PENSAMENTO MATEMÁTICO CONTÍNUO E DISCRETO EM SALA DE AULA

Samuel Jurkiewicz
Programa de Engenharia de Produção – COPPE/UFRJ
Departamento de Engenharia Industrial – EE/UFRJ
jurki@pep.ufrj.br

Clicia Valladares Peixoto Friedmann
Faculdade de Formação de Professores – Departamento de Matemática – UERJ/FFP
Programa de Engenharia de Produção – COPPE/UFRJ
 

Resumo

    O cálculo diferencial e integral foi o instrumento por excelência das ciências experimentais dos dois últimos séculos. À partir da metade do século XX a matemática discreta tem ocupado espaço na modelagem de fenômenos físicos, químicos e biológicos, impulsionando e sendo impulsionada pelo desenvolvimento dos computadores e da tecnologia digital em geral. Os currículos de matemática, desenvolvidos em consonância com a influência do cálculo, oferecem compreensível resistência a novas abordagens, em particular, à matemática discreta. Essa resistência se expressa na atitude de estudantes e professores e nos materiais de ensino, p.ex. livros texto; um aspecto de natureza inercial desta resistência é a ausência de iniciativas organizadas por parte das forças formadoras de discussão sobre os currículos. Neste artigo abordamos alguns aspectos deste processo, evidenciando-os através da descrição comentada pelos autores em dois campos distintos de atuação pedagógica.




Abstract

    Differential and integral calculus has been used as the main mathematical tool for experimental sciences in the last two centuries. Since the second half of the 20th century, discrete mathematics is taking place in physical, biological and chemical phenomena modeling, giving to and taking impulse from computers and digital technology development. Mathematics curricula, developed under calculus influence, offers understandable resistance to new approaches, for instance, to discrete mathematics. This resistance express itself in students and teachers attitude, as well as in educational instruments like text books; na inertial aspect of this resistance is the absence of organized initiatives by curricular discussion forming forces. In this article we discuss some aspects of this process, enlightening them trough the commented description of two experiences conducted by the authors in two distinct pedagogical actuation fields.
 
 

1. Introdução – Matemática do contínuo e educação científica

    Desde o século XVII (pelo menos), a ciência tem privilegiado os modelos que matematizem os fenômenos. As razões para que isso acontecesse não são o objeto deste artigo, mas algumas de suas conseqüências sim.

    A inter-relação entre o desenvolvimento das ciências experimentais, em particular da física e o da moderna matemática é um aspecto incontornável da história da ciência; a trajetória percorrida em direção ao cálculo diferencial e integral é indissociável das formulações de Galileu e Newton.

    Na verdade essa associação produziu efeitos que extrapolam, e muito, o âmbito onde se desenvolveram. Seria ingênuo acreditar que o cálculo se desenvolveu apenas para servir às leis da mecânica de Newton; já havia tentativas anteriores de formalizar matematicamente as questões originadas dos paradoxos de movimento expressos pelos filósofos gregos.

    É fora de dúvida, no entanto, que à partir do casamento entre o cálculo e a mecânica difundiu-se a idéia de que essa seria a "boa" matemática instrumental, capaz de oferecer solução a todos os problemas da física. O sucesso dos modelos contínuos amparou esta esperança; a quantidade e variedade de métodos utilizando o cálculo diferencial e integral é notável e a extensão desse uso a todas as ciências experimentais foi o seguimento natural desse processo. À partir do nosso século, também as ciências sociais fizeram da matemática do contínuo um instrumento de trabalho.

    O êxito obtido pelos métodos de cálculo diferencial e integral influenciou, como era de se esperar, as modalidades de ensino da matemática e das ciências em geral. Essa influência é facilmente constatável ao se examinar, mesmo de forma superficial, os currículos e livros didáticos, em especial os do último quarto do século XX. Os currículos matemáticos, com algumas variações, se encaminham decididamente para a construção da idéia da continuidade e das ferramentas preliminares do cálculo. Ao final do curso secundário, já é exigido que o aluno esteja familiarizado com técnicas (ainda incipientes) de diferenciação.

    Esse processo trouxe conseqüências que não são, em princípio, maléficas ou benéficas mesmo porque associadas a motivações de ordem social, tecnológica e histórica mais amplas, sobre as quais não cabe juízo de valor. Mas é fato que, ao chegar ao nível universitário de formação profissional e acadêmica os alunos se encontram já impregnados da "cultura do contínuo". O cálculo se torna um instrumento tão natural quanto a tabuada (de fato é usado como tal) e seus fundamentos são pouco questionados.

