PRÁTICAS DE INTERPRETAÇÃO MEDIADAS POR EXPERIMENTOS E SIMULAÇÕES



Adelson Fernandes Moreira
Programa de Pós-Graduação em Educação – FAE-UFMG e CEFETMG
adelson@deii.cefetmg.br

Oto Borges
Programa de Pós-graduação em Educação e Colégio Técnico - UFMG
oto@coltec.ufmg.br



Resumo

    Apresentamos algumas conclusões preliminares de uma pesquisa sobre as práticas de interpretação realizadas por alunos, individualmente e em grupo, ao desenvolverem atividades em que representações de modelos físicos em computador desempenham um papel central. Um ambiente de aprendizagem contando com atividades dessa natureza tem como objetivo prover elementos novos para uma melhor compreensão das práticas de interpretação que um aprendiz utiliza. Dentro dos ambientes de aprendizagem criados, o conhecimento elaborado não se encontra estritamente dentro da mente. É resultado de uma integração entre processos mentais, percepção e ações de um aprendiz que estrutura o ambiente no qual atua. A cognição tem diferentes fontes que participam da concretização de um produto. A ação conjugada de diferentes fontes, dentre elas as competências próprias do indivíduo, ocorre de forma integrada, de modo que, na concretização de uma ação, não é possível isolar a contribuição de nenhuma fonte em particular.




Abstract

    This work presents the preliminary conclusions of a research about students’ interpretation practices, used individually and in-group when they perform activities in which computer’s physical model representations play a central role. A learning environment with these kinds of activities has the objective of providing new elements for a better comprehension of the interpretation practices performed by students. The knowledge constructed in the designed learning environment is not inside the student’s mind. It results from an agent’s mental processes, perceptions and actions, who integrated then into structures in the context in which he acts. Cognition has different sources, all of them sustaining the achievements. The different resources, among them the individual competency, act upon in an integrated way. Therefore it is not possible to isolate the contribution of any specific resource in a cognitive act.

Apoio: CNPq
 

I - Introdução

    A pesquisa em sala de aula, as práticas de produção e interpretação de representações em ciência e o diálogo com novas tecnologias são os temas maiores com os quais esta pesquisa faz interface. O espaço de desenvolvimento desta investigação é o de uma sala de aula de Física, na qual se pretende inserir o uso do computador, com objetivos bem definidos, dentro de uma seqüência de ensino.

    O computador é utilizado para proporcionar aos alunos situações de interpretação de representações dinâmicas de modelos físicos, representações que evoluem no tempo e que podem ser manipuladas, isto é, retrocedidas, paradas, avançadas, em passos de tempo diferenciados. A criação de um ambiente de aprendizagem, com atividades dessa natureza, tem como objetivo prover elementos novos para uma melhor compreensão das práticas que um aprendiz utiliza para interpretar representações, individual ou coletivamente. Os conceitos de representação e de práticas de interpretação são objetos fundamentais da pesquisa.

    Apresentamos os resultados de um estudo exploratório, uma etapa inicial da investigação, no qual atividade com simulações e experimentação foram combinadas dentro de uma seqüência de ensino. As interações de alguns grupos de alunos, ao interpretarem representações dinâmicas de um modelo físico animadas no computador, foram filmadas e analisadas. A contribuição principal desse estudo exploratório foi possibilitar um primeiro teste da estratégia de levantamento de dados e criar condições para um primeiro exercício de análise, que contribuiu para melhor delimitar a questão central desta pesquisa.

    Buscando estruturar um referencial de análise, estabelecemos um diálogo inicial com autores que conceituam representações como inscriptions, que traduzimos, provisoriamente como inscrições. De uma pesquisa sobre práticas de interpretação de gráficos por estudantes de graduação em Biologia (ROTH el al, 1999), destacamos o conceito de prática social, para analisar a dinâmica da sala de aula e as interações que se estabelecem dentro dela. Os autores desse trabalho concluem que as competências e habilidades de interpretação de gráficos devem ser desenvolvidas no contexto de atividades que permitam aos estudantes vivenciar os elementos de uma prática científica autêntica. Analisam a prática científica como uma prática social, cujos elementos devem ser transpostos para a sala de aula, no sentido de tornar significativo o aprender a produzir, ler e interpretar gráficos. Essas referências serão apresentadas juntamente com os indicadores produzidos pelo estudo exploratório.

