UM PROJETO DE PESQUISA NO APERFEIÇOAMENTO DE PROFESSORES


Jesuína Lopes de Almeida Pacca[1]
Instituto de Física – USP

Resumo

    Este trabalho pretende ser uma contribuição para a ação dos formadores de professores tanto na formação inicial como na contínua. Retomando a questão do professor reflexivo, da aprendizagem significativa e do trabalho do professor a partir do erro do aluno procura discutir um programa realizado com um grupo de quatro professoras da rede pública envolvidas com o planejamento de um curso de eletricidade. O aprofundamento do trabalho e a necessidade da precisão e rigor no estabelecimento dos conceitos e na compreensão do conteúdo levou os professores a uma pesquisa sobre as concepções de senso comum com respeito a esse conteúdo, culminando com resultados originais no campo da pesquisa publicada nessa área, além dos subsídios importantes e necessários para conduzir o ensino na sala de aula.

Abstract

    This article aims to be a contribution to the action of people dealing with teachers formation not only in the initial stage but also in a continuous process. Taking up the questions of reflexive teachers, meaningful learning and the work of teachers after students mistakes we discuss a program that has been carried out with a group of four public school teachers who were involved with the planning of an electricity course. Deepening of the work and the need for precision and rigor in the establishment of concepts and in the understanding of contents have led the teachers to a research on common sense conceptions regarding to this subject that resulted in original data in the published research in this area besides the important results that are necessary to lead classroom teaching.
 

Introdução

    A última década foi marcada pelo foco que as pesquisas em educação científica colocaram na formação e aperfeiçoamento dos professores. Muitos resultados levaram a uma compreensão bastante razoável do que seria a competência do professor coerente com concepções modernas de aprendizagem e construção do conhecimento científico, especialmente no ensino da física. O final do século culminou com a idéia quase unânime entre os pesquisadores, do professor reflexivo na sua prática pedagógica. Entretanto essa unanimidade parece não chegar ao significado mais profundo e às conseqüências dessa compreensão, de modo a permitir ações concretas para as mudanças desejáveis nas competências atuais dos professores de física, capazes de levá-los a conduzir suas classes de modo coerente com a concepção construtivista da aprendizagem. De certo modo, essa situação repete a encontrada há mais de 10 anos quando se podia dispor de muita informação acerca do modo de pensar e de resolver problemas dos indivíduos e não se tinha o correspondente sucesso com uma mudança efetiva em sala de aula.

    Temos trabalhado com a formação continuada de professores de Física em exercício no ensino médio sempre focalizando o desenvolvimento dos cursos na (re)elaboração do planejamento didático, tentando partir de uma proposta inicial do próprio professor. Há dois anos concluimos um projeto com cerca de 20 professores, financiado pelo programa de Ensino Público da FAPESP. Para nossa surpresa, terminado o projeto, alguns desses professores continuaram a reunir-se por conta própria, para continuar seus estudos sobre outros conteúdos que julgavam interessantes e que haviam sido sugeridos e originados no programa. Isto já se constitui, para nós num resultado positivo e, ao menos motivador quanto a ações no aperfeiçoamento de professores em serviço. Apesar de estarem fora de um projeto oficial, esporadicamente continuaram solicitando nossa assessoria a medida que encontravam necessidade e queriam avançar no estudo. No semestre passado resolvemos assumir uma orientação mais efetiva propondo estudar o conteúdo de eletricidade e eletromagnetismo com o objetivo de produzir um planejamento para o ensino na sala de aula. De fato, o entusiasmo com que os professores continuavam num trabalho de estudo do conteúdo de física, de produção de material pedagógico e de envolvimento com a aprendizagem de seus alunos nos pareceu o resultado mais evidente de um processo de aperfeiçoamento que os dotava de uma capacidade de transferência e de resolver problemas altamente desejável no perfil do professor reflexivo. Neste momento eles se dispunham a estudar e planejar o ensino da eletricidade e nós viamos a oportunidade de continuar a pesquisa sobre o professor de física e sua formação.

