Giuseppe Puorto [3]
Os temas serpentes peçonhentas e acidentes
ofídicos são apontados na literatura como um dos problemas
sérios encontrados em livros didáticos devido ao elevado
índice de erros conceituais, além de estarem praticamente
ausentes nas pesquisas relacionadas ao ensino de Ciências. Visando
preencher esta lacuna e subsidiar o professor em sua prática pedagógica,
o presente trabalho objetivou identificar problemas conceituais em livros
e outros materiais didáticos largamente utilizados no ensino básico.
Os principais critérios utilizados na análise foram: a correção
científica dos conteúdos relativos a prevenção
dos acidentes ofídicos, emissão de autocuidados e atendimento
adequado ao acidentado ofídico. Foram identificados aproximadamente
cem problemas conceituais e para cada um deles procurou-se indicar referências
bibliográficas que podem ser utilizadas como sugestões de
consulta para elucidar os apontamentos. Dentre os problemas elencados estão
os relacionados à grande incidência de conhecimentos desatualizados
a respeito da identificação e diferenciação
de serpentes peçonhentas e não-peçonhentas, ao modo
inadequado de atendimento ao acidentado ofídico, à soroterapia
e ao uso de conceitos de nocividade e utilidade para o ser humano. Em relação
aos aspectos metodológicos das abordagens, concluiu-se que a maior
parte dos textos analisados é apresentada sem quaisquer preocupações
de contextualização, utilizando-se com freqüência
a forma descritiva, dados anatômicos, nomenclatura e definições.
Assim, raros dos materiais didáticos analisados sobre o tema ofídico
têm padrão de qualidade compatível com os propósitos
de uma educação científica que contribua para a formação
de uma pessoa capaz de exercer autocuidados, preservar a natureza e prestar
socorros adequados ao acidentado ofídico.
Palavras-chaves: 1. Educação científica;
2. acidentes com serpentes peçonhentas; 3. Livros didáticos;
4. Materiais didáticos
Introdução
O elevado número de questões que o envolvem o Livro Didático (LD), têm feito desse recurso um objeto de grande polêmica, de tal forma que, ultimamente avoluma-se a quantidade de pareceres e pesquisas que o investigam (molina, 1987; Freitag et al, 1995; Mogilnick, 1996; Soares, 1996; MEC/PNLD 1999, 1998). Decisões políticas e enormes valores financeiros que o LD movimenta tornaram-no alvo dos olhares críticos e cobranças não apenas do meio acadêmico, mas também da sociedade que o consome, auxiliada por informações largamente divulgadas pelos órgãos de comunicação (FSP, 1987; Krausz, 1998). Essa discussão intensa tem abordado a vasta gama de problemas detectados e relacionados a sua produção, custo, distribuição, adoção, avaliação e utilização (Nardi, 1998). Discute-se, por exemplo, a sua importância, questionando-se freqüentemente se deve ser abandonado, substituído por outros materiais didáticos ou utilizado como um dos muitos recursos disponíveis na prática pedagógica. Apesar de não faltarem opiniões radicais para que se abandone totalmente esse recurso, "... no caso da escola brasileira, o livro didático é ainda, sem dúvida, o instrumento principal e o mais utilizado" (MEC/PNLD 1999, 1998). O LD é considerado indispensável para muitos alunos e professores que o utilizam como única fonte de textos para estudo, porém mesmo para os que têm acesso a outras opções didáticas, o seu uso é diário. Nesse sentido, ele assume um papel excepcional entre os outros materiais na veiculação de conhecimentos científicos, seja pela sua penetração na comunidade escolar de todas as camadas sociais (quantidade), seja pela capacidade de disseminar informações (qualidade) justificando as preocupações de segmentos diferentes da sociedade em seu entorno.
