PERFIL CONCEITOAL E/OU PERFIL SUBJETIVO?
 
 

Alberto Villani[1]
Instituto de Física, Universidade de S. Paulo, Brasil

Sergio de Mello Arruda[2]
Carlos Eduardo Laburu[3]
Departamento de Física, Universidade Estadual de Londrina, Brasil
 
 

Resumo

    Neste trabalho procuraremos mostrar que é possível avançar na elaboração da idéia bachelardiana de perfil, focalizando as características individuais dos aprendizes e seus compromissos com a cultura e o conhecimento. Em primeiro lugar mostraremos que existe um conjunto de categorias estáveis referentes tanto ao ensino quanto à aprendizagem que consegue mapear as ‘posturas’ de alunos e professores durante o ensino e a aprendizagem. Em seguida mostraremos que as categorias adotadas podem constituir a base de um perfil subjetivo educacional, tornando-o um instrumento de trabalho para o professor em sala de aula, como complemento do perfil conceitual. Algumas considerações finais concluirão o trabalho.

Abstract

    In this work we will show that it is possible to elaborate the bachelardian idea of epistemological profile, focusing the individual characteristics of the learners and their compromises with the Culture and the Knowledge. Firstly, we will show that we can localize an ensemble of stable categories referring to teaching and learning; with them we can map the teachers’ and students’ attitudes during the teaching. Secondly, we will show that these categories may become a basis for a subjective educational profile, an instrument for a teacher in classroom and a complement of the conceptual profile. Some final considerations will conclude the work.
 
 

Introdução

    Num interessante artigo publicado no primeiro número de Investigações em Ensino de Ciências, Mortimer (1996) critica o modelo de ensino por Mudança Conceitual como inadequado para lidar com a aprendizagem. Em particular, ele considera limitadas as estratégias de ensino que i) não reconhecem a característica fundamental de ‘enculturação’ implícita na aprendizagem das ciências e ii) pretendem reduzir a aprendizagem ao abandono das idéias de senso comum em favor das noções científicas.

    Para o autor as novas concepções podem ser desenvolvidas paralelamente as antigas tanto nas situações em que as idéia alternativas apresentam ‘lacunas’ em relação as científicas quanto nas situações em que existe conflito e incompatibilidade entre as duas. Para fundamentar essa convicção o autor introduz a noção de perfil conceitual, uma modificação e aplicação ao ensino de ciências da noção bachelardiana de perfil epistemológico (Bachelard, 1984). Bachelard mostrou que nossas concepções sobre a natureza envolvem diferentes formas de pensar, que não podem ser descritas por uma única doutrina filosófica. Dessa forma é possível que cada indivíduo trace seu perfil epistemológico para cada conceito científico ( por exemplo, de massa ou de força ou de calor), no qual cada zona do perfil é relacionada com um perspectiva filosófica específica. Apesar do perfil ser individual, as categorias que constituem suas diferentes divisões têm uma característica mais geral, baseada nos correspondentes compromissos epistemológicos. Assim, para Bachelard o perfil correspondente aos conceitos da física e da química teria as seguinte componentes

    "o realismo, que é basicamente o pensamento de senso comum; o empirismo, que ultrapassa a realidade imediata através do uso de instrumentos de medida, mas que ainda não dá conta das relações racionais; o racionalismo clássico, em que os conceitos passam a fazer parte de uma rede de relações racionais; o racionalismo moderno, em que as noções simples da ciência clássica se tornam complexas e partes de uma rede mais ampla de conceitos; e também um racionalismo contemporâneo, ainda em desenvolvimento, que englobaria os avanços mais recentes da ciência através de estudos sobre a forma, fractais e sistemas não-lineares, que permitem a incorporação, como objeto de estudo, de sistemas complexos e/ou caóticos, como reações distantes do equilíbrio, sistemas irreversíveis, etc." (Mortimer, 1996 pp.30-31)

    Mortimer, para poder utilizar na análise da sala de aula a idéia de perfil, mantém algumas características, como a hierarquia entre as diferentes categorias, no sentido do aumento da racionalidade, abstração e complexidade, e consequentemente do poder explanatório, ao percorrer o perfil de uma determinada noção. Entretanto, adiciona alguns elementos significativos à noção bachelardiana.

    O primeiro deles é a distinção entre características ontológicas e epistemológicas de cada zona do perfil.... Essa distinção...é importante, uma vez que muitos dos problemas na aprendizagem de conceitos científicos têm sido relacionados com a dificuldade em se mudar as categorias ontológicas com as quais os conceitos são designados...

    Um outro aspecto ... a acrescentar é que a tomada de consciência, pelo estudante, de seu próprio perfil, desempenha um papel importante no processo de ensino-aprendizagem...

    Outra característica importante da noção de perfil conceitual é que seus níveis 'pré-científicos' não são determinados por escolas filosóficas de pensamento, mas pelos compromissos epistemológicos e ontológicos dos indivíduos. Como essas características individuais estão fortemente influenciadas pela cultura, podemos tentar definir o perfil conceitual como um sistema supra-individual de formas de pensamento que pode ser atribuído a qualquer indivíduo dentro de uma mesma cultura."(ib. 33-34)

    A idéia do perfil conceitual vem ao encontro das críticas feitas ao modelo de mudança conceitual, no que diz respeito a persistência das concepções alternativas mesmo após uma instrução bem sucedida. Também permite dar espaço para que noções novas sejam desenvolvidas paralelamente na sala de aula, sem necessariamente envolver conflitos, pelo menos inicialmente. Entretanto, o perfil conceitual não dá conta de distinguir situações aparentemente semelhantes do ponto de vista conceitual, mas fundamentalmente diferentes do ponto de vista subjetivo. O caso relatado por Barolli (1998), por exemplo, referente aos grupos envolvidos no laboratório Didático de Física é sintomático. Todos os grupos pareciam comprometidos com noções alternativas sobre o significado de uma medida em Física, experimentando uma especie de ‘obstáculo epistemológico’ quanto ao reconhecimento da necessidade da flutuação e à não existência de uma ‘medida certa’. Entretanto alguns grupos trabalhavam ativa e cooperativamente, se deslocando aos poucos dessa noção e mudando seu perfil, ao passo que outros grupos permaneciam impotentes frente as dificuldades. Do ponto de vista didático, a predominância de uma determinada noção sobre a medida em física pouco auxiliava quanto à possibilidade de modificação. Outras ‘variáveis’ pareciam ser mais importantes. O conhecimento dessas variáveis certamente ajudaria o professor em seu trabalho de promoção da mudança do perfil.

