SITUAÇÃO DE ESTUDO COMO POSSIBILIDADE CONCRETADE AÇÕES COLETIVAS INTERDISCIPLINARES NO ENSINO MÉDIO
- AR ATMOSFÉRICO -

Autores
[Otavio Aloisio Maldaner, Lenir Basso Zanon, Milton Auth][1]
[Sandra E. B. Nonenmacher, Alessandro Callai Bazzan, Sandra Gelati Pascoal][2]


Colaboradores
[Clarinês Hames, Denise Angela Wunder][3]
Denis da Silva[4]
[Alvina Canal Kinalski, Claudio Trindade, Janete Maria Strieder, Cláudia C. M. Freitag, Maria Bernardete Dessuy][5]

Instituição
UNIJUÍ: Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul



Resumo

    A presente pesquisa refere-se ao entendimento da situação de estudo como proposta de organização curricular na área de Ciências e Tecnologia no Ensino Médio e, concomitante, de formação continuada de professores no desenvolvimento da própria proposta e seu acompanhamento pela pesquisa. São apresentados com mais ênfase o referencial teórico que embasa a proposta e a condução metodológica da pesquisa, além de resultados preliminares sobre entendimentos produzidos.

Abstract

    This study refers to the understanding of the study situation as a curricular organization proposal in the area of Science and Technology in the Secondary School. It also refers to the concomitant continuing preparation of school teachers in the development of the proposal itself, following both through research. The study emphasizes the proposal theoretical referential and the research methodology, besides presenting some preliminary results about the produced understandings.
 
 

1. Introdução

    Muito se fala na necessidade de serem desenvolvidas novas orientações para o ensino escolar, capazes de propiciar maior significação e relevância social aos educandos. No que se refere ao ensino de ciências, sabemos que há potencialidades ainda pouco exploradas e que poderiam extrapolar visões lineares e fragmentadas desse componente curricular, tão importante na formação de crianças, adolescentes e jovens. Aprendizagens significativas e consistentes nesse campo do conhecimento humano podem proporcionar o desenvolvimento de novas consciências e, desse modo, desenvolver de forma mais plena as potencialidades da vida na sociedade e no ambiente. É essa a função social da instituição escolar que desejamos seja constantemente revista e recriada. E isso extrapola iniciativas, ações e mudanças que têm se mostrado incapazes de atingir o modelo usual de ensino de ciências, isto é, o modelo centrado na reprodução de conteúdos disciplinares pré-estabelecidos que apenas precisam ser repetidos no âmbito da própria escola.

    O presente texto se refere a uma proposta de organização do ensino de ciências que está sendo desenvolvida através do GIPEC-UNIJUÍ - Grupo Interdepartamental de Pesquisa sobre Educação em Ciências da UNIJUÍ[6], referida como situação de estudo. Trata-se de uma orientação para o ensino e a formação escolar que, de acordo com nosso pensamento, supera visões anteriores na medida em que articula saberes e conteúdos de ciências entre si e, também, com saberes cotidianos trazidos das vivências dos alunos fora da escola, permitindo uma abordagem com característica interdisciplinar, intercomplementar e transdisciplinar.

    A partir da proposição dessa idéia - a da situação de estudo como uma possível mudança curricular que contempla novas tendências educacionais - um grupo interdisciplinar de professores elaborou, no ano de 2000, um esboço de proposta de ensino sobre o "Ar Atmosférico", dirigida para o ensino médio, a qual foi retomada, replanejada, e desenvolvida, no 1º bimestre de 2001, em uma turma de alunos da primeira série do ensino médio. Com isso, surgia a necessidade de uma compreensão da situação de estudo, agora, em novos moldes, ou seja, relacionada ao modo como a proposta se consubstancializa na prática escolar, no sentido de atender às expectativas inicialmente explicitadas, enquanto possibilidade de ruptura da forma curricular tradicional, apenas disciplinar. Foi organizada, então, uma pesquisa que está sendo realizada com esse propósito de analisar o processo de concretização da Situação de Estudo "Ar Atmosférico" no ensino médio, a qual está sendo apresentada - em sua fase ainda inicial de consecução - no presente texto, com ênfase no referencial teórico e condução metodológica.

    Para proceder a análise foram construídos cinco tipos de instrumentos que estão sendo usados como material empírico na pesquisa. A análise desses materiais construídos, nesta primeira fase da investigação, considera a seguinte questão central: até que ponto, na concretização da Situação de Estudo "Ar Atmosférico", foi possível atender às expectativas de mudança do enfoque curricular, considerando o que havia sido inicialmente proposto.

    Considerando que a pesquisa se encontra ainda em andamento, estamos apresentando, no presente texto, uma contextualização geral sobre o processo da investigação, seus referenciais teóricos mais centrais e sua organização metodológica, além de alguns entendimentos já produzidos, a título de exemplo. Mais que um projeto de pesquisa finalizado, estamos apresentando um projeto que está se desdobrando em um programa de pesquisa.


2. Novas Práticas Docentes Colaborativas no Ensino Médio - EFA

    Seguidas inquietações por parte de professores da Escola de Educação Básica Francisco de Assis (EFA) - FIDENE[7], aliadas à vontade de melhorar o processo de  ensino-aprendizagem, foram importantes na busca por novas opções, principalmente a partir do segundo semestre de 1997.

    O Projeto Político Pedagógico da escola contemplava um espaço/tempo de 4 horas semanais para encontros dos professores do ensino fundamental, de 5a a 8a série, e do ensino médio. Nesse período semanal ocorriam reuniões, ora conjuntas no coletivo de professores, ora separados nas diferentes séries de ensino e ora entre áreas específicas do conhecimento. Foi nas reuniões por área o inicio das discussões para desenvolver atividades interdisciplinares. Aos poucos, inicialmente através de diálogos informais, de tarefas de busca de novos materiais didáticos, como textos, revistas, e outros, foram se configurando aproximações entre os professores dos diferentes componentes curriculares da área de ciências, deixando explícita a possibilidade de desenvolver um processo didático-pedagógico diferenciado do usual.

    No ciclo de estudos, realizado na semana que antecedeu o início das aulas em 1998, foi escolhido um texto (Gaia[8]), para servir de parâmetro inicial para os estudos interdisciplinares a serem desenvolvidos na 2a série do ensino médio. Objetivava-se retomar conceitos abordados na série anterior, com vistas a perceber o grau de aprendizagem desses e, inclusive, ampliá-lo, atentando para a complexidade inerente ao nível e série em questão. Entre os conceitos retomados destaca-se, substância e suas transformações, energia e sua conservação, fotossíntese e respiração.

