TECNOLOGIA E ENSINO DE CIÊNCIAS: RECONTEXTUALIZAÇÃO NO "NOVO ENSINO MÉDIO"



Rozana Gomes de Abreu[1]

Resumo

    Este trabalho focaliza o discurso das tecnologias no campo de ensino de ciências e nos documentos oficiais da Proposta Curricular do "Novo Ensino Médio" (PCNEM) para a área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias. Tem-se por objetivo analisar as concepções de tecnologia presentes nos discursos existentes por intermédio do conceito de recontextualização de Basil Bernstein. Interpretamos a recontextualização como deslocalização de textos e relocalização destes em outros contextos. Argumento, a partir dessa análise, que a concepção de tecnologia foi apropriada do campo de ensino de ciências, o qual possui uma perspectiva construtivista preocupada com a solução de problemas e com a transformação social, e recontextualizada para o campo do mercado de trabalho e de produção, no qual essa perspectiva construtivista aparece associada e submetida com a preocupação de inserção social nos novos modelos de produção e de trabalho pós-fordistas.
 


Abstract

    This work focuses the discourse of technologies in the field of science education and in the official documents of the "Novo Ensino Médio" Curriculum Proposal (PCNEM) to the Natural Sciences, Mathematics and their Technologies Area. The objective of this study is to analyse the different conceptions of technology present in the discourse of these documents. We analyse this discourse with recontextualization concept from Basil Bernstein. We understand recontextualization as the process of meaning texts out of place and replacing the same texts in other contexts. I argue that the concept of tecnology in this discourse was appropriated from the field of science education within a constructive perspective - engaged with problems solving and social transformation. This perspective appears associated and engaged with the new models of the post-fordist production and labour.
 

Introdução

    Nos últimos anos, em um mundo cada vez mais globalizado e interligado, a preocupação com um ensino mais integrado ganha destaque nos debates educacionais, orientando a construção e a concretização das propostas curriculares. Dentre elas, podemos situar a reforma do Ensino Médio no Brasil. Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), um dos braços da reforma e objeto de estudo e análise deste trabalho, apresentam como ponto fundamental a reorganização curricular baseada na integração, via interdisciplinaridade e contextualização. Por intermédio desses princípios, o Ministério da Educação visa formar um ensino mais geral, polivalente e flexível. Para isso, propõe um currículo dividido em três áreas, abrangendo disciplinas entendidas como afins entre si e, elege a tecnologia (ou as tecnologias) como principal agente integrador entre as disciplinas e entre as áreas.

    Este artigo, resultado de reflexões de pesquisa de dissertação, propõe analisar o discurso sobre a tecnologia no campo da ensino de ciências e nos documentos oficiais dos PCNEM para a área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, a qual abrange o ensino de Biologia, Física, Química e Matemática. Essa análise envolve o conceito de recontextualização de Bernstein. De acordo com Bernstein (1981, 1996a), a recontextualização é caracterizada pela retirada de textos/discursos de seus contextos, originais ou não, e pela relocalização desse texto/discurso em outros contextos, com outro foco e ordenamento. Assim, na recontextualização os textos/discursos são selecionados, apropriados, relocados, refocalizados e relacionados com outros discursos, adquirindo nova ordem e novos sentidos. Esse processo assegura que o texto/discurso não seja mais o mesmo.

    Argumento assim, que a concepção de tecnologia presente na área de ensino de ciências está ligada às concepções construtivistas de melhor formação do indivíduo e de formação para solução de problemas referente à questões sociais, diferentemente da concepção presente nos PCNEM, no qual essa concepção está submetida aos processos de produção e ao mercado de trabalho. A concepção de tecnologia relacionada a uma perspectiva construtivista foi selecionada e retirada de seu contexto de origem, o contexto do ensino de ciências, sendo apropriada e recolocada no contexto dos paradigmas pós-fordistas. Esse processo implica em novos sentidos e objetivos para a concepção de tecnologia, a qual torna-se associada e influenciada pelos novos processos produtivos e pelas novas relações no mercado de trabalho atual.
 

Integração e Tecnologia

    É notório o quanto a informação tecnológica cresceu assustadoramente nos últimos tempos, tendo-se tornado a base da globalização e refletindo de imediato em nossa vida pessoal e profissional. Cada vez mais a tecnologia é vista como o centro de todas as formas de desenvolvimento, especialmente o desenvolvimento econômico, o que lhe confere um status também maior (Muller, 2000: 26).

