Resumo
Neste trabalho, a sala de aula de Prática de Pesquisa em Educação Química – três disciplinas optativas do curso de Licenciatura em Química da FURG - foi investigada a partir de relatos de alunos e professores no diário de classe coletivo por três anos consecutivos. Nestas disciplinas, a pesquisa, usada como princípio didático (Demo, 1997, Cañal et al, 1997), se desenvolve em ciclos de ações de questionamento, de construção de argumentos e de validação em comunidades ampliadas (Galiazzi, 2000). A hipótese de trabalho é que a pesquisa possibilita enriquecer o discurso sobre ser professor a partir do desenvolvimento da competência dialógica dos participantes via questionamento, argumentação e validação. Considerando que a aprendizagem ocorre em níveis diferenciados de apropriação de significado de um discurso (Wertsch, 1998), a manifestação de resistências e aprendizagens em sala de aula tem mostrado ser um espaço de construção de novos significados sobre ser professor.
In this paper, the classroom of Practice of Research
in Chemical Education (three optional disciplines of the Chemistry teacher
education course) was investigated from students' reports in the collective
class diary for three years in a row. In these disciplines, the research
(Demo, 1997, Canãl et al, 1997) carries out in cycles of inquiry,
construction of arguments and validation in enlarged communities (Galiazzi,
2000). The work hypothesis is that the research enriches the discourse
of being a teacher, starting from the development of the dialogical competence
throughout inquiry, argumentation and validation. Considering that the
learning happens in differentiated levels of appropriation of a discourse
(Wertsch, 1998b), the manifestation of resistances and appropriations in
classroom have showed to be a space of learnings of new meanings of being
a teacher.
Introdução
A análise da pesquisa como princípio didático em cursos de Licenciatura de Ciências aponta para várias possibilidades da pesquisa na resolução de antigos problemas da formação de professores (Galiazzi, 2000). Nesta perspectiva é que analisamos uma sala de aula orientada pelos princípios teóricos do educar pela pesquisa (Demo, 1997) por meio de um diário de classe coletivo de alunos e professores. Neste diário, a cada semana um aluno fica encarregado de escrever suas reflexões sobre a disciplina, a metodologia, o desenvolvimento ou qualquer outro aspecto que entenda deva ser registrado. Nestes três anos analisados, o diário contém o relato de 15 alunos e 2 professores. Os dados analisados se referem às experiências de 1998, 1999 e 2000.
As disciplinas analisadas, Prática de Pesquisa em Educação Química I, II e III foram incluídas na grade curricular do curso de Licenciatura em Química em 1998, após um ano de discussões que resultaram na reforma curricular em vigor. Estas disciplinas têm como proposta a elaboração de projetos de pesquisa na área de Educação Química. Nos três anos as propostas de trabalho têm variado em função da avaliação dos resultados, mas a elaboração de projetos de pesquisa individuais e coletivos, seu desenvolvimento, fundamentação teórica e apresentação de resultados têm sido a tônica do trabalho.
Neste texto apresentamos, inicialmente, o diálogo teórico com Wertsch (1998), que se fez necessário a partir da emergência de resistências em sala de aula. A análise dos dados seguiu os princípios da análise de conteúdo segundo Ramos (1999). Para fortalecer nosso argumento de que a disciplina em análise é um palco em que convivem resistências e aprendizagens e lugar de apropriação de novos significados sobre ser professor, apresentamos neste artigo a análise de duas das categorias: as resistências no processo e as aprendizagens percebidas. Este tipo de análise fez perder a temporalidade das afirmativas, agrupadas pelo seu conteúdo e não por data do relato.
Sobre o trabalho em sala de aula
As disciplinas de Prática de Pesquisa em Educação Química I, II e III são disciplinas optativas da grade curricular do curso de Licenciatura em Química – Habilitação Ciências da Universidade Federal do Rio Grande. Estas disciplinas acontecem no mesmo horário e local para possibilitar a constituição de um grupo de pesquisa entre os professores da disciplina e os alunos de diferentes anos[2]. São desenvolvidos projetos coletivos e individuais de pesquisa e nestes, os professores do grupo atuam como orientadores.