    Neste trabalho procuraremos mostrar que é possível avançar na elaboração da idéia de perfil, focalizando as características individuais dos aprendizes e seus compromissos com a cultura e o conhecimento. Para fazer isso, em primeiro lugar mostraremos que existe um conjunto de categorias estáveis referentes tanto ao ensino quanto à aprendizagem que consegue mapear as ‘posturas’ de alunos e professores durante o ensino e a aprendizagem. Em outras palavras, apesar de cada aluno se posicionar individualmente frente ao conhecimento, dependendo da história individual e das circumstâncias, o espectro de posições parece ser bastante geral. Ao mostrar que existe uma correspondência estreita entre os resultados de dois trabalhos recentes referentes à captura do professor por diferentes discursos (Arruda e Villani, 2001) e adoção por parte dos alunos de diferentes patamares de aprendizagem (Villani & Barolli, 2000), estaremos implicitamente definindo um espectro de categorias bastante geral. Em seguida mostraremos que as categorias adotadas podem constituir a base de um perfil subjetivo educacional, tornando-o um instrumento de trabalho para o professor em sala de aula, como complemento do perfil conceitual. Algumas considerações finais concluirão o trabalho.
 

Os discursos e os patamares

    Num trabalho recente (Arruda & Villani, 2001), partindo de alguns conceitos da psicanálise lacaniana, avançamos a hipótese de que as falas e as ações dos professores que participaram de um projeto específico de atualização em Física, ao longo de dois anos, poderiam ser explicadas como o resultado de capturas por diferentes tipos de discurso, cada qual marcada pela presença de diferentes tipos de satisfação inconsciente. Apesar do esquema ter sido elaborado tendo como objetivo explicar um conjunto de dados específicos referente ao sentido que determinados professores atribuiam ao seu trabalho docente, não é difícil reconhecer que as categorias utilizadas podem ser estendidas às práticas docentes no ensino das ciências em geral. Assim teríamos a possibilidade de captura por sete discursos:

    O discurso do Consumo introduz demandas que nada têm a ver com a procura do conhecimento científico, da cultura e dos valores que definem a escola como o lugar de uma educação emancipatória e civilizatória.

    O discurso da Burocracia transforma o indivíduo em um objeto, em um número. Esse discurso demanda o cumprimento dos ritos burocráticos que garantem as aparências e leva o sujeito a não se posicionar frente aos problemas reais (da escola ou de outras instituições).

    O discurso do Conhecimento Científico contrasta com os anteriores privilegiando o conhecimento científico e, portanto, os manuais (livros-texto). Nesse discurso a escola deve transmitir esse conhecimento e o papel do professor é tornar-se a fonte dele. Mais especificamente, o conteúdo a ser transmitido e suas implicações constituem o que importa.

    O discurso do Conhecimento Metodológico promete resolver o problema da falta de motivação dos alunos para as atividades escolares e para o estudo em particular. Mais especificamente, sinaliza a possibilidade de metodologias, estratégias e inovações tecnológicas que conseguiriam dar conta de um domínio satisfatório da sala de aula.

    O discurso do Conhecimento Reflexivo seria uma fase posterior do discurso do conhecimento, que corresponderia, à necessidade de participação ativa do aluno em sua aprendizagem. Atualmente, o paradigma dominante é o construtivismo, que coloca como mote central desse discurso uma construção pessoal do conhecimento.

    Discurso da Pesquisa Orientada se coloca como sucessivo ao discurso do conhecimento, pois sua ênfase é a crítica ao conhecimento estabelecido e a produção de novo conhecimento. Chamamos de pesquisa orientada aquela que surge sob orientação de um pesquisador mais experiente, ou seja, num contexto de prestar conta para alguém e/ou para um determinado referencial que não está sujeito à contestação.

    Discurso da Pesquisa Autônoma. É o discurso que focaliza a resolução de problemas originais, a partir de alguma tradição de pesquisa. É o discurso da criação, da elaboração de algo original, sem a necessidade de prestar conta para uma instância superior.

    Neste ponto poderíamos nos perguntar se também as ações, as falas e as atitudes dos alunos em relação à sua aprendizagem podem ser mapeadas de maneira análoga. Não somente existe na literatura um esquema semelhante, elaborado a partir dos mesmos princípios da psicanálise lacaniana (Villani & Barolli, 2000), mas também existe uma correspondência quase perfeita entre as categorias dos dois trabalhos.

    Analogamente ao nosso caso, o esquema denominado de patamares subjetivos de aprendizagem envolve dois conceitos postulados pela psicanálise lacaniana: o Outro e o gozo. Envolve também as relações explícitas e implícitas dos estudantes com o conhecimento científico, o professor, os colegas e a sociedade (escola, família, amigos e resto em geral). Com esses instrumentos, os autores acima citados estabeleceram sete patamares.

    Rejeição direta. Nesse patamar existe uma posição mais radical, na qual o conhecimento escolar é rejeitado ou desprezado e o professor é considerado como inimigo dos alunos; o comportamento dos estudantes é o de perturbar a ordem vigente. A escola, o conhecimento e o professor não representam nenhum valor para eles e o gozo está nas emoções fortes, procuradas incessantemente, cuja fonte está fora da escola (drogas, esportes radicais, violência). Em uma posição mais "light", a recusa ao conhecimento transparece pela falta de interesse e motivação frente às atividades propostas pelo professor, que é, algumas vezes, simplesmente ignorado. Nesse caso, o gozo do aluno está no próprio burlar; as coisas valorizadas encontram-se na sociedade e não na escola.