Inúmeros trabalhos acadêmicos e publicações sobre LDs (unicamp, 1989) constataram a existência de problemas de ordem conceitual e metodológica, além de desrespeito às diferentes etnias, gêneros, classes sociais e descuido com a segurança e integridade física do aluno, entre outras. Muitos desses trabalhos não receberam a consideração merecida e a indústria livreira dominou o mercado por décadas, determinando a sua estrutura e utilização. O panorama começou a modificar-se com auxílio de decisões políticas, quando o Ministério da Educação e do Desporto (MEC) instituiu o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) e publicou os Guias de Livros Didáticos (MEC, 1997, 1998), contendo critérios para a seleção, aquisição e distribuição dos títulos por todo o território nacional. Embora algumas das orientações governamentais possam ser questionadas, por exemplo, quando se leva em conta a possibilidade de homogeneização de publicações com possível exclusão de trabalhos que admitem linhas conceituais diferentes das assumidas pelos órgãos governamentais, é indiscutível o avanço que tais normas promoveram em relação à qualidade do LD. Especificamente no caso dos livros didáticos de Ciências (LDC), foram também mencionados inúmeros problemas graves de ordem conceitual, metodológica e de outras naturezas (Fracalanza et al., 1987; Pretto, 1995; Bizzo, 1996; mec, 1997, 1998), fato que gerou a exclusão de parcela significativa de títulos da lista de compras do MEC em função dos resultados de análises realizadas por equipes de especialistas.
Dentre os temas particularmente problemáticos
nos conteúdos veiculados pelos LDC estão aqueles relativos
aos acidentes ofídicos, considerados problemas de saúde pública
no Brasil pela sua incidência, gravidade e seqüelas nos pacientes.
Segundo o Ministério da Saúde (MS/FNS/CNCZAP, 1998), a Coordenação
Nacional de Controle de Zoonoses e Animais Peçonhentos (CNCZAP)
recebeu no período de janeiro de 1990 a dezembro de 1993, notificações
de 81.611 acidentes ofídicos, com média de aproximadamente
20.400 acidentes por ano no Brasil. Estima-se que haja subnotificação,
principalmente em locais distantes de centros onde não existem recursos
adequados de atendimento aos acidentados ofídicos. Segundo as mesmas
fontes, 13.339 acidentes, correspondendo a 16,3% do total, refere-se a
acidentes cujo gênero de serpente envolvida não foi informado,
com letalidade de 0,52. A despeito das campanhas sobe o ofidismo, esses
números não têm se alterado marcantemente, o que demonstra
a necessidade de modificação nas estratégias de educação
ambiental e de saúde em todo o território nacional. Por essas
considerações, entendemos que os acidentes ofídicos
e a sua prevenção constituem um problema de saúde
pública e também de educação ambiental e que
devam estes temas ser tratados entre os conteúdos dos ensinos fundamental
e médio com novos enfoques objetivando a transformação
do quadro atual.
O tema serpentes e os acidentes ofídicos nos livros didáticos de Ciências
As inadequações a respeito do tema serpentes e acidentes ofídicos é apontado na literatura como um dos problemas sérios encontrados em LDs devido ao elevado índice de erros conceituais. Segundo informações obtidas junto ao Instituto Butantan, importante centro de referência internacional, há muito tempo procura-se alertar sobre tais equívocos enviando correspondência às editoras, sem, no entanto, conseguir modificações adequadas nos textos didáticos. Nesse sentido, marcou época a exclusão da lista de compras do MEC dos títulos que continham erros conceituais a respeito do tema. Essa ação, talvez tenha sido o fator mais determinante no início de mudanças e ênfase nos cuidados com as abordagens de temas que envolvem a segurança da pessoa, constituindo uma resposta às advertências dos herpetologistas (estudiosos das serpentes). Assim, por exemplo, estão bem claras as orientações sobre procedimentos que representam riscos à integridade física do aluno em relação ao problema ofídico
Além dessas considerações elencadas, outros fatores instigaram a elaboração da pesquisa relatada neste trabalho. Por exemplo, em conversas informais com professores de Ciências e Biologia e outros profissionais de educação constata-se que muitos apresentam rejeição e pavor marcantes em relação aos ofídios. É evidente que esse comportamento de rejeição se manteve durante a formação acadêmica na área de ciências biológicas e pode ser um fator de dificuldade na implementação de trabalhos com os alunos a respeito do tema.
