A LINGUAGEM E O ENSINO DE FÍSICA NA ESCOLA FUNDAMENTAL
M. C. Barbosa Lima
I.F./UERJ São Fco. Xavier, 524, Maracanã 20559-900
barbosa@uerj.br

A. M. P. de Carvalho

FE/USP Av. da Universidade 308, 05508-900
ampdcarv@usp.br
Resumo

    Com a finalidade de verificar se alunos da segunda série do ensino fundamental eram capazes de aprender tópicos de Física através exclusivamente da narrativa, acompanhamos o trabalho de um grupo de quatro crianças durante uma atividade sobre a alavanca. Usamos para isto uma historia infantil com conteúdos de Física ¾ Tão simples e tão úteis ¾ especialmente escrita com esse fim e que apresenta em seu enredo cinco máquinas simples: o sarilho, a tesoura, a alavanca, o plano inclinado e o carrinho de mão. Optamos por analisar, neste trabalho, um só grupo para poder, com mais detalhes, ver a evolução de suas falas, seja no diálogo com os colegas do grupo, seja durante a exposição de idéias para toda a turma. Apresentaremos o acompanhamento de Marília, Henry, Jessica e Ferdinando durante a atividade alavanca, quando depois de ter lido a história junto com sua turma, solucionaram, através do diálogo, um exercício de raciocínio Esta solução foi a seguir, discutida com toda a sua turma.

Abstract

    With the final purpose to verify if the second grade students of elementary school are capable of learning Physics topics through reporting only, we have followed the work of a four children’s group during an activity about the handle. In order to do so, we used a child’s tale containing physics topics – so simple and so useful – specially written to this purpose and presenting in its plot five simple machines: windle, scissors, handle, inclined plane and wheelbarrow. We chose to analyze, in this work, only one group so that we could, with more details, see the evolution of their speaking, on talking to each other in the group, as well as during the presentations to all the class. We will present the following of Marília, Henry, Jessica and Ferdinando during the activity concerning the handle, when after reading the story with the class, they solved through the talking, an exercise of logic thought. That solution was discussed with the all the class right after that.

1. Introdução

    Em recente trabalho(Barbosa Lima, 2001), com uma turma de segunda série do primeiro ciclo do ensino fundamental, concluímos que esses alunos constróem o conhecimento físico quando lhes é oferecido como material de estímulo à essa construção, histórias infantis com conteúdo de física, que devem ser trabalhados através da leitura e de sua interpretação. Em outras palavras, a narrativa pode ser um instrumento de ensino complementar aquele realizado através dos experimentos.

    Nesse trabalho analisamos as falas, os desenhos e o material escrito produzido por 25 alunos de uma turma de segundo ano do ensino fundamental, composta 30 alunos dividida em 14 (quatorze) são meninas e 16 (dezesseis) são meninos, com idade média de 8 anos, de uma escola pública da cidade de São Paulo em duas atividades, o sarilho e a alavanca.

    Nosso procedimento teve dois momentos distintos e consecutivos. O primeiro foi a leitura da história Tão Simples e Tão Úteis (Barbosa Lima, 1997), que trata de máquinas simples, por todos os alunos sob supervisão da professora. Nas duas semanas seguintes foram apresentados "exercícios de raciocínio" para serem resolvidos em grupos através do diálogo.

    Esses exercícios podem ser considerados semelhantes aos problemas abertos, posto que, García & García (1989) entendem por problema algo ¾ um fato, uma situação, uma colocação ¾ que não se pode resolver automaticamente com os mecanismos usuais, mas sim aquele que exige a mobilização de diversos recursos intelectuais. Da mesma forma, Gil-Perez & Valdés Castro (1997), afirmam que existe um consenso entre os pesquisadores em considerar problema aquelas situações que apresentam dificuldades e para as quais não se tem respostas prontas. Diante de tais situações torna-se imperioso que se tome uma postura de investigação.