    Apresentamos argumentos no sentido de tratar a sala de aula como um espaço onde se constitui um tipo de prática com características próprias, apontando limites na transposição para seu interior de elementos de outra prática, no caso a do cientista profissional. Tomamos como pressuposto a possibilidade de estabelecer um diálogo com o fazer autêntico da ciência, incorporar elementos desse fazer, mas, em espaços nos quais determinados limites estão mais consolidados, estruturar ambientes de aprendizagem viáveis que mobilizem os alunos a desenvolver competências e habilidades de interpretação.

    Elegemos a etnometodologia como a perspectiva de pesquisa utilizada para investigar os procedimentos práticos utilizados pelos alunos para atribuir significado a uma representação e para ordenar conjuntamente uma atividade, em que interpretar a representação de um modelo é o objetivo central. Buscamos na etnometodologia os elementos para orientar a compreensão da prática social concretizada em uma sala de aula.


II - Perspectiva da Pesquisa

    A realidade da sala de aula se faz pelo trabalho interpretativo de alunos e professor. A atividade permanente de interpretação do que se faz e do que ocorre produz e organiza as muitas circunstâncias do cotidiano escolar. De acordo com HOLSTEIN E GUBRIUM (1994), Garfinkel[1] propõe um modelo de interpretação dos fatos sociais baseado em indivíduos com competência para interagir, construindo permanentemente a ordem social através de uma ação interpretativa contextualizada, contingente e contínua. Essa aproximação, chamada etnometodologia, como indica o nome, focaliza os etnométodos, isto é, os procedimentos práticos cotidianos para criar, sustentar e gerenciar a realidade objetiva. A presente investigação se desenvolve dentro dessa perspectiva. Que procedimentos práticos estarão sendo observados? Os métodos de interpretação utilizados pelos alunos, individualmente ou em grupo. Qual realidade objetiva está sendo criada, sustentada, gerenciada? Atividades nas quais a representação de modelos físicos será o objeto de estudo principal, dentro da realidade mais ampla da sala de aula.

    A análise será centrada no raciocínio prático, na ação conjunta de alunos e professor buscando tornar estável seu espaço de trabalho, de aprendizagem e de trocas. Investigar nessa perspectiva implica não julgar a correção das ações dos sujeitos pesquisados, mas desvelar os métodos correntes baseados no senso comum e nos conhecimentos prévios dos indivíduos pertencentes ao grupo em estudo.

    Em vez de assumir que os participantes de um grupo partilham significados e definições de situações, buscamos revelar e compreender como os sujeitos pesquisados se valem de sua capacidade de interpretar, com a colaboração de outros participantes de uma interação, para agrupar e mostrar localmente um senso de ordem e compreensão da ação em curso. Estruturas sociais são localmente produzidas, sustentadas e experimentadas como ambientes normais, rotineiros. São essas ações cotidianas, tácitas, não percebidas, que engendram a noção errônea de uma realidade singular, objetiva, igual para todos. Cada sala de aula tem componentes que, embora determinados por estruturas mais amplas, presentes dentro e fora da escola, se realiza de modo único, não totalmente previsível, através do trabalho interpretativo dos sujeitos que nela atuam.

    Se o real é produzido, "de dentro", pelas práticas de interpretação dos membros de um determinado grupo, as circunstâncias sociais vivenciadas por esses sujeitos são auto-generativas. Na perspectiva da etnometodologia, isto implica em duas propriedades essenciais do significado: ele é dependente do contexto, é indicial; contexto e procedimentos de interpretação se constituem mutuamente, o significado é reflexivo.

    Sem um contexto visível, objetos e eventos têm um significado indeterminado, ou mesmo equívoco. O significado de objetos e eventos está entrelaçado ao uso ou à vivência dos sujeitos participantes através da fala e da interação. A interação, incluindo-se todos os detalhes que a constituem para além da fala – gestos, entonação, atitudes de silêncio, movimentos diferenciados com o corpo – confere significado aos objetos e situações. Todos esses elementos constitutivos da interação estão indexados pelo contexto em que ela transcorre. É muito importante, portanto, estar atento aos ‘índices’ que ligam a interação e o contexto.

    As atividades de interpretação ocorrem dentro de um certo cenário, são influenciadas pelos recursos materiais e culturais aí presentes e, ao mesmo tempo, focalizam esse mesmo ambiente, constituindo-o pelo ato de interpretar, de atribuir significado. Atividades de interpretação e contexto refletem-se mutuamente. Quem interpreta dá forma ao objeto interpretado. Ao mesmo tempo, as características do objeto e do contexto em que ele se encontra dão forma à interpretação que constitui o objeto. Reflexividade e indicialidade são lados opostos de uma mesma moeda. São aspectos inerentes à realidade social.