    Indecisão. Entre a rejeição e a aceitação do conhecimento, situa-se um patamar em que os estudantes oscilam na sua aproximação com o conhecimento e na entrega ao professor. Algumas vezes parecem aderir às atividades didáticas, mas outras vezes procuram o mínimo esforço para satisfazer as aparências. A satisfação básica, nesse caso, parece consistir em evitar o comprometimento com algum tipo de busca.

    Demanda passiva. Os aprendizes têm total confiança que o conhecimento lhes será transferido com pouco esforço, bastando que, para isso, prestem bem atenção à fala do professor e observem suas ações. O conhecimento para eles é apenas algo que se recebe e a regra básica do jogo, nesse caso, é aprender as respostas corretas. A situação é de dependência total em relação ao professor que ocupa o lugar do Outro e o centro do palco. Instala-se a suposição de saber e a transferência é imaginária, pois a ação do professor é imaginada levando à plenitude. O gozo está em escutar ou olhar a ação do professor e os colegas são outros espectadores.

    Risco. Entre a aceitação passiva e a busca ativa do conhecimento situa-se um patamar em que os estudantes demonstram maior participação e aceitam mostrar o seu conhecimento. Entretanto, isso se dá mais pelo gozo em se fazer notar pelo professor e em se destacar perante os colegas do que em procurar o conhecimento. Enfim um risco, mas não demasiado. A situação é instável e a possibilidade de retorno à passividade é grande, se aparecerem exigências de compromissos maiores.

    Aprendizagem Ativa. Nesse patamar, o aluno, de fato, já aceita procurar pelas respostas e o conhecimento é algo que se deve adquirir através do esforço, em um processo que já comporta alguma satisfação. O aprendiz trabalha para satisfazer o desejo do professor e ser por ele reconhecido e aí se situa o seu gozo. O professor sustenta todo o processo, tendo-se transformado em uma referência fundamental. A transferência agora é simbólica, na qual alunos e professor estão implicados. Os colegas são companheiros de busca e os valores da sociedade não interferem nas atividades escolares.

    Avanço. Entre a aprendizagem ativa e a pesquisa criativa, situa-se um outro patamar intermediário em que os estudantes começam a experimentar um trabalho original de pesquisa e um gozo com essa atividade, mas ainda permanece a satisfação em ser reconhecido pelo professor, o qual ainda é colocado na posição de um Outro a quem recorrer em caso de maiores dificuldades.

    Procura Criativa. Esse último patamar é caracterizado pela resolução de problemas e produção de um novo conhecimento de forma autônoma. O importante não é a amplitude e o alcance do conhecimento produzido, mas sua paternidade. O professor passa a ser mais um assessor, ajudando os alunos a localizar e avaliar as informações. O lugar do Outro é ocupado pela verdade. O gozo agora está na produção de conhecimento e na resolução de um problema, orientado por um desejo de ultrapassar o conhecido.

    Subjetivamente, o que os patamares focalizam, é uma relação de crescente afinidade com o conhecimento científico, que passa de dejeto, a objeto a ser inicialmente consumido, até objeto a ser produzido. Também é importante notar que, a partir da entrada no processo de aprendizagem, ou seja, do patamar de Demanda Passiva, há um deslocamento gradual do aluno de uma situação de dependência total em relação ao professor, para uma de parceria. Esse deslocamento é também uma mudança do tipo de satisfação que o amarra: do encantamento pelo professor à tensão na busca do novo.

    Apesar dos dois esquemas, de captura por discursos e de relação com o conhecimento, dizerem respeito ao processo de ensino e aprendizagem e utilizarem o mesmo número de categorias básicas, parecem apontar para aspectos diferentes: o Outro como discurso e o Outro como desejo (Fink, 1998). Ou seja, num caso fala, atitudes e comportamentos seriam resultado da inserção do professor num determinado fluxo discursivo. O professor realizaria o discurso de um Outro. No outro caso, fala, atitude e comportamento dos alunos seriam resultado de um crescente desejo de saber, ou seja de uma determinada maneira de cobrir a falta.

    Para entender melhor a relação entre esses dois esquemas podemos perguntar quais seriam as implicações na conduta e na satisfação de um aluno capturado pelos diferentes discursos.

    A captura pelo discurso do Consumo envolveria os mesmos ingredientes do patamar de rejeição direta: desprezo ou indiferença pelo conhecimento científico e satisfação nas emoções que são consumidas incessantemente e que não deixam o indivíduo refletir. No caso da captura pelo discurso da Burocracia, o aluno estaria sob o domínio da lei do mínimo esforço e da satisfação das aparências. O domínio da rotina implica em envolvimentos eventuais e locais dos alunos, quando a atividade proposta for particularmente interessante. Daí a oscilação entre envolver-se ou afastar-se do conhecimento. A captura pelo Conhecimento Científico, que implica para o professor assumir a posição do mestre-todo saber, com relação ao aluno implica em seu oposto, a ausência de saber científico e, consequentemente, um comportamento passivo, que oscila entre o de uma platéia atenta e o de um cumpridor aplicado de tarefas. A satisfação inconsciente do aluno está em ouvir e ver o professor, encantando-se com sua fala e com suas ações (no laboratório, por exemplo), imaginando dessa forma aumentar seu próprio saber. Enfim ‘curtir’ a competência do professor, como mestre, fonte de saber ou como mágico, manipulador da realidade empírica. A captura pelo discurso do Conhecimento Metodológico pode ser pensada como apontando para alunos aparentemente motivados, fazendo perguntas e mostrando interesse, sem no entanto se comprometerem totalmente com o esforço de apreender. Ou seja, gostando das novidades, mas sem as incertezas que a busca do conhecimento implica. Se satisfazem, inconscientemente, em serem conduzidos de maneira surpreendente, mas com pouco risco. O gozo dos alunos capturados pelo discurso do Conhecimento Reflexivo, fundamentalmente, está em se sentirem implicados na busca pela compreensão de um determinado conteúdo, em chegar a algum lugar, com orientação do professor. Para alguns essa busca pode envolver também uma contribuição própria, como a escolha de um caminho diferente ou um aprofundamento específico, para além das exigências escolares, de alguns pontos ou assuntos analisados. A captura pelo discurso da Pesquisa Orientada constitui um passo à frente do aluno no afastamento da dependência do professor e o primeiro passo de sua inserção no mundo da pesquisa. Passos de independência se alternam com pedidos de orientação, portanto há uma oscilação entre a segurança de ser guiado por outro e a emoção de procurar o desconhecido. Finalmente a captura pelo discurso da Pesquisa Original pode ser considerada uma situação de aprendizagem criativa e, portanto, mais rara. Para o aluno significa abandonar a idéia de satisfazer a um mestre, aventurar-se em atribuir à aprendizagem uma meta pessoal, independente das exigências institucionais ou das demandas dos docentes. Tal mudança, em geral, é acoplada a constituição de um grupo de trabalho, com seus objetivos que tendem a favorecer a independência ou a 'separação' do professor-mestre.