    Concluímos que é possível ensinar conteúdos de Física a crianças do ensino fundamental através do uso de narrativas, já que nas duas atividades realizadas, treze alunos conseguiram explicar o funcionamento das máquinas, sendo classificados na primeira categoria ¾ máquina que funciona. Na segunda categoria, máquina que poderia funcionar, aquela em que os dados disponíveis não nos permitia afirmar se os alunos haviam compreendido ou não plenamente o funcionamento das máquinas, foram incluídos quatro alunos na atividade sarilho e oito alunos na atividade sarilho.

    No presente trabalho pretendemos seguir um único grupo, ao qual chamaremos de grupo da Marília, durante a atividade alavanca. Analisaremos os diálogos em seu interior e também o comportamento de seus integrantes na discussão na roda, momento de socialização de conhecimentos.

    Para a construção desse caminho pelas falas do grupo de Marília cremos ser necessário comentarmos um pouco o que entendemos por linguagem: oral, escrita e gráfica.

2.Falando sobre linguagem:

    De acordo com Bakthin (1997), a utilização da língua se faz através de enunciados, que podem ser orais ou escritos, que refletem condições e finalidade específicas. Além disso, afirma o autor que a riqueza e a variedade de gêneros de discursos são equivalentes à variedade da atividade humana, "e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa."(p.279)

    Então, se ampliarmos a esfera de ação de nossos alunos através de atividades de ensino ao mesmo tempo em que os estimulemos a falar e /ou escrever sobre elas mais ele irá se desenvolver com possibilidades de incluir novas palavras a seu vocabulário ¾ mesmo que ainda sem o significado estrito utilizado na Física ¾ e de compreender novos conceitos.

    Em outro ponto deste seu trabalho, Bakhtin afirma que há vários gêneros discursivos e a cada um deles corresponde uma resposta, que pode ser ativa ou passiva, uma vez que sempre se diz alguma coisa à alguém, que responde de imediato, ou fica pensando a respeito por algum tempo.

    Já segundo Luria (1987) sem a linguagem o homem só era capaz de se relacionar com as coisas que observava diretamente ou com aquelas que podia manipular. Mas com a aquisição da linguagem, o homem passa a se relacionar com o que não percebe diretamente e que não fazia parte de sua experiência. De acordo com o autor, a palavra duplica o mundo possibilitando o homem a operar mentalmente com objetos, inclusive na ausência deles, além de possibilitar a transmissão de experiência entre indivíduos, permitindo assim a assimilação de experiências de gerações anteriores.

    Mas Luria vai mais adiante, para ele a linguagem permite que se realizem operações dedutivas sem a necessidade de apoio em impressões imediatas. Sendo assim: "Esta propriedade da linguagem cria a possibilidade de existência das formas mais complexas do pensamento discursivo (indutivo e dedutivo), que constituem as formas fundamentais da atividade intelectual produtiva do homem." (p. 202)

    Essas idéias de Luria nos estimularam a levar adiante nossa pesquisa, de oferecer um exercício de raciocínio para as crianças quaisquer aparatos experimentais.

2.1. O que dizem os estudiosos em relação ao desenho?

    Em nossa pesquisa trabalhamos com a linguagem em três de suas formas: a oral, como a fala discursiva de um só sujeito, e/ou diálogos; a gráfica, traduzida nos desenhos dos alunos e, a escrita. Para Vygotsky (1989), o desenho e a escrita, têm uma origem de construção comum: a linguagem falada.

    Enquanto a escrita não oferece segurança para refletir o pensamento desejado, a criança emprega o desenho como meio mais eficiente para exprimir seu pensamento.

    Para Pillar (1996), que segue a linha piagetiana e para Ferreira (1998), que se apoia na psicologia histórico-cultural, a criança desenha aquilo que sabe ou que interpreta sobre um determinado objeto. Nas palavras das autoras:

"o trabalho gráfico da criança que não é resultado de uma cópia, mas da construção e da interpretação do objeto pelo sujeito" (Pillar, 1996,p.33).