    Esse conteúdo costuma ser tratado de modo insatisfatório, resolvendo problemas de circuitos como aplicação de regras estabelecidas e pouco compreendidas e problemas da eletrostática que, em geral, não são relacionados com a corrente elétrica, energia e diferença de potencial. Algumas pesquisas sobre as dificuldades em compreender e ensinar esse conteúdo aparecem na literatura específica (Rainson & Viennot, 1998), entretanto quando se pensa no trabalho do professor, as informações disponíveis são ainda insuficientes; como sabemos a transferência desses resultados de pesquisa publicados na forma de artigos científicos para a sala de aula, não é simples nem imediato, exigindo não somente uma leitura particular do pesquisador como também a compreensão do próprio conteúdo científico com razoável profundidade.
 

Professor reflexivo e aprendizagem significativa

    A formação do professor tem também produzido grande quantidade de publicações de pesquisas e reflexões que deram à última década o tom especial das pesquisas. No contexto desses resultados o conceito de professor reflexivo foi amplamente utilizado e no seu perfil um ingrediente importante é a sua capacidade de enfrentar problemas (Perrenoud, 2000). O trabalho do professor com projetos de pesquisa já tem sido considerado como meio eficiente para formar o professor reflexivo. Tentaremos explorar aqui essa questão aprofundando sobre o que pode estar por tráz do trabalho com um projeto de pesquisa e que pode tornar o professor reflexivo, autônomo e consciente da sua prática, capaz de promover a aprendizagem significativa dos seus alunos.

    Outra questão também bastante considerada na pesquisa recente, referente ao perfil do aluno que aprende é a aprendizagem significativa, isto é, aquela que tomando bases construtivistas leva à compreensão do conteúdo com os conceitos e relações articulados e estruturados de forma a garantir a transferência desejável na resolução de problemas novos em contextos diferentes.

    Reunindo essas competências de quem ensina e de quem aprende no que se refere ao conteúdo da disciplina, pensamos no professor conhecedor do conteúdo de modo significativo e no aluno que se manifesta e expõe seu conhecimento atual durante o processo da aprendizagem. A transferência didática é o objeto que deve ser focalizado aqui e como diz Perrenoud (2000) transferência e competência estão indissociavelmente relacionadas e que toda competência disciplinar é transversal, porque ela "atravessa diversas situações e não se encerra na situação inicial".

    Parte dessa competência transferencial é o que se deseja também do aluno, quanto ao conhecimento do conteúdo; assim, a aprendizagem significativa deve supor a capacidade de transferência do sujeito. Seguindo essa linha de pensamento, consideramos que a prendizagem se efetivará como significativa quando for construida a partir da(re)elaboração do erro e que para conduzir o processo é necessário o professor dito reflexivo.

 
O planejamento da ação pedagógica

    O grupo com 7 professores à época aceitou o convite, reunindo-se quatro horas por semana regularmente. A produção do planejamento começou com o conceito de corrente elétrica e sua relação com a estrutura dos materiais; tomamos essa questão pela sua pertinência dentro da Física Moderna, como conteúdo que vem sendo considerado importante no currículo do ensino médio e introduzido ai com algum esforço. O trabalho passou a ser acompanhado também por duas professoras-pesquisadoras que tinham interesse em produzir suas tese de mestrado e doutorado sobre a questão do eletromagnetismo no ensino médio.

    O trabalho começou com a aplicação de algumas atividades sobre eletricidade para seus respectivos alunos. Esse procedimento repetia aquele que já havia sido estabelecido para desenvolver o curso em sala de aula. No programa de aperfeiçoamento anterior já referido (Pacca & Villani, 1996) haviam trabalhado com o conteúdo de Mecânica, tendo produzido elementos (material didático analisado) para um planejamento que já era utilizado com seus alunos; esse planejamento incluia uma dinâmica especial de sala de aula em que a expressão dos alunos era ingrediente essencial porque permitia explorar o erro. Assim, a produção de um planejamento, tal que pudesse ser reelaborado on line, partiria das concepções já conhecidas pelos alunos, centrando a discussão nos erros, através da aplicação de atividades que permitissem colocá-los em questão.