    Diferentes tendências emergem da perspectiva etnometodológica. Alguns estudos enfatizam a fala na interação, isto é, o discurso no contexto, focalizando mais o conteúdo situado da fala como elemento constitutivo de significado local. No outro extremo de um contínuo, o pesquisador pode estar mais inclinado a destacar a estrutura seqüencial da fala como uma mediação para a construção do contexto e do significado (HOLSTEIN e GUBRIUM, 1994). Outra tendência da etnometodologia contemporânea tem trilhado um caminho diferente das abordagens que enfatizam a fala dos sujeitos na interação. Essa tendência centra-se na descrição detalhada das ações práticas dos participantes de uma comunidade, ações através das quais a ordem é realizada. Citando outro trabalho de GARFINKEL[2] (1988), Holstein e Gubrium referem-se a estudos que se concentram nas competências altamente localizadas que constituem os vários domínios profissionais, mais notadamente o domínio das ciências naturais. O objetivo é desvelar os elementos distintivos, na maioria sutis, que caracterizam as práticas sociais circunscritas a domínios específicos de conhecimento e ação. No caso do presente projeto, essa é a tendência a ser seguida. O domínio de conhecimento e ação é a sala de aula, onde ocorre uma prática social com características próprias, na qual o foco de atenção está nos procedimentos práticos utilizados pelos estudantes para interpretar representações.

    O estudo foi feito em uma turma de 1ª série do ensino médio, no CEFET-MG. Precedendo a esse estudo, durante aproximadamente um ano, desenvolvemos trabalhos explorando as possibilidades do software Modellus. Relacionamos, a seguir, constatações feitas a partir de uma experiência inicial com o programa, que influenciaram a organização e condução do estudo exploratório:

    Essas constatações foram a base para o desenvolvimento do estudo exploratório, que contou com a participação de dois estagiários de Prática de Ensino de Ensino de Física, cujas monografias resultaram desse processo. Ao apresentarmos os elementos de partida que guiaram o estudo exploratório, buscamos salientar que o passo inicial da pesquisa não foi guiado pelo objetivo de testar a qualidade do software. O conhecimento de seus limites e possibilidades, isto é de sua especificidade e aplicabilidade, antecederam a proposição desse projeto. A sua escolha decorreu da possibilidade de utilizá-lo de forma gratuita e de suas características, previamente identificadas.


III - Levantamento de dados

    A turma pesquisada foi dividida em duas subturmas. A subturma 1 desenvolveu a seguinte seqüência de atividades: experimentação, resolução de exercícios de fixação do livro didático, atividade com simulações. A subturma 2 desenvolveu esse conjunto de atividades em ordem invertida. As interações de dois grupos de alunos, por subturma, foram registradas em fita cassete. Uma dupla de cada subturma teve sua atividade com simulações também registrada em vídeo.

    Essa forma de levantar os dados assume a impossibilidade de isolar a contribuição de atividades com simulações das contribuições de outras abordagens. Por isso, procuramos vê-la de forma integrada com outras estratégias. Dentro dessa perspectiva, procurar elementos de comparação entre grupos desenvolvendo a mesma seqüência e entre grupos desenvolvendo o mesmo conjunto de atividades em ordem invertida.


IV - O programa utilizado

    O programa Modellus foi produzido na Universidade Nova de Lisboa, em trabalho coordenado por V. D. Teodoro. Faz parte de uma coleção de livros didáticos, podendo ser também conseguido de forma gratuita em versão demo. As animações do Modellus contêm representações dinâmicas de qualidade. Evoluem no tempo, podendo ser ‘rodadas’ recursivamente com passos de tempo diferenciados, o que permite analisar passo a passo a evolução da representação de um modelo. Em uma mesma tela, é possível coordenar diferentes representações de um mesmo fenômeno: estroboscópica, gráfica e vetorial. As animações já disponibilizadas pelo programa pareceram-nos mais apropriadas para trabalhar os conceitos de cinemática e dinâmica. A cada animação, corresponde um conjunto de equações e parâmetros que expressam o seu modelo. Consideradas essas características do programa, entendemos que não se trabalha diretamente com simulações de fenômenos, mas com representações animadas de modelos, essas podendo ser do tipo estroboscópico, vetorial e através de gráficos.