    O avanço da tecnologia ganha terreno/espaço com as mudanças nas formas de produção. Essa nova forma de produção denominada de produção pós-fordista baseia-se na competitividade e na produtividade, devendo estar aliada à características marcantes como a adaptabilidade, a flexibilidade, a criatividade e a cooperação. A flexibilidade na organização do trabalho, a produção "just-in-time", o conhecimento como mola propulsora do desenvolvimento, a adaptabilidade às variações do mercado e a preocupação com a "qualidade total" são algumas das características desse novo paradigma.

    A nova forma de produção depende da inovação contínua pelas tecnologias (aquisição e desenvolvimento), bem como de um "novo trabalhador", com altas habilidades, com capacidade de ser adaptável e flexível, com independência e responsabilidade. A exigência de trabalhadores polivalentes, cooperativos e capazes de desenvolver toda a sua potencialidade de aprendizagem e de trabalho, assim como a ênfase na co-responsabilidade e na tomada de decisões do trabalhador, estabelece novos parâmetros para formação de trabalhadores e para a inserção no mercado de trabalho.

    Tal forma de produção, com seus interesses e objetivos, está determinando mudanças em todos os setores da sociedade. Como resultado, existe um aumento na procura por pessoas que saibam resolver problemas, que produzam soluções criativas, que sejam flexíveis em suas habilidades, que trabalhem coletivamente, que possam produzir e delinear soluções mais efetivamente, que continuem desenvolvendo conhecimentos técnico-cognitivos e habilidades de pensamento crítico.

    Segundo Muller (2000), existem três paradigmas da nova produção. O primeiro paradigma aponta a existência de um foco na política tecnológica ligada à economia, no qual a inovação tecnológica refere-se à uma concepção específica de habilidades e de conhecimento. O segundo paradigma está ligado a uma produção de qualidade, flexível e diversificada, através do treinamento das habilidades mais complexas e abstratas. O terceiro paradigma, estabelece que a educação é a responsável pela preparação dos indivíduos fornecendo o conhecimento necessário para tal.

    O mesmo autor ainda aponta algumas considerações importantes para essa nova perspectiva que vivemos: que o sucesso da inovação depende do conhecimento como competência tácita bem como do conhecimento como resultado; que todas as formas de prática possuem uma dimensão tácita, incluindo, e talvez especialmente, a ciência aplicada e experimental (Muller, 2000: 32-3), fazendo com que as habilidades para solução de problemas tenham maior valor no mercado do que aqueles conhecimentos que se tornam rapidamente obsoletos. Nesse contexto, a educação secundária de alta qualidade, com ciências, matemática e tecnologia, torna-se a base essencial do processo de desenvolvimento.

    Bernstein (1996b) chama a atenção para o fato de que hoje é preciso formar para a "empregabilidade", a habilidade de aproveitar a formação permanente respondendo às novas exigências do "trabalho" e da "vida", pois a constante transformação de conhecimentos e tecnologias gera uma procura por indivíduos mais capacitados e flexíveis para estes sistemas. Dessa forma, estão sendo configuradas novas relações de trabalho, de vida, de controle e de poder.

    Essa empregabilidade ressalta "algo" que o indivíduo deve possuir para poder formar-se e reciclar-se de acordo com as contingências tecnológicas, de organização e de mercado. Esse "algo" está relacionado com a capacidade de ser ensinado e de responder com eficácia à questões sucessivas e intermitentes (Bernstein, 1996b). Como a capacidade é algo característico do indivíduo, resultado de uma identidade específica, se este não responde às contingências exigidas, ele não atende a empregabilidade oferecida atualmente. Ou seja, existe um processo de individualização das competências necessárias para o trabalho e, portanto, de responsabilização individual pelo sucesso desse trabalho. Portanto, essa formação para a empregabilidade torna-se bastante excludente, pois somente os considerados capazes serão inseridos no mercado de trabalho e produtivo.

    Pode-se perceber o quanto esses paradigmas da nova produção são apropriados pela reforma do Ensino Médio no Brasil. Na LDB, artigo 35, uma das finalidades do Ensino Médio é a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina (Brasil, 1999, v. I: 34). No artigo 36, parágrafo 1o , uma das competências que o aluno deve demonstrar é o domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna (Brasil, 1999, v. I: 34).

