TUTORIA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE CIÊNCIAS - UM MODELO PAUTADO NA RACIONALIDADE PRÁTICA


Maria Inês Freitas Petrucci dos Santos Rosa
UNIMEP – S.P.
minesrosa@uol.com.br

Abrahão Gomes Medeiros
UNIMEP- S.P.

Eunice Kimie Higa Shimabukuro
E.E. Barão Geraldo de Rezende – S.P.


Resumo

    Este artigo analisa um processo de pesquisa relacionada ao estágio dos cursos de licenciatura em Ciências, focalizando limites e possibilidades do modelo de tutoria em relação à melhoria da formação docente. Através da incorporação da estratégia de experimentação compartilhada, foi possível identificar o suprimento de necessidades formativas de professores de Ciências, o papel do supervisor de estágio e as categorias que sustentam o processo de tutoria. Tal processo foi compreendido tendo como referência pressupostos teórico-metodológicos de investigação-ação.

Abstract

    This paper analyses a research process related to probation in Science teacher education. Through the incorporation of a strategy called shared experimentation, it was possible to identify: the supply of Science teachers’formative needs; the supervisor’s role and the categories that sustain the tutorial relationship.


Problemas da formação docente de Ciências e possibilidades de superação

    A literatura sobre pesquisa em Educação em Ciências aponta, já há algum tempo, problemas advindos do modelo de formação docente vigente durante o último século, nos cursos de licenciaturas, tanto no cenário nacional como internacional.

    Tal modelo de formação docente apóia-se usualmente na racionalidade técnica, segundo a qual o profissional se constitui a partir da aplicação de conhecimentos científicos em situações práticas

    Schön (1992;1998) foi um dos primeiros a criticar esse modelo de formação pautada na racionalidade técnica, responsabilizando-o pela crise de confiança profissional que se agravou nas últimas décadas, inclusive entre professores. Para ele, as instituições universitárias se limitam a ensinar os futuros profissionais a tomar decisões que visam a aplicação técnica de conhecimentos científicos, como se assim fosse possível solucionar problemas da vida real. Nesse sentido, ele aponta:

"Quando o movimento científico, a industrialização e o programa tecnológico dominaram a sociedade ocidental, emergiu uma filosofia que pretendia tanto proporcionar um registro dos triunfos da ciência e da tecnologia, como purificar a humanidade dos resíduos da religião, do misticismo e da metafísica que atrapalhavam o pensamento científico e a prática tecnológica no domínio total sobre os assuntos humanos." (Schön, 1998: 41)     Essa maneira de pensar a formação profissional desconsidera a complexidade da prática, que é constituída por eventos inesperados, incontroláveis e que exigem tomadas de decisões rápidas. A visão técnica dos problemas práticos não permite ao profissional o desenvolvimento de formas criativas de soluções nem a disponibilização de recursos criativos para a ação.

    Entre os séculos XIX e XX, a racionalidade técnica consolidou um modelo positivista de universidade que trabalhava, a partir da seguinte visão:

"... as profissões proporcionam problemas práticos à universidade e, a universidade, a única fonte de investigação, devolve às profissões o novo conhecimento científico; para as quais, aplicá-lo e colocá-lo à prova será sua ocupação." (Schön, 1998: 45).     Isso dividiu a produção de conhecimento profissional em dois níveis hierárquicos de trabalho: um ocupado pelos que criavam uma nova teoria, portanto eram superiores e, o outro ocupado pelos que aplicavam as teorias na vida prática. Esse movimento emergente no início do século passado o atravessa, sendo evidenciado de diferentes maneiras.