V - A seqüência de ensino com experimentação e simulação

    A turma na qual a seqüência foi desenvolvida tem três aulas semanais. Uma atividade de experimentação para construção de uma representação do modelo do movimento circular uniforme foi realizada em duas aulas geminadas pela subturma 1. A subturma 2, simultaneamente, iniciou o estudo do movimento circular interpretando simulações no laboratório de informática. A aula seguinte foi dedicada a exercícios de fixação envolvendo a aplicação do modelo do movimento circular, com a turma inteira, na mesma sala, porém subdivida em duplas, as mesmas que atuaram ou atuariam na atividade com simulações. Nas duas aulas seguintes, a subturma 1 trabalhou com simulações e a subturma 2, com a atividade experimental. O professor da turma, um dos autores deste trabalho, e dois estagiários de Prática de Ensino de Física foram os orientadores dessas atividades, ficando a cargo do professor o trabalho com os experimentos. Os estagiários orientaram as atividades com simulações.

    Em experiências anteriores, foi constatada uma relação complementar entre atividades com simulações e experimentação. Considerando a especificidade e aplicabilidade do software utilizado, que disponibiliza representações dinâmicas de certos modelos físicos, a seqüência que parece apropriada para a utilização do Modellus é trabalhar com atividades experimentais, envolvendo a ação direta dos alunos ou demonstrações, objetivando construir e representar o modelo do fenômeno estudado. A experimentação cumpre o papel de prover evidências cuja negociação com os alunos procura dar significado a um certo modelo e sua representação. Em um segundo momento, o aluno é chamado a desenvolver atividades envolvendo a representação do modelo construído animada pelo Modellus. Na atividade com simulações propõem-se questões que suscitam a interpretação do modelo, de suas partes principais e das relações necessárias entre elas, mediadas por representações animadas do modelo produzidas na tela do computador.

    Através de duas demonstrações negociamos evidências que significassem a seguinte representação:

Figura 1
Figura 2
Figura 3

    Em um primeiro momento, dois experimentos propostos no livro didático[3] (figs 1 e 2) foram demonstrados. Essas duas demonstrações foram precedidas de discussões, nas quais os alunos fizeram previsões sobre a trajetória das gotas ao abandonarem a lata, sobre a trajetória do carrinho após o corte do barbante. Os alunos apresentaram diferentes argumentos e suas idéias foram representadas, através de desenhos, no quadro. Feitas as demonstrações e discutidas as previsões que se mostravam em acordo e desacordo com o observado, o modelo do movimento circular uniforme foi registrado no quadro, em primeira aproximação, desenhando-se os vetores velocidade e força centrípeta ao longo da trajetória, e destacando-se o raio da mesma. Em um segundo momento, os alunos desenvolveram uma atividade, orientada por roteiro, trabalhando com um dispositivo que permitia verificar qualitativamente as relações entre força centrípeta, velocidade, massa do objeto em movimento circular uniforme e raio da trajetória (fig.3). Consideramos como uma representação do modelo do movimento circular uniforme uma trajetória circular, destacando-se seu raio, os vetores velocidade, força centrípeta e aceleração centrípeta corretamente desenhados, com suas respectivas equações. O objetivo desse conjunto de atividades foi dirigir a atenção dos alunos para algumas evidências experimentais e, a partir delas, construir a representação do modelo, dando significado a suas diferentes partes e relações entre elas.

    O objetivo da atividade com simulações foi o de consolidar a compreensão da representação do modelo do movimento circular uniforme envolvendo duplas de alunos com a interpretação de representações animadas desse modelo. Compreender o modelo significa ser capaz de identificar em uma representação constituída de equações ou desenhos, os elementos principais do modelo - período, freqüência, vetores velocidade, aceleração centrípeta, força centrípeta, raio da trajetória, comprimento da trajetória - as relações entre eles, como esses elementos variam no tempo e o que é invariante. Os alunos interpretaram um conjunto de sete telas que compuseram, paulatinamente, a representação do modelo do movimento circular uniforme. A figura 4 mostra uma das telas trabalhadas pelos alunos.


VI - Análise preliminar dos dados – comentários e conclusões

    Foram analisadas as interações:

Figura 4 – Aspecto da tela da animação utilizada. As cores foram alteradas para possibilitar uma melhor visualização no texto impresso.