    De acordo com os PCNEM, a revolução tecnológica estabelece um novo paradigma que emana da compreensão de que, cada vez mais, as competências desejáveis ao pleno desenvolvimento humano aproximam-se das necessárias à inserção no processo produtivo (Brasil, 1999, v. I: 12). A aproximação dessas competências objetiva formar indivíduos mais flexíveis e capazes de solucionar problemas de maneira cada vez mais rápida, servindo a interesses do paradigma pós-fordista. Logo, a educação mantém uma submissão aos processos produtivos e ao mercado de trabalho, uma vez que os conhecimentos e as competências para a inserção no mercado produtivo são os mais valorizados.

    Newberry (1999) chama a atenção que apesar de a tecnologia estar associada à ciência, existe uma diferença entre elas. A ciência focaliza/enfatiza a aquisição e compreensão do conhecimento, enquanto a tecnologia enfatiza/focaliza os resultados de um processo no qual foram utilizados os conhecimentos da ciência. Logo, a força da tecnologia está presente na relação do homem com invenções, inovações e novos produtos, mas também com a influência do desenvolvimento do conhecimento e suas experiências. É importante ressaltarmos que a tecnologia não pode ser considerada apenas como o artefato tecnológico, ela envolve também um determinado tipo de conhecimento para produzir este artefato. Assim, a força da tecnologia envolve o artefato e o conhecimento necessário utilizado na sua produção.
 
    Dessa forma, as razões de estudo da ciência e da tecnologia seguem caminhos diferentes, apesar de estarem interligadas. O estudo da ciência, e portanto, do conhecimento científico, é importante para entender a natureza do mundo, enquanto que o estudo dos usos da tecnologia e seu desenvolvimento é importante para modificar o mundo natural, que o homem quer e necessita. O mesmo autor argumenta que os desejos e as necessidades podem problematizar as situações a serem resolvidas. Assim, a tecnologia envolve principalmente a necessidade de solucionar problemas.

    Newberry (1999) também afirma que existe uma certa confusão sobre o uso da tecnologia na educação devido à existência de dois termos/expressões, a educação tecnológica e a tecnologia educacional. A educação tecnológica tem como principal objetivo o ensino sobre a tecnologia por meio de uma matéria escolar (ou assunto), levando o desenvolvimento da ‘literatura’ tecnológica para todos. Já a tecnologia educacional visa melhorar o processo de ensino e aprendizagem através do ensino com a tecnologia, onde esta é um meio de ensino.

    Apesar dos PCNEM (e da LDB também) enfatizarem em vários momentos dos documentos que o "Novo Ensino Médio" deve ser caracterizado por uma educação tecnológica básica, ou uma educação de base científica e tecnológica, pode-se perceber que a expressão tecnologia refere-se tanto à tecnologia educacional como à educação tecnológica. Algumas vezes essa expressão refere-se somente aos recursos tecnológicos ligados à comunicação, como a televisão, o vídeo, o computador, etc., como por exemplo:

No ensino Médio, a familiarização com as modernas técnicas de edição, do uso democratizado pelos computadores pessoais, é só um exemplo das vivências reais que é preciso garantir...

(Brasil, 1999, v. III: 50)

    Em outras passagens fica extremamente claro que as tecnologias não se restringem a essa concepção, abrangem as tecnologias industriais e científico-tecnológicas, tecnologias ligadas ao mundo da produção, do trabalho: ...não se trata apenas de apreciar ou dar significado ao uso da tecnologia, mas de conectar os inúmeros conhecimentos com suas aplicações tecnológicas...

...é preciso identificar nas matemáticas, nas ciências naturais, nas ciências humanas, na comunicação e nas artes, os elementos de tecnologia que lhes são essenciais...

(Brasil, 1999, v. I: 95)

    A partir da análise do documento oficial, considero que o termo abrange as duas concepções e a inter-relação delas, fazendo da primeira instrumento para a compreensão da segunda. Considero que os documentos oficiais visam o trabalho com as tecnologias comunicativas (computador, televisão, vídeo) e com as tecnologias relacionadas ao meio de produção e do trabalho (aplicações tecnológicas de cada área do conhecimento), um trabalho onde as tecnologias comunicativas dêem suporte para o desenvolvimento das tecnologias de produção.