    "Energia" apareceu logo como tema comum para os três componentes curriculares e, por isso, optou-se por priorizar o tema "energia", o que permitia, por um lado a continuidade do que vinha sendo trabalhado na primeira série do ensino médio e por outro lado mostrava-se tema fecundo para os propósitos do grupo. O fato de no ensino médio os componentes curriculares da Física, da Química e da Biologia serem tratados de forma muito fragmentada inquietava os componentes do grupo. Em cada uma dessas disciplinas abordava-se, por exemplo, o conceito Energia, com linguagens e enfoques diferentes, sem estabelecer inter-relações. Isso dificultava a busca de novas significações para este e outros conceitos, de modo que permitisse uma compreensão mais ampla de uma situação prática, bem como novos desdobramentos, extrapolando os contextos específicos do estudo das disciplinas escolares.

    Para trabalhar os conceitos de forma a se ampliar relações entre si, encontrou-se respaldo na idéia dos conceitos unificadores propostos por Angotti (1991), uma vez que estes não só perpassam as disciplinas de Ciências Naturais, mas podem constituir-se elos de ligação entre diversos conhecimentos a elas relacionados. O conceito energia, por exemplo, mostrava-se com grande potencial para interligar tópicos de mais de uma área, estabelecendo relações com temas de outros campos do conhecimento, como Fotossíntese, na Biologia e Transformações de Substâncias, na Química.

    A proposta desenvolvida junto às três turmas de segunda série do ensino médio em 1998 teve seqüência em 1999 com as mesmas turmas, então cursando a terceira série.

    A avaliação do processo desenvolvido, no que se refere à aprendizagem, teve como base a sistematização/ produção de textos por parte dos alunos. Algumas produções já aconteciam nos próprios encontros de sistematização, nos quais eram reunidas as três turmas de alunos juntamente com os professores envolvidos no projeto. Outras produções dos alunos aconteciam nos grupos de trabalho e que eram apresentados por eles na forma de seminários. No que se refere ao ensino, o grupo de professores, mesmo renovado com a entrada de outros membros, continuou buscando aperfeiçoar o processo pela prática da reflexão coletiva e da pesquisa em interação com outros educadores, como os professores/ pesquisadores integrantes do GIPEC-UNIJUÍ.


3. Novos conceitos na compreensão do Ensino Médio como Educação Básica

    Há hoje uma crescente compreensão de que o ciclo de educação básica deva constituir-se de forma contextualizada, agrupando o projeto pedagógico desenvolvido em áreas de estudo. Nesse sentido, atendendo determinações da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, o poder público vem tomando iniciativas com implicações diretas no Ensino Médio. Explicita-se, por um lado, a obrigatoriedade e a gratuidade desse grau de ensino, com a universalização da educação básica no país e traça-se, por outro lado, os Parâmetros Curriculares Nacionais, que lhe conferem uma nova identidade. É nítida a proposição em favor de aprendizados formativos para a vida, em que cada área do conhecimento envolva, de forma combinada, o desenvolvimento de conhecimentos práticos, contextualizados, que respondam às necessidades da vida contemporânea, e o desenvolvimento de conhecimentos mais amplos e abstratos, que correspondam a uma cultura geral e a uma visão de mundo (PCN, p.16).

    A nova denominação da área - Ciência e Tecnologia – propondo a promoção do conhecimento técnico, sem diminuir a relevância da formação científica geral, dirigida para uma cultura mais ampla, sinaliza um ensino médio que promova competências e habilidades que sirvam para o exercício de intervenções, ações e julgamentos práticos (PCN, p. 16/17). A maior integração do estudante do ensino médio à vida social pode lhe conferir melhores condições de compreender e desenvolver consciência mais plena de suas responsabilidades e seus direitos, juntamente com o aprendizado disciplina (PCN, p.15). O aprofundamento dos saberes disciplinares envolve também a articulação interdisciplinar desses saberes, propiciada por várias circunstâncias, dentre as quais se destacam os conteúdos tecnológicos e práticos, já presentes junto a cada disciplina, mas particularmente apropriados para serem tratados desde uma perspectiva integradora (PCN, p.19); a ser posto em prática no enquadramento de problemáticas reais - interdisciplinares por excelência - sem o que ele não se dará com a riqueza desejada. Consideram que isso inclui uma compreensão mínima de técnicas e princípios científicos em que se baseia cada ciência, bem como de conceitos e modelos que transitam entre as disciplinas. Há, portanto, uma defesa pela demarcação disciplinar, ao lado de uma articulação interdisciplinar, de forma a conduzir organicamente o aprendizado pretendido uma vez que a temática real não cabe nas fronteiras de qualquer disciplina.

    Para a promoção das mudanças, os PCN indicam tratar como conteúdo do aprendizado científico-tecnológico elementos ou aspectos do domínio vivencial dos educandos, da escola e de sua comunidade, sem delimitar o alcance do conhecimento e dando significado aos aprendizados, desde seu início, como forma recomendável e possível para transcender a prática imediata. Ao chamar a atenção para a atualização dos conteúdos do ensino, frente aos avanços do conhecimento científico e de sua incorporação tecnológica, apontam que cada ciência deve também tratar das dimensões tecnológicas a ela correlatas. ... o que exigirá uma atualização de conteúdos ainda mais ágil, pois as aplicações práticas têm um ritmo de transformação ainda maior que o da produção científica (PCN, p.19).

    Dentro do GIPEC-UNIJUÍ, na tentativa de produzir um entendimento do que seja a Educação Básica na formação dos adolescentes, vendo-a muito mais do que um simples trampolim para a Educação Universitária, aceitamos as duas idéias básicas desenvolvidas no contexto das pesquisas construtivistas dos anos 70/80: 1. os alunos chegam à escola com muitas idéias e explicações acerca dos fenômenos naturais e dos princípios de funcionamento dos produtos tecnológicos com os quais convivem em seu dia-a-dia; 2. as idéias e explicações dos alunos desempenham importante papel na aprendizagem das ciências buscadas na escola e, por isso, não podem ser desconsideradas nas propostas pedagógicas. Alguns modelos pedagógicos foram desenvolvidos no mesmo período, considerando o papel ativo do aluno no processo pedagógico, com participação maior ou menor do professor, com preocupação maior ou menor em suplantar ou incorporar as idéias e explicações anteriores dos estudantes para que as idéias científicas pudessem se constituir. Pesquisas revelaram, ainda, que as pessoas podem conviver com diferentes modelos de explicação, incluindo os modelos científicos, utilizando-os conforme o contexto em que estão envolvidos.