    Professor e estagiários produziram relatórios individuais destacando aspectos considerados relevantes nas respectivas análises. O professor produziu um quadro comparativo das interações por ele observadas em áudio e vídeo a partir das seguintes questões: Como se deu a interação com o artefato? Quais as dificuldades apresentadas pelos alunos para a compreensão do modelo? Como foi a intervenção do orientador da atividade no sentido de trabalhar a dificuldades? Qual o grau de engajamento dos alunos na atividade? Como ocorreu a interação entre os membros do grupo?. Em um segundo momento, esse quadro foi discutido com os estagiários tendo em mãos seus respectivos relatórios. Permaneceram, no quadro, os elementos de consenso e os destaques, feitos pelos estagiários, que acrescentavam ao quadro elementos novos. O quadro comparativo de atividades com simulações e experimentação foi, portanto, uma tentativa de síntese dos elementos considerados relevantes nessa primeira análise dos dados. Dele foram extraídas as conclusões preliminares que enunciamos a seguir.


VI.1 – Representações como inscrições

    Inscrições são todo tipo de representação que agrega um conjunto articulado de informações a textos escritos. No caso de textos científicos, que têm como característica predominante a concisão, as inscrições têm importante papel, justamente por também compartilharem desse atributo, ampliando as possibilidades de comunicação do texto. Curvas e gráficos em papel, figuras, placas, fotografias, tabelas, equações, representações da trajetória e das posições de um móvel e vetores são exemplos de inscrições.. São imagens construídas para traduzir dados e relações, produzidas em trabalhos de campo e no laboratório, assim como para descrever movimentos, apresentar relações entre grandezas, conceitos, ou mesmo princípios científicos gerais. Estão, dessa forma, sempre presentes na produção, transmissão e reelaboração do conhecimento científico, em diferentes comunidades, dentre elas a escolar. (LATOUR, 1987; ROTH, 1995)

    Destacamos no conceito de inscrição a ênfase no caráter externo de uma representação, aspecto também salientado por PEA (1997) em um ensaio sobre inteligência distribuída. Inscrições são objetos do mundo sujeitos a construções, revisões, desconstruções, podendo gerar representações completamente novas que têm pouca relação com padrões desenvolvidos anteriormente. Uma representação não está necessariamente na mente do indivíduo. Antes de ser internalizada, uma notação iniciou sua existência como representação externa cujas convenções de construção, interpretação e uso tiveram de ser adquiridas em atividades culturais.

    Na representação, estão inscritos sentidos, relações não reveladas facilmente pelas características externas dos entes que a constituem. Pea destaca que sistemas de representação, ainda que eficientes para a descrição de certos fenômenos e solução de determinados problemas, tornam estas atividades opacas às pessoas que não dominam suas respectivas convenções para interpretação e uso. As representações carregam, portanto, formas de registro convencionadas que não implicam em uma compreensão direta.

    No episódio de interpretação da tela envolvendo os conceitos de período e freqüência, encontramos indicadores da reflexividade de uma inscrição e da distribuição da cognição (SALOMON, 1997). As características de composição e evolução da tela condicionaram as possíveis contribuições de cada interlocutor participante do processo. A interpretação foi simultaneamente determinada pelos conhecimentos prévios, intenções e competências das duplas cujas interações foram analisadas. Além disso, pela mediação da tela, criou-se um ambiente para a construção de um saber compartilhado, elaborações singulares das duplas, resultados dos quais não é possível identificar a contribuição isolada de um participante ou dos artefatos utilizados.

    A observação das interações permite-nos reforçar a constatação de que articular experimento, construção da representação de modelos e interpretação dessas representações, animadas no computador, cria um contexto que favorece bastante o engajamento e as trocas em sala de aula. E cria uma situação diferente de interpretação, uma vez que os estudantes estão envolvidos com representações dinâmicas, que evoluem no tempo, que podem efetivamente ser manipuladas externamente, como inscrições autênticas. Considerando esse contexto diferenciado, proporcionado pela simulação da representação de um modelo no computador, a presente investigação converge então para a seguinte questão: que procedimentos de interpretação os alunos utilizam para, individualmente ou em grupo, interpretar representações de modelos animadas na tela do computador?