"...a criança desenha para significar seu pensamento, sua imaginação, seu conhecimento, criando um modo simbólico de objetivação de seu pensamento."(Ferreira, 1998, p.104)
 
 

    Já Cox (1995) afirma que Corrado Ricci em sua obra L’arte dei bambini, publicada em 1887, "lançou a idéia de que os desenhos que as crianças fazem não são uma tentativa de mostrar a aparência real dos objetos, mas expressões do que as crianças conhecem sobre eles" (p.104).

    Se as crianças desenham o que conhecem sobre os objetos, afirmativa já bastante antiga e concluídas por estudiosos que partem de pressupostos diferentes, nós concluímos que os desenhos de nossos sujeitos são um bom material para estudarmos o que eles compreenderam a respeito das máquinas simples discutidas, aqui, no caso específico deste trabalho: a alavanca

3. O "exercício de raciocínio"

    A seguir apresentaremos o exercício de raciocínio que o grupo de Marília, assim como os demais componentes de sua turma deveriam resolver através do diálogo.

    Antes, talvez seja interessante citar de que maneira a alavanca aparece na história lida.

    Essa máquina só aparece no final da história em um diálogo entre Gustavo, o protagonista, e seu avô. Esse diálogo é o seguinte, extraído diretamente da página 14 do texto:

" Aí seu Tomé perguntou:

¾ De que maneira um pedaço de pau pode virar máquina?

¾ Ora, se você precisa tirar uma coisa pesada de um lugar, é só colocar um pedaço de pau por baixo dela e empurrar com a ajuda do pau; ela sai do lugar.

¾ Pois é isso mesmo que vamos fazer no final da tarde, remover umas pedras do caminho. E aí nós vamos usar uma alavanca, isto é, o pedaço de pau de que você falou, apoiado em algum lugar: essa máquina tão simples que você descreveu......"

    Nesse trecho da história podemos perceber que Gustavo não faz qualquer menção a utilização de um ponto de apoio para que sua alavanca funcione. Seu avô o corrige discretamente. E é exatamente a existência ou inexistência do ponto de apoio nas falas e relatos das crianças é o que iremos considerar para categorizá-los quanto ao possível funcionamento.

4. A discussão no grupo de Marília:

    O grupo de Marília é formado por duas meninas e dois meninos, todos com oito anos completos na época da pesquisa.

    Aqui não serão transcritas de maneira absoluta todas as falas do diálogo havido, por corrermos o risco de tornar a leitura enfadonha, mas os acontecimentos que se passaram durante a conversa entre os alunos e entre eles e a pesquisadora de campo serão comentadas e/ou relatadas. Então, passemos a discussão do grupo, lembrando que as observações, comentários e a descrição dos gestos feitos pelas crianças durante sua fala estão entre colchetes.

    Este grupo, assim como os anteriores, já estavam conversando sobre o exercício de raciocínio proposto quando a pesquisadora responsável pela coleta de dados de campo, se aproximou.

    Percebemos através do registro em vídeo que quando a pesquisadora se aproxima, Marília lhe relata alguma coisa, que é inaudível devido ao forte ruído proveniente dos demais grupos, observada atentamente por dois de seus companheiros: Ferdinando e Jessica.

    Durante essa primeira explicação Henry interrompe a colega, dando condições a um início real de diálogo.

    Henry – [faz um gesto de negação com o dedo] Não é, porque na verdade se fosse uma pedra do tamanho [abre bem o braço] ( ) mas para fazer uma alavanca tem que enfiar um pau com força ( ) e tem que ter força prá empurrar ( ) [ faz gestos de aplicação de força no vão livre do pau].

    Pesq. - E essa pedrinha aqui, hem?! Prá que será que serve essa pedrinha aqui?