    Concordo com Newberry (1999) que os dois conceitos são importantes para o contexto educacional, porém aquele que parece apresentar maior contribuição e relevância para a concepção de tecnologia utilizada atualmente, a qual envolve necessidade e solução de problemas, é a educação tecnológica. Mas será que um ensino sobre a tecnologia poderá ter seus conhecimentos transferidos para outras situações que necessitem de soluções? Acredito que o ensino sobre a tecnologia não será capaz de modificar sozinho o pensamento curricular, uma vez que existem dificuldades de estabelecer relações para qualquer tipo de conhecimento, seja físico, químico ou biológico. Isso acontece porque a estrutura de ensino não favorece o estabelecimento das relações existentes entre esses conhecimentos e as situações vivenciais. A educação tecnológica dentro dessa estrutura de ensino pode então não ser favorecida/alcançada.

    Em relação ao enfoque na solução de problemas, este favorece a educação tecnológica a assumir elos de integração com outras disciplinas. Em outras palavras, o conhecimento tecnológico sozinho não consegue solucionar o problema existente, ele necessita da contribuição dos conhecimentos de todas as áreas do conhecimento, fazendo com que a solução do problema trabalhe integradamente com todos os conhecimentos necessários. Muller (2000) defende o enfoque na solução de problemas, uma vez que o problema surge do contexto de aplicação (da prática) e não, da problemática da disciplina. Com isso, mais facilmente desenvolve-se um estudo transdisciplinar, com maior colaboração, flexibilidade e qualidade, e menos hierarquizado. Newberry (1999) descreve alguns projetos de integração envolvendo a educação tecnológica com a matemática e a ciências. Nestes, a educação tecnológica aparece como uma disciplina que discute, contribui e complementa as informações das outras disciplinas, buscando a melhor solução para o problema além de desenvolver as capacidades humanas. Segundo este autor, a educação tecnológica torna-se um meio para a descoberta e exposição, preparando para melhores oportunidades de interação e para um desenvolvimento mais profundo das relativas áreas de estudo.

    Assim, o discurso da educação tecnológica foi apropriado e recontextualizado pelas políticas educacionais (PCNEM), uma vez que estas preconizam a reorganização curricular baseada na integração por intermédio das tecnologias, nas quais a solução de problemas foi associada e submetida à lógica da produção pós-fordista. Nos PCNEM, por exemplo, a tecnologia é colocada como o tema por excelência porque é considerada o ponto central do desenvolvimento econômico e produtivo. Os PCNEM argumentam que a presença da tecnologia no Ensino Médio estabelece uma expressão concreta à preparação básica para o trabalho prevista na LDB (Brasil, 1999, v. I: 95).

    Entretanto, é preciso ter cuidado com o uso e o enfoque da tecnologia. Como a tecnologia está associada à ciência, enquanto aplicação dessa, ao supervalorizarmos as tecnologias estaremos supervalorizando a ciência também, com conseqüências perigosas. É importante ressaltar que o conhecimento científico não é mais importante que os outros conhecimentos, e além disso, ele serve a interesses sociais mais amplos, os quais não estão destituídos de ideologias, das relações de poder e controle que existem na sociedade.

    Pode-se perceber, pelo discurso dos PCNEM, a tentativa de dissociação entre a tecnologia e a ciência, à medida que argumenta que a tecnologia é comum e     natural a qualquer área do conhecimento, elegendo-a, para isso, como princípio integrador das disciplinas e das áreas e, associando as tecnologias às três áreas definidas pelo documento (Linguagens e Códigos, Ciências Humanas, e Ciências da Natureza e da Matemática). Mas, na realidade, existe um fortalecimento das relações entre ciência e tecnologia, uma vez que as tecnologias se apresentam de forma diferenciada para cada disciplina favorecendo uma maior valorização e referência de determinado tipo de conhecimento.

    Esse fato não acontece somente no Brasil. Analisando o Currículo Nacional da Inglaterra, Layton (1993) aponta que a tecnologia é considerada como a área do currículo na qual os indivíduos esboçam e utilizam objetos ou sistemas, desenvolvendo assim, suas habilidades em solucionar problemas. Nessa concepção, os conhecimentos e habilidades de todas as disciplinas envolvem sempre, de uma forma ou de outra, a ciência e a matemática nas outras áreas de conhecimento. Logo, existe uma forte valorização dos conhecimentos científicos e matemáticos.

    Quanto ao enfoque na solução de problemas, a questão reside no fato de somente valorizarmos conhecimentos práticos que produzam soluções rápidas, ou seja, valorizarmos conhecimentos que possuem algum tipo de aplicação prática e visível capazes de inserir o indivíduo na sociedade e no mercado produtivo, sem que ocorram questionamentos em relação à essas formas de seleção e inserção.