    As implicações desse modelo na formação inicial de professores aparece na dissociação entre disciplinas específicas e pedagógicas, sendo usualmente essas últimas abordadas no período final do curso, o que evidencia a separação entre o saber e o fazer. (Rosa, 2000)

    Contrapondo-se a esta conjuntura, a literatura vem apontando, nos últimos anos, a emergência de tendências que visam à superação da concepção da educação como ciência aplicada. (Menezes, 1996) Carvalho também aponta:

"Este saber fazer que quase sempre se dá nos estágios supervisionados nas escolas fundamental e média, precisa ser pensado como um laboratório onde os professores vão testar suas hipóteses de ensino, onde a relação teoria –prática deve estar sempre presente. Todos os conceitos de "reflexão na ação" e "reflexão sobre a ação" (Schön, 1992, Zeichner, 1993) podem e devem ser estimulados durante os estágios." (Carvalho, 2001:214)     Em outras palavras, a crise de confiança profissional, provocada pela racionalidade técnica, pode ser superada, conforme o pensamento de Schön, se os profissionais puderem romper a separação hierarquizada entre teoria e prática. Na obra de Schön, os conceitos citados por Carvalho aparecem, juntamente com o do "conhecimento na ação", como eixos sustentadores de um agir profissional pautado na prática.

    O conhecimento na ação se manifesta na execução da ação, sendo tácito e composto na espontaneidade com que uma ação é desenvolvida. Por ser tácito, é difícil um profissional descrevê-lo, porém, isto não torna menos importante o seu papel no campo prático.

    A reflexão na ação se dá no decurso da própria ação propiciando sua reformulação constante, enquanto ela é realizada. Já a reflexão sobre a ação ocorre na reconstrução mental da ação com o propósito de análise, que se concretiza a partir de um distanciamento da situação prática.

    Há ainda um quarto conceito no pensamento de Schön, descrito aqui por Alarcão:

"Estes dois momentos de reflexão têm um valor epistêmico e tê-lo-ão ainda mais se sobre eles exercermos uma outra atividade que os ultrapassa: a reflexão sobre a reflexão na ação, processo que leva o profissional a progredir no seu desenvolvimento e a construir a sua pessoal de conhecer. A reflexão sobre a reflexão na ação ajuda a determinar as nossas ações futuras, a compreender futuros problemas ou a descobrir novas soluções." (Alarcão, 1996:17)     Assumindo assim, que a reflexão oriunda da prática é um elemento fundamental na formação docente, nos propomos neste trabalho a analisar como isso se dá, quando o futuro professor de Ciências se insere no contexto escolar como estagiário, interagindo com um professor experiente em serviço, que designaremos como tutor.

    O modelo de tutoria na formação docente também se apóia em pelo menos, duas estratégias de formação propostas por Schön: a experimentação compartilhada e a demonstração acompanhada de reflexão (follow me ).

    A experimentação compartilhada pode apontar muitas formas possíveis no planejamento de uma determinada ação, pode introduzir a idéia de planejar uma execução através de experimentos parciais que ajudem a refinar as percepções que se tem sobre os resultados. Ela envolve os três níveis de reflexão apontados: na ação; sobre a ação e sobre a reflexão na ação.

    A demonstração acompanhada de reflexão consiste no desenvolvimento, geralmente improvisada, de uma atividade que se executa e se comenta pouco a pouco. Para Schön: "o convite a imitar é, de certo modo, um convite para experimentar". (Schön, 1992: 193)

    Em suma, as estratégias formativas propostas abrangem demonstrações acompanhadas de comentários sobre os processos vivenciados, esclarecimentos como expressão dos processos de reflexão na ação e diálogo com a situação, envolvimento do estagiário nesse mesmo diálogo, encorajamento, instruções, sugestões, iniciação do estagiário na linguagem própria da profissão e nas formas de pensamento e atuação profissionais. (Alarcão, 1996)

    O tutor, sendo o profissional experiente, pode desenvolver essas estratégias, buscando estimular o desenvolvimento do professor iniciante (estagiário) numa perspectiva reflexiva. Tal modelo se aproxima daquele proposto por Marcelo, que denomina o professor experiente de mentor:

"O programa que estamos a desenhar inclui a figura do mentor, isto é, um professor com larga experiência docente que dará o seu apoio aos professores principiantes e, com eles, desenvolverá ciclos de supervisão clínica." (Marcelo, 1992: 67)     Marcelo aponta que o mentor ou tutor precisa ser um professor com uma teoria prática coerente, explícita e relevante como base para sua tomada de decisões e a sua atuação docente. A sua teoria deve refletir os seus valores básicos que são o seu conhecimento e as suas experiências. O professor deve possuir um elevado nível de consciência sobre a sua teoria, pô-la à prova e revê-la.