VI.2 - Representações dinâmicas e construção de modelos

    Foi possível perceber vantagens no fato das representações serem dinâmicas, embora não tenha ainda sido possível confirmar a hipótese de que a interação com representações dinâmicas tem uma contribuição diferencial para a elaboração de modelos pelos alunos. Em caso positivo, cabe a pergunta: que tipo de contribuição é essa e que evidências a sustentam? Atividades envolvendo a interpretação de representações dinâmicas tornam mais evidentes as dificuldades em decodificar o que está inscrito na representação, assim como fazem da representação algo efetivamente externo e manipulável.

    Apesar de não termos trabalhado com simulações de fenômenos, mas de representações de modelos, a observação das interações dos alunos apresentou indicadores que convergem com uma hipótese apresentada por NERSESSIAN (1992). As simulações em computador podem ser tomadas como um sistema de ferramentas de quem pensa, artefatos que podem levar os estudantes a analisar os fenômenos num nível de abstração suficiente para compreender a estrutura genérica dos modelos, podendo então transferir sua compreensão de um problema para outro. Para Nersessian, experiências práticas podem ser complementadas por simulações em computador dos mesmos fenômenos vistos no laboratório, num nível de abstração intermediário entre o objeto do mundo real e o objeto científico, nível este adequado para as situações de ensino.


VI.3 - Um episódio envolvendo reversibilidade

    Na interpretação de uma das telas, uma questão envolvendo a medida de uma freqüência de valor não inteiro suscitou dúvidas nos alunos, produzindo momentos de diálogo entre alunos e orientador da atividade dignos de nota. A manipulação da representação criou condições para que a relação entre período e freqüência fosse tratada para além de um rearranjo de símbolos como se esses fossem objetos concretos. Esse tipo de procedimento é destacado por ARONS (1983) ao discutir o raciocínio aritmético envolvido na divisão. Arons afirma que muitas vezes a manipulação de uma fórmula pode representar uma operação concreta, no sentido piagetiano, isto é, os alunos não estão raciocinando algebricamente, estão apenas dispondo os símbolos em padrões com os quais têm familiaridade tratando-os como objetos concretos. A obtenção da resposta correta pelo aluno não demonstra a compreensão e domínio do raciocínio aritimético envolvido. Observar na tela a fração de arco de circunferência ‘varrido’ em 1s suscitou questões de interpretação e elaborações que aproximaram os alunos do raciocínio aritmético envolvido nessa relação. O cálculo da freqüência através da aplicação direta da relação f = 1/T, ilustrada por uma representação estática no livro didático, seria um contexto diferenciado, com menores chances desse tipo de dúvida aparecer? Essa mesma questão se aplicaria à atividade experimental, uma vez que é difícil ‘parar’ o movimento e, portanto, relacionar intervalo de tempo com o arco de circunferência descrito.


VI.4 - Formação de conceitos

    Quando se trabalha com representações dinâmicas, identificar o que fica constante e o que varia torna-se uma questão bastante significativa. Essa afirmação vale também para a experimentação. Em ambas, a invariância buscada pode estar mais ou menos evidente. Esse tipo de pergunta - o que varia e o que fica constante - parece contribuir para a elaboração de conceitos, idéia trabalhada por diSESSA (1998), em ensaio no qual ele define conceito como uma estrutura operacional, que articula a integração de particulares do mundo externo e que busca invariâncias nas relações entre diferentes conjuntos de particulares.


VI.5 – Simultaneidade das ações

    Na realização do experimento com força centrípeta, enquanto três participantes de um grupo discutiam a relação entre força centrípeta e velocidade, um quarto membro prestava atenção em uma discussão entre o orientador da atividade e outro grupo sobre uma questão envolvendo dois automóveis de massas iguais e velocidades diferentes fazendo uma mesma curva. E constata que haviam errado a resposta a uma das questões propostas no roteiro da atividade. Insiste então sistematicamente com os demais colegas do grupo para que retornem à referida questão, sem receber a devida atenção dos companheiros. Esse episódio evidencia uma dinâmica continuamente presente: a simultâneidade de alunos engajados na discussão de uma atividade, de alunos prestando atenção no que fazem os outros grupos ou monitorando os movimentos do professor, de alunos dispersos discutindo outro assunto sem qualquer relação com o que está proposto na atividade ou mesmo de uma rápida interrupção para uma brincadeira.

