A RECONSTRUÇÃO DE EXPERIMENTOS HISTÓRICOS COMO UMA FERRAMENTA HEURISTICA NO ENSINO DA FÍSICA

Alexandre Medeiros
(Universidade Federal Rural de Pernambuco)
med@hotlink.com.br

Francisco Nairon Monteiro Jr
(Universidade Federal Rural de Pernambuco)
gualtermonteiro@uol.com.br

Resumo

    A importância da história da ciência no ensino das ciências tem sido destacada em vários artigos nos últimos anos. As razões para uma tal aplicação pedagógica da história têm variado desde os aspectos motivacionais até a importância de colocar em destaque a própria natureza da ciência. Muitos trabalhos têm dedicado-se a explorar os desenvolvimentos históricos de conceitos e teorias. Mais recentemente, entretanto, tentativas de reconstruções históricas de experimentos têm também ocupado um papel de destaque entre os trabalhos de pesquisa que tentam utilizar a história da ciência enquanto um poderoso recurso pedagógico. O presente trabalho faz uma resenha das principais tendências de pesquisa existentes nesta área das reconstruções históricas e apresenta um exemplo deste tipo de procedimento ao investigar os primórdios dos mecanismos de registro do som. Valendo-se de tais informações históricas, um quadro dos elementos básicos constitutivos de tais aparelhos é elaborado de forma discursiva. A partir de um tal quadro, um certo modelo híbrido é idealizado em relação àqueles instrumentos históricos analisados – e efetivamente construído. A sua importância pode ser vista como uma forma de propiciar uma visualização da natureza ondulatória do som que não apele para complicados instrumentos eletrônicos.
 
 

Abstract

    The importance of history of science in science teaching has been stressed in many articles in the last years. The alleged reasons for such a pedagogical application of history have varied from motivational aspects to the importance of enhancing the very nature of science. Several works have been dedicated to explore the historical developments of concepts and theories. More recently, however, some historical reconstructions have also been made, enhancing the importance of this kind of approach among those works concerned with the using of history of science as a powerful pedagogical tool. The present work summarizes the main existing trends of research in this realm of historical reconstructions, also presenting an example of this kind of procedure investigating the origins of the sound register mechanisms. Stemming from this historical information, a certain framework, which contains the main constitutive elements of those historical instruments, is presented in a discursive way. From that framework, a hybrid model of apparatus regarding those historical ones analysed before, is idealized – and really built. Its importance is enhanced by the fact that it can be seen as a means of providing a certain kind of visualization of the wave nature of sound which does not rely on complex electronic devices.

Introdução: a História da Ciência no Ensino e o Papel das Reconstruções Experimentais

    Uma das funções mais importantes desempenhadas pela história da ciência no ensino é a de propiciar uma compreensão mais adequada da ciência enquanto um empreendimento humano inserido no tecido social (Hetherington, 1982; Medeiros, 1984). O papel dogmático exercido pelos livros didáticos faz com que essa importância da história da ciência no ensino, principalmente na sua função de estabelecer uma ponte com as humanidades, torne-se de uma dimensão ainda maior (Matthews, 1989). Prather (1987), baseado numa leitura kuhneana do desenvolvimento científico, alerta para o fato de que esse papel dogmático exercido pelos livros didáticos constitui-se em um obstáculo para a introdução de abordagens filosoficamente mais adequadas no ensino das ciências que incorporem a utilização da história da ciência e o papel dos insights especulativos no seu desenvolvimento. Uma vez posta a necessidade da introdução da história da ciência no ensino das ciências, coloca-se a questão de como fazê-lo de uma forma consistente.

    O dilema existente entre a dificuldade de reproduzir fielmente as condições históricas de um certo acontecimento e a importância da utilização da história da ciência no ensino, pode ser contornado evitando-se um tratamento enciclopédico da mesma, necessariamente simplificador. Neste contexto, a opção por uma abordagem de alguns estudos de casos históricos, criteriosamente estudados, parece uma melhor escolha (Kragh, 1992). Trilhando esse mesmo caminho, Leitner (1980) já defendia a apresentação, a estudantes de Física, de estudos de caso históricos que contivessem exemplos de descobertas intuitivas, como, por exemplo, aquelas contidas nos trabalhos de Coulomb, Priestley e Cavendish.