    As questões/diagnósticas sobre a eletricidade, tratando do conceito de corrente elétrica e de átomo foram emprestadas de um nosso trabalho anterior (Fukui & Pacca, 2001); elas constituiam o instrumento de tomada de dados que haviam gerado um quadro de concepções de alunos e professores sobre essas questões.O grupo de professores passou a desenvolver as atividades desempenhando o papel dos alunos na resolução das questões propostas; em seguida discutia-se a aplicação com os alunos.

    As questões eram as seguintes: 1.Desenhar o átomo e 2.Desenhar a corrente elétrica dentro do condutor num circuito com uma lâmpada e uma pilha. Essas questões tinham dois principais objetivos. Um deles era conhecer a concepção de corrente elétrica já conhecida pelos alunos e o outro era identificar se havia alguma relação entre as concepções dos alunos quanto ao modelo de corrente elétrica e o modelo de átomo. As explicações sobre a produção e o comportamento da corrente elétrica fluindo num condutor e as representações do átomo mostravam modelos bastante afastados da concepção científica, além de uma total falta de conexão entre a corrente elétrica e a estrutura física do material que a comporta.

    O conhecimento desse conteúdo de senso comum seria subsídio essencial para planejar atividades e orientar a aprendizagem baseada na consideração do erro como elemento/base pedagógico e epistemológico da construção do conhecimento científico.
 

As dificuldades dos professores

    As respostas dos professores foram analisadas por nós e numa comparação com as correspondentes dos alunos, pudemos encontrar diferenças significativas (Fukui & Pacca, 2001). Enquanto para os alunos o átomo se apresentavo com modelos já cunhados pelos textos e pela midia em geral, para os professores o modelo representado apresentava nuanças e detalhes que pareciam trazer concepções bastante particulares e individualizadas; a variedade de representações através do desenho é bastante grande podendo mostrar características bastante pessoais. Ao contrário, o modelo de corrente elétrica representado pelos alunos trazia marcas individualizadas mostrando uma imaginação rica para dar conta de algo que está no campo da abstração e cujas evidências estão nos fenômenos da vida diária sem terem sido formalmente elaborados; para os professores a representação mostrava elementos já instituidos e formalizados pela física, mesmo que pobres de conteúdo e de significação; os esquemas reproduziam a figura dos livros e traziam poucos detalhes. No caso do átomo era freqüente os professores se expressarem também em palavras, querendo dizer mais do que o desenho era capaz de representar; no caso da corrente elétrica, a falta desse detalhe revela para nós as dificuldades em compreender de fato o conteúdo físico desse conceito corrente elétrica, relacionando-o à estrutura dos condutores ou dos materiais em geral.

    Dos 7 professores do grupo, 4 professoras aplicaram e obtiveram uma quantidade razoável de material escrito. Nessa atividade tiveram ações diferenciadas quanto à dinâmica da sala de aula, alguns obtiveram respostas individuais, outros trabalharam em grupos pequenos (2ou3), outros fizeram uma discussão geral com a classe após trabalharem em grupo para a preparação de um painel e organização de uma discussão posterior.

    O resultado dessa atividade foi positivamente surpreendente para os professores e, para nós, o entusiasmo dos professores superou a expectativa. Num primeiro momento puderam perceber a riquesa de informação e de ação trazida por uma atividade como essa, onde o desenho permite uma expressão rica, significativa e individualizada e o conteúdo é motivador bastante para gerar o interesse dos alunos. Entretanto, os professores, em seguida se deparam com uma situação, pelo menos embaraçosa, com alunos ativos, cheios de dúvidas , idéias e expressando seus "erros". O prosseguimento da aula exigia uma competência especial do professor, que em geral não existia.