A metodologia em sala de aula tem como princípio teórico o educar pela pesquisa que pressupõe o diálogo no grupo, a leitura e a escrita, mediados por processos de questionamento, construção de argumentos e validação destes argumentos no grupo ou em comunidades ampliadas. Isto aconteceu de diferentes formas nos três anos analisados neste trabalho.
Em seu primeiro ano, participaram professores (5) e alunos do segundo, do terceiro e do quarto do curso (10). O trabalho iniciou com a leitura de um texto sobre Educação Química (Schnetzler e Aragão, 1995). Após a discussão do tema, a partir de análise de anais de eventos científicos, foram analisadas pesquisas e suas características. Este trabalho tinha por objetivo ressaltar modos de estruturação como o problema de pesquisa, a metodologia de análise, os dados coletados. Com algumas informações sobre estas características partiu-se para o aprofundamento teórico de como fazer um projeto de pesquisa.
Com a fundamentação teórica, iniciou-se o desenvolvimento de projetos individuais, que seriam elaborados e discutidos em sala de aula. Estas atividades ocorreram durante o primeiro semestre de 1998. No segundo semestre, foi estruturado e realizado um projeto coletivo de pesquisa sobre os objetivos da experimentação no ensino médio. Para esta pesquisa os alunos aplicaram um instrumento de coleta de dados elaborado em conjunto,realizaram fundamentação teórica em revistas científicas, categorizaram a fundamentação teórica, construíram textos destas categorias.
As resistências dos alunos à disciplina apareceram desde o início. Primeiro porque os alunos não tinham idéia do que era Educação Química. As mesmas dificuldades persistiram ao se propor a discussão dos projetos individuais no grupo de pesquisa em que os professores dominaram a palavra, quer por suas teorias pedagógicas tradicionais, quer pelos entendimentos dos alunos, que se sentiam reprimidos e receosos em se expor. Ao final os professores e poucos dos alunos avaliaram a experiência como muito significativa.
Em 1999 a sistemática de trabalho foi pouco alterada. A disciplina teve a participação de professores (4), alunos que haviam cursado a disciplina no ano anterior (2) e alunos novos (8). No momento de desenvolvimento dos projetos individuais de pesquisa, cada aluno tinha um orientador (um dos professores do grupo) que auxiliava a construção do problema de pesquisa. O projeto coletivo seguiu sendo em etapa posterior ao projeto individual e continuou sobre a temática da experimentação, tendo como sujeitos investigados os participantes da disciplina. Esta característica foi extremamente positiva em relação ao instrumento do primeiro ano, porque possibilitou a discussão do conhecimento dos alunos e professores sobre o tema. Os procedimentos de análise foram realizados coletivamente para que os alunos e professores compreendessem a sistemática da análise de conteúdo. A disciplina finalizou com a análise dos dados coletados, tendo como referencial teórico os textos teóricos do ano anterior.
No terceiro ano, o grupo foi constituído pelos mesmos professores (4) dos anos anteriores, alunos que haviam cursado (7) alguma das disciplinas anteriores e alunos novos (5). Em razão das aprendizagens nas duas experiências anteriores, considerando que os projetos individuais eram desafios muito grandes para os alunos, a disciplina iniciou com um projeto coletivo de pesquisa sobre um tema de Química. A escolha do tema foi negociada no grupo. Entre os assuntos sugeridos pelos próprios integrantes da disciplina, foi escolhido investigar o que o grupo entendia por metais pesados.
As discussões em torno dos temas de pesquisa e de como elaborar os projetos de pesquisa foram intensas e em muitos momentos surgiram resistências por parte de professores e de alunos. Algumas destas resistências foram percebidas pelas manifestações de alunos que queriam a resposta certa sobre o que era metal pesado e mesmo em professores que tiveram certa dificuldade em reconhecer as lacunas de seu conhecimento sobre um assunto de Química.
Neste ano, após o projeto coletivo realizado no primeiro bimestre, iniciou-se um segundo projeto coletivo ainda sobre experimentação em que alunos e professores descreveram a melhor e a pior atividade experimental que tinham participado, como alunos ou professores. Como resultado, os alunos apresentaram relatório da pesquisa e uma atividade experimental com as características apontadas pela análise. Seguindo o semestre, foram desenvolvidos projetos individuais de pesquisa e esta sistemática foi dificultada pelo número de alunos que precisavam ser orientados pelos professores, alguns destes ainda pouco impregnados de seu papel nesta etapa.