    Henry – Eu sei. Prá __

    Marília – Prá por um peso aqui desse lado.

    Pesq. – Ah é prá fazer peso aqui desse lado?

    Pesq. - E se não tiver essa pedrinha como é que você rola?

    [Marília começa a responder mas é interrompida pela pesquisadora]

    Pesq. - Eu quero que vocês pensem. Será que essa pedra aqui, essa pedrinha, é prá fazer peso mesmo? Será?

    Jessica – Essa pedrinha não levanta essa [apontando no desenho]

    [A pesquisadora se afasta do grupo que continua discutindo]

    Logo na primeira fala, a de Henry, podemos observar o mesmo raciocínio do personagem da história, Gustavo. Para Henry, nesse momento, basta colocar um pedaço de pau sob a pedra e empurrá-la com força, que ela é deslocada de seu lugar original para outro qualquer desejado.

    Marília, de primeiro, parece sugerir a construção de uma catapulta em lugar de uma alavanca, já que sua sugestão é que estando uma ponta do pedaço de pau sob a pedra grande e, inclinado, a pedrinha seja lançada na outra extremidade do pau, o que, de acordo com a aluna, provocaria a movimentação da pedra grande.

    É Jessica quem discorda de Marília dizendo que a pedra pequena não é capaz de levantar a pedra grande, no que tem razão. Nesse extrato do diálogo, eles ainda não falam, não vêem ou percebem a necessidade da existência de um ponto de apoio.

    É importante notar que Jessica demora a contestar a proposta de Marília de usar a pedrinha como peso para mover a pedra grande. Essa demora em se contrapor à fala de Marília, é explicada por Bakhtin: "(...) Uma resposta fônica, claro, não sucede infalivelmente ao enunciado fônico que a suscita: a compreensão responsiva ativa do que foi ouvido (...) pode realizar-se diretamente como um ato (...), pode permanecer, por certo lapso de tempo, compreensão responsiva muda (...), mas neste caso trata-se, poderíamos dizer, de uma compreensão responsiva de ação retardada: cedo ou tarde, o que foi ouvido e compreendido de modo ativo encontrará um eco no discurso ou no comportamento subseqüente do ouvinte. (...) (p.290 –1)

    Prosseguindo com o diálogo...

    Marília – Ah! Olha! [gesticula dando sinais de satisfação] Você pega a pedrinha e coloca debaixo do pau [sorrindo].

    Henry – Agora que eu entendi! [apoiado no desenho explica] Pega essa pedrinha e coloca debaixo do pau, aí coloca o pau aqui [aponta a pedra grande] aí é só [gesticula como se fizesse força sobre a parte livre do pau]

    Jessica – [para Marília] Aí põe essa pedra [a grande] perto do pau e aí

    [Marília fica pensativa]

    Marília – Mas primeiro a gente tem que botar a pedrinha bem aqui [aponta perto da pedra grande] depois colocar o pau em cima da pedra e aí depois ( )

    Nesse extrato do diálogo, a proposta de um ponto de apoio, a pedrinha colocada embaixo do pedaço de pau, começa a aparecer. Assim que Marília sugere a nova configuração, Henry afirma ter entendido o problema, ou seja, ele encontrou uma solução possível e complementa a fala da colega.

    As três crianças parecem ter conseguido resolver o problema.

    Notamos que Marília, Henry e Jessica demonstraram mais suas participações durante a procura da solução do problema , mas já ao final Ferdinando entra na discussão. Os quatro componentes do grupo constróem uma resposta ao problema. Apesar da pouca participação de Ferdinando, o diálogo e a discussão no grupo foram proveitosas.

