Orlando Aguiar Jr.
Faculdade de Educação da UFMG
João Filocre
Educativa, Instituto de Pesquisas, MG
Resumo
O trabalho sintetiza alguns resultados de pesquisa na qual desenvolvemos um modelo de ensino com o objetivo de dar suporte ao planejamento e avaliação de seqüências didáticas. O modelo propõe níveis de entendimento progressivos, baseados nas tríades sucessivas intra, inter e trans-objetais, propostas por Piaget e Garcia (1984). Apresentamos dados de um estudo de introdução à física térmica, conduzido junto a uma classe de 8a série (14/15 anos) e analisamos o caso de aprendizagem de um estudante especialmente bem sucedido, acompanhando seus progressos e dificuldades ao longo do curso. Os resultados preliminares são favoráveis, na medida em que o modelo de ensino favorece: 1. a reflexão sobre o ensino, a partir do reconhecimento da evolução das estruturas de pensamento dos estudantes; 2. ajustes do ensino às características e necessidades formativas dos estudantes.
Abstract
This paper summarises some results of a research
project in which we developed a model of teaching, that facilitates the
planning and the assessment of teaching sequences. The model proposes three
levels of understanding, according to the triads intra-, inter- and trans-object
of Piaget and Garcia (1984). We present data from a study of an introductory
thermal physics class for 8th grade students (14/15 years of
age) and analyse a successful learning case of a pupil, following his progress
and difficulties during the course. We conclude that the model favours:
1. a self-reflection on the teaching process through recognising the development
of pupils' structures of thinking; 2. adjustment of teaching to students
characteristics and necessities.
1. Pressupostos e Objetivos
Entendendo as mudanças que acompanham as aprendizagens escolares em ciências como processo gradual mediante o qual as estruturas de conhecimento existentes são continuamente enriquecidas, reorganizadas e reestruturadas (Vosniadou e Ioannides, 1998), coloca-se a necessidade de conceber o ensino de modo a conectar o mundo das experiências pessoais dos estudantes com o mundo habitado pelos constructos da ciência. Ao reconhecer as diferenças entre esses dois planos, cotidiano e científico, convém considerar, no planejamento de currículos e de estratégias de ensino, modos intermediários de entendimento, que promovam uma progressão nas interpretações dos estudantes acerca dos fenômenos físicos em termos de conhecimentos de maior ordem (Lijnse, 1995; Lemeigman & Weil-Barais, 1994; Dykstra el al., 1992; Tiberghien, 1998). Tais preocupações nos conduziram a conceber um modelo de ensino, cujas proposições consistem, basicamente, em orientações gerais destinadas a organizar, planejar e avaliar a intervenção docente de modo compatível com os mecanismos que regem os processos de aprendizagem, sem ignorar a estrutura e a gênese do conteúdo que se deseja ensinar.
O modelo de ensino que está sendo examinado[1] recorre à epistemologia genética para extrair dela elementos que auxiliem o professor na identificação desses níveis de estruturação e assim orientar suas escolhas didáticas. Piaget e Garcia (1984) identificam na psicogênese e na história das ciências mecanismos comuns na construção de conhecimentos. O elemento que os autores consideram de maior importância nesse estudo comparativo consiste nas tríades dialéticas que denominam etapas INTRA, INTER e TRANS, quando se trata de precisar o sentido das superações e as características de cada nível ou estado de conhecimento em relação àqueles que o precedem e o sucedem.
Esse referencial teórico foi utilizado no planejamento de um módulo didático de introdução à física térmica junto a alunos de 8a série (14/15 anos), no contexto de investigação das "regulações térmicas nos seres vivos".
Na figura 1 estão reproduzidos os patamares
ou níveis de desenvolvimento dos conceitos ao longo da unidade,
tais como foram sendo concebidos ao longo do planejamento do ensino, constituindo
o que pode ser chamado de "patamares pedagógicos".
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CALOR E FRIO COMO ENTIDADES OPOSTAS |
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TRANSFERÊN-CIAS DE CALOR E VARIAÇÕES DE TEMPERATURA |
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SISTEMAS INTEGRADOS – CONSERVAÇÃO E REGULAÇÃO |
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Figura 1: Níveis de Entendimento no Planejamento do Curso "Regulação Térmica dos Seres Vivos"
Os três patamares da unidade comportam, em seu conjunto, um caminho progressivo, mas provisório, de desenvolvimento conceitual em direção às formulações científicas. Eles indicam um percurso marcado pela descentração progressiva e pela objetivação dos fenômenos e processos investigados, na medida em que se deslocam de noções intuitivamente relacionadas às sensações e percepções imediatas (fase intra), para leis que expressam regularidades nas transformações (fase inter), atingindo o estatuto de princípios gerais (fase trans), tomados como necessários num sistema coordenado de compensações.