    Na formação do professor principiante, a tutoria pode contribuir para uma transformação, ou seja uma mudança do estado de imitação para o de autogestão. Para isto, é preciso haver uma reciprocidade entre o(a) professor(a) tutor(a) e o(a) principiante- estagiário(a).

    Marcelo (1998) aponta ainda algumas definições do(a) professor(a) tutor(a) ou mentor(a), a partir dos trabalhos de vários especialistas. O(a) tutor(a) seria:

    Segundo Gold (1992) (in Marcelo, 1998) a figura do mentor ou tutor supre três tipos de necessidades dos professores principiantes: necessidades emocionais (auto-estima; segurança, etc.); sociais (relações, companheirismo,etc.) e intelectuais.

    No processo descrito e analisado no presente artigo, a experimentação compartilhada entre professor iniciante/estagiário e professora experiente/tutora foi compreendida segundo pressupostos da investigação-ação, visto que foram analisados encontros, aulas e atividades desenvolvidas, a partir dos referenciais estabelecidos pelos próprios integrantes do grupo: estagiário, professora-tutora e formadora da universidade.

    Carr e Kemmis (1988) também nos apontam a investigação-ação como possibilidade de superação da racionalidade técnica, que se torna um processo reflexivo ao desenvolver uma espiral que se configura a partir do estabelecimento dos seguintes momentos: 1. Planejamento (a partir da delimitação de um problema); 2. Ação ; . 3. Observação e 4. Reflexão.

"No plano da espiral auto-reflexiva particular de um projeto particular de investigação-ação, a tensão entre o entendimento retrospectivo e a ação prospectiva se concretiza em cada um dos quatro "momentos" do processo de investigação-ação; cada um dos quais "olha para trás" extraindo sua justificação e, também "olha para frente", no momento seguinte que é a própria realização.(tradução livre) ( Carr e Kemmis, 1988: 197)     Assumindo tais elementos teóricos norteadores, nossa investigação centrou-se nas seguintes questões:
A investigação: caminhos metodológicos

    Ao assumir os pressupostos teórico-metodológicos da investigação-ação, traçamos alguns caminhos a serem trilhados durante o processo de produção de     conhecimento.

    A pesquisa se deu numa abordagem qualitativa, sendo focalizadas as interações entre um professor iniciante / estagiário aqui denominado A.G, uma professora experiente de Ciências denominada aqui E.K. e uma supervisora de estágio/ orientadora da universidade, M.I.

    AG. acompanhou a professora tutora E.K. durante doze meses, observando suas aulas (período inicial), entrevistando-a, vivenciando eventos na escola (reunião de pais, passeios com alunos, etc) e planejando aulas que foram ministradas na 5a. série (1 ª série do Ciclo III).

    O processo foi registrado por A.G em diários de campo e também em fitas de áudio que foram posteriormente transcritas, sendo as principais fontes de dados.

    Durante o período da tutoria, foram também realizadas reuniões periódicas entre estagiário, tutora e supervisora da universidade, que também foram registradas em áudio.

    Os registros obtidos durante o processo foram analisados à luz de referenciais teóricos que se pautam num modelo de racionalidade prática de formação profissional e nos princípios da investigação-ação, como já apontamos. Procuraremos, neste trabalho, recortar alguns extratos do diário de campo e/ou episódios que se relacionem com as questões de investigação já explicitadas e que sinalizem evidências para a produção de um novo conhecimento sobre o modelo de tutoria.


A tutora na escola; a supervisora na universidade e o estagiário entre elas.

    Como já explicitamos, A.G interagiu durante o período da pesquisa com duas professoras experientes: a tutora, professora em serviço da escola básica e, a supervisora, professora da licenciatura na universidade. Cada sujeito participante desta investigação apresenta certas características de pensamento e ação que se relacionam com suas trajetórias pessoais e com sua rotina profissional.