    Seguindo uma linha traçada originalmente por Schwabb, no início da década de sessenta, Crenshaw (1979) argumentava que a história da ciência deveria ser ensinada como uma forma de treinamento para a pesquisa, para o pensamento investigativo. A idéia defendida por Crenshaw era a de expor o estudante a leituras de relatos originais de pesquisa, propondo-lhes problemas semelhantes, como forma de apreciarem as idas e vindas, o caráter tentativo e a provisoriedade da investigação científica. Nesta mesma direção, num artigo seminal, Brouwer & Singh (1983) discutem as vantagens de uma abordagem de ensino centrada em estratégias de questionamento adotadas por professores na análise de alguns estudos de casos históricos sobre o desenvolvimento de certos conceitos específicos na Física. Essas estratégias de questionamento propiciariam um clima de disputas interpretativas, de controvérsias em sala de aula, que poderia reprisar, parcialmente, a própria atmosfera de debates existente à época em que tais idéias teriam sido originalmente produzidas.

    Niaz (2000) analisando uma conjunção de tendências na utilização da história da ciência no ensino defende a idéia de partir-se de uma reconstrução racional das observações experimentais na utilização pedagógica da história da ciência. Tomando o exemplo das observações realizadas por Millikan no célebre experimento da gota de óleo, Niaz aponta para a importância de explicitar a controvérsia, a respeito do famoso experimento, surgida entre Millikan e Ehrenhaft. Essa necessidade de criar um clima de controvérsias intelectuais, de disputas interpretativas em sala de aula em torno de temas históricos trazidos por relatos experimentais está intimamente ligada à necessidade imperiosa de desenvolvimento do próprio raciocínio crítico. Freundlich (1980), neste sentido, já defendia a integração da história da ciência ao currículo escolar exatamente como uma forma de promover o desenvolvimento do pensamento crítico entre os estudantes. Para que um tal objetivo viesse, entretanto, a ser alcançado, alerta Freundlich, seria importante que os estudantes fossem apresentados a teorias conflitantes, tomando, assim consciência da existência de controvérsias na ciência e desenvolvendo as suas próprias capacidades de comparar e de criticar. Essa necessidade de desenvolver o raciocínio especulativo na aprendizagem da ciência foi abordada, recentemente por Teichman (1999). Este pesquisador argumenta que o estudo dos textos originais de Galileu, enfocando seus experimentos, pode dar margem a que sejam discutidas algumas questões muito importantes para o ensino. Em particular, Teichman destaca a importância de que sejam promovidas investigações em sala de aula pelos estudantes, baseadas em reconstruções de experimentos como, por exemplo, o experimento do plano inclinado assim como de outros instrumentos históricos, com o objetivo de fomentar o raciocínio especulativo envolvido nos processos de descoberta científica. Gainer (1981) já advogava, também, o uso da reconstrução histórica de instrumentos como forma dos estudantes poderem avaliar as possibilidades e as limitações das observações à época em que certos conceitos e teorias tenham sido construídos. Exemplificando com as observações telescópicas de Galileu, Gainer recomendava a comparação de observações feitas com lentes antigas com outras feitas com instrumentos similares mais modernos. No íntimo, portanto, o que estaria em jogo não seria a simples apreciação das condições históricas precisas da instrumentação utilizada, mas sim a apreciação rigorosa do princípio de funcionamento contido na mesma. Seguindo essa abordagem, a reprodução do instrumento histórico utilizado pode conter alguns elementos simplificadores que não deturpem o sentido físico das informações postas em jogo. No caso, por exemplo, da reconstrução de um calorímetro de pás, do tipo utilizado por Joule, alguns elementos são realmente essenciais, como analisado por Carmo, Medeiros & Medeiros (2000), enquanto outros são claramente acessórios em relação à determinação do equivalente mecânico do calor.