Esses níveis progressivos (patamares pedagógicos) foram elaborados não apenas com a finalidade de orientar as ações quando do planejamento e implementação das estratégias de ensino, mas , também, como referências para a avaliação da aprendizagem.
Fizemos corresponder, aos patamares pedagógicos
utilizados no tratamento de conteúdos do ensino, níveis de
entendimento que traduzem os progressos dos estudantes
ao longo do curso. Diante da riqueza dos dados das suas manifestações,
e para melhor discriminar o nível de entendimento alcançado
por eles, decidimos dividir cada um dos níveis em dois sub-níveis
-
IA e IB; IIA e IIB, IIIA e IIIB - , caracterizados
de maneira a acompanhar as transições entre eles. No caso
do nível I, o critério utilizado para distinguir os subníveis
foram a ausência ou presença de um sistema causal, mesmo sendo
este extremamente centrado em propriedades extraídas da experiência
com os objetos. No caso dos dois últimos níveis, os critérios
foram a generalidade e estabilidade das construções efetuadas,
além da proximidade das mesmas em relação aos conhecimentos
científicos.
2. Considerações metodológicas acerca da coleta e análise dos dados
O estudo foi desenvolvido com uma turma do último ano da Escola de Ensino Fundamental do Centro Pedagógico da UFMG, envolvendo alunos de 14 a 15 anos, ao longo de três meses de 1999 (junho a agosto), durante 15 encontros de 90 min cada. No ano anterior, foi realizado um estudo piloto com uma outra turma, destinado a refinar os instrumentos de análise.
Do ponto de vista metodológico, a primeira preocupação consistiu em criar instrumentos de análise compatíveis com a teoria que dirigiu as observações realizadas, explicitando-a. O pressuposto é que o "sistema-aluno"[2] não é transparente, e os observáveis de seus estados e transformações são decorrentes do modo como o interpretamos, como nos aproximamos dele e o interrogamos.
Procuramos observar os deslocamentos dos modos de entendimento dos estudantes sobre uma classe particular de fenômenos térmicos de modo a identificar olhares dirigidos aos "objetos", a "eventos" e a "sistemas". A teoria piagetiana foi, nesse sentido, a matriz teórica principal, mas não exclusiva, para a construção de instrumentos de coleta de dados e para sua análise. Partimos da premissa de que as idéias dos estudantes são estruturadas e evoluem ao longo das interações, o que nos conduz a considerar as produções dos estudantes em seu conjunto, buscando compor padrões coerentes e consistentes, segundo sua própria lógica e não subordinadas à lógica do pensamento científico.
Nas análises das produções dos estudantes, foram utilizadas categorias genéricas e abstratas que compõem um referencial para identificar e qualificar seus progressos. Essas categorias não correspondem às representações de nenhum sujeito particular, mas são amplas e inclusivas o bastante para servirem de referencial de análise para todas essas manifestações singulares. A diversidade das formas de entendimento dos estudantes e dos processos de aprendizagem deflagrados pelo ensino solicita instrumentos flexíveis. O pressuposto é que, ao destacar níveis e subníveis de entendimento e, em cada um deles, identificar aspectos intra, inter e trans-objetais, tenham sido constituídos instrumentos capazes de acompanhar os progressos e obstáculos dos estudantes na construção de conceitos científicos, o que poderá ser melhor apreciado a partir da apresentação do caso que será aqui examinado.
Os instrumentos de pesquisa utilizados foram, em grande parte, instrumentos normalmente adotados pelo ensino na avaliação da aprendizagem. Compunham a avaliação os seguintes instrumentos: 1. observação diária das atividades escolares; 2. atividades extra-classe (incluindo tarefas para casa); 3. pré e pós-teste de cada tópico de conteúdo; 4. dois testes escritos, um ao final do primeiro mês de atividade e outro, ao final dos trabalhos. Além desses, foram utilizados, para o propósito de nossa pesquisa, entrevistas individuais com alguns alunos da turma. Ao contrário dos demais instrumentos de coleta de dados, as entrevistas não faziam parte dos procedimentos avaliativos utilizados pelo ensino. A observação das atividades em sala de aula foi realizada a partir de registros dos professores e, sobretudo, de gravações das aulas em vídeo.