    A semelhança entre o esquema dos discursos e dos patamares parece grande e seu acoplamento pode ser resumido na tabela abaixo (tabela 1), onde o lado do discurso focaliza a satisfação do professor e o lado do patamar focaliza a satisfação do aprendiz. Essa semelhança parece ultrapassar a coincidência entre as referências psicanalíticas comuns e apontar para uma hipótese mais forte: a captura por discursos e a posição em relação ao conhecimento seriam o verso e o reverso de uma mesma moeda. Ser capturado por um desses discursos implica em entrar em um circuito de gozo e estar dominado por uma satisfação que tende a fazer repetir os mesmos atos ou as mesmas atitudes. Como conseqüência, as relações de aprendizagem tornam-se coerentes e estáveis. Assim, ao ser capturado por um tipo de discurso, as relações fundamentais envolvidas na aprendizagem, como a relação com o professor, os colegas e o conhecimento tenderiam à se manter. Então, os patamares, que são caracterizados por essas relações, também seriam configurações bem estabelecidas tanto quanto os discursos que as sustentam.

    Neste esquema, a consideração do conhecimento científico como dejeto, a captura do professor pelo discurso do Consumo e a Rejeição Direta da aprendizagem por parte dos alunos, constituem os nós de uma mesma rede, assim como a consideração do conhecimento científico como objeto de posse, a captura do professor pelo discurso do Conhecimento Científico e a Demanda Passiva pela aprendizagem por parte dos alunos. Analogamente, a consideração do conhecimento científico como conquista pessoal, a captura do professor pelo Conhecimento Reflexivo e a Aprendizagem Ativa como posição do aluno formariam um mesmo bloco, assim como a consideração do conhecimento científico como produção do sujeito, a captura do professor pelo discurso da Pesquisa Original e a Pesquisa Criativa como tipo de aprendizagem dos alunos.
 

DISCURSO

GOZO do

Professor

GOZO do

Aluno

PATAMAR
Consumo
Procurar dar um 'jeitinho'
Procurar emoções fortes, transgressão
Rejeição
Burocracia
Seguir os ritos previamente definidos pelo sistema
Ficar em cima do muro
Indecisão
Conhecimento Científico
Ser o centro das atenções
Ouvir e olhar com encanto
Demanda Passiva
Conhecimento

Metodológico

Dominar o ambiente com a organização
Oscilar entre expor-se e ser conduzido
Risco
Conhecimento Reflexivo
Conduzir participantes ativos
Sentir-se implicado no domínio do conhecimento
Aprendizagem Ativa
Pesquisa

Orientada

Sustentar uma busca local
Oscilar entre depender e criar
Avanço
Pesquisa

Original

Sustentar uma busca global
Procurar de forma independente
Pesquisa Criativa

Tabela 1. Confronto entre o esquema dos Discursos e dos Patamares

    Entre essas quatro categorias fundamentais podemos vislumbrar as outras como intermediárias, ou seja caracterizadas por situações mais ambíguas e oscilantes.

    Um exemplo pode iluminar melhor nossa suposição (Villani & Barolli, 2000).

    Uma Mudança Efêmera. Uma classe de ensino médio era composta por dois grupos distintos de alunos, quanto ao envolvimento com o curso de Física (Gircoreano, 1998). Existia uma gangue de cinco alunos que, além de não participar das atividades didáticas propostas, perturbava o andamento do curso, proferindo ameaças a todos. As ligações desses alunos com o crime organizado faziam supor que eventuais ameaças deveriam ser tomadas a sério. A maioria dos alunos, quando não infernizada pela gangue, participava das atividades e experiências, relacionadas à óptica e à visão, propostas pelo professor, envolvendo-se com bastante interesse nas discussões. Durante uma aula na qual se estava discutindo o papel da luz na visão, apenas um componente da gangue estava presente. Ele se encontrava em silêncio no fundo da classe, parecendo desinteressado. De repente, talvez para variar de programa, aproximou-se dos que discutiam e, pouco depois, fez uma pergunta, deixando o grupo surpreso. O professor, aproveitando-se da pergunta, chamou atenção para o paradoxo de que precisamos da luz para ver, mas não podemos ver a luz: o aluno ficou intrigado. Começou, então, a dar sugestões, participando da aula até seu final. Toda a classe ficou surpresa pelo comportamento do aluno. Infelizmente, nas aulas seguintes os amigos o convidaram a participar de atividades fora da escola e ele voltou a compor um bloco com eles.