Nos três anos que estão sendo objeto de análise neste artigo, o diário coletivo foi usado como instrumento de pesquisa e avaliação do trabalho desenvolvido em sala de aula.
Resistência e Apropriação: o diálogo com
Wertsch
A análise do diário de classe coletivo e a vivência em sala de aula mostraram ser esta sala de aula um palco de emergência de resistências e aprendizagens. Encontramos ressonância no nosso discurso de resistências em um referencial teórico ainda insipiente que é a abordagem sociocultural.
Em Santos e Mortimer (1999) encontramos a análise de resistência de alunos à professora de Química e isto nos levou e encontrar Wertsch (1998) e De Certeau (1996). Este diálogo com os autores possibilitou entender a rede intrincada de resistências e aprendizagens que podem surgir no desenvolvimento de uma proposta didática.
A abordagem sociocultural delineada em Wertsch (1998a, 1998b) é suportada pelas idéias de Vygotsky em que sobressai o papel teórico central da mediação e pelas idéias de atividade e ação de Leont’ev, além de outros. Na abordagem sociocultural emergem as noções de meios mediacionais[3] e ações mediadas a partir do entendimento daqueles autores. Com relação à mediação, Wertsch (1998) salienta quatro pontos fundamentais: a mediação é um processo e a introdução de uma meio mediacional, como são as ferramentas ou a linguagem, inevitavelmente o transforma. O terceiro aspecto é que toda a mediação envolve a limitação como o fortalecimento. O quarto ponto é que as ferramentas culturais acabam por delinear outros aspectos para os quais elas não haviam sido pensadas. A forma como os "agentes", no nosso caso os alunos, usam esta ferramenta, estabelece uma intrincada rede de conexões que também precisa ser analisada.
Na discussão feita sobre apropriação e resistência, Wertsch (1998b) busca apoio nas idéias delineadas por De Certeau e Bakhtin. De Certeau (1996) afirma que qualquer ferramenta cultural, uma delas a linguagem, é transformada de forma particular pelos indivíduos e grupos que a utilizam. A marca deixada nestas ferramentas não precisa ter necessariamente uma intenção explícita. Pelo contrário, muitas vezes, os indivíduos querem usar a ferramenta cultural como foi proposta, mas, mesmo assim, acabam por transformá-la. Em concordância com De Certeau, Wertsch (1998b) afirma que as ferramentas culturais sempre pertencem a um outro e existem em relações intrincadas de poder e autoridade. Uma questão importante é se a ferramenta cultural que um grupo usa, pertence a esse grupo ou a um outro. Nesta distinção é que De Certeau discute as estratégias e táticas de consumo. As estratégias têm um lugar próprio e as táticas são ações que usam o lugar de um outro mais poderoso (1996, p.36).
De acordo com Santos e Mortimer (1999), uma sala de aula é o lugar do professor e suas ações são estratégias. As ações dos alunos acontecem no lugar desse outro e os alunos vão desenvolvendo táticas de ação neste lugar. Concordamos com os autores que no ensino tradicional os alunos e professores atuam em sala de aula usando estratégias e táticas, mas consideramos fundamental a transformação da sala de aula em espaço de argumentação.
Outra idéia importante para a análise da sala de aula em questão que aparece em Wertsch (1998b) é o termo ‘microdinâmica’ para ressaltar que apropriação e resistência algumas vezes surgem durante as ações em questão de segundos (1998, p.168). O autor argumenta que a microdinâmica de apropriações e resistências são "micro" porque são formadas no espaço próximo e no contexto social. O autor finaliza o diálogo reformulando a noção de apropriação como ocorrendo em diferentes níveis de elaboração:
As resistências: entendimentos sobre aprender
As disciplinas de Prática de Pesquisa em Educação Química têm como um de seus pressupostos que o aluno desenvolva capacidade para aprender a aprender, que aja com autonomia para aprender (Demo, 1997). Um conjunto significativo de relatos revelam que o entendimento dos alunos sobre aprender está vinculado a processos heterônomos em que ele ainda espera pelo conhecimento que vai ser transmitido pelo professor.