Iremos apresentar uma análise de indicadores
de aprendizagem de um estudante ao longo do curso, com o objetivo de examinar
a adequação das categorias de análise e, sobretudo,
de suas contribuições nas reflexões acerca da prática
docente, avaliando o mérito das decisões tomadas e dos procedimentos
adotados. Desse modo, pretende-se qualificar a prática, posto que
objeto de reflexão constante e renovada, e aumentar o repertório
de saberes episódicos que alicercem a compreensão dos mecanismos
de aprendizagem em ambiente escolar.
3. Resultados
3.1. Quadro Geral do Desenvolvimento Conceitual da Turma
Antes de examinar com detalhes as trajetórias do estudante, convém destacar, de modo geral, o desenvolvimento cognitivo da turma ao longo do curso
O cruzamento das informações do pós-teste, teste final e entrevista permitiu avaliar o nível de entendimento predominante de cada um dos alunos ao final do curso, e compará-lo com aqueles apresentados ao início dos trabalhos. Os resultados estão apresentados no gráficos1:
Gráfico 1: Evolução dos
níveis de entendimento da turma, ao início e ao final do
curso (em número de alunos)
O gráfico mostra a evolução geral da turma entre os momentos inicial e final da pesquisa, observando-se queda acentuada do grupo de alunos no nível I (de 24 para apenas 2 estudantes) e correspondente aumento dos grupos situados nos níveis II (de 9 para 20) e III (11 estudantes ao final do curso).
O resultado mais desfavorável da aprendizagem ao longo do curso manifesta-se naqueles sujeitos (2) que mantêm as produções intra-objetais de partida, o que representa 6% do total da turma. As transições intra-inter (I-II) são as mais freqüentes (16 estudantes, ou 48%). A transição I – III, relativa à passagem das composições centradas em atributos dos objetos para um pensamento estruturado e sistêmico, representa aqueles sujeitos que tiraram maior proveito da proposta de ensino desenvolvida, abrangendo 6 estudantes (18% do total). Do mesmo modo, as transições II-III foram observadas em 5 estudantes (15% da turma) que, tendo iniciado o curso com noções bastante próximas de algumas das metas de aprendizagem, ampliaram os modos de conceber os problemas, o que significa também um êxito considerável das estratégias de ensino. O mesmo não se pode dizer daqueles 4 estudantes(12% do total) que, tendo iniciado o curso com produções predominantemente inter-objetais, o concluíram do mesmo modo, em que se pese, evidentemente, a ampliação em extensão das formas de pensamento e a correção de algumas das relações propostas.
Esses números conduzem a uma afirmação
das estratégias de ensino propostas e, sobretudo, da diferenciação
das metas de aprendizagem em níveis progressivos de entendimento.
Entretanto, conferem apenas uma visão geral dos problemas, que passamos
a examinar em detalhe no estudo da trajetória cognitiva de um dos
estudantes ao longo do curso.
3.2. Examinando a trajetória de Alex
A escolha de Alex se deve ao fato de ter apresentado uma trajetória singularmente bem sucedida ao longo do curso, tendo efetuado uma transição do nível I (interobjetal) ao nível III (transobjetal). Nosso interesse será o de examinar algumas das razões determinantes desse sucesso, bem como sinalizar as lacunas e impasses na construção de uma visão coerente acerca dos fenômenos térmicos.
No pré-teste (reproduzimos as questões mencionadas em anexo), as respostas de Alex apontam para interpretações bastante primitivas aos fenômenos térmicos em geral e, particularmente, ao problema da regulação térmica. Nesse momento, o aluno não manifestou qualquer referência ao conceito físico de calor enquanto princípio explicativo de variações de temperatura. Suas respostas encontram-se centradas nas dualidades quente/frio, enquanto elementos em oposição:
"Nosso corpo tem vários sensores termais e quando o ar de fora é mais frio que a temperatura do corpo, nos sentimos frio, então necessitamos de um aquecimento externo para nos sentirmos confortáveis."(Pré-teste, questão 4)
No entanto, o aluno não utiliza de coordenações esquema-estrutura, próprias do nível III, talvez por considerá-las desnecessárias frente à generalidade das questões formuladas nesse instrumento de avaliação.