    A professora tutora E.K. licenciou-se em Biologia há dezessete anos e, desde então, trabalha em escolas de ensino fundamental e médio. Relatou ao estagiário que desde a infância já se interessava pelo estudo de seres vivos: tinha o hábito de colecionar insetos e folhas e recorda-se com carinho de uma professora que fazia experimentos na sala de aula, o que a impressionava bastante.

    E.K., a princípio, procurou as carreiras de Medicina e de Odontologia, mas, depois, acabou se decidindo pela Biologia. Relatou também ao estagiário que no início de sua carreira, sentiu-se muito insegura na sala de aula. Percebeu que era necessário aprofundar o estudo de alguns temas para que pudesse se sentir mais tranqüila perante seus alunos.

    A professora tutora cumpre uma carga horária de 32 aulas semanais, em duas escolas públicas, trabalhando em média, com 40 alunos por classe. E. K. admite ter uma relação muito amistosa com os alunos. A.G. observou na escola, a presença de alguns de ex-alunos que a procuravam para esclarecer dúvidas. Outros professores da escola, colegas de E.K., procuram saber como ela consegue manter o interesse dos alunos.

    Ela assume a possibilidade de diferentes alunos gostarem de diferentes abordagens, por isso procura trabalhar com cada um de maneira especial ou pelo menos, fomentar um espírito de autonomia entre eles,para que possam fazer uma auto-gestão de seus trabalhos em sala de aula.

    A supervisora da universidade, M.I., licenciou-se em Química há dezessete anos também e, trabalhou durante pelo menos uma década em escolas pública de nível fundamental e médio. A supervisora tem interesses de pesquisa voltados à formação docente em Ciências, tendo se doutorado em Educação.

    M.I. é supervisora de estágio no curso de licenciatura em Ciências da Universidade e acompanha semanalmente seus estagiários nas atividades de planejamento, desenvolvimento, reflexão e replanejamento de suas regências.

    Durante o período da pesquisa, periodicamente, a supervisora visitava a escola, reunindo-se com a tutora e o estagiário, para discussões acerca dos episódios ocorridos durante o estágio.

    O estagiário A.G. cursava, durante o processo da tutoria, os 6o e 7o. semestres do curso Ciências – habilitação em Biologia, sendo que já havia freqüentado aulas de disciplinas designadas como pedagógicas (Didática, Filosofia da Educação, Psicologia da Aprendizagem) e também outras básicas e específicas do campo da Biologia.

    A.G. manifestou, desde o início da investigação, seus interesses voltados às questões de ensino-aprendizagem em Ciências e aos problemas da formação docente. De fato, o estagiário pretende exercer a profissão professor.


A vivência na escola – a primeira fase do processo

    A.G foi apresentado pela supervisora, à professora tutora E.K., que prontamente organizou a freqüência semanal do estagiário na escola. Na sala ambiente de Ciências, onde a professora E.K. ministrava aulas, o estagiário observou a presença de livros, cartazes, figuras e ainda de um aquário com peixes, que fica sob responsabilidade dela durante as férias, e de responsabilidade dos alunos durante o horário de aula. De fato, a professora procura manter uma relação de colaboração com os alunos, quanto à limpeza da sala, organização dos materiais etc.
 
 

"A relação de E.K., com seus alunos de 5a séries e 8a, é bastante afetiva. Os alunos a respeitam e gostam da maneira como dá aulas. Pude presenciar visitas de ex-alunos que a procuram , seja para mostrar como estão seus estudos, ou para pedir esclarecimentos sobre um assunto de Biologia ou Ciências, mesmo fora do horário das aulas." (diário de campo do estagiário)

   Esse vínculo educativo, estabelecido entre E.K. e seus alunos, mobiliza vários aspectos da personalidade do professor, revelando a complexidade de sentimentos que estão envolvidos na relação pedagógica. Como Perrenoud (2000) nos aponta: "O vínculo educativo é muito complexo, pois mobiliza demasiadas camadas de sua personalidade para que o professor domine racionalmente o todo da relação que constrói com seus alunos. (...) A primeira competência do professor é aceitar essa complexidade, reconhecer os implícitos do ofício, as zonas de sombra, a dificuldade de saber exatamente em que motivos e em que história pessoal se ancora seu desejo de ensinar." (Perrenoud, 2000: 151)     O estagiário pôde perceber que E.K. se envolve equilibradamente nesta relação, sem abusar do poder que lhe é atribuído como professora na sala de aula.