    É necessário entendermos que o conhecimento científico e tecnológico apresenta grandes avanços porque está relacionado ao desenvolvimento econômico e produtivo. Em outras palavras, é devido às demandas do mercado econômico e produtivo que se investe cada vez mais no desenvolvimento de determinado conhecimento científico e tecnológico, já que este atende aos interesses e objetivos sociais do modo de produção capitalista. É por intermédio da aplicação desse conhecimento à situações-problema, obtendo resultados com maior êxito e rapidez, que se legitima e se perpetua essas políticas econômicas e produtivas.

    Layton (1993) analisa que está ocorrendo uma mudança na sociedade, a "ciência para cientistas" está cedendo lugar para a "ciência para ação". Essa mudança ajuda as disciplinas a tornarem-se mais atrativas aos estudantes relacionando a ciência ao mundo cotidiano e ao mundo industrial, além de atender às demandas funcionais existentes.

    Portanto, o discurso das tecnologias é deslocado do contexto de reflexão sobre as questões sociais e inserido de forma mais instrumental e metodológica nos PCNEM, o qual visa formar o indivíduo para o novo modelo de produção pós-fordista. Ou seja, as tecnologias são utilizadas como instrumento de aplicação do conhecimento científico-tecnológico e como forma de facilitar a aprendizagem desse mesmo conhecimento, conhecimento este que é mais valorizado no mercado de trabalho e nos processos de produção.

    A questão central de nossa preocupação é: a quem interessa esse tipo de conhecimento? Não se trata de ser contra o conhecimento científico e tecnológico, já que sua presença nos dias atuais é cada vez maior. Argumento que esse tipo de conhecimento, disseminado intensivamente de forma benéfica e inovadora, também responde a certos interesses sociais, políticos e econômicos, os quais não são neutros. É preciso, então, termos cuidado com suas relações e implicações.

    Como já foi dito anteriormente, o discurso da produção pós-fordista responsabiliza a educação pela preparação desses "novos trabalhadores e novos indivíduos". Muller (2000) e Newberry (1999) apontam que esse discurso defende uma educação secundária de alta qualidade, com ciências, matemática e tecnologia. Logo, o ensino médio tem sofrido modificações para atender a essas novas exigências. Sendo assim, na próxima seção apresento um panorama da introdução das tecnologias no ensino de ciências, e como estas foram associadas às perspectivas pós-fordistas via recontextualização.
 

O ensino de ciências e a tecnologia

    Segundo Trivelato (2000), na década de 90, as discussões sobre ensino de ciências foram intensificadas devido a existência de uma grande disparidade entre este ensino e o ensino requerido pelas modificações constantes que atravessamos. As ciências na escola eram, e ainda são, vistas como neutras, objetivas, como um campo da verdade, onde não existem divergências e disputas, sendo muitas vezes associadas à idéia de progresso e de melhoria da qualidade de vida, o que as tornam incontestáveis e acima do bem e do mal. No entanto, fora da escola, as ciências não se apresentam dessa forma, existem claramente as divergências e disputas, várias versões ou pontos de vista os quais nos mostram como a objetividade, a veracidade e a neutralidade são construções ilusórias. Como afirma Trivelato (2000: 46):

A ciência se apresenta hoje como um corpo de conhecimentos em construção e constante modificação e questionamento; seu avanço é visto como um processo descontínuo e suas teorias são construções humanas, e, como tais, submetem-se às mesmas contingências que afetam outras atividades humanas (falibilidade, competições, vaidades, interesses e dependência econômica, etc.).     Essas visões da ciência, ou do conhecimento científico, são refletidas para o ensino de ciências o qual busca se adequar às necessidades e aos interesses dos grupos que o promovem.

    De acordo com alguns educadores de ensino de química, como Chassot (1995) e Santos (2000), a ciência é uma linguagem utilizada para facilitar a leitura do mundo, uma linguagem construída sócio-historicamente, logo mutável e falível.

