe uma solução única, ou ótima. Essa racionalidade exclui opções políticas. Neste contexto, o determinismo tecnológico é reforçado.
3. ACT na perspectiva reducionista e ampliada
A Alfabetização Científica e Tecnológica, no nosso entender, pode ser concebida segundo duas perspectivas, ou seja, o sentido reducionista e o sentido ampliado[5]. Esse último, mais próximo de uma concepção progressista de educação. Na perspectiva reducionista, reduz-se a ACT ao ensino de conceitos, ignorando a existência de mitos, como os anteriormente apresentados e discutidos, aspecto que contribui para uma "leitura da realidade" que poder-se-ia argumentar como sendo bastante ingênua. Reduzir ACT ao ensino de conceitos, bem como trabalhar na perspectiva de entender artefatos tecnológicos e científicos numa dimensão apenas técnica, internalista, pode contribuir para manter ocultos mitos ligados a CT.
Nessa perspectiva reducionista, espera-se que os "conteúdos operem por si mesmos", ou, como um fim em si. Na ampliada, os conteúdos são considerados como meios para a compreensão de temas, socialmente relevantes.
3.1. Perspectiva reducionista
A perspectiva, aqui denominada de reducionista, parece conter aproximações com o denominado modelo de "déficit cognitivo", utilizado para a avaliação sobre o entendimento público da ciência, citado e discutido por Rosa (2000). Apoiada em análises de vários autores, principalmente Wynne e Irwin, destaca que, segundo esse modelo, a alfabetização em CT[6] estabelece como meta a transmissão unidirecional do conhecimento científico, estando implícito, nessa forma de ACT, uma tentativa de preservar e, se possível, ampliar o apoio recebido pela ciência. Fundamenta-se numa postura pouco crítica em relação às implicações da CT na sociedade. Segundo esses autores, citados por Rosa, nesse modelo, estão implícitos três princípios básicos:
Alternativamente ao modelo de déficit cognitivo, Rosa apresenta e discute o modelo interacionista, o qual abarca concepções que problematizam a CT e suas instituições, bem como colocam em discussão do que seja o entendimento público sobre as mesmas. Entendemos que esse modelo interacionista pode ser aproximado ao que temos denominado de ACT numa perspectiva ampliada.
3.2 Perspectiva Ampliada
Nessa perspectiva ampliada de ACT, aproximações com o referencial freiriano (Freire, 1987, 1996) podem contribuir para a superação dos mitos. Particularmente no processo de formação de professores, a perspectiva problematizadora e dialógica permite estruturar um trabalho pedagágico (Pernambuco, 1993; Delizoicov, 1991) com a finalidade de obter e problematizar a visão dos licenciandos e licenciados sobre as relações CTS. Para Freire, educação relaciona-se com "conhecimento crítico da realidade", com "uma leitura crítica do mundo". Esse constitui-se no ponto central dessa aproximação: Para "uma leitura crítica do mundo", para o "desvelamento da realidade", a problematização, a desmistificação dos mitos construídos, historicamente, sobre as interações entre Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS), é fundamental. A postura fatalista, a percepção ingênua da realidade está vinculada a esses mitos que, dentre outras características, são paralisantes.
Os fatalismos, aos quais Freire constantemente faz referência, manifestam-se, hoje, por exemplo, sob a forma de determinismos tecnológicos, em suas várias manifestações – "não podemos deter o avanço tecnológico"; "o desemprego no mundo é uma fatalidade do fim do século". A superação de uma percepção ingênua e mágica da realidade, de uma leitura crítica exige, cada vez mais, uma compreensão dos sutis e delicados processos de interação entre CTS. Exige um "desvelamento" dos discursos ideológicos vinculados a CT, manifestos, muitas vezes, na defesa da entrega do destino, da sociedade, à tecnocracia. Uma realidade, uma sociedade, em seu conjunto, aparentemente imobilizada, anestesiada pelo discurso pragmático, vinculado ao progresso científico e tecnológico, de não perder o trem da história.