    Mercer (1997) descreve as condições favoráveis para que surja um tipo de conversação como a que surgiu no grupo Marília, onde as idéias foram apresentadas de maneira a poderem ser compartilhadas entre todos os elementos do grupo. O raciocínio foi construído conjuntamente com contribuições variadas. Para Mercer as seguintes condições devem ser oferecidas: "Em primeiro lugar os pares têm que falar para realizar a tarefa e portanto a conversa não é um acompanhamento incidental. Em segundo lugar a atividade deverá ser planejada para promover a colaboração, e não a competição entre os pares. Em terceiro lugar, os participantes devem compreender bem e de forma compartilhada a chave e o propósito da atividade. E, finalmente em quarto lugar, as "regras básicas" da atividade deverão promover um livre intercâmbio das idéias relevantes e uma participação ativa de todos os implicados. Também ajuda como se pode supor, o fato de que os alunos tenham uma relação amistosa já estabelecida" (p.110)

4.1. O grupo de Marília durante a discussão na roda:

    Na seqüência da atividade os grupos foram desfeitos e retornamos a discussão com a turma toda. Nesse momento as soluções encontradas em cada grupo são socializadas com os demais colegas através da fala de cada indivíduo.

    Aqui faremos um corte na discussão com a intenção de ressaltar a participação de Marília e seus companheiros de grupo nessa etapa da atividade.

    A primeira questão levantada pela pesquisadora de campo foi a repetição do exercício de raciocínio apresentado aos grupos.

    O primeiro componente do grupo a tomar a palavra na roda foi Ferdinando: "Põe a pedrinha embaixo e depois põe o pau encima da, da outra pedrona" . O menino participou pouco da discussão em seu grupo, mas mesmo assim há vestígios de entendimento da necessidade de um apoio.

    Vários alunos depois, alguns afirmando que sabiam o que fazer, outros descrevendo por completo o procedimento a ser seguido, alguns deles fazendo clara menção ao uso da pedrinha menor, outros não, mas sempre sem dizer de maneira explícita a palavra apoio, foi a vez de Marília tomar a palavra e descrever como agiria para remover a pedra do lugar: "Pega a pedrinha menor e coloca perto da pedra maior, ai depois pegaum tronco de árvore e coloca em cima da pedrinha menor e debaixo da pedra maior, que ela sai do lugar"

    Quem seguiu Marília no discurso foi Henry, seu colega de grupo, que em outras palavras ratifica a fala da companheira. "Éé, pega a pedrinha menor e não deixa tão perto da pedra maior, deixa meio perto, ai pega, deixa embaixo do tronco e ai bota, enfia na pedra grande, ( ) ai é só empurrar .." [gesticula demostrando].

    A discussão prossegue passando por várias etapas diferentes, mas sem a contribuição explícita dos componentes do grupo de Marília.

    A participação do grupo é reiniciada novamente pela fala de Henry: "Se as duas pedras fossem maiores, do mesmo tamanho, só que maiores, não vai dar nem para enfiar o pau" ___ [não acabou a idéia], que tenta responder a pergunta de Danilo, colega de outro grupo que lançou à turma uma nova pergunta: o que aconteceria se as duas pedras fossem grandes.

    Algumas participações depois, Ferdinando apresenta nova solução para o problema proposto por Danilo, dizendo:"Se tiver duas do mesmo tamanho, ai põe uma separada da outra, ai põe um tronco em cima" .

    Henry, algum tempo depois, não resiste a ficar sem contestar seu colega de grupo: "Quando o Ferdinando falou, que para, para ... eu não sei se ouvi direito, eu acho que ele falou que botava as duas separadas perto, mas separada, e botava o tronco em cima, não ia adiantar em nada."

    A pergunta posta por Danilo, claramente foge do exercício de raciocínio proposto à turma, mas julgamos fundamental que as crianças possam responder também a esse tipo de questionamento, desde que, em momento propício se retorne à discussão original.

    Em nosso caso, o retorno foi realizado sem problemas através da colocação de uma nova pergunta feita pela pesquisadora de campo: "Olha só, eu vou fazer uma pergunta de uma coisa que está me intrigando. Teve aluno, teve gente que precisou de uma pedrinha... para fazer a alavanca, teve gente que não usou a pedrinha. Porque será que aquela pedrinha está ali?"