    Após acompanhar várias aulas da professora tutora, A.G. passou a conhecer os alunos e a vivenciar reflexivamente cada instante na sala de aula de Ciências. Quando a tutora convidou o estagiário, pela primeira vez, para preparar uma aula, este sentiu-se à vontade e disposto a desenvolver um planejamento didático.

    O assunto da aula para 5a. série estaria relacionado com o tema "solo" e, a partir dessa definição, A.G. leu vários materiais didáticos de Ciências relacionados, tentando organizar uma seqüência didática. Nesta fase, A G. registrou:
 
 

"As aulas de E.K. me influenciaram bastante no momento que planejava minha aula, pois percebi que a usei como modelo para o que iria falar.(...) Assim como E.K., eu queria respeitar o que cada aluno tinha de melhor : uns adoram falar para a classe, outros adoram escrever estórias, desenhar, montar coisas. Isso eu tentava levar em conta, pois me parecia algo que E.K. tentava me passar em cada aula que eu assistia"(registro no diário de campo do estagiário)

    Essa influência da tutora sobre o estagiário nos remete às palavras de Marcelo:

"...o ajuste dos professores à sua nova profissão depende, pois, em grande medida, das experiências biográficas anteriores, dos seus modelos de imitação anteriores..."(Marcelo, 1999:118)     A.G. foi para sua primeira aula, sentindo-se nervoso e, ao mesmo tempo, amparado, pelo que tinha planejado e pela presença de E.K. junto aos alunos. Começou a aula com uma conversa com os alunos fora da sala, como já havia combinado com E.K. Abordou os alunos, indagando o que eles sabiam ou compreendiam a respeito do solo. Essa abordagem foi observada por ele, nas aulas de E.K., quando ela buscava os conhecimentos dos alunos na construção de conceitos. Depois disso, sugeriu aos alunos que fizessem o plantio de algumas mudas em pequenos vasos contendo diferentes tipos de solo, para que pudessem observar juntos, no decorrer de alguns dias ou semanas, o desenvolvimento das plantas.

    E.K. refletiu com o estagiário sobre a condução das aulas, valorizando a participação de certos alunos, que geralmente, em outras aulas, se dispersavam bastante. É importante destacar que não foram todos que fizeram a mesma atividade, pois um pequeno grupo preferiu mexer com argila tentando ilustrar como seria um solo infértil, provocado pela erosão.

    Ao final dessas aulas, E.K. retomou a classe sob sua orientação e o estagiário refletiu sobre a ação desenvolvida, visando a preparação de uma próxima aula.

    Nessa fase, a supervisora M.I. indicou ao estagiário a leitura de P. Perrenoud no livro "10 Novas Competências para Ensinar." No seu diário de campo, AG. registra:
 
 

  "A primeira competência que me chamou atenção foi a de organizar e dirigir situações de aprendizagem. E.K., como eu já havia dito, me influenciou a trabalhar a partir das representações dos alunos. Isso era característico em suas aulas. Outra competência que identifiquei em E.K. foi a de oferecer atividades opcionais de formação, pois à medida que trabalhava com os alunos, desenvolvia abordagens diversas, sem privilegiar grupos ou pessoas, já que uns alunos são totalmente diferentes uns dos outros, não trabalhando da mesma forma ou preferindo fazê-lo de outro jeito."(registro de diário de campo)
 

    E.K. relatou ao estagiário um projeto que desenvolvia com os alunos das 8a séries. Ela organizava um estudo do bairro, em que os alunos poderiam se dividir em grupos e visitar o distrito onde moram, percorrendo ruas, tirando fotos e entrevistando moradores.
 