    Por outro lado, vários pesquisadores e educadores, Hart e Robottom, Bybee, Saviani (apud Trivelato, 2000) por exemplo, defendem que o ensino de ciências nas escolas não pode continuar hermético e imutável, ele deve acompanhar as transformações por que a ciência passa, a dinâmica e expansão do conhecimento científico e tecnológico, bem como também deve acompanhar as mudanças que a sociedade atravessa, a diversidade cultural crescente e as modificações no mercado de trabalho. Porém, é necessário ressaltarmos que o conhecimento escolar não é igual ao conhecimento científico e tecnológico. Na verdade, o conhecimento científico e tecnológico sofre uma transposição didática (Lopes, 2000) e uma recontextualização, a fim de atender aos objetivos escolares e às relações existentes neste novo contexto. O conhecimento científico-tecnológico estabelece determinadas relações e atende a determinados interesses no seu contexto de origem, como é o caso da produção de diplomas e da estreita ligação com o meio produtivo. Quando este conhecimento é transposto para outro contexto como a escola, ele é recontextualizado para atender novos objetivos e estabelecer novas relações.

    Autores como Hart e Robottom (apud Trivelato, 2000: 46-7) argumentam que o cidadão deve compreender a sociedade orientada para a Ciência e a Tecnologia, e para isso necessita desenvolver determinadas competências para ingressar no mercado de trabalho, hoje fortemente marcado pela influência da tecnologia e do avanço da ciência. Uma argumentação fortemente ligada aos paradigmas da produção pós-fordista.

    É a partir da associação da ciência à tecnologia, e da posição privilegiada que esta vem assumindo na nova sociedade, e das divergências sobre a função do ensino de ciências que surgem diversos movimentos, como o Alfabetização Científica e o CTS – Ciência/Tecnologia/Sociedade, alguns com concepções bastante distintas. Um destes movimentos ganha maior destaque argumentando que o ensino de ciências deve adquirir uma função importante nesse contexto: desenvolver a capacidade dos indivíduos de resolver problemas e tomar decisões relativas à Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) e às demais situações com as quais se enfrentarão como cidadãos (Trivelato, 2000: 47). Para que isto aconteça é necessário incluir as relações entre ciência, tecnologia e sociedade no currículo escolar, no qual os conceitos, os procedimentos, o desenvolvimento de atitudes e valores, e a preparação para a tomada de decisões são importantes para construir um currículo mais relevante.

    De certa forma, o ensino de CTS está vinculado à educação científica do cidadão, como afirma Santos (2000). Esse tipo de ensino tem o intuito de promover a integração da compreensão pessoal do meio natural (conteúdo da ciência) com o meio construído pelo homem (tecnologia) e o seu meio social (sociedade). Segundo o autor, somente por intermédio dessa integração do desenvolvimento técnico-científico com o meio ambiente e com as necessidades sociais, pode-se participar efetivamente da sociedade moderna, buscando alternativas de aplicações da ciência e tecnologia, dentro de uma visão de bem-estar social.

    Nesse sentido, a tecnologia é entendida como a aplicação das diferentes formas de conhecimento, e essa aplicabilidade lhe outorga a importância de ser o agente integrador num mundo cada vez mais prático e pragmático.

    É importante ressaltar que a concepção de tecnologia presente no campo de ensino de ciências visa a formação de um indivíduo preocupado com as questões sociais, por intermédio da solução de problemas, concepção esta que foi recontextualizada pelos PCNEM.

    De acordo com os PCNEM, as tecnologias possuem uma natureza de aplicação do conhecimento:

...a presença da tecnologia no Ensino Médio remete diretamente às atividades relacionadas à aplicação dos conhecimentos e habilidades constituídos ao longo da Educação Básica, dando expressão concreta à preparação básica para o trabalho prevista na LDB.
(Brasil, 1999, v. I: 95).

    Ainda segundo os documentos, a aprendizagem na área de Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias indica a compreensão e a utilização dos conhecimentos científicos ligados às tecnologias possibilitando assim solucionar e resolver problemas de forma contextualizada.

    Ao analisar os documentos da área para as quatro disciplinas (v. III), pode-se perceber a existência de uma forte influência do movimento a favor do ensino de CTS. A preocupação em associar o conhecimento científico com as tecnologias e com o meio social e do trabalho está claramente presente. Porém, o movimento a favor do ensino de CTS possui uma maior preocupação com a transformação social do que com a inserção social, o que não acontece com os PCNEM uma vez que predominam as questões referentes à inserção social. Ou seja, a aproximação do conhecimento científico-tecnológico do meio social e do trabalho, promovida pelos PCNEM, possui a finalidade maior de inserir os indivíduos no mercado de trabalho e produtivo, e não de promover a participação e o questionamento destes indivíduos nas questões sociais, aspectos necessários para a perspectiva de transformação social. Quanto à análise da expressão tecnologia (ou tecnologias) foi constatada concepções e direcionamentos distintos para cada disciplina da área.