Esta falta de autonomia em aprender pode ser percebida quando o aluno manifesta suas dificuldades, remetendo a um outro a responsabilidade pelo insucesso. A carga horária muito elevada, o número de disciplinas ou, quando isso não ocorre, a quantidade de tarefas desconexas foram salientadas pelos alunos:
A visão heterônoma de aprendizagem cuja responsabilidade é conferida ao professor aparece ainda em outros relatos, mesmo que no conjunto da fala anterior possa estar subjacente alguma aprendizagem na disciplina em questão:
Outra idéia que parece resultar em resistência é o entendimento sobre aprendizagem arraigado nos conhecimentos conceituais, como ficou expresso no relato a seguir: Muitas vezes me vejo andando em círculo, sem sair do lugar, ou andando, andando e me encontrando sempre no mesmo lugar.
A elaboração de um projeto de pesquisa não proporcionou a esta aluna visualizar suas aprendizagens, assim a aluna se enxerga sem sair do lugar.
Uma aluna apesar de reconhecer a importância desta disciplina para a sua formação, sustenta argumentos tradicionais que ficam explícitos no seu relato ao assumir a transmissão de conteúdos como tarefa do professor: Esta disciplina me ajuda muito e eu gosto dela, apesar das minhas dificuldades, pois quando eu for professora eu vou passar mais para meus alunos, não só aqueles conteúdos impostos pela escola ou pelo governo. Como destaca Demo (2000) a pedagogia do professor está tão centrada na certeza que aula limita-se a repassar algo, que se torna difícil para o professor entender que o aluno deveria duvidar do próprio professor.
Em síntese, a sala de aula de pesquisa uma das razões da emergência de resistências à pesquisa em sala de aula foram os entendimentos tradicionais sobre aprendizagem. Estes entendimentos se sustentam na transmissão do conteúdo pelo professor em que o aluno se mantém passivo. Esta transmissão é calcada em conteúdos conceituais. Outras aprendizagens de como fazer, elaborar, discutir, construir argumentos não são percebidas pelos alunos.
As resistências: entendimentos sobre ensinar
Os entendimentos sobre ensinar, da mesma forma que muitos outros componentes do conhecimento profissional de professores, têm sido construídos por aprendizagens ambientais (Maldaner, 1999) que acontecem ao longo da vida escolar dos professores de forma pouco reflexiva. Assim se perpetuam e cristalizam formas de pensar que constituem as teorias subjacentes à prática dominante dos docentes.
No diário de classe, a análise de uma das professoras aponta para entendimentos tradicionais sobre o ensino:
Esta disciplina tem algo que a diferencia das demais, que é o fato de termos quatro professores, agora três, a "nossa disposição" para debatermos sobre educação, algo que me fascina mais a cada dia.
Em síntese, as resistências à pesquisa em aula como proposta na disciplina tiveram como outro fator de emergência os entendimentos tradicionais de ensino em que o professor é que detém a palavra, a autoridade e o poder e o aluno fica esperando por esta palavra e por esta ordem.
As resistências: entendimentos sobre a natureza da ciência
O entendimento de ciência é outro dos fatores que limitam a construção de um conhecimento profissional mais complexo (Porlán e Rivero, 1998). A crença na verdade estabelecida pela ciência, no progresso resultante dos avanços científicos e na neutralidade da ciência vão de encontro a entendimentos de ciência como produto cultural, em processo de revisão permanente de suas verdades e regido por ideologias e intencionalidades.