Justificado por esses fatos, o presente trabalho
teve o objetivo de propor novos enfoques no ensino sobre o tema das serpentes
e acidentes ofídicos, analisando os recursos didáticos que
utilizam textos escritos, visando subsidiar o professor em sua prática.
Admitindo-se, segundo uma abordagem construtivista, que o ponto de partida
para intervenções didáticas deve ser os conhecimentos
prévios dos estudantes, elaborou-se um protocolo de investigação
em cuja primeira etapa foram elencadas as representações
mentais expressas por alunos de duas escolas públicas da cidade
de Bauru (São Paulo) sobre questões envolvendo o tema ofídico
(Sandrin, 1999; Sandrin & Nardi, 2000, 2001). A seguir estudou-se a
segunda parte do problema por meio de análise conceitual e metodológica
de textos sobre o tema ofídico encontrados em LDs de Ciências
e Biologia e outros materiais que podem ser utilizados nos segmentos de
5ªs as 8ªs séries do ensino fundamental (EF) e nas séries
do ensino médio (EM). Concomitante à análise de tais
materiais, realizou-se uma extensa revisão bibliográfica
baseada em publicações renomadas sobre biologia das serpentes
(puorto, 1992; jIM & Sakate, 1994; ernst & Zug, 1996; greene, 1997).
Também foi organizado material abrangendo o repertório de
mitos, lendas e crendices de diversas culturas ao longo dos tempos, abordagens
religiosas e expressões faladas contemporâneas, entre outras.
Este relato mostra parte da pesquisa realizada.
A pesquisa
Amostra
Foram selecionados livros didáticos de ensino fundamental (sete livros publicados de entre 1995 e 1999e três entre 1995 e 1996 para fins de comparação) e ensino médio (14 livros publicados entre 1995 e 1999 e cinco publicados até 1994), três livros de apoio didático ou paradidáticos publicados entre os anos de 1995 e 1999, treze textos eletrônicos via internet, dois CD-ROMs, quatro cartazes, seis folhetos, quatro manuais de pronto socorro, um manual de fornecedores de animais vivos e três artigos de revistas mensais. Por ser extensa, não será inserida neste espaço a lista total dos materiais pesquisados (vide Sandrin, 1999, p. 320–326). A seleção dos livros foi orientada pelo critério da disponibilidade do material e buscou simular a situação real vivenciada por professores que, mesmo não selecionando este ou aquele livro para o trabalho, os utilizam para consulta por ocasião do preparo das aulas. Procurou-se analisar outros materiais como manuais de pronto socorro, cartazes, folhetos, textos veiculados por meios eletrônicos e artigos de revistas encontradas em bancas em função do fácil acesso de estudantes e docentes a estes veículos de informação. Por sua vez, a presença de erros conceituais nestes materiais alternativos é tão prejudicial quanto em livros e outros materiais didáticos utilizados nas escolas.
Procedimento
A análise dos problemas conceituais consistiu de leitura rigorosa dos textos e observação meticulosa das ilustrações com identificação e apontamento dos problemas conceituais. Estes foram justificados mediante citação de referências bibliográficas pertinentes ao problema com sugestões para sua correção ou modificação. Foram admitidos os seguintes critérios para análise conceitual e metodológica: a) correção científica dos conceitos - critério principal desse trabalho e determinada com a utilização da análise e comparação com dados de trabalhos recentes e aceitos dentro da área obtidos por meio de extensa revisão bibliográfica; b) presença de antropocentrismo - um problema igualmente sério em textos de Ciências e que ocorre quando se considera o ser humano a espécie mais importante do planeta, em detrimento das outras (por exemplo, admitindo-se que cada espécie de ser vivo tem seu valor ecológico, não se aceita explicação para a "utilidade" dos animais em função dos benefícios ou malefícios que provocam ao ser humano; nessa mesma linha, também é inadequado adjetivar animais com expressões do tipo: feio/bonito, bom; mau etc.); c) adequação das ilustrações – um critério igualmente importante porque, em muitos casos, estas contradizem o que está escrito e apresentam informações equivocadas (Pérez de Eulate et al., 1999); d) relevância das informações – esse critério foi inserido tendo em vista as recomendações de que sejam desenvolvidos conteúdos significativos para o aluno (MEC, 1997, p.295), favorecedores de aprendizagem e favorecidos por ela. Nesse caso, espera-se que as atitudes positivas sejam tanto causa quanto efeito de aprendizagem (Vásquez Alonso & Manassero Mas, 1997); e) padronização dos termos – um dos fatores que pode causar dificuldade na interpretação de textos sobre animais peçonhentos é a ausência de padronização e de conceituação (por exemplo, se o autor referir-se às serpentes peçonhentas sem conceituá-las, o leitor tem que deduzir o conceito a partir do texto); f) contextualização – se os textos didáticos são apresentados completamente alijados de uma situação plausível, constituindo-se apenas num desenrolar de nomes, definições e descrições ou se envolvem problematização.