    Mais recentemente está havendo um esforço maior para compreender o processo de formação das idéias que constituem consciência ou a mente das pessoas em seu meio social mais amplo ou na escola. É uma linha de trabalho mais voltada para a constituição dos sujeitos, o que pode levar à compreensão da natureza do ser humano para um novo nível no que se refere à aprendizagem e desenvolvimento. O referencial teórico para esses estudos pode denominar-se, genericamente, histórico-cultural, cujas raízes são buscadas nas elaborações de Vygotsky (1987, 1988). Com base nesse referencial, os conhecimentos prévios dos estudantes passam a ser vistos como formas internalizadas das vivências culturais significadas no meio social em que se encontram e não mais como construções espontâneas apenas influenciadas pelo meio físico e social. Os conhecimentos prévios, sob o enfoque histórico-cultural, são significados produzidos na interação social que passa a constituir a própria mente dos sujeitos. Isso ocorre em qualquer meio cultural.

    Os significados já internalizados estarão mais próximos ou mais distantes daqueles que a escola vai valorizar. Nossa compreensão é que, na ação pedagógica, todos esses significados são importantes e vão, de alguma maneira, influenciar as aprendizagens. Estas devem permitir a consciência dos significados anteriores à luz das novas compreensões produzidas na relação pedagógica escolar. Ao se valorizar apenas a cultura dominante, desconsiderando as outras formas culturais ricas e plenas de significados, as crianças e adolescentes das classes populares passam a ser consideradas incapazes, quando, na verdade, são as valorizações culturais diferenciadas que criam os desníveis. Ou seja, se a escola valoriza apenas as formas culturais dominantes ela gera a exclusão escolar e social pela reprovação, impedindo que se cumpra um dispositivo legal de Educação Básica plena para todos, na verdade, uma expressão da vontade dos brasileiros.

    O meio cultural contemporâneo, impregnado de artefatos tecnológicos só possíveis pela produção da Ciência, desconhece os princípios científicos mais elementares, como mostram levantamentos realizados nesse sentido. Eles mostram que os sujeitos sociais não especializados em uma área científica, mesmo com formação universitária, desconhecem princípios básicos de Física, Biologia, Química, Geologia. Interpreta-se isso como aprendizagens não realizadas dos conceitos científicos, embora buscados em todas essas disciplinas. Os mesmos levantamentos mostram que as pessoas que passaram por toda essa formação consideram que foi perda de tempo os estudos que fizeram dessas disciplinas e confessam que não aprenderam nada ou que não lembram nada.

    É pensamento de Vygotsky, e de outros teóricos da abordagem histórico-cultural, que a aprendizagem e a reconstrução cultural só ocorrem nas interações sociais. Se, então, os significados científicos estão ausentes do meio social no cotidiano das pessoas, não há transação significativa de significados, assim as idéias científicas não constituem os sujeitos. Isso explica o paradoxo de vivermos a era científica, a cultura científica, o domínio tecnológico com base na ciência e o fato de as pessoas não conseguirem pensar na forma da ciência sobre o mundo que vivem. Ao contrário, proliferam sempre mais outras formas não científicas de enxergar e interpretar os fenômenos naturais, sociais e psicológicos, mais assentadas em crenças do que na racionalidade humana científica construída historicamente.

    É nesse contexto que nos propomos a refletir melhor o papel da escola na constituição dos sujeitos sociais. Como instituição social, cabe-lhe o papel de constituir os sujeitos nas formas culturais que determinado momento histórico exige. Para isso há uma forma escolar de produzir aprendizagem e desenvolvimento mental, que deve fazer parte dos saberes específicos dos educadores de todos os campos do conhecimento humano, entre eles o campo científico. A compreensão de como se deve proceder para que a intervenção pedagógica seja eficaz, isto é, os estudantes se constituam nos conhecimentos científicos e desenvolvam a sua capacidade mental para um meio social com características específicas, muda historicamente e se estabiliza por um certo tempo.

    Compreende-se, hoje, que os estudantes chegam à escola com explicações próprias sobre os fenômenos do cotidiano. Mesmo que não sejam as explicações
científicas estabilizadas, elas são operações mentais características dos seres humanos, por isso sustentadas por conceitos, conceitos produzidos nas interações sociais internalizadas, compondo sua estrutura mental. Não importa que esses conceitos do cotidiano sejam muito diferentes dos conceitos científicos que a escola precisa ensinar, eles são importantes no trabalho pedagógico, pois ambos se enriquecem mutuamente numa boa interação pedagógica, conforme defende Vygotsky.

    Fora do contexto escolar as interações dão-se ao natural, de forma assistemática, geralmente diante de uma situação concreta do cotidiano das pessoas. Assim acontecem a aprendizagem e o desenvolvimento mediados pelos significados produzidos e internalizados diante da situação prática e em interação com outros sujeitos, adultos em interação com crianças ou crianças mais experientes em interação com outras crianças. Na escola, porém, há a intenção do ensinar e do aprender e o desenvolvimento mental dos estudantes é seu propósito. Temos, nessas duas situações, a mesma natureza humana, o mesmo sujeito, embora com outros propósitos. Não se muda a natureza humana só porque se está em outro espaço cultural! Isso nos dá os indícios de mudança nos procedimentos pedagógicos tradicionais nas salas de aula.

    Ao aceitarmos a concepção histórico-cultural dos processos de conhecimento e de desenvolvimento da consciência e todas as faculdades mentais essencialmente humanas, estamos propondo uma nova prática pedagógica no processo de ensino e aprendizagem das disciplinas escolares, especialmente as disciplinas da área da Ciência e Tecnologia no Ensino Médio. É nessa área que residem as maiores queixas dos estudantes e em que ocorrem os maiores problemas de aprendizagem e conseqüente insuficiente desenvolvimento mental, além da exclusão social.

    Como qualquer campo do conhecimento, as disciplinas escolares são constituídas de uma linguagem específica, de procedimentos peculiares e de um sistema de  conceitos. Tudo isso é concretizado por um conjunto coerente de signos e instrumentos que precisam ser significados em interações sociais intencionalmente produzidas na ação pedagógica.