Freire sempre destacou a centralidade, em seu fazer educacional, da dialogicidade e da problematização. Dialógico no sentido do respeito, do diálogo entre os saberes do educando e do educador, aspecto fundamental para a problematização de situações reais, contraditórias vividas pelo educando. Coerente com essas dimensões, passou a fazer críticas agudas à educação que denominou de bancária, postulando e praticando, em substituição a essa, o que denominou de educação problematizadora[7]. Na bancária, constituindo-se num ato de depositar e consumir idéias, gera-se imobilismo, atitudes reacionárias, concebendo o futuro como pré-dado. Os alunos são objetos passivos da ação de outros, conformando uma postura fatalista, decorrendo uma percepção ingênua ou mágica da realidade. Em síntese, dessa forma, o processo educacional fomenta a "cultura do silêncio".
Contrariamente, a educação dialógica e problematizadora, problematiza essa realidade percebida de forma ingênua/mágica. Nessa concepção, a realidade é concebida de forma dinâmica, reforçando a mudança. O ser humano concebido como sujeito histórico. O aprendizado deve estar intimamente associado à compreensão crítica da situação real vivida pelo educando. Nas palavras de Freire,
O próprio Freire manifestou esta necessidade:
Poder-se-ia considerar o desenvolvimento de "conhecimentos universais" como invasão cultural? Para Freire,
O desenvolvimento de conteúdos, associado à problematização de mitos, conforme discussão anterior, tem respaldo em Freire, quando esse postula que
No Jornal da Ciência (JC), editado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), também comparecem reflexões, realizadas majoritariamente no exterior, preocupadas em alargar os horizontes relativamente a alfabetização científico-tecnológica. Por exemplo, o editor da revista Nature, David Dickson, em entrevista ao JC, questionado sobre a popularização da ciência para o público, declarou que, na sociedade moderna, é irracional esperar que o público geral tenha uma total compreensão da ciência moderna em toda a sua complexidade, ou mesmo que seja capaz de usar esta informação diretamente na condução de sua vida diária. Segundo ele,
Além dessa análise, principalmente pelas contribuições de Enio Candotti, fazendo referência a discussões em curso, no exterior, preocupações mais amplas são encontradas no JC. Citando Robert May, matemático e ecólogo, secretário de C & T do governo britânico (JC, n. 441), Candotti destaca que, para May, os programas de divulgação tem se preocupado apenas em explicar a ciência para o público. Porém, essa é considerada uma visão atrasada da questão. Essa concepção, segundo May, implica na condescendente premissa de que qualquer dificuldade na relação entre a ciência e a sociedade se deve inteiramente à ignorância e às dificuldades de entendimento do público; e que, intensificando as atividades voltadas a facilitar a sua compreensão, todos podem alcançar um melhor nível de conhecimento, a partir do qual tudo ficará mais claro. Considera esta visão inadequada, destacando que o Conselho Britânico foi mais longe, chamando-a de "desatualizada e potencialmente desastrosa".
No JC, n. 453, p. 4, Candotti apresenta as principais conclusões do relatório[12] resultante de um estudo sobre as relações entre ciência e sociedade, realizado por uma comissão criada pelo Parlamento Inglês. Dentre essas, destaco:
"Todo o processo desde a definição dos problemas até a avaliação e implementação das políticas científicas deve ser tornado mais democrático" "A independência dos cientistas e os seus pareceres são questionados em vista de seus fortes laços com instituições privadas que financiam a pesquisa e têm interesses comerciais em seus resultados" "Foi desastrosa a política até agora adotada para promover a compreensão da ciência pelo público através, apenas, do aumento das doses de informação, sem levar em conta o que ele espera, teme ou pensa dos avanços da ciência" "Certezas e incertezas devem ser igualmente valorizadas nas discussões públicas e na divulgação da ciência e de suas aplicações tecnológicas" "É motivo de confusão, no debate público sobre questões de ciência, acreditar que os problemas de risco possam ser reduzidos a um conjunto de questões para as quais a pesquisa científica é capaz de dar respostas não controversas. Na maioria das vezes, na verdade, as questões são complexas. A compreensão científica pode contribuir para uma solução dessas questões, mas em parceria com julgamentos baseados nas atitudes do público, valores e ética"
4. Considerações finais
Cada vez mais, corporifica-se a idéia da democratização da ciência e tecnologia como pré-requisito para o exercício da cidadania, da democracia. Nesse ponto, situamos uma das principais considerações em relação às reflexões realizadas nesse trabalho: levantamos a hipótese de que, ao reivindicar a divulgação, popularização de conhecimentos, fatos, informações, conceitos científicos, com a honesta justificativa de sua imprescindibilidade para o exercício democrático, pode-se, contribuir, de fato, para o estrangulamento do exercício pleno da democracia, reforçando postulações tecnocráticas. Fourez[13] alerta para o fato de que tentar resolver um problema, desvinculando-o das relações sociais em que se configura, de forma apenas técnica, via aumento de conhecimentos técnico-científicos, significa um retorno à tecnocracia.