Resultados e discussão
A análise dos LDs e outros materiais com o
uso do critério de correção científica resultou
em mais de uma centena de apontamentos. Estes foram organizados e classificados
por assunto da biologia das serpentes (tópicos de anatomia e fisiologia,
origem, evolução, características), aspectos dos acidentes
ofídicos e do atendimento ao acidentado ofídico. A síntese
dos tipos de problemas conceituais listados pelo critério de correção
científica encontra-se na tabela 1, revelando que os problemas conceituais
dizem respeito aos itens escolhidos pelos autores nos quais predominam
dados anatômicos e da fisiologia de serpentes, além de considerações
acerca dos acidentes. A utilização dos demais critérios
de análise conduziu a um rol de dados qualitativos que se referem
às características das abordagens metodológicas como
o uso predominante de definições e informações
descritivas em detrimento de abordagens problematizadoras, presença
de padronização de termos, articulação dos
parágrafos entre si, quantidade de informações relevantes,
proporção entre texto e ilustração, presença
de conotação lúdica e consideração de
conhecimentos da cultura religiosa, mítica, dentre outros.
Conteúdos |
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Origem e evolução |
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Dimensões |
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Dentes |
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Temperatura |
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Sentidos e termorrecepção |
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Respiração |
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Ponto de fuga |
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Locomoção |
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Serpentes brasileiras: jibóias, sucuris, cascavéis, muçuranas, corais, etc. |
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Animal peçonhento |
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Identificação de serpentes peçonhentas |
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Acidentes ofídicos |
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Primeiros socorros |
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Soro antiveneno |
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Antropocentrismo |
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Dados estatísticos |
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Imagem do animal |
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Inofensividade |
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Total |
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Como foram analisados livros publicados recentemente e no início da década, a comparação dos resultados demonstrou que as informações a respeito de serpentes e os problemas conceituais ainda existentes constituem-se reproduções de abordagens mais antigas. Por exemplo, há décadas, diversas publicações trazem ilustrações e tabelas com características de identificação aplicáveis às serpentes européias, mas não às brasileiras de forma geral. Essas informações são reproduzidas de um livro para outro, sem questionamentos, ignorando os conhecimentos gerados pelos pesquisadores sobre serpentes brasileiras.
Um conteúdo problemático para o ensino em nível fundamental e médio diz respeito à distinção entre serpentes peçonhentas e não-peçonhentas, tendo em vista a utilização freqüente dos termos veneno e peçonha, venenoso e peçonhento, peçonhento e não-peçonhento. Como não há consenso entre os especialistas em relação aos mesmos, é recomendável que na redação de um trabalho, a identificação de um determinado conceito possa servir de referência, auxiliando a compreensão dos conhecimentos veiculados. No entanto, constatou-se que esse fato não ocorre em parte da amostra analisada e que este não é um problema somente dos LDs de Ciências. O Manual de Diagnóstico e Tratamento de Acidentes por Animais Peçonhentos publicado pela Fundação Nacional de Saúde, órgão do Ministério da Saúde e destinado aos profissionais da área (MS/FNS, 1998, p.14) também não padronizou termos, utilizando sem conceituação prévia, a expressão Serpentes Peçonhentas em um dos títulos, cobras venenosas em outro e serpentes peçonhentas em um terceiro. Esse tipo de referência conduz ao entendimento de que os termos são tratados como sinônimos. O problema assume tal dimensão que, na falta de consenso e com o aumento das preocupações médicas, passou-se a utilizar a expressão Serpentes de importância médica (Puorto, 1992). Nesse caso, serpentes como muçurana e cobra-verde estão inclusas nesses grupos, visto que podem provocar também o envenenamento (MS/FNS, 1998). Assim, sua inclusão tradicional no grupo de não-peçonhentas tende a ser revista. Além desses problemas, diversos livros didáticos veiculam a idéia de que determinadas serpentes são inofensivas, o que é também preocupante, visto que, mesmo as que não inoculam peçonha como as jibóias, podem morder quando irritadas, dilacerando o tecido se o membro afetado for puxado na boca do animal, ficando alguns dentes inseridos no mesmo.