    Quem primeiro responde essa pergunta é Marília. A menina em sua fala afirma "Prá ajudar, prá ajudar a tirar a outra pedra do lugar". Marília não faz uma referência clara à necessidade da utilização de um ponto de apoio.

    Logo após a fala de outro colega vem o interlocutor privilegiado de Marília, Henry, que mais uma vez ratifica as palavras da colega mas de maneira mais prolixa. Contudo a idéia clara e explícita do ponto de apoio ainda não aparece. Diz Henry: "Para deixar o tronco, pro tronco virar mais fácil, fazer o movimento do tronco" [faz gestos com as mãos].

    Uma das últimas questões encaminhadas às crianças diz respeito ao que é preciso para que se faça uma alavanca.

    Dos componentes do grupo em estudo, o primeiro componente a falar é Marília, que toma emprestado algumas palavras de Lúcio, que lhe precedeu, e diz: "um pedaço de madeira grosso e duas pedras, uma pedra para ajudar e a outra para tirar"

    Dessa última fala selecionada de Marília e do acompanhamento de todo o seu raciocínio anterior, podemos deduzir que a pedra auxiliar seria o ponto de apoio, apesar de não explicitado claramente.

    Do grupo de Marília, Jessica foi a única que não falou uma só vez durante a atividade da roda. Ferdinando participou com discrição e Marília e Henry participaram ativamente, levando a solução encontrada no grupo para todos os colegas de sua turma.

4.2. Os relatos do grupo de Marília:

    Começamos pelo relato gráfico da própria Marília.

Relato gráfico de Marília

    Na parte escrita de seu relato, Marília escreve apenas uma frase: "A pedra é para tirar a outra pedra do lugar.

    O texto de Marília é bastante sintético, não ficam dúvidas sobre esse aspecto, mas se o lermos em conjunto com seu desenho, seu sentido é facilmente compreendido, posto que a pedra menor está ocupando a posição do ponto de apoio necessário para que, com a ajuda de uma alavanca se retire de onde se encontra a pedra maior. Podemos afirmar dessa maneira que esta menina compreendeu o que é e como funciona uma alavanca.

    Seguimos apresentando o relato gráfico de Jessica, que na parte escrita colocou: "Como fazer para tirar a pedra de la? Coloque o pau debaxo da pedra que elasai."

Relato gráfico de Jessica

    Jessica, na parte gráfica do relato, indica a presença da pedrinha em uma posição que nos permite pensar que ela reconhece a necessidade de um apoio para a alavanca funcionar, mas seu texto é praticamente idêntico à fala de Gustavo, personagem da história. Sendo assim, com essa discrepância nas duas linguagens usadas para o relato aliada à sua fala durante a discussão no grupo, nós categorizamos a alavanca da aluna como a que poderia funcionar. Isso nos indica que Jessica, apesar de sua atuante participação na discussão no grupo, ainda não foi capaz de compreender integralmente o funcionamento da máquina.

    O relato gráfico de Henry está apresentado a seguir. A parte escrita de seu trabalho segue, de maneira bem aproximada um relatório padrão. Há a relação de material usado e itens indicando o procedimento de uma possível experiência. Seu relato escrito é assim:

" Materiais: Uma madeira 2 Pedras Uma Piquena e Uma Pedra grande.

1 - Pegue a Pedra Piquena

2 - deixe Perto da Pedra grande

3 – agora Bote o Pau ensima da Pedra Pequena

4 - e agora empurre com força

FIM"


 
 

Relato gráfico de Henry

    Pelo relato de Henry podemos perceber que o aluno compreendeu a necessidade de um ponto de apoio, tanto é assim que ele aparece em seu trabalho através das duas linguagens: a gráfica e a escrita. Porém, o aluno não conseguiu perceber em que ponto ele deveria aplicar a força necessária para mover a pedra de seu lugar. Provavelmente uma nova discussão, ou um outro exercício, experimental ou de mesmo estilo ao apresentado por nós, o levasse à complementação de seu conhecimento.