    Propomos a situação de estudo como forma concreta de viabilizar o processo de gênese dos conceitos científicos na escola e o conseqüente desenvolvimento mental dos estudantes que a freqüentam. É ela uma situação concreta, da vivência dos alunos, rica conceitualmente para diversos campos da ciência, de forma a permitir a análise interdisciplinar. A intenção é a de gerar conceitos científicos para os quais é essencial a organização, a coerência, a sistematização e intencionalidade para um novo nível de entendimento da situação, ou seja, uma nova forma de conceituar, diferente da formação dos conceitos do cotidiano.

    A situação de estudo eleita por um grupo interdisciplinar de educadores precisa apresentar múltiplas interfaces de interação, sempre mediada pela ação de outros e dos próprios conceitos que começam a ser significados, permitindo a reconstrução de uma totalidade no recorte feito no mundo real. O indício da aprendizagem realizada estará, justamente, na capacidade de reconstrução da situação sob estudo na forma conceitual, passando a constituir a mente dos aprendentes, que passam a ser constituídos com novas formas de raciocínio, de abstração e de representação do mundo. Na reconstrução teórica do real, os conceitos científicos se enriquecem de vivência, seus significados evoluem, enquanto os conceitos do cotidiano se reorganizam, caminhando para a abstração, despregando-se, sempre mais, da vivência (conforme Vygotsky, 1987).

    Uma situação de estudo não deve ser um projeto demasiado audacioso, muito abrangente, interminável, mas deve ter um número relativamente pequeno de conceitos centrais, sendo estes sempre representativos do todo de cada disciplina, compondo, também, uma totalidade do conjunto delas. Mesmo que abarque um número relativamente elevado de conceitos, estes terão apenas um entendimento inicial ou um incremento de entendimento sobre um outro anterior. Compreende-se, assim, que os conceitos possam evoluir no decorrer do desenvolvimento de sucessivas outras situações de estudo. É assim que os conceitos se constituem, conforme propõe Vygotsky.

    Em primeiro contato com um conceito, mesmo um pequeno sistema recortado de conceitos, pode ser que o significado produzido e internalizado seja muito elementar. Em muitas outras situações esse conceito ou esse sistema de conceitos deverá aparecer e, então, o seu significado poderá evoluir. Pode acontecer que de início o entendimento de cada conceito seja tão pequeno que se resuma a uma palavra com significado ainda difuso dentro da visão científica pretendida. Mas é importante que a palavra, representativa do conceito, esteja presente, seja usada na interação, os atores se detenham nela, discutam sentidos e significados que deverá ter em um contexto específico de uma disciplina ou no contexto interdisciplinar. Ao evoluir o significado, o conceito passará a constituir a mente do aluno, permitindo que pense conceitualmente sobre a situação estudada ou sobre outras situações em que esse conceito se faça necessário.

    A situação de estudo, com as características explicitadas resumidamente acima, traz a vivência anterior dos alunos para a sala de aula e permite que ela seja compreendida em novos níveis, mediado pela produção de significados na interação pedagógica, constituindo a consciência dos estudantes e permitindo que se desenvolva pela produção de conhecimentos impossíveis por vivência direta. A escola tem esse papel social de possibilitar uma compreensão mais ampla do mundo, refletindo conceitualmente sobre ele.

    Pelo fato de uma situação de estudo partir da vivência dos alunos facilita a interação pedagógica necessária para que se produza conhecimento. Eventualmente ocorrerão passagens em que há alta vivência dos alunos, o que permitirá que participem intensamente dos debates, da elaboração e organização de dados, produzam idéias e as defendam, (Maldaner, 2000). A vantagem é que as situações ricas em vivência permitem que o objeto sobre o qual estudantes e professor estão se referindo seja comum sob o ponto de vista psicológico, o que faz com que os conceitos do cotidiano se façam presentes e passem a interagir com os conceitos científicos que são introduzidos, permitindo que ambos evoluam para novos níveis, como dissemos acima, com base em Vygotsky.

    Professores do Ensino Médio, mais ainda, do Ensino Superior, recebem alunos já bastante "escolarizados" no que se refere à busca e organização de informações com vistas à produção de conhecimentos. Por um desvio de concepção do processo ensino e aprendizagem, produzido historicamente no Brasil, os estudantes acabam enredados em uma prática pedagógica que os torna extremamente passivos no que se refere aos conteúdos escolares. Estão sempre no aguardo de copiar os resumos de matéria que os professores colocam no quadro de giz e por eles se guiam para os seus estudos com vistas às provas ou "avaliações", conquistando a certificação do aprendido. Presenciamos nas salas de aula do nível médio e universitário verdadeiras cópias de conteúdos considerados prontos e aprendidos, uma vez copiados e repetidos nas provas.

    Ouve-se, muitas vezes de professores, que, ao tentar romper esse esquema viciado e iniciar uma discussão, deixando por conta dos alunos as anotações necessárias para um possível roteiro de estudos posteriores e/ou complementares, não fornecendo "apostilas", os alunos ficam totalmente perdidos, rebelam-se contra essa situação e praticamente exigem que se volte ao esquema que conhecem, principalmente em disciplinas que julgam não serem essenciais para a sua formação profissional. No GIPEC-UNIJUÍ propomos que se rompa, da melhor forma possível, com essa noção de escolarização. Para isso estamos apresentando a situação de estudo e resultados iniciais de pesquisas em torno de seu funcionamento em situação de sala de aula. As próprias pesquisas deverão apontar, também, a necessidade de novos entendimentos sobre o que propomos.

    Em constante atitude de pesquisa, não podemos esquecer que os processos pedagógicos são históricos e se estabilizam por um tempo maior ou menor, sendo continuamente validados e aceitos, mas, também, reconstruídos e recriados. Por isso, estamos propondo a situação de estudo na Educação Básica como uma tentativa de ruptura. Os resultados preliminares de pesquisas que acompanham a sua evolução são animadores, tanto no que se refere aos entendimentos produzidos por professores que começam a desenvolvê-las em situação prática, quanto ao envolvimento que provoca nos estudantes. Em síntese, elas permitem criar as interações sociais, que aceitamos como base para a aprendizagem e o desenvolvimento do ser humano.