    E no entanto muitas soluções e modelos não são ligados a idéias de continuidade. Isso não é um fato novo e muitos ramos importantes da matemática (o exemplo mais conhecido é a probabilidade) se fundam, em boa parte, em conceitos onde a presunção de continuidade não é necessária.

    Mesmo assim, ao se deparar com um problema, a tendência de nossos estudantes ( e futuros pesquisadores e profissionais) é utilizar o modelo contínuo. O fato de contar com uma ferramenta consagrada (o cálculo) desempenha papel inequívoco nesta atitude. Isso acontece até em situações onde são utilizadas planilhas eletrônicas, um instrumento que privilegia as estruturas discretas.

    Apresentaremos agora duas evidências desse comportamento. A primeira resulta de experiência comparativa realizada pela segunda autora junto a professores em formação na Faculdade de Formação de Professores da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. A segunda se baseia na experiência do primeiro autor junto a alunos do curso de Engenharia de Produção da Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    O intuito da apresentação dessas evidências não é, evidentemente o de legitimar as observações e afirmações da introdução, mas o de exemplificar suas conseqüências. Ao fazê-lo, pretendemos focar as dificuldades de inserção de estruturas discretas em currículos e materiais e a necessidade de estabelecer formas de transitar entre os universos contínuo e discreto (da matemática) de forma mais confortável e segura.


2. Uma experiência pedagógica com licenciandos

    O modelo escolhido para a atividade foi o do crescimento populacional. Essa escolha se deve ao fato de haver modelos clássicos tanto para a abordagem contínua quanto para a abordagem discreta. Acresce-se a característica adicional de ser um modelo de larga aplicação prática.

    Em favor da brevidade, descreveremos apenas de maneira sumária a experiência. A um grupo de vinte e dois estudantes licenciandos da na Faculdade de Formação de Professores da UERJ, divididos em seis grupos, foi pedido que implementasse, em planilha eletrônica, modelos que calculassem a evolução de certas populações usando a abordagem contínua e a abordagem discreta, comparando e comentando os resultados.

    Ainda em favor da brevidade, resumimos o modelo contínuo através da equação geral:

dP(t)/dt = r.P(t) (1)

com solução:

P(t)= P(0)ert (2)

e o modêlo discreto pela formulação recursiva

P(t) = P(0) se t = 0 (3)

= P(t-1) + s.P(t-1) se t > 0


e pela equação geral:

P(t+1) – (1-s).P(t) = 0 (4)
com solução:

P(t) = P(0)(1+s)t (5)

    O modelo discreto utilizou a formulação (3) por ser mais intuitiva na implementação na planilha eletrônica. O modelo contínuo tomou por base a equação (2).

    Para melhor compreender os conflitos emergentes da experiência exemplificamos dois problemas:

    1 - A população de um país é de P(t) pessoas, sendo t o número de anos desde a fundação do país. A população inicial era de 15.000.000 de pessoas e a taxa de crescimento de 3% ao ano. Qual a população deste país em 10 anos ? (retirado de [1], pg. 154)

    2 - Determine a população d uma colônia de bactérias no quinto dia de observação, sendo que a população inicial era de 20.000 bactérias e a taxa de crescimento igual a 60% ao dia. (retirado de [1], pg 153).

    No exercício 1, os resultados foram bastante compatíveis, mas no exercício 2 os resultados obtidos foram:
 

tempo (dias)
modelo exponencial
modelo discreto
0
20000
2000
1
36442
32000
2
66402
51200
3
120993
81920
4
220464
131072
5
401711
209715

    A primeira reação foi de espanto ante a disparidade dos resultados, uma vez que ao quinto dia o modelo exponencial indicava o dobro da população indicada pelo modelo discreto.

    Um segundo olhar aos enunciados indicou (corretamente) aos estudantes que possivelmente a taxa elevada desempenharia um papel relevante na disparidade. Entretanto, como essa influência se manifestava?

    Uma tentativa foi retornar aos modelos e tentar igualar as equações (2) e (5) e concluíram que a única solução possibilidade seria igualar as taxas s = t = 0. Ratificaram também o fato conhecido de que uma função exponencial cresce mais rapidamente que uma taxa aditiva.

    Dois grupos tentaram definir uma função de erro, mas não observaram que o erro encontrado por sua função (91,55%) invalidaria qualquer intenção de ajustar os resultados de um modelo a outro.