    Os registros na literatura propugnando por uma utilização crítica de reproduções experimentais históricas no ensino da ciência são fartos. Chew (1986), por exemplo, descreve a importância da utilização de antigos aparelhos de laboratório de ensino para o desenvolvimento da educação em ciências. Anderson (1992) sugere mesmo o uso dos registros escritos de antigas patentes, contendo detalhes de funcionamento de certos aparelhos, como instrumentos pedagógicos em sala de aula, pelo fato dos mesmos incluírem também importantes informações históricas sobre a ciência, a tecnologia e seus modos de produção. O autor chega mesmo a listar uma longa série de patentes americanas famosas que poderiam se prestar a uma tal finalidade.

    O papel da reconstrução de experimentos históricos no ensino tem sido defendido não apenas no caso da Física, mas também no ensino de outras ciências, como por exemplo, no da biologia (Dennison, 1993). O papel das reconstruções históricas foi também abordado por Engelmann (1983) ao discutir possíveis estratégias de ensino a serem adotadas nas demonstrações tradicionais com eletroscópios que possibilitassem a discussão de idéias filosóficas sobre a natureza das próprias observações. Engelmann ressalta que desse modo seria possível colocar as descobertas nos seus contextos históricos e examinar, assim, a natureza da ciência também nos seus relacionamentos com as aplicações práticas. É, sobretudo, importante que se questione, no ensino das ciências experimentais, a própria lógica inerente aos procedimentos adotados nos laboratórios (Medeiros, 1992; Medeiros & Bezerra Filho, 2000). Nesse contexto, a história e a filosofia da ciência têm muito a contribuir através da promoção de ativos debates em sala de aula, debates que possam se constituir em autênticas tempestades cerebrais a respeito da construção dos modelos explicativos a serem adotados.

    No tocante às formas como as reconstruções históricas têm sido utilizadas no ensino da Física, destacaríamos duas importantes tendências. A primeira é aquela adotada pelo grupo da Universidade de Oldenburg e que se caracteriza pela reprodução fiel dos mínimos detalhes dos instrumentos e pela utilização dos mesmos em demonstrações cuidadosamente realizadas para professores de Física em treinamento (Heering, 1999). A segunda, é aquela adotada pelo grupo da Bakken Library and Science Museum, de Minnesota, mais especificamente por Nahum Kipnis. Segundo esta tendência, os instrumentos não são reproduzidos tão meticulosamente quanto aqueles construídos em Oldenburg. Entretanto, os artefatos históricos produzidos na Bakken Library guardam, ainda assim, os princípios físicos fundamentais contidos em suas fontes inspiradoras. A estratégia de ensino adotada, neste caso, não é apenas demonstrativa, mas essencialmente problematizadora (Kpinis, 1995).

    O trabalho desenvolvido por nós, inicialmente na Universidade Federal Rural de Pernambuco, enveredou, alternativamente, por esses dois caminhos. Reproduzimos, por exemplo, com o rigor possível, alguns instrumentos simples como o cone duplo de George Adams (século XVIII) e outros bem mais complexos como a bobina de indução de Helmoltz (século XIX) e algumas máquinas eletrostáticas antigas, como a de Nairne (século XVIII) e a de Bonetti (século XIX). Tais instrumentos, assim como suas utilizações em sala de aula, serão oportunamente discutidas em outros artigos. A segunda alternativa, de trabalhar com instrumentos mais simples, inspirados nos originais históricos, foi igualmente trilhada por nós e revelou-se bem mais profícua do ponto de vista educacional. Seguindo-a, montamos lunetas semelhantes à de Galileu, dilatômetros semelhantes ao de Musschenbroek, assim como outros instrumentos igualmente simplificados.