    De fato, orientar a aprendizagem na sala de aula utilizando os resultados sobre as formas erroneas de expressão dos alunos não é simples no trabalho do professor. Os dados brutos indicam os erros – identificados de início como situaçoes cômicas e absurdas ou às vezes com as concepções dos próprios professores que ao se depararem com elas tomam consciência das incoerências ai representadas. Assim essas informações ficam em grande parte perdidas e não entram como subsídio para procurar novas atividades ou promover discussões adequadas.

    Nesta fase propuzemos realizar com as professoras alguns experimentos para compreender melhor a corrente elétrica na estrutura atômica dos materiais. Escolhemos a ELETRÓLISE e a PILHA DE VOLTA, que foram montadas e estudadas pelo grupo até produzirem as explicações para os fenômenos e podermos discutir as suas concepções. As professoras propuzeram também levar esse material para uma "sala de aula" onde nós seriamos o professor, mostrando que mesmo após a discussão eles não estavam seguros para essa tarefa.

    Os experimentos foram levados para uma "sala de aula", constituida por alunos voluntários num horário fora das aulas regulares. As professoras puderam interagir com os alunos buscando a explicação e compreensão do fenômeno. O acervo de atividades e de respostas/explicações sobre os fenômenos em questão que se constituiu nos ofereceu neste momento um material fértil para ser analisado criteriosamente para revelar alguma possível coerência interna e estrutura alternativa, necessária para o trabalho do professor tendo em vista favorecer a aprendizagem.
 

A pesquisa das concepções – construção de categorias

    Conduzimos um trabalho de análise do material até chegar a um quadro de idéias que pudessem dar conta das expressões dos alunos. Essa análise é difícil para o professor; ele é capaz de perceber alguma coisa em comum nas respostas mas que não têm a característica de um modelo que de algum modo possa explicar um conjunto delas de modo coerente. As categorias iniciais dão conta de erros vistos de modo absoluto em relação ao conhecimento científico, mas nesse conteúdo tambem pouco conhecido pelo professor também não são muitas, além de pouco significativas.


As primeiras categorias

    Partindo do material dos alunos, dado pelos desenhos e respostas escritas, principalmente, partiram para uma organização inicial das respostas numa primeira tentativa de classificação com respeito a alguma semelhança. A atividade na "sala de aula"fictícia também ajudou a encontrar atributos e elementos para essa classificação. Uma primeira aproximação deu o seguinte quadro para representar os principais padrões de respostas com os correspondentes exemplos:


1 - variedade e confusão de termos

    Os termos "eletricidade", "energia", "corrente de energia", "eletrons", "corrente elétrica" são usados indiscriminadamente para se referir ao que ocorre dentro do fio condutor.
2 - explicações incorretas
    Por exemplo dizer que "a energia sai da pilha positiva e depois de passar pelo fi volta para a pilha negativa" ou que "as cargas viram energia ao passarem pela lâmpada"
3- conceito mágico Por exemplo dizer que "a corente elétrica é uma coisa mágica" ou que "a luz é como faisca".     De modo geral vemos que nessa classificação falta objetividade, discriminação de detalhes fisicamente significativos além da necessária interpretação capaz de construir um modelo explicativo.

    Num esforço para desdobrar as categorias 2 e 3 propusemos considerar os comentários e as dúvidas manifestados durante a realização da experiência da Eletrólise e da Pilha; a questão do circuito completo apareceu relevante sugerindo uma categoria nomeada ausência de circuito, para dar conta de algumas respostas. As professoras concluiam dos desenhos que, "apesar de ser uma linha que se fecha, não tem função de condutor, pois tem diferentes elementos em cada ramo; são dois sentidos, um positivo outro negativo; e geralmente o filamento da lâmpada não faz parte do circuito". Uma resposta de aluno diz "um fio contem energia positiva e outro contem energia negativa, as forças têm que ser diferentes, o negativo passa menos energia e o positivo passa mais energia".