    A aprendizagem vai dar-se no próprio processo da interação, nos tempos e espaços da escola, e seu desenvolvimento mental vai se seguir, conforme a crença teórica que estamos adotando. Durante as aulas e após, os alunos registram suas produções com base nas fontes de informações disponibilizadas e produzidas coletivamente. A avaliação muda, igualmente, pois cada aluno é estimulado a pensar sobre uma nova situação com o uso do esquema conceitual com o qual já foi constituído. A coerência do esquema e sua abrangência serão indícios da produção coletiva realizada, inclusive do trabalho do professor. O resultado permitirá redirecionar a situação de estudo para futuros trabalhos, sendo a principal fonte de pesquisa do professor sobre seu trabalho e de seu aperfeiçoamento.


4. Características especiais das situações de estudo no Ensino Médio

    O ensino no nível médio é usualmente praticado na forma disciplinar - marcada pela total separação entre as disciplinas - e não contempla explicitamente questões de tecnologia. Os conteúdos do ensino são desenvolvidos de forma essencialmente fragmentada e linear, dentro de uma mesma disciplina e, em conseqüência disso, resultam numa aprendizagem baixa e superficial, insuficiente para a produção do desenvolvimento mental. As mudanças demandadas ao professor e à escola, hoje, requerem visões e práticas organizativas em novos patamares. Supõem a instituição de coletivos organizados de educadores que constituam processos de interação colaborativa, promovendo intervenções capazes de articular dinâmica e intencionalmente os espaços e a formação como um todo. A situação de estudo cria um contexto de problematização, que permite estabelecer a negociação de significados aos conceitos introduzidos, produzir entendimentos e ações em novos níveis nesse contexto. Assim, articuladamente à exploração de uma situação de estudo, vão sendo inseridas abordagens disciplinares que, extrapolando seus âmbitos internos, assumem características interdisciplinares.

    A exploração de cada situação de estudo, em espaços-tempos específicos no currículo escolar, constitui processo dinâmico de reconstrução teórica de realidades contextualizadas, em jogo de interações e de interlocuções de saberes diversos. Isto supera o discurso usualmente abstrato e vago sobre a inter-relação ciência-tecnologia-sociedade. Explicita-se a forma como a tecnologia demanda conhecimento e educação. Explicita-se os processos através dos quais a tecnologia relaciona-se com o desenvolvimento e com a vida na sociedade/ambiente. Os velhos aprendizados das ciências - limitados a conteúdos desenvolvidos em séculos passados - não são capazes de revelar a importância das ciências para a tecnologia e para a vida na sociedade contemporânea, e vice versa.

    Ao propormos a situação de estudo como abordagem pedagógica adequada da área científica no ensino médio, estamos rompendo com práticas tradicionais de organização curricular, com base em disciplinas separadas desenvolvidas de forma fragmentada e linear. É de todos conhecidos essa forma de organizar as próprias disciplinas no Ensino Médio. Com a situação de estudo mantemos as disciplinas, organizadas, porém, para atender à análise, compreensão e entendimento, sob o ponto de vista das diferentes ciências -Biologia, Química, Física e outras - de uma determinada situação prática do mundo material. Em torno de uma situação eleita organiza-se uma equipe de professores, tentando explicitar entendimentos essenciais para os conceitos que cada disciplina vai usar em sua análise, que serão intencionalmente explicitados junto aos alunos. Desejamos, com isso, ultrapassar a visão multidisciplinar da situação sob estudo e atingir a interdisciplinaridade ou mesmo a intercomplementaridade de conceitos utilizados, bem como dos sistemas conceituais e das abordagens próprias de cada campo do conhecimento disciplinar.

    Os profissionais de cada ciência e de cada disciplina têm a sua razão de ser. Atuam com um sistema consistente de conceitos, desenvolvem procedimentos e instrumentos próprios à abordagem de uma situação, prezam por um conjunto próprio de valores e desenvolvem atitudes e jargões que os identificam. Por isso constituem uma comunidade científica na qual reconhecem e validam as produções realizadas pelos diferentes membros que a compõem. As diferentes comunidades, também, interagem entre si de tal forma que avanços teóricos e técnicos produzidos em uma delas logo influenciam as outras. São inúmeros os exemplos que mostram esse efeito interdisciplinar ou intercomplementar. Portanto, é desejável, também, a disciplinaridade na formação cultural básica das pessoas.

    No desenvolvimento de uma situação de estudo, é importante que a questão epistemológica esteja presente. Sobre isso apontamos, principalmente, a questão que se refere à produção de uma ciência e à sua validação. A produção dá-se no confronto de uma situação prática, pela compreensão conceitual do que está além das aparências e das impressões primeiras. Por isso, a situação fenomenológica, a prática, a experimentação não devem ser esquecidas na ação pedagógica. Deve-se confrontá-las com os conceitos já construídos historicamente, mostrar que não se pode captar pelos sentidos imediatos a existência, por exemplo, dos átomos, das funções das estruturas biológicas ou das leis de Newton. Uma vez construídos os primeiros significados dos conceitos, através da interação pedagógica, os próprios dados sensoriais começam a ter novo sentido, nova compreensão. Com isso não queremos dizer que os dados sensoriais captam de forma errada as coisas, apenas que não captam as explicações que a Ciência dá para as sensações e percepções.

    Para superar a concepção fragmentada que se tem sobre cada disciplina, propomos como ideal que em toda a situação de estudo tenhamos em mente a disciplina como um todo. Podemos ter em vista os conceitos mais centrais e não a seqüência linear dos conceitos tradicionais. Esses conceitos centrais vão retornar muitas vezes em outras situações de estudo, evoluindo seu significado. Esperamos, com isso, poder explicar cada situação dentro das diferentes disciplinas, até onde o nível conceitual vai permiti-lo.

    A situação de estudos, que denominamos ar atmosférico mostrou-se adequada para introduzir as disciplinas de Biologia, Física, Química e Geologia, no Ensino Médio, conforme podemos ler nos dados preliminares da pesquisa que estamos realizando. Diversos conceitos fundamentais de cada disciplina puderam ser introduzidos com a finalidade de compreender essa importante porção do mundo material e a relação que tem com o fenômeno vida. O objetivo é produzir uma visão global, uma totalidade, olhando sua origem (Geologia), sua dinâmica e permanência (Física), sua composição e transformações (Química), sua relação com os seres vivos (Biologia) e as relações práticas que o ser humano estabelece com esse meio gasoso que o cerca e o impregna (Tecnologias, Poluição Atmosférica).