    A vertente de pesquisas históricas que já vínhamos fazendo sobre a acústica e as suas decorrências educacionais (Monteiro Jr, 1999; Monteiro Jr e Medeiros, 1999a; Monteiro Jr & Medeiros, 1999b; Monteiro Jr & Medeiros, 1998), propiciou naturalmente que trabalhos de reconstrução histórica fossem trilhados na mesma direção. O problema da visualização da natureza ondulatória do som pareceu-nos algo que poderia adequar-se a esse tipo de abordagem. Trabalhos de reconstruções históricas envolvendo a percepção e a amplificação do som já haviam sido descritos por Decker & Kipnis (1997). Tais estudos estavam relacionados com a história do desenvolvimento do estetoscópio e a sua utilização no treinamento de professores. Pareceu-nos, portanto, que um outro problema, correlacionado com este último, seria o estudo da natureza ondulatória do som, levando-se em conta os trabalhos históricos existentes sobre os seus mecanismos de registros. A seqüência metodológica em que um tal estudo se deu e os balizadores da reconstrução de um mecanismo similar voltado para a utilização em sala de aula, são descritos no tópico seguinte.
 
 

Metodologia

    A metodologia adotada nesta pesquisa pode ser dividida em cinco fases. A primeira consistiu de um amplo levantamento bibliográfico executado sobre as reconstruções históricas apontadas na literatura especializada de pesquisas em educação nas ciências. As diversas abordagens foram, então, colimadas em duas grandes correntes pedagógicas que estão expostas na introdução acima desenvolvida. A segunda etapa do nosso estudo consistiu de uma pesquisa histórica a respeito dos primeiros mecanismos de registro do som. Para tal, foram consultadas tanto algumas fontes primárias (artigos publicados pelos próprios autores de tais aparatos históricos) assim como fontes secundárias de inquestionável valor, como, por exemplo, a influente obra do Lindsay. Um resumo dessa análise histórica empreendida encontra-se exposta no tópico seguinte a esta presente metodologia. A terceira etapa da nossa pesquisa consistiu de um estudo comparativo das características constitutivas estruturais de tais mecanismos históricos, buscando encontrar alguns princípios básicos que os norteassem. Neste particular aspecto, a presença de membranas elásticas e de espelhos giratórios ou vibratórios, por exemplo, acoplados a distintos mecanismos, foi tida como um invariante a ser considerado. A identificação do princípio físico ilustrado em todos aqueles mecanismos, qual seja, a natureza ondulatória do som, pareceu poder, portanto, ser reproduzida segundo algum tipo de mecanismo semelhante que, entretanto, evitasse certas complicações técnicas de montagem mais apropriadas para as aplicações tecnológicas para as quais aqueles instrumentos históricos haviam sido originalmente projetados. Com essa idéia em mente, partimos para a quarta etapa da presente pesquisa: a montagem de um quadro das características estruturais daqueles instrumentos, buscando fixar nossa atenção naqueles elementos essenciais e mais simples para a visualização do fenômeno em causa: a natureza ondulatória do som. A partir de um tal quadro das características fundamentais de tais aparelhos históricos foi possível passar à etapa seguinte da nossa investigação: a idealização e montagem do nosso aparelho híbrido. Um tal instrumento seria intencionalmente do tipo simplificado de objeto mencionado por Kipnis em suas pesquisas histórico-educacionais em Minnesota, mas diferentemente daqueles elaborados na Bakken Library and Science Museum, o nosso seria um modelo híbrido das peças históricas analisadas: uma terceira via na abordagem das reconstruções históricas.

Breve Histórico do Desenvolvimento dos Mecanismos de Registro do Som

    A história mostra que paralelamente ao desenvolvimento dos modelos teóricos da acústica, cujas controvérsias culminaram, no século XIX, com a utilização das famosas séries trigonométricas como modelo matemático representativo de sons complexos (Monteiro Jr, 1999; Monteiro Jr & Medeiros, 1999a; Monteiro Jr & Medeiros, 1999b; Ohm, 1843), houve também um ramo de pesquisa que levou ao desenvolvimento de uma série de aparatos para o estudo experimental deste ramo da Física. Podemos, por exemplo, citar os esforços em torno do desenvolvimento dos mecanismos de registro do som. Muito embora os atuais laboratórios para o ensino da Física possuam osciloscópios, geradores de áudio, unidades acústicas e tantos outros aparatos, isto só foi possível com o desenvolvimento da eletroacústica no início do século XX. Ainda que não pareça óbvio para muitos, o desenvolvimento de mecanismos que tornassem possível o registro das vibrações sonoras já era uma matéria de pesquisa no final do século XIX. Podemos analisar os ancestrais dos atuais osciloscópios (dispositivos sem circuitos eletrônicos e tubos de raios catódicos), cujos princípios de funcionamento eram muito semelhantes aos dos osciloscópios atuais e cujas concepções eram bem mais simples. Tais instrumentos são, portanto, do ponto de vista educacional, muito úteis, pois mais elucidativos dos princípios físicos embutidos em seus funcionamentos do que os instrumentos eletrônicos atuais bem mais sofisticados. Dessa forma, eles se constituem em importantes ferramentas pedagógicas no ensino da Física.