    As trocas estabelecidas são muito diversas, para muito além do controle do orientador da atividade. São trocas que produzem entendimento na direção dos objetivos da atividade proposta ou trocas que indicam dispersão. São, ainda, trocas que evidenciam dificuldades de comunicação e entendimento, ocorridas, muitas vezes, em um momento no qual o orientador da atividade não está presente e que, depois, tendo a oportunidade de recuperá-las, não o faz porque tem a escuta prejudicada pelo imperativo de desenvolver naquela aula um conjunto de conteúdos programáticos.

    Ao discutir a reflexividade e a indicialidade da produção de significados em uma interação, COULON (1995), citando ERICKSON (1979)[4] destaca a simultaneidade das ações. Levá-la em consideração é extremamente complexo se pensarmos no grande número de ações que se passam simultaneamente em uma sala de aula: comunicações verbais e não verbais, diversos movimentos entre os alunos, entre professor e alunos, etc. Por isso, a importância do vídeo no trabalho etnometodológico de campo. Captar essa dimensão indicial é bastante favorecida pelos documentos em vídeo, e permite revelar o implícito das interações e sua possível relação com estruturas mais gerais.


VI.6 – Dialogicidade x Univocidade

    Em um trecho da atividade de resolução de exercícios de fixação, uma das duplas cuja interação foi gravada em áudio, aplicou, ‘mecanicamente’ e corretamente, a equação do cálculo da velocidade linear, sem compreender o significado do termo do numerador (perímetro da circunferência). Uma pergunta anterior, que solicitava o cálculo do valor da distância percorrida pelo móvel em uma volta não fora respondido. Como não conseguiam encontrar uma solução para esse item, consultaram a resposta colocada ao final do livro e constataram que o valor correto correspondia ao valor do numerador da equação da velocidade. Concluíram, então, que 2p R correspondia à distância percorrida em uma volta. Tais procedimentos parecem indicar um aspecto também recorrente na interação entre orientador da atividade e alunos tanto na atividade experimental quanto na atividade com simulações. A atitude predominante é a de transcrever, para o roteiro ou para o relatório de atividades, a resposta certa. A compreensão das relações trabalhadas torna-se um elemento secundário. Isto não implica necessariamente desinteresse. Os alunos estão engajados na atividade, mas movidos pelo objetivo de responder aquilo que o professor espera: a resposta certa, de acordo com o modelo.

    Nas atividades com simulação e experimentação, predominou a fala do orientador da atividade. As possibilidades de construção pelos alunos não foram suficientemente exploradas. Há quebras no diálogo desenvolvido entre os alunos antes da chegada do orientador da atividade e após sua intervenção. A sua escuta não é suficiente para compreender totalmente as questões colocadas. Sua postura é tensionada pela necessidade de vencer o programa previsto para aquela aula. O orientador da atividade participa e reforça a ‘cultura de fazer como o modelo’, provendo o grupo com a ‘explicação’ que conduz à resposta certa. A troca se estabelece nessa perspectiva e, nesse sentido, não desenvolve satisfatoriamente as possibilidades presentes em uma certa problematização. Na sala de aula, a conduta do orientador da atividade expressa, não obstante as suas convicções pedagógicas declaradas, a tensão permanente entre transmissão e construção, entre univocidade e dialogicidade. O tempo é uma variável de grande importância, fator limitador e determinante de muitas das decisões tomadas no transcurso da ação.

    Esse resultado nos aproxima, por uma lado, de conclusões propostas por ROTH et al (1999) quando estes afirmam que procedimentos de interpretação devem ser analisadas no contexto de uma prática social. Por outro, coloca-nos a questão de que prática social focalizar. Roth et al entendem que os recursos de interpretação não devem ser ensinados aos estudantes de forma independente de interpretações de situações reais. No caso da atividade pesquisada por eles, compreender gráficos de população é mutuamente constitutivo com o conhecimento e o entendimento da evolução de populações reais. Assim, os estudantes precisam participar de atividades que lhes possibilitem melhorar a competência em interpretar gráficos e desenvolver recursos de interpretação acessíveis através de práticas científicas mais autênticas.

    Entretanto, perguntamos: como estruturar ambientes de trabalho científico autêntico no espaço da sala de aula em meio a limites, na maioria das vezes difíceis de ultrapassar? Qualquer que seja a abordagem escolhida, ela terá de se haver com as tensões transmissão x construção, educação para todos x formação específica e aprofundada, avaliação processual x avaliação de fim de processo, estabelecimento de ritmos médios x tratamento das diferenças, princípios gerais de uma disciplina x abordagem integrada e contextualizada. Em que medida essas tensões dificultam a transposição do fazer científico autêntico para o contexto da escola? Considerando questões dessa natureza entendemos que a prática que ocorre no interior da sala de aula e da escola deve ser estudada enquanto como uma prática social com características próprias que impõe limites ao exercício de uma prática científica autêntica.