    Nesse caso, certamente a gangue era estável num patamar de Rejeição Direta, caracterizada pela violência contra os colegas e o professor e pelo desprezo do conhecimento científico que circulava e que atraía o resto da classe. Pelo contrário, a maioria da classe estava dividida entre os patamares de Demanda Passiva e de Risco, o primeiro sinalizado pela atenção dos alunos nas demonstrações propostas e o segundo pelas discussões e questões por eles levantadas. O professor parecia oscilar entre o discurso do Conhecimento Científico, Metodológico e Reflexivo, pela preocupação que ele mostrava quanto ao conteúdo e ao interesse e trabalho dos alunos. O que chama nossa atenção é a mudança de um dos componentes da gangue. Quando ele se encontrou fora do circuito do grupo abandonou a Rejeição Direta e passou pela Indecisão e, progressivamente mais seguro, colocou-se numa situação de interesse em relação às atividades propostas e de respeito em relação ao Professor e aos colegas. Podemos dizer que estava passando para um patamar de Demanda Passiva. A intervenção feliz do professor, nesse caso baseada na exploração do conteúdo científico, parece ter criado um laço com ele, condição para a transição desse aluno para um patamar de Risco, sinalizada pelas perguntas que o intrigavam e pela participação na discussão com os colegas e o professor. Entretanto, a mudança desse aluno foi rapidamente abortada pelos companheiros da gangue, que o envolveram novamente na indiferença em relação ao conhecimento da óptica. Não sabemos o que aconteceu de fato entre eles, mas podemos imaginar que o aluno deve ter apresentado algum movimento de resistência em relação à volta, ou seja deve ter experimentado momentos de Indecisão.
 

O perfil subjetivo

    Duas perguntas podem surgir quase que de imediato. Se as categorias utilizadas são tão amarradas, como são possíveis as mudanças no processo de ensino-aprendizagem? Após as mudanças o que acontece com os discursos e os patamares anteriores?

    Para responder a primeira pergunta devemos salientar que nem sempre professor e alunos compartilham do mesmo discurso e do mesmo desejo de saber, ou seja da mesma relação com a aprendizagem. Isso implica numa perturbação cujo resultado pode ser tanto uma adesão do aluno ao discurso do professor, ou uma adesão do professor ao discurso do aluno ou o deslocamento de cada um para uma situação intermediária, como parece ter sido no caso citado acima. A nova perturbação, vinda dos companheiros de gangue, tornou novamente instável o patamar alcançado pelo aluno, que voltou a posição inicial. No entanto, essa explicação parece parcial, pois atingido um equilíbrio, a nova situação seria definitivamente estável. Nem sempre isso acontece, pois, de fato, podemos perceber que professores e aprendizes não se mantêm sempre num determinado ponto, e que os caminhos por eles percorridos não seguem uma linha pré-determinada. A rapidez e a aleatoriedade das mudanças que se sucedem ao longo de um percurso de aprendizagem parecem contrastar com a estabilidade dos discursos e dos patamares. Por isso sugerimos a hipótese de haver um perfil subjetivo para cada professor e aprendiz. Ou seja, parece mais provável que eles já estejam marcados por vários discursos e patamares, sendo a emergência de um deles dependente das condições, do contexto e das relações particulares entre o professor e os alunos mais favoráveis,

    Da mesma forma podemos usar a idéia de um perfil para explicar por que, por exemplo, durante a preparação para o vestibular os alunos tendem a se colocar na posição de aprendizagem ativa, se já fizeram alguma experiência desse tipo anteriormente. Analogamente, frente a uma tese ou dissertação, em geral, os alunos assumem, mais ou menos rapidamente, a posição mais avançada pertencente a seu perfil. Podemos avançar em nossa reflexão analizando outro caso, também encontrado em Villani & Barolli (2000).

    Uma Mudança Parcial. - O início de um curso do ensino médio sobre leis de Newton foi considerado interessante pelos alunos (Ferreira, 1997), que estavam acostumados a aulas tradicionais, com fórmulas e resolução de exercícios do livro texto. A professora M era nova e portanto despertava um interesse natural; o método de trabalho por ela utilizado também era novo, pois discutia-se abundantemente e cada um podia expressar sua opinião; sobretudo, o assunto era novidade. A professora estava muito atenta para entender e interpretar o que os estudantes falavam; além disso, estava preocupada em ajudá-los a se organizarem em pequenos grupos. O clima modificou-se quando os estudantes, que achavam ter cumprido com sucesso a tarefa de analisar um certo experimento, defrontaram-se com a tentativa radical da professora de desestruturar a idéia de "força impressa" por eles utilizada. Começaram a duvidar do processo de ensino, a se preocupar com as provas iminentes e rejeitaram o esforço da professora, que procurava forçá-los a refletirem sobre suas respostas. Com medo de ficar totalmente sozinha na empreitada, e enfrentar simultaneamente os alunos, a direção da escola e, eventualmente as queixas dos pais, a professora recuou parcialmente no seu planejamento, resolvendo atender mais às exigências dos estudantes e propor atividades mais tradicionais. Aos poucos, a professora voltou a confiar em seu planejamento inicial e foi retomando os experimentos qualitativos, as discussões em grupos e em plenária, o aprofundamento dos conceitos e abandonando os exercícios mais rotineiros. A participação dos estudantes foi efetivamente maior nesse período e o envolvimento dos mesmos nas discussões sustentou a esperança da professora num resultado decisivo, mesmo que parcial. De fato, configuraram-se grupos distintos, um dos quais, mais participante, nos momentos de conflito procurava utilizar analogias para resolver os impasses, fazia afirmações seguras e cuidava em garantir a coerência entre elas; as dificuldades despertavam interesse e dificilmente abandonava-se um problema sem propor um caminho de solução. Durante uma entrevista alguns alunos desse grupo pensaram efetivamente sobre os problemas apresentados, abandonaram o apelo à memorização e surpreenderam-se com o próprio desempenho que parecia nunca ter ocorrido anteriormente. No entanto, o questionário e a avaliação final mostraram a ambigüidade da situação cognitiva desses alunos; quase todos responderam procurando as palavras que a professora gostava, e evitando as frases consideradas inadequadas. Nessa situação não forneceram indícios convincentes de terem alcançado uma nova compreensão.