    O aprofundamento do conhecimento e reelaboração de categorias

    As expressões dos alunos de fato trouxeram novas informações para evoluir nas categorias que pudessem representar um modelo espontâneo. Depois de algumas reformulações que se seguiam às nossas discussões procurando introduzir critérios explicativos para criar categorias, chegaram a um quadro final considerado satisfatório de acordo com dois critérios principais: ser capaz de dar sentido às respostas erradas a partir do modelo alternativo inferido e ser capaz de facilitar a ação do professor trabalhando com modelos no lugar de erros puntuais e localizados.


As categorias finais e o modelo de corrente

    Obviamente a construção e identificação dessas categorias significativas foi conseguida a partir de nossa intervenção com orientação característica de uma pesquisa qualitativa, aplicada aqui a uma situação bastante familiar para as professoras. Dessa forma parecia que o quadro tinha um sentido claro para elas, o que ficou patente pelos resultados finais e por comentários de todas.

    O quadro final foi apresentado pelo grupo no XIV SNEF em julho passado e ficou assim constituido pelos elementos que representam um modo alternativo de pensar a corrente elétrica:

    1 - Energia, Carga, Eletricidade. Esses termos são utilizados indistintamente, sem dar conta do fenômeno da corrente elétrica e as características essenciais tais como fluir,ter uma direção de percurso, ser constituida por cargas elétricas.
    2 - Ausência de circuito. Apesar das conexões unindo os elementos concretos num caminho fechado, não aparece a função de condutor da eletricidade num circuito fechado; cada ramo do fio que sai da pilha conduz algo em sentidos diferentes, um positivo e outro negativo.
    3 - Circulação. Os fios servem como condutores de uma energia porëm sem se fecharem num circuito que inclui o filamento da lâmpada.
    4 - Faisca, Curto-circuito. Alguma coisa é armazenada nos extremos do fio, positiva e negativa, e ao se encontrar na lâmpada produz uma faisca.
    5 - Termos, palavras de senso comum. Não há precisão de linguagem e os termos são vagos, ligados ao significado de senso comoum.
    As figuras anexadas no final mostram os resultados desse trabalho tal como foram sintetizados no painel apresentado no Simpósio referido.


Significado do projeto de pesquisa na competência do professor

    O fato de terem participado de todas as etapas de análise do material e construção das categorias, propondo as modificações que eram posteriormente discutidas, socializadas e enriquecidas com novos subsídios da intervenção externa, pode dar sentido ao conteúdo expresso por essas categorias em termos de explicações alternativas à explicação científica; todas as professores que acompanhavam o trabalho em todo o seu desenvolvimento pareciam compartilhar da significação atribuída. Voltando à questão da transferência das informações sobre o modo de pensar dos alunos para a ação do professor, podemos dizer que o que falta para o professor compreender as concepções dos alunos e trabalhar com elas para ensinar, na sala de aula, é a possibilidade de trabalhar com os erros. Antes de uma análise com mais rigor e profundidade não é possível conceber o modelo que está na base dos erros: a forma alternativa e particular de compreender a eletricidade e a estrutura dos materiais, capaz de dar sentido aos erros. É preciso considerar que uma resposta, mesmo que errada, é uma explicação e que tem sentido para o aluno.

    Assim, para criar situações que favoreçam a mudança dessas concepções, particulares e locais, é preciso dotar o aluno com um modo de pensar com teorias mais gerais e consistentes que são características do pensamento científico. Para os professores a construção dessa generalidade e consistência no trabalho de pesquisa das concepções a partir das respostas, aparentemente sem sentido, foi suficiente para levá-los ao conhecimento preciso dos limites da validez do quadro construído (a regra) e a possibilidade de classificar os casos particulares e as exceções. Desse modo, a transferência tornou-se possível, isto é, a possibilidade de comprovar, em um novo contexto, as ferramentas que resultaram operativas mas que só se haviam aplicado em um campo limitado.