Parece difícil para quem entende ciência como pautada na verdade, progresso e neutralidade, apropriar-se de outros significados que se contrapõem a estas verdades. Não foram muitas as manifestações sobre a natureza da ciência, mas um relato registra um entendimento de ciência progressista, cuja razão - o bem da humanidade – precisa ser ensinado para que os alunos aprendam o Verdadeiro valor da ciência:
Parece consenso que quando um professor flexibiliza o modo de avaliar sua sala de aula é porque adquiriu um conhecimento mais complexo sobre o processo de ensinar. Se os professores ainda apresentam comportamentos autoritários e monopolizadores com relação à avaliação, não podemos esperar que os alunos tenham construído significados diferentes destes em sua vivência escolar. Em um ensino tradicional, o professor avalia o conhecimento conceitual em provas, que ele corrige e atribui um valor, que premia ou castiga o aluno. O aluno aprende que a prova é o instrumento e o momento de tentar o êxito. A palavra ou valor final atribuídos à prova pode ser contestado, mas é a palavra do professor que confere um valor ao que foi escrito pelo aluno. Em uma prova nos moldes tradicionais, raramente é dada a possibilidade de revisão e reelaboração com novas aprendizagens. Isto parece conferir a avaliação um papel definitivo e, da mesma forma que o professor é visto como detentor da autoridade, do conhecimento, a palavra do professor é assumida como definitiva.
Na disciplina analisada é dada ênfase à elaboração de projetos individuais de pesquisa e estes projetos são analisados pelo grupo em sala de aula. Pelos relatos e lembrando daquelas aulas, podemos afirmar que os professores é que fizeram as críticas como avaliadores tradicionais. Os alunos ficaram calados aceitando o parecer de seus algozes. Parece ser este o entendimento dos alunos que tiveram seus projetos analisados no grupo de pesquisa e que não suportaram a crítica:
O modo como era conduzida a disciplina em seu primeiro ano, muitas vezes nos deixava perdidos, sem rumo, pois a cada colocação "sentíamos" ameaçados de sermos criticados. Não que a crítica, fosse algo ruim, mas parecia que não nos levava a lugar algum, a não ser ao desânimo, à descrença e à falta de vontade.
Assim, os entendimentos tradicionais sobre a avaliação dominada pela produção de um produto com características exigidas pelo professor, bem como a visão do professor como um algoz que castiga pela avaliação, pela crítica, contribuíram para a manifestação de resistências pelos alunos.
Nesta categoria que denominamos de resistências, então, emergiram manifestações que interpretamos como sendo resultantes das teorias tradicionais de ensino, aprendizagem, avaliação e ciência. Estas resistências conviveram com um conjunto de aprendizagens que passamos a descrever a seguir e é neste palco de resistências e aprendizagens que cada indivíduo pode superar seus limites e ir aprendendo outros modos de entender a sala de aula. O diário de classe registra este movimento de superação destas resistências, mas como as disciplinas são optativas, só se matriculam nas disciplinas seguintes os alunos que conseguiram perceber parte destes limites.
As aprendizagens
As aprendizagens relatadas fortalecem nosso argumento de que a Prática de Pesquisa é um espaço em que convivem resistências e aprendizagens e que é este convívio que possibilita, pelo diálogo em sala de aula e pela interlocução teórica e empírica, enriquecer o conhecimento profissional dos professores em grupos de pesquisa.
Aprender a aprender com o outro
Uma das aprendizagens que se destacou foi o avanço no entendimento do que é ser aluno. Com o envolvimento na disciplina ao longo dos anos, a concepção do que é ser aluno vai se transformando, mostrando a importância da participação efetiva no grupo:
A aprendizagem de se constituir parte de um grupo vem a superar a idéia presente no conjunto de resistências de que os professores dominam, detém a autoridade, mandam e os alunos executam. Se alguns alunos continuam resistindo e pensando da mesma forma, entretanto, outros alunos mostram ter avançado neste aspecto.
Entendemos que esta mudança de visão de objeto do ensino do professor para sujeito da aprendizagem sinaliza para alunos que passam a encarar aprender a aprender como foi expresso por alunos e professores: Acredito que aprendemos muito com uma disciplina em que o próprio estudante norteia sua aprendizagem. A professora da disciplina ressaltou este mesmo aspecto: Mas não falei ainda de algumas aprendizagens que para mim tem sido notáveis nos alunos. Talvez a maior delas esteja na iniciativa em aprender.