    O texto original produzido para a situação que foi desenvolvida na EFA, foi organizado na forma de um hipertexto, com diversas possibilidades de entrada de assuntos relacionados à situação, com a explicitação de conceitos, explicações adicionais, informações, novas fontes de informações, abrangendo as diversas disciplinas do currículo. Uma das disciplinas pode estabelecer o fio condutor do texto. No caso do ar atmosférico a disciplina escolhida foi a Química. Em outra situação pode ser a Biologia ou a Física. Mas esta é uma questão prática que pode ser superada em outros contextos de produção. Na atual organização do currículo, em que é previsto um professor por disciplina, com uma distribuição de carga horária semanal, é fundamental que possam ocorrer ritmos diferentes de desdobramento da situação. O processo não pode ser travado, tendo, apenas data de início e de finalização.

    
5. Organização Metodológica da Investigação

    Frente à problemática e aos referenciais anteriormente apontados, foi organizado um processo de pesquisa com o propósito de analisar, na prática do ensino escolar, como se dá o desdobramento da nova orientação curricular proposta - no caso, a Situação de Estudo "Ar Atmosférico" - e como isso pode gerar disponibilidade para o trabalho coletivo de professores e sua formação continuada. Considera-se a necessidade de compreensão das idéias propostas, agora num contexto prático, e de avaliar sua potencialidade no sentido de romper com esquemas tradicionais de ensino [apenas disciplinares e excessivamente diretivos] e, ao mesmo tempo, propiciar aos educandos uma aprendizagem com maior significado e relevância. A investigação considera que, se a escola é amplamente criticada, seu fracasso não pode ser atribuído, simplesmente, aos sujeitos que vêm buscar, nela, sua inserção social, e nem a outras instituições de forma generalizada. A organização do trabalho se baseia na idéia de que é no âmbito da escola que podemos buscar, na forma da pesquisa, respostas aos seus problemas mais essenciais, na medida em que superamos a tendência de falar de uma escola genérica e de problemas genéricos, sem mencionar e compreender seus aspectos práticos específicos, seus limites e possibilidades, seus componentes curriculares e os próprios sujeitos que têm a responsabilidade de desenvolvê-los.

    A presente pesquisa não está esgotada, mesmo porque acreditamos na importância de sua continuidade. O presente texto apresenta uma contextualização geral do processo da investigação, seus referenciais teóricos mais centrais e sua organização metodológica, além de algumas evidências que se sobressaíram, na análise do material empírico, que procedemos até o presente momento. Nesse sentido, ela é uma abertura para um programa de pesquisa que deverá ser desdobrado em outros projetos.

    Os materiais empíricos que estão sendo analisados referem-se ao processo de execução da Situação de Estudo Ar Atmosférico em uma turma da 1ª Série do ensino médio, no 1º trimestre do ano 2001, na EFA. A turma era constituída de 18 alunos, sendo que, destes, nove haviam cursado o ensino fundamental nesta escola e outros nove procediam de diversos municípios e escolas. Três alunos eram repetentes da série. A turma foi caracterizada, pelos professores, como bastante heterogênea, seja no nível conceitual, seja no interesse pelos estudos, seja na organização e na participação.

    Nesta primeira fase da investigação - inspirados na idéia de que pesquisar (research, no inglês; rechercher, no francês) significa rever, re-buscar, procurar de novo - organizamos o processo de análise dos materiais construídos com base na seguinte questão central: - até que ponto, na concretização da Situação de Estudo "Ar Atmosférico", na EFA, foi possível atender às expectativas de mudança no enfoque curricular, conforme inicialmente proposto?

    E, para analisar o que se sucedeu ao longo do processo – as interações em sala de aula, nos encontros - foram construídos cinco tipos de instrumentos, especificados a seguir, os quais estão servindo como material empírico principal, no processo de execução da pesquisa.

a) Um texto produzido no primeiro semestre do ano 2.000, na forma de um hiper-texto, que explicita a Proposta inicialmente elaborada para a referida situação de estudo, intitulado "Organização do Ensino Médio – Área de Ciências e Tecnologia – Desenvolvimento de uma Situação de Estudo" (70 páginas). O texto foi produzido através da participação de um grupo interdisciplinar de professores, e foi apresentado, na forma de um curso, no XX EDEQ/ X ENEQ - encontro estadual e nacional de ensino de química - em julho de 2000. No texto consta um relato dos professores da EFA sobre uma experiência inter-disciplinar anteriormente desenvolvida na escola, sobre o tema Energia.

b) Textos produzidos pelos professores da EFA, de forma coletiva, em que expressam suas percepções sobre aspectos do como funcionou, na prática, a experiência vivenciada e, também, retomam o relato anteriormente feito sobre a experiência interdisciplinar desenvolvida em moldes diferentes da situação de estudo, sobre o tema Energia.

c) Transcrição de fitas que registram, em áudio, reuniões da equipe, incluindo depoimentos dos professores da EFA sobre como aconteceu o desenvolvimento da experiência, em aulas. Tais relatos referiam-se à questão central que orienta o processo da investigação.

d) Transcrição de fitas que registram, em áudio, entrevistas semi-estruturadas realizadas com os três professores (de cada disciplina: Física, Química e Biologia) da EFA.

e) Materiais diversos produzidos pelos alunos ao longo da concretização da situação de estudo na EFA, nas aulas de Física, Química e Biologia.

    Num primeiro momento, esses instrumentos foram analisados na forma de uma busca de respostas à questão que orienta a investigação, diretamente nos materiais empíricos, ou seja, ainda na forma de falas dos sujeitos da pesquisa - professores e alunos da EFA e professores da UNIJUÍ - em interação (nas aulas, nas reuniões, nas entrevistas semi-estruturadas). Na medida em que analisávamos, em nossas interações, no processo da pesquisa, as primeiras percepções expressas, recortadas diretamente do material empírico, isso ia tornando possível interpretar e compreender em outros estágios, pela pesquisa, as percepções iniciais. Na medida em que passávamos a sobre elas refletir, isso ia permitindo conferir novos significados e estabelecer novas relações, em outros níveis. E isso vem unindo a equipe no propósito de dar continuidade ao trabalho, que se encontra ainda em andamento.