    O episódio relata o caso de uma professora empenhada em obter um envolvimento dos alunos por meio de atividades de reflexão e de trabalho em grupo. Ela estava operando inicialmente capturada pelo discurso do Conhecimento Reflexivo. As atividades propostas, repletas de novidades, parecem ter criado condições para que a maioria dos estudantes, que inicialmente mantinha-se num patamar de Demanda Passiva, pudesse se expor tanto nas plenárias, como nos pequenos grupos, sinalizando uma possível transição para um patamar intermediário, no caso o de Risco. Essa inferência é sustentada pelo fato de que, logo depois, devido à dificuldade da professora em gerir a transferência pedagógica, o grupo voltou às queixas e lamentações costumeiras, características de um patamar de Demanda Passiva. A professora recuou para os discursos do Conhecimento Científico e do Conhecimento Metodológico, resistindo somente em parte ao convite de assumir o papel de mestre todo saber. Ela retomou algumas atividades interessantes e reiniciou as negociações, conseguindo favorecer o deslocamento de uma parte dos alunos para o Risco e depois para o patamar de Aprendizagem Ativa. Nas últimas atividades de avaliação, entretanto, esse grupo mostrou uma preocupação em agradar a professora para obter bons resultados. Esse movimento parece revelar uma fraca ligação dos alunos com o conhecimento adquirido, com os efeitos do trabalho, com os colegas e com a professora. Assim, aconteceu a volta de muitos para a Demanda Passiva ou até para a Indecisão. O discurso da Burocracia que dominava o contexto escolar daquela instituição novamente tornou-se importante para boa parte da classe.

    Esse exemplo, junto com o anterior, parece mostrar que os esquemas de captura por discursos ou de patamares são um recorte que aponta para determinadas etapas, não necessáriamente sucessivas, que teriam um papel importante na evolução do processo de ensino e aprendizagem. A idéia de um perfil subjetivo parece explicar tanto o comportamento dos professores, quanto dos alunos. Os dois professores, que estavam cursando uma pós-graduação, tinham sido capturados pelos ideais construtivistas e tentavam operar consequentemente. Entretanto em vários momento tiveram que recuar para cuidar de manter vivo o interesse (passivo) dos alunos, deslocando-se para um discurso do conhecimento Científico e Metodológico. Entretanto o deslocamento era provisório, podendo eles reassumirem a postura construtivista. Parece razoável pensar que os professores simplesmente assumiram várias posições dentro de seus perfil que envolvia tanto colocar os alunos num patamar de aprendizagem ativa quanto posições mais tradicionais. Parece pouco provável que esses professores tenham abandonado totalmente um discurso construtivista, para depois assumí-lo de novo. O caso dos alunos parece oposto. O aluno da gangue parecia ter um perfil dominado pela discurso do Consumo , mas outros patamares estavam presentes e puderam ser avivados quando o clima grupal ficou mais leve. Entretanto o patamar inicial não foi abandonado, e voltou rapidamente junto com a pressão dos companheiros de gangue. Analogamente, a maioria dos alunos da professora M. tinha um perfil dominado pela Demanda Passiva; para alguns deles certamente o perfil incluía outros patamares mais avançados, para outros provavelmente este era o mais avançado. Para os primeiros o deslocamento de patamar foi rápido, como que ativando atitudes já presentes. Para os outros o deslocamento foi muito mais ambíguo, como se estivessem construindo uma nova posição. De qualquer forma, as provas do final de curso privilegiaram o clima tradicional e o discurso da Burocracia institucional e a volta ao patamar dominante. De qualquer forma o perfil da maioria dos alunos se modificou ao longo do curso, tanto pela introdução de novos patamares, quanto pelo deslocamento do peso relativo de cada um deles.

    Como exemplo interessante de mudança de perfil podemos tentativamente visualizar a evolução da Professora M, ao longo de seu projeto de mestrado, usando as informações que aparecem em sua dissertação (Ferreira, 1997). Na tabela 2 aparece, de um lado, o seu perfil subjetivo na ocasião da experiência com os alunos, durante o primeiro semestre de 1996, e, de outro lado, o perfil ao término de sua dissertação, em 1997. Os valores atribuídos a cada discurso são bastantes aproximados e servem principalmente para garantir que a soma total seja constante.


Tabela 2. Mudança de Perfil da Professora M

    Durante o 1996, as incertezas que ela mostrou na administração das idéias construtivistas (relatadas em sua dissertação), nos sugerem que em seu perfil, apesar das intenções por ela manifestadas no planejamento da experiência, ainda eram mais significativos os discursos do Conhecimento Científico e Metodológico, por ela privilegiados em toda sua carreira anterior de professora. A reflexão intensa sobre sua ação durante o ano sucessivo à experiência, parece ter modificado significativamente seu perfil, tornando mais evidentes seu compromissos com o discurso do Conhecimento Reflexivo e da Pesquisa Orientada. O refinamento teórico da dissertação e dos outros trabalhos publicados logo em seguida podem ser considerados indícios deste deslocamento. Pelo seu relato podemos vislumbrar também uma pequena diminuição do peso (já limitado) do discurso da Burocracia.
 

Algumas consequências do perfil subjetivo

    Uma analogia pode nos ajudar a entender o perfil subjetivo: o deslocamento do foco numa relação amorosa. No começo pode ter uma atração física, depois aparecem a paixão, o interesse comum pelos filhos, a amizade amorosa. Podemos interpretar que os sentimentos mudam, no sentido de que um substitui o outro, mas podemos também interpretar que a mudança se dá no espectro dos sentimentos, adquirindo cada sentimento uma intensidade diferente. Essa última interpretação nos parece mais adequada. Por exemplo, quando domina a paixão, o resto quase não conta, porque quase nem percebemos o resto, mas ele está presente em níveis de intensidade e de consciência bem menores. Aos poucos outro sentimento toma conta, ou seja, aumenta seu peso relativo, mas o resto não desaparece e, em algumas circunstâncias, pode voltar de maneira surpreendente. E assim a vida rola, quando uma relação se mantém. Essa hipótese explicaria melhor por que quando o espectro dos sentimentos é extremamente reduzido, ao esmorecer o dominante, a relação entre os indivíduos acaba.