VI.7 - Comentários finais

    Essa etapa inicial da investigação reforçou nossa convicção na possibilidade de estruturar ambientes de aprendizagem motivadores, que incorporam elementos do fazer científico, mas que não implicam necessariamente em um projeto mais ousado de tratar um problema em aberto. Articular experimentação, representação de modelos e análise dessas representações através de animações na tela do computador resultaram na criação de um ambiente de aprendizagem e pesquisa diferenciado. Esse ambiente pode nos levar a compreender um pouco mais sobre as práticas de interpretação dos alunos na medida em que estes estão envolvidos com representações não estáticas, que evoluem no tempo. É preciso, ainda, aprofundarmos o estudo sobre representações, no qual o conceito de inscrição tem um importante papel.

    Os resultados preliminares reforçam também o pressuposto de que o espaço da sala de aula comporta uma prática social específica com suas preocupações correntes, com seus procedimentos de rotina, com instrumentos e técnicas que devem ser dominados, com uma linguagem própria, com seus momentos de ruptura, ausência de comunicação e não produção de resultados esperados. Com a continuidade da pesquisa, esperamos descrever e compreender melhor tais aspectos, articulando-os à investigação das práticas de interpretação dos alunos mediadas pela tela do computador.


Referências


ARONS, A. B. Student patterns of thinking and reasoning – Parte one. The Physics Teacher, (21), 576-581, 1983.

COULON, A. Etonometodologia e Educação. In: FORQUIN, J.C. (Org.); Sociologia da Educação. Dez anos de pesquisa. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1995. cap.6, p.300-349.

diSESSA, A.A. What changes in conceptual change. International Journal of Science Education, v.20, n.10, p. 1155-1191, 1998.

HODSON, D. Experiments in Science and Science Teaching. Educational Philosophy and Theory, 20 (2), 53-66. 1988.

HOLSTEIN, J.A. and GUBRIUM, J.F. Fenomenologia, Etnometodologia e Prática Interpretativa . In: DENZIN, N. K. and LINCOLN, Y. S. (ed.) Handbook of Qualitative Research. London: Sage Publications, 1994. p. 262 a 272.

NERSESSIAN, N. Constructing and instructing: the role of ‘abstration techinique’ in creating a learning physics. In: DUSCHL, R., HAMILTON, R. (Eds.) Phylosophy of science, cognitive phychology, and educational theory and practice. Albany: State University of New York Press, p.48-68. 1992.

PEA, R. D. Practices of distributed intelligence and designs for education. In: SOLOMON, G.(Ed.) Distributed Cognition. Cambridge: University Press, 1997. cap.2, p. 47-87.

ROTH, W-M. Authentic School Science. Knowing and Learning in Open-Inquiry Science Laboratories. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1995, 296p.

ROTH, W-M., BOWEN, G.M., McGINN, M.K. Interpretation of Graphs by University Biology Students and Practicing Scientists: Toward a Social Practice View of Scientific Representation Practices. Journal of Research in Science Teaching, v.36, n.9, p. 1020-1043, 1999.

SALOMON, G. (Ed.) Distributed Cognitions. Psychological and educational considerations. Cambridge: University Press, 1997. cap.4, p.111-138,.

TAMIR, P., Practical Work in school: An Analysis of Current Practice. In Brian Woolnough (ed.), Practical Science. Milton Keynes: Open University Press, 1990. (Cap. 2).

LATOUR, B. Science in action: How to follow scientists and engineers through society. Milton Keynes: Open University Press.1987


[1] GARFINKEL, H. Studies in ethnomethodology. Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall, 1967.
[2] GARFINKEL, H. Evidence for locally produced, naturally accountable phenomena of order, logic, reason, meaning, method, etc. in and as of the essencial quiddity of immortal ordinary society (I of IV): An annoucement of studies. Sociological Theory, 6, 103-109, 1988.
[3] ALVARENGA, B. e MÁXIMO, A. Física: volume único. São Paulo: Scipione, 1997.
[4] ERICKSON, F. On Standards of Descritive Validity in Studies of Classroom Activity, in Occasional Paper, documento mimeografado, College of Education, Michigan State University. 1979. 23p.