    O primeiro mecanismo de visualização da forma de uma onda sonora de que se tem notícia foi desenvolvido pelo editor e cientista amador francês Edouard Leon Scott de Martinville em meados do século XIX (Martinville, 1861; Lindsay, 1966). Tratava-se do Fonoautógrafo, um instrumento que consistiu na primeira tentativa de uso do princípio da varredura no registro das vibrações sonoras. Tal princípio é ainda hoje utilizado no osciloscópio moderno. O Fonoautógrafo é um mecanismo composto por uma membrana flexível, presa e esticada no terminal de uma trompa (cone para concentrar as vibrações sonoras que se deseje analisar) e por uma haste a qual é presa no centro desta membrana, podendo, assim, transmitir as vibrações do meio e registrá-las num cilindro esfumaçado, posto a girar manualmente através de uma manivela. Assim, quando um som complexo é captado pelo cone, este faz a membrana vibrar e esta, por sua vez, vibra a haste numa direção perpendicular ao movimento de rotação do cilindro. Assim, tal haste marca no cilindro uma curva característica da vibração analisada. Fazendo um paralelo entre tal instrumento e o moderno osciloscópio, podemos encontrar grande semelhança entre os seus princípios de funcionamento. A rotação do cilindro, por exemplo, possui a mesma função da varredura do feixe de elétrons do osciloscópio, assim como a vibração da haste possui a mesma função da deflexão do sinal no tubo de imagem do instrumento. Muito embora o osciloscópio possua inúmeras vantagens, por tratar-se de um equipamento eletrônico de grande precisão e versatilidade, os princípios da varredura e da marcação vertical estão muito mais claramente expostos no Fonoautógrafo do que no osciloscópio. Se a questão em foco for o ensino dos princípios físicos ali contidos, o instrumento antigo mencionado é bem mais adequado.

    Um outro instrumento de registro das vibrações sonoras que utilizava o princípio da varredura foi desenvolvido por Koenig em 1860 (Lindsay, 1966). Tal dispositivo, a Chama Manométrica, consistia de um recipiente no qual um gás encerrado fluía por um bico nele existente, produzindo uma chama neste bico quando incendiado. Um dos lados deste recipiente era composto de uma membrana flexível que vibrava na presença de uma onda sonora incidente. Tal vibração ocasionava mudanças periódicas na pressão interna do gás e, conseqüentemente, produzia flutuações na chama que eram refletidas num anteparo, na forma de instantâneos, por meio de um espelho rotativo.
 

Quase duas décadas após o surgimento da Chama Vibratória acima descrita, Eli Whitney Blake apresentou um instrumento, um Registrador Vibratório, capaz de registrar as formas de onda de sons através de fotografias ampliadas (Blake, 1878). Um espelho plano de aço A era suportado por seu eixo em uma grade metálica B. Os terminais do eixo eram cônicos e ajustados cuidadosamente em soquetes nas extremidades dos parafusos C, conforme detalhe desta montagem mostrado na figura ao lado. Nas costas do espelho havia uma pequena argola metálica D, perpendicular ao plano do espelho e centrada no mesmo. 