    Se os discursos e os patamares não são tão isolados ou definidos como os esquemas poderiam dar a entender, isso parece implicar que, em geral, estamos todos submetidos a diversos discursos que nos falam cotidianamente sem que consigamos separar um discurso do outro. Assim, os alunos e os professores estão quase sempre subjetivamente divididos entre um ou mais discursos, privilegiando um ou outro em diferentes contextos e circunstâncias; em geral, eles percorrem as categorias de seu próprio perfil e assumem posições diferentes, deslizando de uma para outra sem que, à vezes, consigam se dar conta das mudanças. Um terceiro exemplo pode nos ajudar.

    Uma professora resolveu oferecer para seus alunos da Licenciatura em Matemática um curso de relatividade restrita, para ampliar seus conhecimentos de Física Moderna. De fato, ela queria também modificar sua relação excessivamente ‘maternal‘ com os alunos, estimulando-os a serem mais ativos. Elaborou um planejamento no qual constavam discussões, leituras em grupos, videos e buscas na internet; queria reduzir ao mínimo as situações nas quais ela fornecia tudo ‘pronto e mastigado’ para os licenciandos. Além de tomar nota a cada aula, no final do curso também gravou em vídeo o desenrolar dos eventos. Ela achava ter realizado seu intento, mas ao analisar as fitas, percebeu que em várias situações não tinha deixado espaço para os alunos pensarem e se defrontarem com desafios. Ela ficou surpresa e decepcionada consigo mesmo, pois ela tinha se esforçado no controle de sua tendência a evitar o sofrimento e o esforço dos alunos. Também ficou surpresa ao ler os comentários dos alunos que apontavam a experiência como satisfatória exatamente porque tinham trabalhado em grupo e experimentado a elaborar seus conhecimentos. (Ferreira, 2001).

    No exemplo acima, duas evidências parecem importantes: a professora não tinha percebido seu deslizar do discurso do Conhecimento Reflexivo para o discurso do Conhecimento Metodológico. Ao contrário, para os alunos o que chamou atenção e marcou foi o esforço da professora em promover uma aprendizagem ativa, sem se importar muito com os eventuais deslocamentos da professora para esquemas antigos. Ou seja, foram exatamente as perturbações trazidas pelo novo tipo de discurso adotado pela professora que despertaram os alunos impedindo que eles se fixassem completamente em uma determinada posição.

    Por outro lado, se o professor não perceber que foi capturado por um único tipo de discurso, mesmo que seja o da Pesquisa Autônoma, sua capacidade de influenciar os alunos tornar-se-á bastante limitada. Ele poderá estimular os que estão em patamares avançados, mas não encontrará nenhuma ressonância na maioria que, geralmente, se situa em posições mais passivas. É bem conhecida a reação negativa de estudantes que se recusam a aceitar metodologias de pesquisa orientada ou até de participação mais ativa, pois exigem que o professor assuma a função de mestre fonte de todo saber. No exemplo do ensino das leis de Newton, citado acima, a professora experimentou algo semelhante e teve que assumir um discurso diferente, pelo menos até retomar o diálogo com os alunos. Por outro lado, se o professor for totalmente capturado pelo discurso do Conhecimento Científico, acabará inibindo o progresso de seus alunos rumo a uma participação mais ativa, como acontecia anteriormente com a professora do curso de Relatividade.

    Assim, a idéia de um perfil subjetivo, além de ser compatível com a perspectiva da aprendizagem como deslocamento das posições do sujeito para níveis de maior compromisso com o conhecimento científico, é também compatível com as oscilações encontradas nesse deslocamento. Mesmo quem experimentou situações dominadas pelo discurso da Pesquisa Autônoma sabe que, às vezes, é interessante e útil se deixar alienar, quase que passivamente, pelo conhecimento do outro ou se esforçar para entender outras mensagens a partir do guia de alguém mais experiente. Parece mais fácil entender esses ‘retrocessos’ como provisórios deslocamentos da intensidade de cada posição, do que como efetivo abandono de posições já conquistadas com grande esforço, sobretudo se no final o processo volta para a responsabilidade total do aprendiz.

    Isso nos leva a pensar que o professor deve manter viva a maioria dos discursos, adotando cada um deles dependendo das circunstâncias. Se o professor for mestre competente, docente exigente, orientador estimulador, colaborador atento, num momento poderá dominar o Conhecimento Metodológico na forma de competente show-man, mas no outro poderá agir como orientador estimulador na trilha do Conecimento Reflexivo e no outro ainda como parceiro colaborador na dominância da Pesquisa Orientada . Isso não vale somente para atingir a maioria da classe, mas também para atingir cada aluno na maioria do caminho de aprendizagem, pois o próprio aluno, ao se deslocar ao longo de seu perfil, será influenciado somente se encontrar o professor adotando um discurso não muito distante de sua própria posição. Enfim parece que a hipótese do perfil subjetivo sugere uma versão mais complexa da competência do professor e também de sua relação com os alunos. Essa indeterminação subjetiva e essa possibilidade de deslocamento de uma captura para outra, fundamenta a ação do professor ou de quem pretende favorecer mudanças na escola.

    Como consequência dessas considerações o professor parece ter duas tarefas imediatas para poder exercer competentemente sua função: perceber qual é atualmente seu próprio discurso dominante e quais discursos são amarram seus alunos, num determinado contexto. Para tanto é preciso exercer a escuta, ou seja, perceber os significantes principais que movem os alunos e as diversas demandas às quais eles estão submetidos. Esses significantes aparecem de improviso e se repetem, chamando a atenção do professor interessado em saber o que entra em ressonância com os alunos. O mesmo processo de escuta pode e deve ser dirigido para sua própria fala e ação, sendo de ajuda não desprezível o hábito do professor de se perguntar: afinal, o que eu quero da sala de aula?