 

"Nessas atividades, percebi como ela sabia negociar bem as regras para os trabalhos. Isso também se convertia em atitudes dentro da classe, onde os alunos se sentiam responsáveis pela integridade da sala, dos materiais, livros, etc."(registro de diário de campo do estagiário)

   Algumas semanas depois, a tutora convidou novamente o estagiário para preparar outra aula. O assunto seria relacionado com pressão atmosférica e meteorologia. AG. escreveu seu planejamento e procurou estudar o tema para a aula. Pretendia faze-los compreender como a pressão atmosférica influencia determinados fenômenos ambientais. A supervisora M.I. o aconselhou a procurar por artigos que falassem sobre as concepções alternativas de alunos sobre pressão ou força.
 
 
"Por essa procura, me vi diante de relatos nos artigos bastante semelhantes que me prepararam para interagir com os alunos. Estava me sentindo confiante e tenso ao mesmo tempo, conforme o dia da aula se aproximava."(registro de diário de campo do estagiário)

   A.G. decidiu começar sua aula com o relato de um caso fictício de um rapaz que foi a um parque de diversões[1], quando o pneu do seu automóvel estourou, por causa da pressão do ar aquecido durante a viagem. A.G solicitou aos alunos que tentassem explicar o que ocorreu com o ar dentro do pneu, fazendo desenhos que representassem suas teorias sobre o assunto. Além disso, alguns alunos escreveram: A1. " O ar pressiona para fora e explode"

A2. " Dentro do pneu estava com muito ar, fez muita pressão lá dentro e estourou"

A3. " O pneu estourou porque o ar da câmara está muito quente, porque o dono do carro andou vários quilômetros . O ar queria sair para fora do pneu , o jeito era explodir"

A4."Com o movimento de rotação da roda ela esquenta fazendo com que o ar se expanda e como não tem mais espaço, ela explode"

    A.G procurou, com essa atividade, investigar as concepções dos alunos acerca da constituição do ar. Os desenhos produzidos pelos alunos foram também examinados por M.I. e E.K., que chamaram a atenção para o fato das crianças geralmente entenderem e, por isso, representarem o ar como algo contínuo. Ao prosseguir no encaminhamento de suas ações pedagógicas, A.G. enfrentou um momento de tensão:
 
 
    "Como se tratavam de duas aulas consecutivas, após o intervalo eles retornaram e tentei explicar que, de outras formas, percebemos a pressão atmosférica, em nossa volta. Usei um desentupidor de pia para demonstrar como a pressão atmosférica age em vários sentidos. Nesta altura os alunos na sala de aula estavam em alvoroço e poucos conseguiam me ouvir. Quando E.K. percebeu tal problema, levantou-se e se dirigiu com autoridade para a turma. Disse com um tom firme: - "Isto é jeito de vocês se comportarem? A.G. está aqui fazendo um trabalho com vocês, e vocês não o deixam sequer falar..."    Como a aula estava sendo registrada com um gravador, ela pediu que eu voltasse a fita e lhes mostrasse o que havia gravado, ou seja, gritos e poucas frases entendidas." (registro no diário de campo)

    Refletindo na ação e, posteriormente, sobre a ação, A.G. percebeu que ele não havia promovido uma negociação de regras comuns de convivência entre os alunos, o que dificultava a organização de suas participações no momento da aula. Escreveu no seu diário:
 
 

   "... E.K. dispõe disso facilmente e me ajudou nessa questão.A partir daí, a turma se acalmou e pude terminar aquela aula, falando sobre a influência da pressão atmosférica sobre o ambiente. Pedi para que na atividade seguinte, eles trouxessem bexiga, canudo, garrafa plástica... E ensinaria-os a montar o tal "aparelho que mede pressão do ar", evidentemente de uma maneira bem rústica.Na aula seguinte, nem todos trouxeram os materiais, mas a improvisação foi rica. Eles se dividiram em grupos e fizeram a atividade em sala mesmo. Outro grupo preferiu fazer outros instrumentos, como a biruta e um outro tipo de barômetro." (registro de diário de campo)

    Na aula seguinte a essa atividade de construção de instrumentos, o estagiário desenvolveu uma atividade de avaliação da aprendizagem, na qual realizava a exposição de palavras que representavam conceitos que poderiam ser relacionados. Os alunos deveriam relacioná-las e justificar a relação entre as palavras. Esta atividade foi planejada tomando como referência modelo de mapa conceitual para avaliar (Moreira e Buchweitz, 1993)


O amadurecimento das interações – a segunda fase do processo

    No segundo semestre do processo, que correspondeu ao primeiro período do ano letivo seguinte, o estagiário voltou à escola para continuar o acompanhamento do trabalho da sua tutora. A professora E.K. apresentou A.G. para os novos alunos de 5a. série, relatando um pouco do trabalho da tutoria.