Registrador Vibratório de Blake: detalhe da montagem do espelho no suporte

Um pequeno gancho metálico era acoplado à arruela D, enquanto sua outra extremidade era fixada a um fino disco vibratório circular de aço, o qual, por sua vez, era parafusado nas costas de um bocal telefônico. Um feixe de luz é refletido no espelho e incide num filme que se move suavemente. Quando uma onda sonora atinge o bocal telefônico, tal vibração é transmitida pelo disco ao espelho. Este espelho, por sua vez, desloca-se em torno de seu eixo, num movimento vibratório de forma semelhante à vibração do disco, desviando o feixe de luz transversalmente em relação ao movimento do filme. O raio refletido, com isso, traça um caminho que é registrado no filme em movimento, como mostrado nas figuras ao lado.

Curvas de registro de sons obtidas por Blake

    O funcionamento de um instrumento do tipo acima descrito parece-nos, igualmente, extremamente ilustrativo, do ponto de vista pedagógico, para tornar clara a natureza ondulatória do som. Em sua concepção original, entretanto, o instrumento envolvia algumas peças como, por exemplo, o bocal telefônico inventado por John Peirce no século XIX, cujos detalhes construtivos, além de complexos, não são fundamentais para a compreensão dos princípios físicos envolvidos no funcionamento do instrumento.

    Analisando-se, comparativamente os três modelos até aqui discutidos, o Fonoautógrafo de Leon Scott de Martinville, a Chama Manométrica de Koenig e o Registrador Vibratório de Blake, podemos, desde já, notar certas características comuns, assim como certas diferenças estruturais. Tanto o Phonoautógrafo, quanto a Chama Vibratória apelam para o uso de membranas para captar as vibrações sonoras. O Registrador Vibratório de Blake, por seu lado, contém um dispositivo semelhante: o fino disco metálico preso ao bocal telefônico. As diferenças estruturais são evidentes: enquanto o Fonoautógrafo registra diretamente tais vibrações sonoras captadas pela membrana flexível num disco esfumaçado, os dois outros instrumentos valem-se de projeções da luz refletida em espelhos vibratórios. No caso da Chama Manométrica, temos apenas a projeção da imagem enquanto que no caso do Registrador Vibratório de Blake temos um efetivo registro em filme fotográfico.

    Estas características dos instrumentos históricos até então apresentados, aqui discutidas de forma discursiva, ficam mais bem percebidas em sala de aula quando lançadas, como produto de uma análise e de uma discussão conjunta com os estudantes, num certo tipo de quadro onde vamos colocando as características de cada um dos instrumentos. Por uma questão de espaço, omitimos um tal quadro no presente artigo, substituindo-o, apenas pela narrativa das características dos instrumentos estudados.
 

Em 1916, o físico americano Dayton Clarence Miller, desenvolveu um instrumento similar ao descrito acima que se utilizava igualmente do recurso fotográfico no registro das vibrações sonoras. Em seu livro, intitulado The Science of Musical Sounds (Miller, 1916), Miller apresentou o esquema de montagem e funcionamento de tal instrumento, chamado por ele de Phonodeik. A figura ao lado mostra o esquema de montagem deste instrumento histórico de registro do som.

Detalhe de montagem do Phonodeik

Segundo Miller, o receptor sensível do Phonodeik é um diafragma (d), de vidro fino, colocado no final de uma corneta ressonadora (h); atrás do diafragma está um pequeno eixo montado num rolamento, ao qual é preso um pequeno espelho (m); o eixo é montado numa pequena polia; umas poucas fibras finas de seda, ou um fio fino de platina, são presos ao centro do diafragma e enrolados em torno da polia que é tencionada por um pedaço de mola. Luz, vinda de um pequeno orifício (l) é focalizada por uma lente e refletida pelo espelho sobre um filme (f) em movimento numa câmera especial. Se o diafragma se move sob a ação de uma onda sonora, o espelho é girado por uma quantidade proporcional ao movimento do diafragma e o ponto de luz traça o registro da onda sonora sobre o filme. A fotografia ao lado mostra o aspecto do Phonodeik, segundo foto apresentada no livro de Miller (1916).