    Nas palavras de Astolfi (1999), a transferência não se faz depois da aprendizagem, não é posterior ao trabalho didático, porem deve ser parte deste trabalho. Uma autêntica atividade intelectual capacita para aproximar dois contextos e o sujeito só progride quando é capaz de praticar um trabalho de mudança de contexto, de experimentar de forma pessoal as ferramentas que domina nas distintas situações em que vai se encontrando.

    O trabalho de categorização configurou a produção de um esquema, no sentido piagetiano, na medida em que o processo de repetição em busca da estrutura geral conduziu à objetivação, à formalização das ações e das operações; sendo assim, as categorias passaram a constituir o que era transferível, generalizável nas repostas dos alunos. Para Piaget, o esquema constitui uma totalidade, isto é, um conjunto coerente de elementos que se interrelacionam e asseguram a significação global do ato de análise dos dados brutos, distinguindo-se de um automatismo ou de um condicionamento. A possibilidade de transferência, objetivo da aprendizagem significativa, está ligada ao conceito que Piaget chama de transversalidade da aprendizagem

    O quadro de categorias representa na sua forma final um modo simples de dar significado às respostas, entretanto, essa simplicidade é fruto de uma construção intelectual, portanto longe de ser simples A profundidade na análise do conteúdo das noções dos alunos expressas nas respostas foi a concretização dessa ação intelectual.

    Ora, o professor reflexivo deve ser capaz de compreender os alunos para intervir e manter com eles o diálogo construtivo, incluindo a possibilidade de considerar suas respostas surpreendentes. Portanto a competência adquirida quando se envolve com uma pesquisa será condição necessária para esse desempenho. No caso deste trabalho, a possibilidade de distinguir "requisitos prévios" do que constitui o "conhecimento já adquirido", isto é, o que é exigível para abordar um conteúdo novo daquilo que é um inventário incial a ser levado em conta como tal, parece ter sido um fator preponderante e esta performance depende da atuação efetiva do professor. Como afirma Perrenoud (2000), a transferência não é terminal, é permanente. E a isto acrescenta uma conseqüência entre outras: a preocupação de fazer com que atividades metacognitivas existam não deveria estar presente somente no final de uma aprendizagem, mas ao longo de toda a aprendizagem.

    Visto de outro modo, Alarcão (1996) relaciona a competência do professor reflexivo com o seu conhecimento do conteúdo da disciplina, capaz de dotá-lo da autonomia necessária para sua ação: "Refiro-me ao movimento do professor reflexivo que, em relação aos alunos,tem a sua contrapartida no movimento para a autonomia do aluno.... (nesta abordagem) se dá voz ao sujeito em formação numa tentativa de restituir aos professores a identidade perdida, aos alunos a responsabilidade perdida e de devolver à escola a sua condição de lugar onde se interage para aprender e onde se gosta de estar porque se aprende com o inerente entusiasmo e prazer de quem parte à descoberta do desconhecido".

    Assim, consideramos também que a construção de competências está ligada à transferência e esta só é realizada com o conhecimento significativo do objeto da ação. "Se resta algo, quando se esqueceu tudo, não é porque esse algo não seja da ordem do conhecimento e da informação, mas da capacidade de encontrar, de reunir, de reconstruir, de reler, até mesmo de aprender? É isso que constitui uma competência, além dos conhecimentos que ela mobiliza, atualiza, extrapola ou produz. ... Relacionarei indissociavelmente transferência e competência, a ponto de dizer que toda competência é transversal, no sentido de que ela atravessa diversas situações e não se encerra na situação inicial… A competência é indissociável da capacidade de enfrentar o novo com a condição de que se possa reduzi-lo ao conhecido" (Perrenoud, 2000).