Outro problema bastante sério detectado em nossa análise é a omissão de conhecimentos relevantes percebido principalmente entre os livros de ensino médio com proposta de compactação. Estes livros apresentam conteúdos normalmente desenvolvidos em três séries resumidos em apenas um volume. Desta forma, estes títulos chegam a apresentar o tema em alguns parágrafos, pouco acrescentando em informação ou formação de atitudes; alguns destes, acabam não apresentaram problema conceitual algum, visto que o tema é tratado de forma tão sintética. Em alguns títulos de EM, especialmente, a quantidade de informações veiculadas por texto é desproporcional, comparativamente ao número de fotos e figuras esquemáticas coloridas, além de não se ligarem a eixos de raciocínio que possam articular os conteúdos uns aos outros. Os erros conceituais e a omissão de conhecimentos configuram um quadro preocupante porque podem por em risco não só a segurança do indivíduo, mas também o equilíbrio ecológico, entre outras conseqüências.
A escassez de informações característica de diversas destas publicações revela-se potencialmente prejudicial ao trabalho de reflexão e análise crítica preconizados pelo ensino comprometido com a cidadania. Esse fato, associado à ausência de contextualização, parece formar um pano de fundo inibidor de dois processos fundamentais: o fato de que o ser humano tem papel importante como elemento transformador da natureza e que essa ação depende também da visão e ação de outras pessoas, numa dinâmica coletiva.
Poucas das publicações analisadas contextualizam ou problematizam o conteúdo abordado, estimulando o pensamento, o raciocínio lógico, a análise crítica, a solução de problemas, o lúdico. Pelo contrário, as atividades propostas valorizam potencialmente a memorização.
Além dos problemas conceituais, avaliamos como extremamente ultrapassada a abordagem metodológica encontrada na maior parte das publicações. De difícil quantificação, estas, em geral, apresentam o tema marcado por características descritivas, priorizando algumas partes da anatomia do animal, nomenclatura e, em menor extensão, sua fisiologia. Por exemplo, os mecanismos biológicos mais freqüentemente explicados são os de alimentação, com destaque para abertura da boca, a caça por constrição e o modo de injeção da peçonha. Em geral, as informações são apresentadas de forma pontual, sem articulação entre si, usando-se muita ilustração e pouco texto. O comportamento, geralmente explicado em termos de ajustes fisiológicos, não é explicado nem como forma de solução de problemas de adaptação ao ambiente por parte do animal e nem com conotações evolutivas.
Outro aspecto detectado e bastante preocupante é a visão de animal transmitida por meio desses textos. Se atualmente buscamos entender um animal por sua anatomia, fisiologia, comportamento, sua relação com sua população, comunidade e ecossistema, torna-se difícil compreender o comportamento das serpentes a partir dos textos didáticos, tendo em vista que em boa parte dos mesmos não se deixa bem claro o relacionamento existente entre o comportamento do animal e o ambiente em que vive. Assim, as serpentes acabam sendo descritas nestes textos como nocivas, perigosas ao homem; adotando-se um antropocentrismo indesejável.
Quanto às concepções alternativas
ou do senso comum dos alunos e grupos humanos sobre o tema, parece não
haver no material analisado, nenhuma preocupação com as mesmas.