    A partir da localização dos significantes que definem a trilha percorrida pelo estudante, como fazer para que ele seja capturado por outro discurso? Como fomentar o seu deslocamento para um patamar mais ativo? A situação é diferente dependendo do estudante já ter sido anteriormente capturado por discursos que o comprometem mais como aprendiz ou nunca ter saído da inércia do discurso do consumo ou da burocracia. No primeiro caso a situação é mais simples, pois, em princípio, poderia ser suficiente vivenciar experiências semelhantes. Por exemplo, se o aluno já vivenciou no passado o desafio de aprender um determinado conteúdo, possivelmente não será muito apavorante para ele se envolver num esforço semelhante; talvez poderá bastar que o professor explicite as vantagens do novo desafio. Mesmo sendo verdade que qualquer escolha sempre envolve riscos e perdas, parece bastante simples vislumbrar e avaliar as vantagens de dominar um novo conhecimento, quando se conhece o tipo de perda implicado na escolha de estudar com dedicação e perseverância. O problema é muito mais complexo quando o aprendiz nunca foi capturado por um discurso do conhecimento, ou seja, nunca experimentou o tipo de satisfação que o apreender e dominar um assunto traz. Nesse caso parece que o aluno deve ser arrastado para o esforço pessoal, retirando ao máximo as componente desagradáveis e reforçando o espaço para as satisfações possíveis, conscientes e inconscientes. Em outras palavras, parece que o professor deva realizar a aprendizagem junto com os alunos, passo a passo.

    Na medida em que um tipo de discurso assume mais peso do que outro, para o aluno, o professor adquire nova autoridade, ou seja, o aluno muda a possibilidade de obter satisfação na relação com o professor e com os companheiros. Ou seja, passa-se da transferência pedagógica imaginária para a simbólica e os alunos experimentam o início de uma caminhada rumo à autonomia.
 

Algumas considerações finais

    A proposta bachelardiana de uma ‘psicanálise’ do conhecimento tem sido implementada localizando os obstáculos epistemológicos que têm impedido o avanço do conhecimento científico. Sua progressiva libertação das amarras das sensacões e do empirismo têm levado às formas mais refinadas de racionalismo, características da ciência moderna e, particularmente, da Física. Entretanto este processo de progressiva sofisticação não tem eliminado as noções anteriores necessárias para a comunicação entre as várias culturas, estabelecendo uma forma de convivência no interior de cada cultura e de cada pessoa. O ponto mais importante é que a própria fonte desses obstáculos epistemológicos, a fantasia, longe de poder ser desprezada no processo de avanço da ciência, constitui a própria condição de possibilidade de renovar continuamente o conhecimento, pois é a partir dela que são introduzidas novidades provisórias e grosseiras, a serem sucessivamente depuradas passando pelo crivo da racionalidade. Em outras palavras a própria racionalidade parece constituir um sistema auto-fechado que precisa ser alimentado exteriormente pelo sonho, a fantasia, o conhecimento ambíguo. Um processo análogo tem sido pensado para a transferência do conhecimento científico: a necessidade de superar os obstáculos epistemológicos e as noções de senso comum para assumir plenamente as contribuições da racionalidade científica na cultura, também não seria realizado uma vez por todas, pois esse procedimento eliminaria a própria condição de possibilidade de renovação da cultura e da ciência. Se o senso comum assumisse de uma vez a conceituação científica eliminaria sua própria contribuição baseada na possibilidade da ambiguidade, da fantasia e da poesia. Daí a validade de um programa que prefere trabalhar para a mudança do perfil de conhecimentos ao invés de rejeitar tipos de conhecimentos que, além de servir em determinadas circunstâncias, ainda parecem necessários para poder apontar inovações grosseiras e provisórias a serem sucessivamente lapidadas pela razão científica.

    Nosso trabalho tem apontado para um ulterior complicação na transmissão do conhecimento e na introdução das novidades culturais: a presença simultânea dos ‘obstáculos subjetivos’, parentes próximos dos obstáculos epistemológicos enquanto amarras inconscientes que tendem a manter o aprendiz nas mesmas posições, e, também, de uma falta que não pode ser satisfeita, desejo de ultrapassar qualquer conquista. Obstáculo e falta devem ser pensados como dificuldades e como condições de possibilidade da aprendizagem. De fato, a satisfação inconsciente que amarra a uma posição alimentando a fantasia de plenitude, de um lado impede o avanço, mas do outro garante uma estabilidade; pelo contrário, a falta é condição de possibilidade para romper com essas amarras e garantir o avanço, mas dificulta a estabilização das conquistas.

    Nossa introdução da idéia de um perfil subjetivo parece corresponder a esta complexidade e resgatar alguma forma de originalidade que brota do sujeito. Com o perfil podemos explicar simultaneamente a estabilidade e a mudança. Em geral a estabilidade está associada ao perfil, que permite ao sujeito assumir várias posições, dependendo do contexto, sem uma mudança mais profunda. Por outro lado o próprio perfil pode ser modificado, seja privilegiando patamares diferentes, seja introduzindo novos patamares. Isso deixa espaço para a emergência da originalidade do sujeito, pois, em última instância é ele que aceita mudar ou decide se abrir para uma nova posição. Com o perfil podemos explicar também os limites do ensino, que pode influenciar a modificação do contexto ou a possibilidade de novas experiências, mas não pode se superpor ao querer do sujeito.
 

Bibliografia

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[1] Com auxílio parcial do CNPq. /Avillani@if.usp.br
[2] Com financiamento parcial da UEL./ Renop@uel.br
[3] Com financiamento parcial da Fundação Araucária/SETI./ Laburu@uel.br