    A competência é uma capacidade de produzir hipóteses, até mesmo saberes locais que são constituíveis a partir dos recursos do sujeito. Logo, trabalhar a competência equivale a formar para competências mais do que para apenas conhecimentos.


Bibliografia

Alarcão, I. (1996) . Ser professor reflexivo. In Formação Reflexiva de professores. Estratégias de supervisão. Porto Editora, Porto.

Astolfi, J. P. (1999) El "error", un medio para enseñar. Diada Editora S. L., Sevilla.

Nóvoa, A. (org.). (1995) Profissão Professor. Porto Editora, Porto.

Perrenoud, P. (2000) Pedagogia Diferenciada. Das intenções à ação. Artmed Editora, Porto Alegre.

Pacca, J. L. A. & Villani, A.(1996) Um curso de actualización y cambios conceptuales en profesores de Física. Enseñanza de las Ciencias 14(1) pp. 25-33

Rainson, S. & Viennot, L. (1998) Charges et champs électriques: difficultés et éléments de stratégie pédagogique en Mathématiques Spéciales Technologiques. Didaskalia. 12, pp. 9-37

Modelo de Corrente Elétrica e Modelo Atômico

Ana Fukui Maria Cristina Fernandes Bueno Suely Mancini Rosa Maria Pires Valério Regina H. C. Ponteli Costa Jesuína Lopes de Almeida Pacca


 
 
 

OBJETIVOS

Conhecer as concepções espontâneas dos alunos sobre átomo e corrente elétrica. 
Conflitar o senso comum do aluno com conceito científico. 
Criar subsídios para o planejamento do professor visando um aprendizado efetivo e significativo
 

METODOLOGIA 

População: 200 alunos do ensino médio da Escola Pública do Estado de São Paulo
 Instrumento de Análise: Desenhos e frases dos alunos. 
 
 

CATEGORIAS DE ANÁLISE
 
1. Energia e eletricidade:   
“...Energia: força:eletricidade negativa, positiva...”
 
“...positivo para mim é que contém mais energia e negativo é o lado que contém menos energia.”
 

2. Ausência de circuito: 
“...e as duas forças se equilibram na molinha da lâmpada fazendo acender...”
“...A energia da pilha chega até a lâmpada através dos fios e vai até a molinha e faz a lâmpada acender..”.

3. Circulação: 
“...Ligando o fio, a pilha e a lâmpada, ocorrerá uma passagem de elétrons liberada pela pilha que se conduzirão até a lâmpada onde entrarão em curto circuito...” 

 4. Curto-circuito/reação: 

“Quando o fio fecha circuito com a pilha o lado positivo (+) fica em alinhamento com o lado negativo da lâmpada, assim sendo a energia elétrica queima a “mola”da lâmpada porque a passagem de energia foi fechada entre a pilha e a lâmpada.”
 “O encontro de uma força negativa de uma das pilhas com outra positiva da outra pilha forma uma reação.”
 “...A energia positiva da pilha é conduzida até a lâmpada onde se junta com a energia negativa causando uma reação no filamento acendendo a lâmpada..”.
 

5. Variedade de palavras: 
“O pólo positivo sobe pelo fio do lado esquerdo da lâmpada e o pólo negativo sobe através do fio de cobre pelo lado direito do fio da lâmpada.”
 

CONCLUSÕES
 

  • Desenhos como recurso didático.
  • Incoerência entre modelo de átomo e de corrente elétrica.
  • Ruptura nas disciplinas Física e Química.
  • Experimentos como recursos para construção de modelos. 


RECOMENDAÇÕES PARA A SALA
DE AULA    

•Motivação para o professor e para o aluno.
 
•Participação do aluno permitindo que o aluno pense, se expresse e busque uma explicação para o que foi observado.•Organização dos conteúdos sob diversos pontos de vista.
 

[1] Com apoio do CNPq. e-mail: jesuina@if.usp.br