Phonodeik de Miller

    Com tal instrumento, Miller registrou as curvas de timbre de uma série de instrumentos musicais que eram naturalmente de seu interesse particular. As fotografias abaixo, retiradas do livro acima citado, mostram as curvas de registro de alguns instrumentos musicais por ele analisados.
 

Flauta

Clarinete

Oboé

Saxofone

    Observa-se, completando a comparação com os três instrumentos anteriormente mencionados, que o Phonodeike utiliza igualmente um dispositivo semelhante a uma membrana, um diafragma de vidro fino e que adota, igualmente o uso de um espelho rotativo, que funciona como mecanismo de corte da luz a ser projetada. Assim como o Registrador Vibratório de Blake, o Phonodeike de Miller também utiliza registros fotográficos. A diferença é que no caso do Phonodeike temos a sofisticação do filme estar em movimento uniforme.

    Do ponto de vista tecnológico o Phonodeike representa uma evolução em relação aos seus antecessores. Do ponto de vista, porém, do princípio físico que queremos ilustrar, a natureza ondulatória do som, todos aqueles instrumentos têm tanto seus pontos positivos quanto negativos. Concentremo-nos, inicialmente, apenas naquelas partes dos mecanismos descritos que apresentam semelhanças. Em primeiro lugar, chama a nossa atenção a presença de algo como uma membrana flexível. Uma tal membrana pode ser acoplada a diversos mecanismos de vibração, desde simples cornetas, como no caso do Fonoautógrafo, até bocais telefônicos como nos casos dos aparelhos de Blake e de Miller. Outras características importantes são as presenças de espelhos vibratórios ou rotativos. Há, entretanto, certos detalhes técnicos que podem, perfeitamente, ser omitidos em nossa reconstrução e que em nada afetam a visualização dos princípios físicos enfocados. Deste modo, os bocais telefônicos utilizados como mecanismos vibratórios e os filmes utilizados para a obtenção de registros permanentes, podem ser deixados de lado na confecção de uma reconstrução com finalidades nitidamente pedagógicas. É possível, assim, capturar o espírito de uma época através da engenhosidade dos dispositivos utilizados, sem que caiamos na dificuldade adicional de reproduzirmos certos detalhes tecnológicos. Na análise do funcionamento do Phonodeike, por exemplo, evidencia-se a necessidade pedagógica de algumas alterações em certos dispositivos originais no sentido de uma reconstrução histórica simplificada, para utilização no ensino, mas onde os princípios físicos envolvidos sejam ainda preservados. No caso do nosso instrumento, descrito a seguir, a corneta e o diafragma de vidro do Phonodeik são substituídos por um alto-falante, enquanto que o filme no qual os registros são feitos é substituído por um simples anteparo de projeção.
 
 

Uma Reconstrução Histórica Híbrida: um Osciloscópio Mecânico para a Análise do Som
 

Como forma de tentar discutir, analisar e interpretar as formas de onda geradas por um osciloscópio no ensino da Acústica, vale ressaltar a importância do conhecimento de tais dispositivos eletromecânicos como forma de prover um caminho que guie reconstruções históricas de instrumentos que possam auxiliar o professor nas suas aulas de Física. Como exemplo, podemos citar o modelo por nós desenvolvido, cujo esquema de montagem está mostrado na figura ao lado. Como dito acima, trata-se de uma reconstrução baseada nos princípios de funcionamento dos instrumentos de Miller e Blake, usando alguns recursos eletrônicos e eletromagnéticos adicionais. 

    Tal instrumento consiste de um dispositivo eletro-mecânico que reproduz com boa fidelidade as mesmas curvas mostradas pelo osciloscópio.