    E.K. iniciou suas aulas negociando com os alunos regras de convivência que foram aprovadas em assembléia pela classe. O estagiário passou a observar as aulas ministradas pela tutora, até que iniciou um planejamento didático que focalizaria o tema "ar". Para organizar os conteúdos científicos a serem abordados nessas aulas, A.G. leu vários textos e planejou uma seqüência de três aulas, pautada principalmente numa abordagem bem semelhante àquela que aparece nos livros didáticos.

    A supervisora M.I. propôs a A.G. o encaminhamento de um planejamento centrado numa problematização advinda de um estudo do meio, onde os alunos vivem. Sugeriu, assim, uma atividade de campo de reconhecimento de algumas regiões do bairro onde está a escola, sensibilizando os alunos em relação à qualidade do ar.

    Em relação a atividade de campo, a supervisora ressaltou:
 
 

"a aula pode ter conteúdos que são atitudinais, que você está querendo desenvolver nos alunos; procedimentais, ou seja, procedimentos que seu ensino vai propiciar e os conteúdos conceituais. Você encontra nos livros esses conteúdos conceituais. Mas, não está aparecendo no seu planejamento quais são as outras habilidades que você quer desenvolver neles..." (transcrição do áudio registrado em encontro entre M.I. e A G.)

        Assim, o planejamento de A.G. acabou sendo organizado nas seguintes aulas:

Aula 1: Observando a Atmosfera

Objetivos: criar um ambiente de observação da natureza; permitir que os alunos coletem dados sobre o ar e os analisem.

Aula 2: Poluição Atmosférica

Objetivos: numa tentativa de vincular conhecimentos científicos com acontecimentos do cotidiano, trabalhar a dinâmica dos componentes da atmosfera e seu desequilíbrio, num contexto mais próximo do aluno, do seu bairro e da sua rua.

Aula 3: Composição do ar

Objetivos: fazer os alunos manterem relações com as observações feitas na atividade de campo (aula 1). Levantar discussões sobre a composição do ar em diferentes regiões.

Aula 4: O uso do ar pelo homem e por outros seres vivos

Objetivos: discutir o uso do ar e por outros seres vivos. Procurar levantar as idéias dos alunos. Tentar estimar a concentração de poluentes no bairro onde se encontra a escola.

    Com esse planejamento, A.G. levou os alunos de uma das classes de 5 ªsérie para uma caminhada entre escola e terminal de ônibus urbanos, num trajeto de aproximadamente dois quilômetros. Durante a caminhada, os alunos registraram as sensações provocadas pelo deslocamento do ar, pela exalação de odores, por diferenças de temperatura, etc.

    Essa experiência proporcionou, ao estagiário, momentos de tensão, nos quais foi necessária a tomada rápida de decisões que ele pôde compartilhar com a tutora E.K., que os acompanhou nessa atividade.
 
 

  ".. chamei a atenção deles para uma mulher que estava andando (na rua) com uma máscara de pano no rosto, dizendo: - Vocês viram aquela moça com a máscara no rosto? Por que será que ela usa aquilo? 

    Aluno: - será que ela tem alguma alergia?

    Aluna: ou ela está doente e não pode respirar poeira....

    Foi ótimo ter aparecido esse assunto. Pensei logo como enfatizar as doenças transmitidas pelo microorganismos presentes no ar. ..".(registro no diário de campo do estagiário)

    A presença de uma pessoa na rua, utilizando uma máscara no rosto, criou uma situação inesperada que A.G. incorporou na discussão mantida com os alunos. O estagiário refletiu na ação e decidiu valorizar aquele acontecimento, para que pudesse manter relações entre a presença de microorganismos no ar e a contaminação de pessoas.