Colocado de outra forma, na socialização, na democratização de informações, do conhecimento científico e tecnológico, está implícito o risco de que, subjacente a isso, haverá a "socialização", o reforço de mitos, de dogmas, construídos historicamente, incompatíveis como o efetivo exercício da democracia. Mitos, dogmas que podem reforçar a cultura de passividade, característica cultural brasileira, denunciada por vários autores[14].
Além disso, em vários contextos, emerge a preocupação com a perda de confiança, da sociedade, na CT, havendo movimentos no sentido de conquistá-la ou reconquistá-la. Nesse sentido, há vários aspectos, no nosso entender, a serem considerados:
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[1] Doutorando em Educação
- Ensino de Ciências Naturais, UFSC.
[2] Nessa, o desenvolvimento científico
(DC) gera desenvolvimento tecnológico (DT), este gerando o desenvolvimento
econômico (DE) que determina, por sua vez, o desenvolvimento social
(DS - bem estar social).
DC -> DT -> DE -> DS (modelo tradicional/linear de progresso) – (Lujan
et al., 1996).
[3] Gómez (1997) destaca
que, na sociedade norte-americana, com altíssimo desenvolvimento
tecnológico, foi ganhando corpo uma compreensão determinista
da tecnologia, “até aparecer como parte da ideologia dominante na
maioria do povo norteamericano”.
[4] A superteoria do progresso apresenta
o tempo de forma linear, contrariamente a superteoria do eterno retorno
(teoria do tempo cíclico). Nessa última, está articulada
uma concepção de mundo que contém a crença
de que cada ciclo repete em seus detalhes o curso e os acontecimentos
do ciclo anterior. Não podia, nessa, frutificar a idéia estrita
de progresso. Também na superteoria da providência divina
isso era inconcebível.
[5] Fourez (1999), referindo-se
a ACT, utiliza as expressões “sentido restrito” e “sentido amplo”.
[6] Esse caráter redentor,
supostamente atribuído à CT, pode ser cotejado com o mito
que nós denominados de perspectiva salvacionista da CT.
[7] Na prática problematizadora,
propõe-se aos educandos sua situação de vida como
problema. Propõe-se a eles sua situação como incidência
do ato reflexivo.
[8] Para uma compreensão
mais ampla desse processo, pode-se consultar Pernambuco (1993) e Delizoicov
(1991, cap. 3).
[9] Menezes (1988 ), físico-educador
argumenta que o ensino de Física, em todos os níveis,
é excessivamente centrado no instrumental teórico, em detrimento
da reflexão sobre o universo natural e prático, devendo ser
redirecionado no sentido de permitir tanto a “formação de
visões-de-mundo quanto a aquisição de conhecimentos
úteis à vida”.
[10] Nesse sentido, Delizoicov
argumenta que não é qualquer conhecimento “universal” que
possui caráter transformador.
[11] Freire refere-se à
sua gestão frente a Secretaria Municipal de Educação
de São Paulo, de 1989 a 1991.
[12] Esse relatório, do
parlamento britânico, segundo Candotti, orientou um ciclo de debates
coordenado pelo Conselho Britânico em diversas partes do mundo, intitulado
Ciência e Sociedade: rumo à democratização da
ciência. O relatório dessa comissão pode ser encontrado
no site www.parliament.the-statinary-office.co.uk/pa/ld199900/ldselect/ldsctech/38/3804.htm
[13] Análise realizada,
por Fourez, em Seminário ocorrido, em outubro de 1999, no Programa
de Doutorado em Educação na UFSC.
[14] Vários autores, dentre
esses Paulo Freire, têm denunciado que um elemento integrante da
cultura, do povo brasileiro, é a passividade, ou a “cultura do silêncio”.
[15] Folha de São Paulo,
28/01/2001, A-15.