As aprendizagens não ficaram restritas aos alunos. O papel do professor na visão tradicional de ensino está centrado na transmissão de um conteúdo. Um novo entendimento sobre este papel é quando o professor entende-se como aprendiz, o que pode ser percebido no relato a seguir:
Esta aprendizagem da professora muda sua visão sobre o aluno. O aluno que resiste não o faz de maneira consciente e sim, na maior parte das vezes, de forma inconsciente e estas resistências podem ter origem tanto no conhecimento dos alunos sobre o que é uma aula, um professor e um aluno, por exemplo, como pode também iluminar lacunas no conhecimento do próprio professor. Os alunos e professores vão se apropriando de novos discursos não de uma única vez, mas em ciclos de aprendizagem sucessivas que vão tornando o conhecimento dos envolvidos mais enriquecido, sem que isto seja entendido que estas aprendizagens seguem uma ordem linear.
Assim, uma das aprendizagens que esta disciplina
tem proporcionado é sobre o entendimento do que significa ser aluno,
ao superar visões sobre aprendizagem como um processo passivo e
assumir o aprender a aprender. Outra forma importante de aprendizagem é
na participação do aluno no grupo de pesquisa, não
como um sujeito subalterno à espera de comandos, mas um sujeito
que participa, sugere, contribui para o trabalho que está sendo
desenvolvido. Uma terceira aprendizagem, no nosso entender bastante significativa,
é a do professor que aprende a ser professor pela análise
da sala de aula. Ou seja, o professor que passa a perceber a sala de aula
como espaço de pesquisa.
Aprender apesar das dificuldades
Outro conjunto de aprendizagens foram as relativas
a procedimentos de pesquisa: fazer parte de um grupo, ter que realizar
leituras, escrever sínteses, apresentar resultados, esquematizar
projetos de pesquisa. Estas aprendizagens são diferenciadas do que
é usual nas salas de aula em geral e por isso pode-se pensar que
seja normal aparecerem resistências neste aspecto como já
foram anteriormente salientadas.
O interessante é quando os participantes do grupo passam a perceber suas próprias dificuldades e as entendem como possibilidade de transformação:
Estamos sempre tendo que ler, escrever ou falar e isso ajuda muito na minha formação acadêmica. Às vezes, começo a ler trabalhos realizados nos anos anteriores e vejo o quanto melhorei e espero melhorar cada vez mais. E quando os professores me corrigem erros de português eu agradeço.
E cabe finalizar este item com a fala do aluno que assume suas próprias dificuldades em escrever:
Assumir-se professor
O terceiro conjunto de aprendizagens vem ao encontro de um dos problemas dos cursos de Licenciatura que é a falta de interesse dos alunos em ser professores (Pereira, 1998; Lüdke, 1994). Os alunos optam pela Licenciatura com outros objetivos que não a docência. Um destes objetivos é obtenção de um diploma de curso universitário. Estes mesmos autores assinalam que também é freqüente que os alunos cursem concomitantemente o curso de Bacharelado e de Licenciatura, conferindo maior importância às disciplinas de conteúdo específico do que ao tratamento pedagógico dado durante o curso. Este aspecto é bastante favorecido por aprendizagens ambientais com os professores que reforçam a importância da formação do pesquisador em detrimento da formação do professor. E isto ainda se agrava porque, na maioria destes cursos, não há um grupo de professores que se responsabilize pela formação do professor. Se os professores da área específica dão maior importância à formação do pesquisador, paralelamente os professores da área pedagógica preferem trabalhar com os cursos de Pedagogia, ficando órfã a Licenciatura.
De tudo isto, fica claro que uma mudança do entendimento dos alunos sobre ser professor traz um grande avanço na sua formação.
Neste sentido, a disciplina mostrou ser espaço não só de construção de conhecimento profissional mais articulado em que o aluno se assume responsável pela aprendizagem, como também ficou explicitado em diferentes falas que o aluno passou a entender-se como um futuro professor:
A visão dicotômica entre o pesquisador e o professor também aparece neste relato que colocamos ao final, para reafirmar nossa tese de que a aprendizagem é um processo lento e que as apropriações de novos significados no discurso de cada um sobre ser professor precisa ser um processo permanente na formação dos professores:
Em síntese, a pesquisa em sala de aula na
área de Educação Química pode favorecer a transformação
de entendimentos sobre o que é ser professor. Esta é, no
nosso entender, a mudança fundamental que precisa ocorrer com os
alunos da Licenciatura que fazem o curso por outras razões e com
outros objetivos que não ser professores.