    Trata-se de um conjunto formado por um espelho que gira acoplado a um motor que é alimentado por um regulador de tensão c.c. que, por sua vez, varia a freqüência de giro do espelho, através do ajuste em um potenciômetro e um outro espelho preso no centro e na borda de um alto-falante. Um feixe de luz, tipo apontador 'laser', é refletido em ambos os espelhos e é projetado num anteparo. O alto-falante é alimentado por um amplificador de forma que um som, captado por um microfone, é amplificado e reproduzido no alto-falante. Observe-se que o espelho do alto-falante está preso no centro do cone e na parte superior do aro, fazendo com que a vibração do cone do alto-falante provoque uma oscilação no espelho de tal forma que o feixe de luz tenha sua reflexão modificada verticalmente. Por outro lado, o espelho preso ao motor gira no sentido horário, fazendo com que o feixe de luz tenha um deslocamento horizontal, da esquerda para a direita, seguido de um igual intervalo de tempo sem reflexão, uma vez que o espelho não reflete na sua face posterior. Tal mecanismo reproduz de uma forma muito satisfatória a varredura horizontal de um osciloscópio eletrônico. Através do regulador de tensão c.c., é possível modificar a freqüência de giro do espelho e, conseqüentemente, a freqüência com que o ponto de luz executa o traço horizontal. Assim, através de um microfone ligado na entrada do amplificador que alimenta o alto-falante, podemos registrar num anteparo a forma de onda de diversos sons complexos, da mesma forma que se consegue fazê-lo num osciloscópio eletrônico.

Conclusões

    A montagem final do aparelho aqui proposto demonstrou a sua adequação para a simulação do efeito produzido por um osciloscópio, superando o impasse dos "osciloscópios alternativos" costumeiros na literatura sobre experimentos simples, nos quais a varredura contínua de ida e volta, sem interrupções, obriga a produção apenas das figuras de Lissajous. Valendo-nos da inspiração conferida pela análise da história da ciência, produzimos um instrumento no qual tais figuras, de interpretação bem mais complexa, são substituídas pelo mecanismo de corte, introduzido em nosso instrumento pelo espelho rotativo, em substituição ao espelho vibratório. Por outro lado, nosso modelo híbrido permite entender também como funciona o moderno osciloscópio eletrônico através de um mecanismo mais simples, construído com base no conhecimento de um conjunto de instrumentos que fizeram parte da história do desenvolvimento dos mecanismos de registro do som. Vemos assim, como uma investigação do passado da ciência pode fornecer os elementos simplificadores essenciais para a compreensão de artefatos científicos bem mais modernos.

    Muito embora os princípios aqui discutidos constituam-se também nos mesmos presentes no osciloscópio, tal identificação torna-se muito complexa para um estudante, quando analisados no osciloscópio, uma vez que nesse instrumento os efeitos de varredura e oscilação transversal ficam ocultos por trás de um conjunto de circuitos eletrônicos. Assim, tal simplificação cria, por sua vez, subsídios à interpretação, por parte dos estudantes, das curvas de timbre de sons complexos numa prática escolar que permite entender a lógica da construção de tais figuras de timbre e que pode levar, por conseqüência, a uma interpretação mais criteriosa.

    O instrumento assim confeccionado constitui-se, como assinalamos, em uma reconstrução histórica híbrida em moldes simplificadores semelhantes aos sugeridos pelo grupo da Bakken Library, mas que carrega em sua concepção elementos de síntese dos instrumentos históricos estudados. A busca de tais elementos sintetizadores em sala de aula constitui-se em um poderoso exercício adicional de heurística, que pode ser compartilhado com os estudantes, contribuindo, assim para a formação do espírito crítico tão propugnado por vários pesquisadores, conforme apontado na revisão bibliográfica apresentada no início deste artigo.

    As possibilidades abertas pelo uso de instrumentos semelhantes ao aqui descrito, não se encerram, portanto, na simples confecção dos mesmos e nas suas apresentações enquanto objetos prontos em sala de aula. Sendo tais instrumentos híbridos um produto simultâneo da análise e da síntese histórica, eles podem constituir-se também numa janela para o passado da ciência através da qual possamos enxergar melhor o próprio presente de teorias e de aparelhos bem mais sofisticados. Acima de tudo, entretanto, eles podem servir, numa abordagem problematizadora em sala de aula, como uma ferramenta poderosa tanto de resgates de conceitos e princípios ocultos na instrumentação moderna, quanto de exercício crítico da própria atividade de questionar e buscar regularidades que caracterizam a Ciência.

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