    Outras tentativas foram feitas mas em geral não resistiram ao teste da aplicação prática

    Apenas um dos grupos chegou a conclusão de que havia necessidade de usar taxas diferentes para os dois modelos (vários grupos relataram essa solução, mas apenas um dos diários de trabalho a justificavam). O grupo em questão examinou as equações (2) e (5) e concluiu que (1 + s)t = ert o que conduz a s = er – 1. No caso em questão, r = 60% (modelo contínuo), o valor do modelo recursivo será s = 82%.

    Note-se ainda que o problema em si é discreto (não se pode pensar em 1256,35 habitantes) mas o uso do modelo contínuo se justifica pela densidade da população. Constatamos também que essa preocupação não afligiu os estudantes. Veremos na próxima sessão que isso não é um fato isolado.

    Foi observado que, isoladamente, os dois modelos tinham sido bem compreendidos, mas experiências que comparam duas abordagens diferentes têm sido raras nos cursos de licenciatura. Por que os estudantes foram levados a utilizar a mesma taxa, como se isso fosse natural ?

    Esta pergunta gera mais conjecturas do que afirmações. Uma das razões nos parece ser a pouca familiaridade com os universos da matemática discreta, levantados em nossa introdução. Mas essa constatação pode ser estendida se pensarmos que esta experiência seria de muito difícil implementação sem a facilidade de acesso a computadores como ferramenta de pesquisa e aprendizagem (Em Tempo: nenhum dos autores acredita que o computador seja uma solução para a educação – mas uma ferramenta útil). O que a experiência fez foi evidenciar a emergência de problemas advindos da introdução de novos conceitos da matemática em conflito com conceitos já estabelecidos historicamente.


3. Uma experiência pedagógica com estudantes de engenharia

    A segunda evidência surge não de uma experiência estruturada, mas da observação do primeiro autor ao longo de 10 períodos (5 anos) ministrando disciplina de Pesquisa Operacional no curso de Engenharia de Produção da Escola de Engenharia da UFRJ.

    A disciplina é dirigida a alunos do 7o período de um dos cursos mais procurados da Universidade, contando com alunos de alta pontuação no exame vestibular, o que se não caracteriza o grupo, indica certa qualidade. São estudantes que, em grande parte, já se encontram a caminho da inserção no mercado de trabalho.

    Nos referiremos a um conteúdo específico desta disciplina, a saber o tratamento matemático de estoques. O modelo mais comum e clássico é o chamado Modelo de Lote Econômico. Não entraremos nos detalhes do desenvolvimento do modelo, bastando-nos para o que se segue dizer que procuramos o tamanho do lote Q0 que minimiza o custo CT(Q) calculado pela equação:

CT(Q) = cs/Q + cm.Q.T/2 + kD

onde cs , cm , T e k são grandezas conhecidas.

    O procedimento padrão é assumido; deriva-se a expressão de CT(Q) em relação a Q e iguala-se a zero. Claramente, o resultado tem poucas chances de assumir um valor inteiro. Os protestos e observações a este respeito são, felizmente, imediatos. Não se cogita em pedir um lote de 457,15 sapatos. Na verdade o bom senso manda que se opte por 450 (ou, dependendo de outras circunstâncias, 400 ou 500). Não é ao bom senso dos estudantes, portanto, que nos referimos.

    Deve-se, entretanto, notar que, no ímpeto de utilizar o conhecimento já adquirido e domesticado, os estudantes deixam de observar que a obtenção de um número "quebrado" decorre da utilização de um método cujas premissas não são, em princípio, atendidas pelo problema. Resumindo: não se pode derivar uma função não só descontínua como evidentemente discreta.

    Note-se que não se trata de invalidar o modelo (no estado apresentado ele tem defeitos mais graves, sanados posteriormente por um refinamento da teoria). O mesmo argumento utilizado na sessão anterior podem ser usados aqui: a densidade dos dados justifica a aproximação para uma função contínua.

    O que chama a atenção, sob o prisma da aquisição de conhecimentos, é que em nenhum momento, em nenhum dos períodos onde a disciplina foi ministrada, qualquer obstrução tenha sido levantada quanto à legitimidade dos métodos de obtenção dos resultados.

    Acrescente-se que estes mesmos estudantes tem acesso a conhecimentos de matemática discreta, notadamente estatística, que lhes permitiriam pensar num tratamento mais condizente com o tipo de dados, o que é efetivamente feito em uma etapa posterior do curso.

    É lícito pensar que, além da autoridade usual do professor, toma parte neste processo o hábito natural de aceitar como bom e útil um método para o qual a ferramenta é quase uma segunda natureza. A ferramenta induz o modelo, e a impregnação das idéias do cálculo diferencial e integral desempenham, de que falamos na introdução, desempenha aí fator preponderante.