Quase nada se aborda sobre a questão do medo, nojo e repulsa que
muitas pessoas sentem em relação às serpentes, lendas,
mitos e superstições, embora essas questões possam
conter materiais importantes para produzir discussão e análise
crítica, incluindo temores e comportamentos pessoais de defesa,
extremamente interessantes tanto na fase da motivação quanto
na de reflexão e alteração nas ações
de cada pessoa em seu ambiente.
Conclusão e implicações pedagógicas
A pesquisa mostrou que, dentre os materiais analisados, há os de qualidade irrepreensível enquanto outros exigem cuidados em sua utilização, pois, além de colocarem em risco a segurança do leitor, podem exacerbar o medo natural em relação a essas espécies, facilitando sua extinção. Por outro lado, o fato de não portarem informações adequadas para se evitar os acidentes ofídicos é também preocupante. Por estes motivos, a utilização desses materiais pelo educador, de um modo geral, deve ser cuidadosamente analisada e operacionalizada.
O ensino de temas como serpentes, tal como de qualquer outro, não pode ser embasado no senso comum; exige aprofundamento teórico em conhecimentos de diversas áreas, algo não disponível na maioria dos LDs analisados a esse respeito.
Os temas serpentes e acidentes ofídicos não estão associados apenas a questões ambientais e de saúde, mas apresentam relação importante com as crendices, mitos, crenças religiosas e também fantasias incutidas pela mídia. Por essa razão, pode-se perceber a riqueza de se explorar didaticamente as concepções prévias trazidas pelos alunos para as salas de aulas. Nesta linha, atividades como debates, análises de filmes, recortes de jornais e revistas, relatos e desenhos podem se constituir em rico material para motivar e iniciar o estudo do tema.
Além de se inserir nas áreas de Educação Ambiental, Saúde Pública e Ciências Biológicas, o tema permite ainda ao docente e alunos incursões pelos meandros da história das civilizações, incluindo aí discussões sobre as diferentes visões e interpretações do comportamento das serpentes ao longo dos tempos e em diferentes localidades; permite ainda dissecar mitos, crenças religiosas e crendices, permitindo a compreensão de como elaboramos nossas representações mentais acerca de determinados conteúdos e a razão pelas quais direcionamos nossas ações adaptativas ou não. Justamente por permitir tal diversidade de associações, o tema analisado possibilita integração com outras disciplinas, como Matemática (freqüência de acidentes), de História e Religião (A serpente bíblica do Jardim do Éden), Geografia (fatos sobre a Índia, país onde as serpentes são consideradas animais sagrados), Língua Portuguesa (músicas, ditos populares, peças de teatro, quadrinhos e charges) etc.
O estudo do tema tem grande potencial para modelar a mudança conceitual (Diniz, 1998) quando se visa a formação de uma pessoa capaz de autocuidados de saúde e de identificar problemas no ambiente, analisá-los utilizando as informações científicas e tomar decisões para sua solução, prevenção de acidentes, atendimentos corretos ao acidentado e preservação ambiental.
Concluindo, podemos afirmar que os erros analisados
são indesejáveis e inaceitáveis, no entanto, ao fazermos
deles nosso objeto de estudo, tornam-se estímulos e pontos de partida
para um trabalho que, acreditamos, pode subsidiar o professor em sua prática
pedagógica dirigida às mudanças de atitudes na área
de saúde e preservação ambiental. Abordagens corajosas
do tema serpentes e acidentes ofídicos podem também
se constituir em excelentes modelos de didática para o ensino da
biologia de outros animais peçonhentos e de animais habitualmente
rechaçados como morcegos, baratas, lesmas, entre outros.
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[1] Mestre em Ciências Biológicas.
Programa de Pós Graduação em Ciências Biológicas
– Zoologia - Universidade Estadual Paulista, UNESP, Câmpus de Botucatu
(e-mail: fatimasandrin@uol.com.br)
[2] Grupo de Pesquisa em Ensino
de Ciências. Faculdade de Ciências – UNESP - Câmpus
de Bauru.
[3] Pesquisador científico
e diretor do Museu Biológico do Instituto Butantan. São Paulo
– Capital.
[4] Professor Assistente Doutor.
Departamento de Educação. Universidade Estadual Paulista,
Câmpus de Bauru (e-mail: nardi@fc.unesp.br)