    Para a Biologia, destaca-se a importância de compreender a relação entre ciência, tecnologia e sociedade. Isso significa ampliar as possibilidades de compreensão e participação efetiva nesse mundo. Destaca-se também a importância do aprendizado ativo, através da apresentação dos conteúdos como problemas a serem resolvidos com os alunos, como, por exemplo, aqueles envolvendo interações entre seres vivos, incluindo o ser humano, e demais elementos do ambiente (Brasil, 1999, v. III: 16). A tecnologia é vista como um instrumento de intervenção científica (Brasil, 1999, v. III: 17), a qual o homem utiliza para modificar ou construir novos ambientes.

    Pode-se perceber que a tecnologia é utilizada como forma de investigação e intervenção na vida e no ambiente, uma vez que o discurso dos documentos oficiais refere-se inúmeras vezes às questões ambientais, questões de saúde e questões relacionadas à genética. Dessa forma, a tecnologia no ensino de Biologia parece estar mais relacionada à produção científica e ao meio ambiente:

O conhecimento de Biologia deve subsidiar o julgamento de questões polêmicas, que dizem respeito ao desenvolvimento, ao aproveitamento de recursos naturais e à utilização de tecnologias que implicam intensa intervenção humana no ambiente...

(Brasil, 1999, v. III: 14)

De posse desses conhecimentos, é possível ao aluno relacioná-los às tecnologias de clonagem, engenharia genética e outras ligadas à manipulação do DNA...

(Brasil, 1999, v. III: 19)


 
 
    Em relação à Física, o discurso caminha mais no sentido de que os conhecimentos físicos são produtores das tecnologias. Os documentos argumentam que os conhecimentos físicos devem ser entendidos como meios/instrumentos para uma melhor compreensão do mundo, buscando sua dimensão aplicada ou tecnológica e extrapolando-a. Ressaltam que se deve identificar questões e problemas a serem resolvidos, estimular a observação, classificação e organização dos fatos e fenômenos à nossa volta segundo os aspectos físicos e funcionais relevantes (Brasil, 1999, v. III: 24). As tecnologias estão ligadas à concepção de utilidade e ao mundo do trabalho. ...classificar diferentes formas de energia no uso cotidiano, como em aquecedores, meios de transporte, refrigeradores, televisores...

(Brasil, 1999, v. III: 24)

Além dos aspectos eletromecânicos, poder-se-ia estender a discussão de forma a tratar também elementos de eletrônica das telecomunicações e da informação, abrindo espaço para a compreensão do rádio, da televisão e dos computadores.

(Brasil, 1999, v. III: 26)

...podemos lembrar a necessidade de se avaliar as relações de risco/benefício de uma dada técnica de diagnóstico médico, as implicações de um acidente envolvendo radiações ionizantes, as opções para o uso de diferentes formas de energia, as escolhas de procedimentos que envolvam menor impacto ambiental sobre o efeito estufa ou a camada de ozônio, assim como a discussão sobre a participação de físicos na fabricação de bombas atômicas.

(Brasil, 1999, v. III: 28)

    Quanto à Química, a expressão tecnologia aparece fortemente ligada ao processo produtivo, industrial, e à questões ambientais. Segundo os documentos, os conhecimentos químicos permitem a compreensão das transformações químicas que ocorrem no mundo físico de forma abrangente e integrada, tornando possível o julgamento de informações e da tomada de decisões. ... os conteúdos a serem abordados nessa fase devem se referir aos materiais extraídos e sintetizados pelo ser humano, bem como aos materiais introduzidos no ambiente em decorrência dos processos de fabricação e de uso. Devem abordar as implicações econômicas, sociais e políticas dos sistemas produtivos agrícola e industrial.

... Esses conhecimentos exigem, entre outras, competências e habilidades de reconhecer o papel da Química no sistema produtivo, reconhecer as relações entre desenvolvimento científico e tecnológico e aspectos sociopolítico-econômicos, como nas relações entre produção de fertilizantes, produtividade agrícola e poluição ambiental, e de reconhecer limites éticos e morais envolvidos no desenvolvimento da Química e da tecnologia, apontando a importância do emprego de processos industriais ambientalmente limpos....