    Não se pode e não é a idéia dos autores circunscrever aos estudantes esse comportamento automático. Para ficarmos no caso muito particular que estamos observando, a mesma atitude se enraíza já no "estabilishment" acadêmico. Isso se constata ao examinarmos quatro dos textos mais utilizados no mundo todo como livro texto em Pesquisa Operacional, a saber Hillier [2] , Winston [3], Wagner [4], Buffa [5].

    Apenas Hillier [2] chama a atenção para o fato de que o uso do cálculo pode ser justificado pela densidade dos dados. Nos outros três compêndios, a necessidade dessa explicação é ignorada. Outra vez, dada a reconhecida qualidade dos textos, não nos é possível atribuir essa omissão a pura e simples negligência.

    Como um comportamento especular em relação ao dos estudantes, o fato de a ferramenta ser tão consagrada parece dispensar as considerações que autorizem o seu uso.


4. Outras considerações - conclusões

    A matemática discreta tem as mesmas raízes que a matemática do contínuo. Seu desenvolvimento, entretanto ainda carece da organização que a segunda conseguiu desenvolver, ou talvez a pluralidade de conceitos seja a sua natureza. O advento dos computadores e das técnicas digitais impulsionou e é impulsionado pelo desenvolvimento desta matemática.

    Mesmo assim, em termos de currículo e iniciativas de pesquisa educacional, esses aspectos ainda se configuram de maneira incipiente. No Brasil, por exemplo, as "Diretrizes Curriculares para Cursos de Licenciatura em Matemática" [6] do Ministério da Educação e do Desporto, 1999, fazem apenas breve menção à análise combinatória.

    Mesmo a nível mundial, não há notíca de muitas iniciativas. Destaca-se o DCI – Dimacs Connect Institute [7] mantido pelo DIMACS - Center for discrete mathematics and theoretical computer science com sede na Universidade Rutgers, New Jersey, que reune especialistas em teoria dos grafos e oferece, uma vez por ano um simpósio e cursos para professores do ensino primário e secundário. A DIMACS tem promovido também o Young Scholars Program in Discrete Mathematics que procura encorajar jovens alunos de matemática a se instrumentalizar em matemática discreta. No Brasil a SBMAC – Sociedade Brasileira de Matemática Aplicada e Computacional - tem aberto espaço para atividades, também ainda de forma incipiente para atuação e divulgação de conteúdos da mateática discreta nos ambientes de ensino.

    Na sessão 1 desse artigo abordamos a construção histórica do conflito entre as ferramentas contínuas e discretas da matemática bem como sua influência na formação de currículos e mentalidade escolar. As sessões 2 e 3 não pretendem demonstrar mas exemplificar os conflitos que se anunciam por essa emergência de novos conteúdos da matemática. A nível local, pode-se observar ainda a desinstrumentalização de estudantes e mestres no trato com conteúdos que a sociedade aponta como importantes. No nível genérico vemos que os currículos não contemplam, e não era de se esperar que o fizessem, a inserção desses novos conteúdos.

    Num sentido mais global constata-se que a emergência das técnicas digitais e computacionais já pressionam fortemente os ambientes educacionais, e o farão com cada vez mais vigor e insistência, forçando a inserção da matemática discreta nos currículos dos diversos níveis.

    Os autores preferem de acreditar que aos poucos se formará a consciência de uma atitude organizada das forças formadoras de discussão curricular, a fim de favorecer a integração de conteúdos da matemática discreta ao currículo do ensino secundário e universitário.


Bibliografia


[1] Maxim, B.; Verley, R. – "Using spreadsheets to introduce recursion and difference equations in high school mathematics – in Discrete Mathematics Across The Curriculum K12 – National Council of Teachers of Mathematics – year book 1991 – pp 158-165

[2] Hillier, F. S. – "Introdução à pesquisa operacional" - Ed. Campus 1988

[3] Winston, W. L. – "Operations research : applications and algorithms" - Duxbury Press, 1994.

[4] Wagner, H. M. – "Pesquisa operacional" – 2a ed.- Prentice Halll – 1996

[5] Buffa, E. S. – "Administração de produção" – 1975

[6] "Diretrizes Curriculares para Cursos de Licenciatura em Matemática" [6] do Ministério da Educação e do Desporto, 1999

[7] DCI – Dimacs Connect Institute - http://dimacs.rutgers.edu/dci/