Ainda nas primeiras semanas do curso, por ocasião do primeiro teste, Alex revela uma clara superação de explicações centradas na dicotomia frio versus quente. Relativiza as sensações térmicas e explica corretamente as transferências de calor do corpo para os materiais que, segundo suas condutividades térmicas, nos fornecem diferentes sensações ao tato, como se percebe em sua resposta à segunda questão:
As pequenas lacunas subsistem no fato do aluno não considerar as variações e dinamismo que caracterizam os processos reguladores nos seres vivos, nem tampouco apresentar integração dos processos de digestão, circulação e respiração, o que o leva a supor que a produção de calor esteja restrita à região toráxica e abdominal:
"O nosso corpo sempre encontra um modo para transferir calor. Quando a temperatura ambiente é mais alta, o corpo começa a suar, é o único modo para perder calor." (Teste 2, questão 4.c).
"O frio não existe, o calor certas vezes aquece um objeto por transferência de calor mas em seguida esfria um outro. Como o exemplo do café para o ar. O café transferirá calor ao ar, que irá aquecer. Mas o café perde calor e esfria."(Teste 2, questão 5.b)
Convém salientar que, em nenhum momento desse teste ou do anterior, Alex usa esses dois conceitos de modo indiferenciado. Em todas as situações, trata do calor como algo que se obtém através de transformações de energia, e que se submete a princípios de conservação quando é transferido de um sistema a outro. No entanto, o aluno poderia então considerar que o calor está, de fato, contido no corpo, e que a temperatura apenas mede essa quantidade de calor disponível. O certo é que, nesse momento, tínhamos poucos dados para decidir sobre a validade dessa interpretação, o que nos levou a formular outras situações a serem apresentadas na entrevista.
Na entrevista, realizada após 40 dias do final dos trabalhos com a unidade, Alex se mostra capaz de interpretar situações variadas utilizando-se dos conceitos de calor, temperatura e equilíbrio térmico. Apresenta-se, além disso, seguro quanto ao princípio de conservação de energia e explica o equilíbrio dinâmico a partir de fluxos de energia entre organismo e meio.
O que mais admira nas proposições desse
aluno é o fato de que, apesar de ter sido capaz de dar uma resposta
favorável aos problemas apresentados ao longo da unidade, manteve
um elevado grau de indiferenciação entre os conceitos de
calor e temperatura. Tais características, típicas do subnível
IIA, nos conduzem a uma reflexão a propósito do ensino, seu
planejamento e desenvolvimento.
Entr.: Qual desses objetos [um prego incandescente
ou um litro de água fervente] você acha que transfere maior
quantidade de calor para o ar ao ser abandonado sobre a mesa?
Alex: É o prego. Entr.: Por quê? Alex: Porque a temperatura dele é muito maior que a da água. Está muito mais elevada. A água só chega até 98º. Então, vai transferir menos. Entr.: Além da temperatura, quais os fatores que interferem na quantidade de calor transferido? Alex: O material. Entr.: E se você tiver uma mesma quantidade e a mesma temperatura de água e de ferro, metal? Alex: O metal transfere mais rápido. Entr.: Uma quantidade maior, menor ou igual de calor? Alex: Eles estão na mesma temperatura? Entr.: Na mesma temperatura. Eu pego este prego, ponho em banho-maria, com água fervendo. Tá certo? Aí, tá. Tirei...E pego, imagino, uma quantidade igual de água, 5g também, a uma mesma temperatura. Qual deles transfere maior quantidade? Alex: Os dois transferem a mesma quantidade. Só que o prego, neste caso, vai transferir mais rápido. |
Os dados relativos aos processos de aprendizagem de Alex corroboram, em primeiro lugar, nossa hipótese inicial de que os níveis de entendimento compõem uma hierarquia de construções, mas não um caminho linear, único e necessário, a ser seguido passo a passo. De um modo bastante evidente, identificamos grandes progressos em direção ao nível trans-objetal, com coordenações sistema-esquema, antes que tenham sido examinados todos problemas decorrentes das coordenações esquema-esquema, próprias do nível inter, e eliminadas suas contradições. Dito de outro modo, Alex manifesta construções típicas dos subníveis IIIA e IIIB, sem ter esgotado todas as características do nível II.