6. Sobre Expectativas de Mudança do/no Enfoque Curricular Proposto

    A análise dos dados construídos no processo da investigação aponta, ainda que de forma incipiente que, na consecução da Situação de Estudo "Ar Atmosférico" junto à turma investigada, no ensino médio, foram atendidas algumas expectativas de mudança do/no enfoque curricular. Tais mudanças referem-se, de modo especial, a indícios que sinalizam para novos níveis de tratamento a questões específicas que estão norteando a análise dos materiais empíricos e que se referem:

- à compreensão da própria disciplina no contexto da formação básica;

- à compreensão da ação disciplinar e inter/transdisciplinar no ensino médio;

- ao tratamento de questões tecnológicas e sociais (contextos vivenciais) nas aulas;

- à ruptura da rigidez no seguimento a programas disciplinares pré-estabelecidos;

- às condições exigidas para desenvolver um trabalho dessa natureza;

- à produção dos alunos na modalidade de organização do ensino proposta;

- às interações e à formação continuada dos sujeitos mediadas pelo processo da pesquisa;

- às dificuldades, aos entraves e lacunas percebidas ao longo do processo;

- à visão de ciência prévia e produzida ao longo das interações.

    Uma das professoras já tinha maior experiência em ações interdisciplinares. Os outros dois - uma professora e um professor - são iniciantes nesse tipo de trabalho. No processo da investigação, estamos atentos, por isso, à possível participação diferenciada dos professores, tendo em vista sua experiência anterior. A título de exemplo, apresentamos, a seguir, algumas percepções e reflexões realizadas no processo da pesquisa.

    Todo os professores da escola expressaram, desde o início, que já sentiam a necessidade de mudar o enfoque curricular em suas aulas no ensino médio. A Profª Ana, por exemplo, dizia:

"eu logo me interessei, porque essa é uma necessidade que eu já tinha, porque o que eu sei é dar conteúdos, chegar lá e dar os conteúdos já prontos, assim, 'Óh, gente, isso aqui é assim, assim, e assim!'. E normalmente é assim que a gente trabalha. Então, quando apareceu esta oportunidade, eu logo quis aprender sobre isso, porque eu quero fazer diferente.".     Ao final do desenvolvimento da situação de estudo, essa professora dizia que "foi muito diferente do que eu ir lá e passar o conteúdo pronto para eles".

    Os professores mostraram-se preocupados no sentido de dar conta dos conteúdos da disciplina previstos tradicionalmente para o ensino médio e, ao mesmo tempo, mostraram-se abertos para não fazer isso na forma tradicional - apenas disciplinar e diretiva. Ao final do trabalho, eles diziam que ficou claro que, se até o final da situação de estudo, alguns conteúdos ainda não foram trabalhados de forma suficiente, isso não era um problema, porque serão retornados. Consideram a modalidade de ensino bastante adequada porque, segundo a avaliação que fizeram, as disciplinas foram trabalhadas de forma bastante satisfatória, além de ter sido propiciado um trabalho interdisciplinar articulado com um contexto vivencial dos alunos: o ar atmosférico.

    Foram percebidas e analisadas lacunas relativamente ao atendimento de expectativas frente ao enfoque curricular proposto, algumas expressas diretamente pelos próprios professores e alunos e outras apontadas e discutidas ao longo do processo da pesquisa, isto é, ao longo das interações e construções que foram se concretizando nas reuniões dos pesquisadores. Por exemplo, quando a professora de Biologia dizia que um dos assuntos - Origem da Vida - já havia sido esgotado, precebia-se que ela, nesse momento, via-se somente na condição de professora da sua disciplina. Em outro momento, ela própria fazia referência a tantas outras articulações que poderiam ter sido contempladas, relações com as outras disciplinas e com o contexto de estudo ar atmosférico, por exemplo, ela 'entrou muito de leve nas relações com as trocas gasosas envolvidas na respiração, na fotossíntese, e não trabalhou os ciclos biogeoquímicos', ainda que tivesse explorado conteúdos de biologia que se relacionavam com isso. Ela dizia que trabalhou com equações químicas (fotossíntese, por exemplo) mas - conforme costumam ser as aulas de Biologia - não deu atenção à compreensão das transformações do ponto de vista da química. Da mesma forma, relativamente às interconverções energéticas, na aula de Biologia, não eram exploradas relações com a compreensão e com os significados que estavam sendo feitos através das aulas de Física. Havia a percepção de que os alunos faziam relações, mesmo que os professores não dessem uma maior atenção para isso. Sobre essas relações, a Profª Ana assim se pronunciou:

"Em alguns momentos, a gente percebia que, para eles, as aulas tinham alguma coisa a ver com as duas outras disciplinas. Eles faziam algumas relações. E isso era uma coisa boa para eles, a gente percebia isso. Mas a aula de Biologia era uma aula de Biologia. Os conteúdos do meu plano de trabalho - que eu estava trabalhando com eles -, embora a gente tivesse planejado em conjunto, eram conteúdos de Biologia. A gente planejou em conjunto, mas cada um de nós tinha o seu plano, que se referia ao conteúdo específico daquela disciplina."     Outra lacuna percebida, que podemos citar como exemplo, refere-se ao trabalho sobre as escalas. Enquanto nas aulas de Química e de Física havia maior preocupação com o desenvolvimento e a organização de idéias sobre a existência de partículas muito pequenas, moléculas menores e maiores, que podem se agregar formando estruturas maiores, células, organismos, etc., isto é, enquanto essas duas disciplinas procuravam desenvolver e organizar conceitos sobre escalas, nas aulas de Biologia, isso foi tratado de forma pouco articulada, quando essa disciplina poderia ter contribuído sobremaneira, uma vez que os alunos trabalharam com microscópio, lupa, estudaram sobre a origem das primeiras moléculas orgânicas, dos primeiros agregados moleculares e células, ao estudarem a origem da vida, etc. A experiência mostrou que, em algumas situações, houve um trabalho com característica interdisciplinar, por exemplo quando trabalharam com o efeito estufa, a chuva ácida e a camada de ozônio, até mesmo porque os três professores estavam presentes na sala de aula, que havia sido planejada em conjunto. Mas os próprios professores expressaram inúmeras limitações nesse sentido. Mesmo para esse conteúdo, o processo da pesquisa mostrou potencialidades que extrapolam, em muito, a abordagem desenvolvida, por exemplo, no que se refere a contribuições da área da Biologia, que se limitou à citação dos efeitos aos seres vivos, mas não explorou os mecanismos de ação dos agentes - propriamente ditos - sobre os seres vivos o que, sem dúvidas, implicaria em relações com a Química e a Física. Assim, as reflexões, ao mesmo tempo que revelam as lacunas desta primeira ação interdisciplinar do grupo, revelam, também, a potencialidade da proposta curricular. Sobre as limitações desta primeira experiência, referia a Profª Ana que "o trabalho foi decidido muito na última hora. Dá para dizer que fomos fazendo de forma atropelada. A gente se reunia para conversar sobre como estava andando o trabalho e para planejar a continuidade, mas foi de forma muito atropelada. ... O jeito como aconteceu foi que, quando surgiu a idéia nós logo começamos, e tudo foi decidido muito rapidamente. Nós nos reunimos, e eu logo entendi, assim, sobre como que a gente iria trabalhar. E nós planejamos, já nesta primeira reunião, que foi rápida, como nós faríamos, e a gente elencou, já nesta reunião, o que a gente iria trabalhar: 'a Química trabalha com isso, a Física isso, a Biologia com isso'.     De forma geral, cada professor/a procurarou significar alguns conceitos que considerava mais centrais - como energia, pressão e empuxo, na Física, substância e transformação, na Química, diversidade biológica e célula, na Biologia - com a clareza de que a compreensão de tais conceitos ainda se restringe a significados iniciais, devendo ser ampliados através das sucessivas situações de estudo que estão planejando e passando a desenvolver junto aos alunos, a partir deste semestre. Por exemplo, a situação de estudo 'Água e Vida', que está sendo desenvolvida após a que foi objeto do presente trabalho. No entanto, percebe-se significações ainda iniciais do próprio trabalho proposto, por parte dos professores, e que passam a assumir outros desdobramentos, como expressa a Profª Leda: "eu acho que eu trabalhei muito mais como força de resistência do ar. Acho que não tomei o cuidado de significar isso como força de atrito.".