    Nesse momento, E.K. chamou-lhe a atenção para a importância da sistematização dos dados. É importante notar que, no planejamento inicial do estagiário, não constava a intenção de abordar doenças transmitidas pelo ar, contudo, esse evento inesperado o levou a um replanejamento de suas ações.

    Ao retornar com os alunos para a sala, A.G. procurou organizar os dados coletados pelos alunos. A atividade com os alunos, na rua, acabou se constituindo como uma experimentação compartilhada entre a tutora e o estagiário. Assim, pudemos depreender que o compartilhamento dos dilemas gerados nessa aula, se configurou uma interessante estratégia formativa.

    Em encontro realizado posteriormente entre estagiário, tutora e supervisora, E.K. avaliou a trajetória de A.G. durante os meses da tutoria:
 
 

   " A atitude de A.G. mudou bastante. A distância dele em relação aos amiguinhos, vamos dizer assim: os alunos, ficou melhor. No começo, ele era visto como um amigo, um colega mais velho deles. Não tinha ainda a relação professor/aluno. Agora, ele está sabendo levar bem suas aulas... Eu falava para ele: tem que ser um pouquinho mais rígido, porque as crianças precisam de organização. Mas ele já contornou a situação... Na atividade que fizemos na rua, eu gostei. Acho que os alunos também gostaram. Ele (A.G.) foi explicando, falando, parava um pouco.. Foi muito importante nós sairmos com os alunos..." (transcrição da fala de E.K. registrada em áudio) 

 
Conclusões: como podemos responder às nossas questões de investigação?

    As interações entre estagiário e tutora pareceram favorecer as seguintes necessidades formativas ou competências para o ensino (Perrenoud, 2000):

    A supervisora da universidade pareceu exercer um papel de mediadora do conhecimento acadêmico próprio dos saberes produzidos a partir das pesquisas em Educação em Ciências. A partir dessa mediação, a supervisora pôde problematizar os planejamentos propostos pelo estagiário, fazendo-o refletir sobre as ações a serem deflagradas e buscando a emergência de um saber teórico a partir da inserção nos problemas práticos. Na tensão entre o entendimento retrospectivo e a ação prospectiva, a supervisora e o estagiário puderam refletir sobre as limitações e os avanços inerentes a cada fase do processo.

    A experimentação compartilhada foi mantida entre tutora, estagiário e supervisora, graças a emergência das seguintes categorias que permearam o processo de investigação: abertura de espírito por parte dos participantes, envolvimento de "todo o coração" e responsabilidade.

    Aqui, estamos nos referindo às atitudes reflexivas apontadas por J. Dewey, que emergiram e sustentaram o processo de compartilhamento dos dilemas, dos problemas e dos avanços durante a vivência do estagiário na escola, durante o período da tutoria.

"As três atitudes mencionadas, espírito aberto, de todo o coração ou interesse absorvido, responsabilidade de enfrentar as conseqüências são, de si mesmas, qualidades pessoais, traços de caráter. Não são as únicas importantes para o desenvolvimento do hábito de pensar de maneira reflexiva. Mas as outras que se poderiam apresentar constituem, igualmente, traços de caráter, atitudes morais, no sentido próprio da palavra, como traços, que são, de caráter pessoal, merecedores de cultivo." (Dewey, 1959:42)
 
Referências
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CARR, W. e KEMMIS, S. Teoria Crítica de la enseñanza – la investigación-acción em la formación del profesorado. Barcelona: Martinez Rocca. 1988.

CARVALHO, A.M.P. e GIL-PÉREZ,D. O Saber e o Saber Fazer dos Professores. In: Ensinar a Ensinar – Didática para a Escola Fundamental e Média. São Paulo: Editora Pioneira, 2001.

DEWEY, John. Como pensamos – como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma re-exposição. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 3 ª edição .1959.

MARCELO, C. Formação de Professores – para uma mudança educativa. Lisboa: Porto Editora, 1992.

MARCELO, C. Pesquisa sobre a formação de professores – o conhecimento sobre aprender a ensinar, Revista Brasileira de Educação, ANPED, n º9, 1998.

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[1] Naquela semana, os alunos tinham participado de uma excursão a um grande parque de  diversões próximo a cidade.