Acompanhamos, nas produções de Alex, o estabelecimento e consolidação da hipótese da conservação da energia, bem como a análise dos fluxos de energia entre organismo e meio. Entretanto, tais construções são ainda marcadas pela indiferenciação dos conceitos de calor, temperatura e energia. Embora empregue corretamente os termos calor e temperatura, indicando o primeiro os processos de transferência e, o segundo, o índice comparativo que estabelece o sentido e a intensidade das transferências, Alex não é capaz de distinguir a energia transferida e a energia armazenada. Lidando com uma concepção de calor enquanto variável de estado, armazenado e contido no corpo, ele recorre à temperatura como única grandeza observável de que dispõe para análise dos processos térmicos.
Para superar as contradições, e compor novas coordenações entre energia interna, temperatura e calor, seria necessário deflagrar outro processo de equilibrações majorantes, de modo a compor um sistema causal mais abrangente que configurasse um modelo para a matéria e os fenômenos térmicos a nível microscópico.
É certo que Alex apresenta um caso de sucesso na aprendizagem e uma manifestação clara de mudanças conceituais no seu sentido mais amplo. O que o distingue de outros colegas? Em primeiro lugar, podemos citar o engajamento intelectual com o objeto de estudo proposto, o que se manifesta na disposição de refletir sobre os fenômenos e explicações dadas por ele mesmo, por seus colegas e professora. Podemos dizer que Alex constrói o contexto de aprendizagem e assume sua direção. Ao final da entrevista, diante do questionário acerca das estratégias de aprendizagem, Alex comenta:
Segundo Piaget & Garcia, os princípios de conservação decorrem de um caráter de necessidade lógica, ou seja, de uma exigência de "igualização ou compensação entre o que é subtraído no princípio e o que é agregado no final" (1982, p. 17). Essa decisão não advém da experiência, porque os argumentos a seu favor são de ordem lógica e não, empírica. Os princípios de conservação constituem, assim, uma espécie de aposta racional: passamos a observar os fatos a partir da suposição de que algo se conserva e a examinar, mediante a experiência, a razoabilidade de definir se esta ou aquela grandeza, de fato, se conserva.
Talvez a forte convicção na substancialização do calor, como algo capaz de ser armazenado e transferido, tenha apoiado a crença de Alex em sua conservação, estendida a outras "formas" de energia (HALBWACHS, 1978). De qualquer forma, Alex mostra-se inclinado a seguir a direção da hipótese científica da conservação da energia, para avaliar o alcance e as repercussões dessa idéia. Ao fazê-lo, talvez orientado apenas por uma atitude de quem resolve admitir a regra de um jogo, ele vai, pouco a pouco, firmando sua confiança no princípio e revelando-se, cada vez mais, capaz de reconhecê-lo no campo dos fenômenos naturais. Ao mesmo tempo, é possível acompanhar-se um surpreendente progresso nos observáveis do estudante, o que constitui um indicador de que os princípios gerais servem de guia ao pensamento racional.
Essas observações nos conduzem a reflexões sobre estratégias de ensino. De fato, se o traço distintivo de uma aprendizagem bem sucedida consiste na consolidação de hipóteses gerais e ousadas que configuram um novo modo de conceber e estruturar o real, seria razoável admitir a importância de um ensino estruturado em torno de idéias chave, cuja heurística positiva vai sendo examinada em contextos diversos. Assim, nos parece correta a decisão tomada, quando do planejamento da unidade, de antecipar a hipótese de conservação da energia e de subordinar o problema da regulação térmica nos organismos à questão, mais geral, das transferências de energia entre organismo e meio.
Assim, ao ensino centrado na "resposta correta" contrapõe-se o ensino voltado para a formação de competências. O caso de Alex indica-nos que o aumento da competência significa sobretudo a posse de instrumentos qualificados para enfrentar novos problemas. Sem essas diretrizes gerais do pensamento, cada nova situação será examinada sempre em seus aspectos particulares, cujas características quase sempre desviam a atenção e conduzem a respostas ad hoc. O que aumenta a competência do sujeito não é a posse da "resposta certa", sempre localizadas e específicas, mas a condição de resolver novos problemas, ampliada pela posse de ferramentas intelectuais que se revelaram "poderosas" no curso da história da ciência.