    Sobre aspectos metodológicos do ensino praticado, percebeu-se que alguns conteúdos foram trabalhados pelos professores praticamente da mesma forma como o eram em anos anteriores, mas, em outros, houve mudanças significativas, além de mudanças que se referem ao conteúdo propriamente dito. Há evidências de mudanças curriculares bastante visíveis no que se refere ao não seguimento rígido do programa convencional de cada série, conforme acontecia anteriormente. Sobre isso, dizia a Profª Ana:

"A forma como eu trabalhei foi bastante diferente, sem dúvida. Eu não iria estar falando sobre célula vegetal, aqui no primeiro ano, porque este assunto é lá do terceiro ano. No ano, passado, não foi assim, foi de forma já pronta. E eles não questionaram o que eu passei pra eles. Então, a gente foi adiante. Mas, nesse ano, foi muito diferente, eles perguntaram muito mais, se envolviam muito mais."     Segundo apontam os professores, esse envolvimento diferenciado da turma deve-se ao tipo de trabalho diferente que estavam desenvolvendo com eles. "A gente percebia pelo jeito como eles questionavam, como eles traziam coisas que surgiam lá na outra aula. E a gente também contribuía, um tanto, porque nós estávamos mais atentos a isso. Nos anos anteriores não era assim." A partir de uma avaliação feita na escola, foi discutido, com os alunos, sobre não abrir demais o espaço para estudos de temas correlatos ou perguntas que iam surgindo, sob pena de isso prejudicar o seguimento mais regular do plano de estudos previsto em cada disciplina. Deveria haver um equilíbrio entre não 'podar' ou abreviar demais a discussão de tudo o que surgia e, ao mesmo, tempo, dar conta do plano de estudos. Como diz a Profª Ana: "Aí, eles trouxeram o paramécio, que surgiu num texto da aula de Física, e eu achei que isso era importante. Depois, veio o cloroplasto, por causa da fotossíntese, e eu achei que era importante. Veio, então, as organelas, as células, fomos ao laboratório de microsciopia e, então, a gente achava importante e, por isso, foi e estudou. Os alunos disseram que, neste ano, eles podem perguntar, e que eles têm as respostas, mas que, em anos anteriores, e em várias disciplinas, havia professores que diziam coisas do tipo ‘isso é para o ano que vem, isso não é agora, isso é para o final do ano’ e que no final do ano, algumas destas respostas não apareciam, e eles ficaram sem respostas. E desta vez, eles disseram que, neste ano, a gente tinha maior abertura para trabalhar com outras coisas, sem transferir para a frente, e sem interromper muito com o plano que a gente tinha."     Temos a percepção de que a pesquisa até aqui realizada já revelou bons indícios sobre a potencialidade das sucessivas situações de estudo para promover a mudança de enfoque curricular no ensino médio e a formação continuada de professores, pesquisa, conforme explicitado no presente trabalho. A continuidade dessa pesquisa, bem como de outras, poderá aperfeiçoar a compreensão do processo iniciado. Na verdade, mais que um projeto de pesquisa, estamos apresentando um programa de pesquisa que surge como um desdobramento do trabalho até aqui desenvolvido.

Referências 


ANGOTTI, José A. Fragmentos e Totalidades no Conhecimento Científico e no Ensino de Ciências. São Paulo: FEUSP, Tese de Doutoramento, 1991.

LUTZENBERGER, JOSÉ. GAIA. http://www.fgaia.org.br

MALDANER, Otavio Aloisio. A Formação Inicial e Continuada de Professores de Química: Professores/Pesquisadores. Ijuí RS. Ed. Unijuí. Coleção Educação em Química. 2000.

Secretaria de Educação Média e Tecnológica, Ministério da Educação. Ciências da Natureza e suas Tecnologias, In Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio. Brasília, 1999.

VYGOTSKY, Lev Semenovich. Pensamento e Linguagem. São Paulo. Martins Fontes, 1a Edição brasileira, 1987.

VYGOTSKY, Lev Semenovich. Formação social da mente. São Paulo. Martins Fontes, 1a Edição brasileira, 1988.

[1] Professores da UNIJUÍ RS
[2] Professores da EFA
[3] Bolsistas CNPq, MCT
[4]  Bolsista UNIJUÍ
[5]  Professores da EFA
[6]  Rua São Francisco 501, Sala 208 da Sede Acadêmica, DeBQ, UNIJUÍ, Ijuí, RS, CEP: 98700 000
email: maldaner@main.unijui.tche.br
[7] A EFA é uma escola mantida pela FIDENE (Fundação de Integração e Desenvolvimento do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul), situada na cidade de Ijuí/RS.
[8] de José Lutzenberger.