(Brasil, 1999, v. III: 35)

    A Matemática é considerada como um conjunto de técnicas e estratégias, as quais são aplicadas a outras áreas do conhecimento, tanto para tirar conclusões e fazer argumentações, quanto para o cidadão agir como consumidor prudente ou tomar decisões em sua vida pessoal e profissional (Brasil, 1999, v. III: 40). Argumentam que o impacto da tecnologia exige uma modificação do ensino da matemática para que o desenvolvimento de habilidades e procedimentos sejam alcançados a fim de que o aluno possa se reconhecer e orientar com as informações geradas continuamente.

... habilidades como selecionar informações, analisar as informações obtidas e, a partir disso, tomar decisões exigirão linguagem, procedimentos e formas de pensar matemáticos que devem ser desenvolvidos ao longo do Ensino Médio, bem como a capacidade de avaliar limites, possibilidades e adequação das tecnologias em diferentes situações.

(Brasil, 1999, v. III: 41)

    Como a Matemática é considerada uma linguagem capaz de estabelecer relações e interpretar fenômenos e informações (Brasil, 1999, v. III: 9), as tecnologias a ela associada também aparecem como instrumentos de leitura e interpretação do mundo ajudando todas as áreas de conhecimento.

    Podemos verificar que todas as disciplinas trabalham com a idéia que a tecnologia é importante para o entendimento do funcionamento do artefato tecnológico, para o aprendizado da linguagem tecnológica e dos conhecimentos científicos que regem o conhecimento tecnológico. Apesar dessas semelhanças, a Física e a Biologia, principalmente a Física, possuem como preocupação estarem em consonância com o conhecimento de referência mais atualizado, entendendo que seus conhecimentos são relevantes para uma melhor compreensão da tecnologia.

    A Física e a Química, e principalmente a Química, também utilizam a tecnologia como entendimento dos processos industriais, uma vez que estes conhecimentos são considerados importantes para se conhecer e interferir nos processos industriais.

    É importante esclarecer também que, por exemplo, a perspectiva dos elaboradores dos documentos da disciplina Química, integrantes do projeto GEPEQ (1993, 1998), não coincide com essa perspectiva final dos PCNEM. Ou seja, não coincide com essa perspectiva de submissão ao mercado de trabalho e ao mundo de produção. Os consultores da área de Química possuem referências construtivistas, segundo o movimento de CTS, na medida que entendem que o meio social é um objeto de estudo importante para motivar a transformação social. A partir desse ponto, as tecnologias são entendidas como instrumentos que facilitem a compreensão do meio social e suas relações com os outros meios, visando a participação efetiva do indivíduo na sociedade.
 

Considerações Finais

    Na análise dos PCNEM, identifico a utilização da tecnologia (ou das tecnologias) para integrar as diferentes disciplinas e facilitar o aprendizado, tornando-o mais flexível e inter-relacionado. Porém, essa integração via tecnologia não implica em um ensino mais crítico obrigatoriamente, pois não se discute a forma como as tecnologias estão sendo apropriadas e inseridas no contexto educacional. Além disso, a integração via tecnologias depende também da reestruturação do sistema escolar, condição apontada por alguns pesquisadores, como Bernstein e Newberry, para o êxito da integração e da implantação da educação tecnológica.

    Logo, pode-se perceber nos discursos anteriores, referentes a cada disciplina da área de Ciências da Natureza e Matemática, como o sentido da tecnologia foi apropriado e recontextualizado para a perspectiva de atender às demandas do mercado e dos novos modelos de produção pós-fordista, à medida que a tecnologia está fortemente ligada ao conhecimento científico de referência e ao conhecimento científico valorizado pelos sistemas de produção pós-fordista.

    Dessa forma, argumento que os PCNEM recontextualizaram os discursos sobre tecnologia existentes no meio educacional e no meio de produção. Em outras palavras, a concepção de tecnologia presente no ensino de ciências por intermédio do ensino de CTS, o qual defende uma educação de perspectiva construtivista baseada na solução de problemas, foi apropriada e associada à concepção de tecnologia que está influenciando e sendo influenciada pelos novos paradigmas do contexto de produção e de trabalho (paradigmas pós-fordistas). Portanto, o discurso da tecnologia no ensino de ciências dos PCNEM tem por objetivo final a adequação deste ao mercado de trabalho de uma forma mais rápida e flexível.
 

Referências 


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[1] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ/FE – sob orientação da professora Alice Ribeiro Casimiro Lopes