A nosso ver, os dados de Alex são exemplares, na medida em que ele vai próximo ao limite de um certo modo de conceber os fenômenos térmicos, sem o auxílio de modelos acerca da constituição da matéria, o que oferece indicadores acerca dos limites e possibilidades desse tipo de abordagem do tema. Assim, poderíamos nos perguntar: para esse tipo de aluno que auxílio poderia oferecer uma abordagem, mesmo que lacunar e apenas introdutória, do modelo cinético molecular da matéria e suas suposições quanto aos fenômenos térmicos? É impossível prever os impactos desse tipo de abordagem para esse ou aquele aluno. Podemos, entretanto, trabalhar com uma gama de possibilidades e então, tomar decisões que seriam, elas mesmas, objeto de reflexão para um novo planejamento e assim por diante, num agir – refletir - agir sem fim.
Por outro lado, é certo que ao abrirmos essas novas perspectivas, elas exigem um trabalho paciente de reconstrução de observáveis, de estabelecimento de novas coordenações esquema-objeto, esquema-esquema e esquema-sistema. Usando uma metáfora, seria como avançar sobre o território inimigo numa frente de batalha, o que exige um longo esforço posterior de consolidar posições, de conquistar territórios até então desconhecidos. Um grande número dessas novas conquistas poderia constituir-se em elemento adicional para imobilizar os estudantes frente aos reconhecidos obstáculos na construção dos conceitos e teorias da Física Térmica.
Na construção dessa unidade e em seu
desenvolvimento em sala de aula, fomos orientados por essa segunda hipótese.
De qualquer modo, nós, professores, agimos como juizes, emitindo
nossos julgamentos a partir de jurisprudências e não de verdades
(Gauthier et al., 1998). O sentido do modelo de ensino proposto está
exatamente em permitir tornar pública e mais reflexiva os elementos
que compõem essa jurisprudência, cujos méritos não
saberemos nunca se são os mais adequados a cada novo contexto de
interações e frente às diversidades e singularidades
dos sujeitos educandos. De qualquer modo, o que qualifica o ensino é
justamente a capacidade de submeter seus julgamentos à reflexão
e crítica.
4. Conclusões e Implicações
O modelo de ensino que apresentamos oferece algumas interseções entre a didática, a epistemologia e a psicologia da aprendizagem. Do ponto de vista da docência, as questões cruciais em sala de aula remetem ao reconhecimento do ensino e da aprendizagem como dimensões irredutíveis, indissociáveis e complementares. Não podem, portanto, ser examinadas separadamente, pois o ensinar pressupõe, pelo menos implicitamente, o aprender; e a aprendizagem escolar apóia-se, com maior, ou menor, intensidade, em um conjunto de mediações que abrangem as intervenções docentes, o contato com os colegas e os materiais didáticos.
No entanto, como salienta TIBERGHIEN (1998), a diferenciação entre o ensino e a aprendizagem é uma condição necessária para otimizar o ensino que favorece a ocorrência de aprendizagens relevantes. O não-reconhecimento de suas diferenças leva a trabalhos em psicologia cognitiva, que concebem o ensino apenas como campo de aplicação de seus resultados, ou à produção de estratégias didáticas que ignoram as diferenças dos tempos e ritmos do ensinar e do aprender.
Entendemos o modelo de ensino como uma base teórica que sustenta a formulação de propostas de ensino relevantes para a aprendizagem, ou seja, intervenções didáticas que favorecem a aprendizagem, porque organizadas a partir de suas premissas. Entretanto, como decorrência da natureza dos fenômenos da aprendizagem humana, a psicologia não nos fornece elementos que permitem prever se esta ou aquela intervenção didática resulta na formação deste ou daquele conceito.
De modo análogo aos das leis da termodinâmica, as leis que regulam os processos de aprendizagem constituem postulados restritivos, isto é, permitem afirmar o que não pode ocorrer. A nosso ver, a Teoria da Equilibração impõe duas restrições fundamentais aos processos de aprendizagem humana. A primeira consiste em postular a inexistência de acomodação sem assimilação, ou seja, em afirmar que todo conhecimento, por mais novo que seja em relação aos que o precederam, não é nunca independente deles. Todo conhecimento pressupõe um quadro assimilador, a partir do qual o sujeito interpreta, atua e se transforma. A segunda, imposta pelos processos de aprendizagem humana, funda-se na impossibilidade de se atingir o nível estrutural dos sistemas de compensação - trans-objetal - , partindo-se do nível dos atributos e propriedades dos objetos - intra-objetal - , sem se examinar e explorar uma etapa intermediária em que se desenvolvem as relações e transformações dos elementos em jogo - inter-objetal.