Algumas conclusões
Entendemos que a pesquisa como princípio didático na formação do professor de Química possibilita a construção de um conhecimento profissional mais integrado e fundamentado, sendo assim condição necessária na articulação dos currículos dos cursos de Licenciatura em Química e da formação permanente dos professores, aqui incluídos os formadores. Assumir a pesquisa como princípio didático tem implícita a idéia de que o próprio formador precisa estar sempre questionando sua prática pedagógica para também tornar suas teorias sobre ser docente mais complexas.
Com esta tese fortalecida pelos dados analisados cabe fazer algumas conclusões do que até aqui foi aprendido. A pesquisa em sala de aula tem mostrado ser uma profícua possibilidade de explicitação de verdades cristalizadas no pensamento de alunos e professores sobre a profissão docente. Assim, a constituição de grupos de pesquisa que incluam professores na formação inicial e continuada parece ser uma forma de melhorar o conhecimento profissional de todos, a partir da explicitação pelo grupo de seu conhecimento sobre um tema escolhido.
Assim, é preciso pesquisar formas que se aproximem das possibilidades de aprendizagem, o que pode vir a facilitar a apropriação de conhecimento profissional em níveis mais significativos. Uma das possibilidades que podemos destacar, é o trabalho inicial de pesquisa a respeito de conceitos químicos, aparentemente compreendidos por todos os envolvidos. Por outro lado, as chances de aprendizagem se mostram tanto mais facilmente quanto maior for a explicitação das resistências. Um olhar atento dos mais experientes no grupo permite perceber este movimento de inércia à mudança e, desta forma, reorientar o trabalho procurando minimizar estas resistências.
Relevantes também são as resistências que surgem ao trabalho proposto em razão de teorias bastante tradicionais de como uma aula deve ser, de qual é o papel do professor, de quanto o aluno deve se envolver para alcançar a aprovação.
De outra parte, o diário de classe coletivo mostrou ser um instrumento rico de manifestação de resistências. Essas resistências funcionam como um sinalizador de lacunas do conhecimento profissional do grupo. Ao mesmo tempo, o diário sinaliza para o movimento em direção às aprendizagens e este é um processo cíclico. A cada ano, os alunos novos manifestam as mesmas resistências que os alunos mais antigos superaram.
As aprendizagens desenvolvidas mostraram um avanço nos entendimentos do que é ser aluno, em que este passou a perceber-se como um sujeito que valoriza a participação efetiva no grupo para aprender. Aprendizagens sobre o trabalho coletivo, entendendo a participação no grupo como um processo de ensino e de aprendizagem e não apenas como um sujeito executor de tarefas planejadas previamente pelo professor foram também resultados percebidos com este tipo de trabalho.
O processo reflexivo que se instaurou em algumas das aulas indica que pesquisar as teorias dos participantes é um modo eficiente de proporcionar avanços nas teorias pessoais de todos os envolvidos.
A prática de pesquisa em Educação Química mostrou também favorecer aprendizagens importantes como constituir-se em um novo sujeito pelo diálogo no grupo, ampliado pela leitura e escrita. E na escrita foi onde se perceberam as maiores dificuldades ao mesmo tempo que as satisfações por ir conseguindo colocar no papel as idéias próprias. Este conjunto de aprendizagens encaminhou alguns alunos para a autonomia e para assumirem-se professores, esta a aprendizagem mais significativa considerando o contexto em que se situam as Licenciaturas.
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[1] Fundação Universidade
do Rio Grande - Departamento de Química - Núcleo de Pesquisa
e Educação em Química; e-mail: carmo@nupeq.furg.br
[2] Inicialmente eram 5 os professores
que atuavam nas disciplinas. Um dos professores afastou-se ao final do
primeiro ano e uma professora aposentou-se no final de 2000.
[3] O autor usa indistintamente
os termos meios mediacionais e ferramentas culturais ao referir-se aos
artefatos ( culturais, técnicos) envolvidos na mediação
que têm o papel essencial de modelar a ação. Estas
ferramentas só tem impacto quando são usadas. Ao ser incluída,
esta ferramenta altera todo o fluxo e a estrutura das funções
mentais.