Nesta pesquisa, tivemos a oportunidade de examinar a validade desses dois princípios. Além de identificar a influência marcante das pressuposições, crenças e modos de raciocínio dos sujeitos na construção de conceitos científicos, vimos, ainda, que nenhum dos sujeitos da pesquisa manifestou uma transição direta do nível I para o nível III. Mesmo no caso de Alex, em que a presença do pensamento sistêmico conviveu com lacunas e contradições nas composições entre os conceitos de calor e temperatura, seria incorreto dizer que não foram precedidas por várias coordenações do tipo esquema-esquema, ou seja, pela composição e constatação de regularidades, tais como a generalização de que sistemas a diferentes temperaturas interagem entre si até que atinjam o equilíbrio térmico. Essas observações coincidem com conclusões semelhantes de um estudo realizado por VILLANI & ORQUIZA DE CARVALHO (1997) sobre as representações dos estudantes concernentes às colisões. Segundo os autores, "os princípios de conservação podem ser assimilados de modo significativo apenas depois da conquista, com certo grau de segurança e estabilidade, de representações fenomenológicas correspondentes" (p. 93).
Por outro lado, podemos afirmar que as etapas de construção não são lineares, ou seja, não é verdadeiro supor que o sujeito apenas avança em direção às etapas seguintes uma vez tendo esgotado as anteriores. Pelo contrário, o quadro que examinamos nas trajetórias dos estudantes, ao longo do curso, indicam processos dinâmicos, com idas e vindas, hesitações e certezas infundadas, lacunas e contradições. Assim, como VILLANI & ORQUIZA DE CARVALHO (1997, p. 94), entendemos que "a idéia de existência de fases de desenvolvimento cognitivo dos estudantes é muito atrativa, mas geralmente choca com a evidência experimental de avanços e retrocessos e, principalmente, de caminhos não lineares" em que se observam "abundantes situações de assimilações parciais seguidas de seu abandono mais ou menos local".
As fases, ou níveis de entendimento, dos estudantes foram consideradas, ao longo desta pesquisa, como um modo de organizar e racionalizar os dados relativos aos processos da aprendizagem escolar, cuja dinâmica é muito mais complexa. Modelamos o real, estabelecemos certas categorias de análise, que são, certamente, simplificadoras, de modo a compreendermos os significados das descobertas dos estudantes e dos obstáculos que se opõem ao seu desenvolvimento, das hesitações e conquistas do pensamento, mas, sobretudo, visando intervir no sentido de favorecer seu progresso em direção às formas mais avançadas do pensamento científico. Para nós, faz-se necessário recorrer a esses procedimentos de modelagem ao se lidar com fenômenos de alta complexidade, como é a aprendizagem escolar. Contudo, devemos fazê-lo conscientes de não estar impondo ao real uma organização rígida que não lhe pertence. A análise dos dados desta pesquisa indica que o estabelecimento de níveis de entendimento acrescenta uma compreensão renovada aos processos de mudança que acompanham a aprendizagem em ciências, sem, com isso, deformar ou desconhecer a multiplicidade de representações e formas de pensamento dos estudantes.
O ajuste entre o ensino e a aprendizagem, porém, não é simples nem, tampouco se submete a regras ou padrões. O trabalho pedagógico realiza-se na tensão entre duas exigências antagônicas: de um lado, o respeito aos saberes dos estudantes e seus processos de aprendizagem; de outro, a possibilidade, ao final de uma unidade de ensino, de aquisição de um corpo de conhecimentos socializados, provisoriamente admitido como verdadeiro pelas comunidades científicas. Esse duplo compromisso aponta, segundo ASTOLFI & PETERFALVI (1993) para uma tensão constitutiva entre, por um lado, as atitudes de flexibilidade e aceitação em relação às idéias dos estudantes e, por outro, a manutenção de uma direção ao processo de construção, o que exige certa dose de rigidez e discurso de autoridade. O ajuste entre esses dois compromissos é realizado localmente e, com freqüência, envolve tomadas de decisão de urgência, por parte dos professores, nas interações com os estudantes. De maneira mais global, essa tensão evidencia que "o problema consiste em encontrar um ponto didático ótimo: suficiente para dar início a uma dinâmica de mudanças, sem ser excessiva de modo a não se tornar dissuasiva" (ASTOLFI & PETERFALVI, 1993, p. 138).
Outra tensão característica dos processos
de ensino e de aprendizagem que se deve levar em conta resulta na gestão
coletiva e individual das relações em sala de aula. A situação
didática é essencialmente coletiva, enquanto a aprendizagem
constitui-se na tensão dialética entre o individual e o social
ou, ainda, na constituição das subjetividades, no interior
de um funcionamento intersubjetivo. Um dos problemas da gestão das
atividades didáticas decorre do conflito entre as características
coletivas da sala de aula e a necessidade de se compor uma pedagogia
diferenciada, que atenda às diferentes necessidades,
interesses e habilidades dos estudantes (Perrenoud, 1999). Por exemplo,
ao conduzir uma determinada atividade em classe, compete à professora
selecionar informações preliminares, que serão apresentadas
aos alunos, a partir das quais novas idéias e relações
vão sendo elaboradas, de modo mais autônomo. Entretanto tal
análise não permite prever formas de intervenções
adequadas a todos, de modo indistinto. Ao contrário, enquanto intervém
nos grupos, ela ajusta sua ação à ação
dos alunos e pressupõe aquilo que é necessário informar
para que cada um possa avançar, o que possibilita intervenções
bastante diferenciadas, conforme as avaliações que faz do
nível de compreensão do grupo e de cada aluno em relação
à atividade e aos conceitos envolvidos.
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VILLANI, A., ORQUIZA DE CARVALHO, L. (1997). Evolución de las representaciones mentales sobre colisiones. Enseñanza de las Ciencias, v.15, n. 1, p. 91-102.
VOSNIADOU, S., IOANNIDES, C.(1998). From conceptual development to science education: a psychological point of view. International Journal of Science Education, v. 20, n. 10, p. 1213-1230.
Anexo: Algumas questões utilizadas como instrumento para avaliação da aprendizagem
Pré e Pós-Teste
Questão 2: Mesmo quando a temperatura ambiente é baixa, sentimos muito calor quando fazemos exercícios físicos. Como você explica isso?
Questão 4: Em um dia de frio sentimos tremores involuntários e nossa pele fica ressecada. Nos aquecemos com auxílio de agasalhos e esfregamos as mãos uma contra a outra. Como você explica cada um desses fatos?
Questão 6: Um copo de café quente foi abandonado sobre a mesa. Descreva e explique o que acontece à medida em que o café esfria. Explique ainda por que, ao assoprar o café, ele se esfria mais rapidamente. O que acontece nesse caso?
Teste 1
Questão 2: Imagine a seguinte situação: você está com os pés descalços, caminhando dentro de uma casa num piso de madeira. De repente, vai para uma sala cujo piso é revestido com pedra ardósia. Você, então, sente a diferença entre os dois pisos pelo tato. Como explica as diferentes sensações provocadas pelos dois pisos?
Teste 2
Questão 4: A figura representa as temperaturas de diversas camadas do corpo de um indivíduo em ambiente a 20º C.
a) EXPLIQUE por que a temperatura de sua pele nas extremidades (mãos e pés) é maior do que a temperatura do ar à sua volta e menor do que a temperatura corporal.
b) DESCREVA o que acontece com a temperatura da pele de seu corpo quando a temperatura do ar à sua volta começa a aumentar, chegando a atingir 32ºC. Que processos acarretam essas mudanças?
c) Mesmo quando a temperatura do ar é superior à de nosso corpo, nossa temperatura interna continua a mesma. EXPLIQUE como isso é possível valendo-se de seus conhecimentos sobre calor e temperatura.
a) A partir das situações apresentadas, EXPLIQUE as diferenças entre os conceitos científicos de CALOR e de TEMPERATURA e seu uso na linguagem cotidiana.[1] A fundamentação teórica desse modelo encontra-se desenvolvida mais detalhadamente em outros trabalhos (Aguiar Jr. e Filocre, 1999; Aguiar Jr., 2001).
b) O que significa dizer que calor é uma "forma de energia"? Existe também uma "forma de energia" associada ao frio? Explique.