    E por último vem o relato de Ferdinando, que escreveu apenas: " Eu ia usar uma alavanca"

Relato gráfico de Ferdinando

    Ao que parece, Ferdinando se fixou na idéia trazida por Danilo à turma: o que aconteceria se as duas pedras fossem grandes?

    O aluno manteve, na parte gráfica de seu relato, a solução que propôs durante a discussão na roda, ignorando a questão originalmente proposta. Mas convém notar que todos os elementos existentes na apresentação do exercício de raciocínio estão contemplados em seu desenho.

    Na parte escrita, Ferdinando responde à pergunta original: Como você faria para mover a pedra grande? Mas sua resposta, apesar de correta não possibilita qualquer conclusão sobre sua compreensão relativamente ao funcionamento da máquina.

5. Para terminar... o desempenho do grupo de Marília

    Em seu grupo Marília participou ativamente, não ocupou o lugar de líder, o que também não ocorreu com nenhum dos integrantes de seu grupo.

    Permaneceu algum tempo coma idéia original, da catapulta, mas pensou no que seus colegas falaram, mudou de idéia e retornou à original até conseguir aceitar, de fato, as colaborações de seus companheiros e, em conjunto construir a solução do problema.

    Durante a discussão na roda, fez um total de sete intervenções, emitindo opiniões e/ou apresentando um raciocínio completo, das quais selecionamos algumas. E a representação gráfica, aliada a seu relato escrito, mostra que sua representação da alavanca se fosse concretizada, funcionaria plenamente.

    Além de Marília mais doze alunos de sua turma estão na mesma categoria: suas alavancas funcionam.

    Henry também teve uma participação bastante ativa durante a discussão no grupo. Discordou, concordou, concluiu. Esteve atento a todas as falas de seus colegas, o que ocorreu também durante a etapa da discussão na roda.

    Foram dez as intervenções de Henry durante a roda, apresentando algumas vezes um raciocínio completo, e outras vezes, opiniões. Como já comentamos anteriomente, Henry presta bastante atenção ao que seus colegas falam, tanto é que foi um dos poucos que recuperou a fala de seu companheiro de grupo, Ferdinando, no caso das duas pedras grandes. Ele não deu uma resposta imediata. Ficou pensando, passado algum tempo, solicitou a palavra. O que nos faz lembrar a afirmativa de Bakhtin (1995):Toda a essência da apreensão apreciativa da enunciação de outrem, tudo o que pode ser ideologicamente significativo tem sua expressão no discurso interior. Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores. Toda a sua atividade mental, o que se pode chamar o "fundo perceptivo", é mediatizado para ele pelo discurso interior e é por aí que se opera a junção com o discurso apreendido do exterior. A palavra vai à palavra. (p.147)

    Porém o relato de Henry não nos permite afirmar que ele compreendeu o funcionamento de uma alavanca.

    Seguindo com Jessica, que podemos dizer que foi a "terceira colocada" em número de participações durante a discussão no grupo, vimos que suas intervenções são de quem está acompanhando o raciocínio do outro. Jessica discorda claramente de Marília, por exemplo, quanto à possibilidade da construção de uma catapulta eficiente com o material disponível. Essa aluna, durante a discussão com toda a turma não teve qualquer tipo de participação.

    Seu relato, assim como o de Henry, não nos permite qualquer conclusão definitiva sobre sua compreensão relativamente ao funcionamento da máquina.

    O último componente do grupo de Marília que nos falta comentar o desempenho é Ferdinando.

    Durante a discussão no grupo ele ficou distante, não contribui com idéias. Não falou uma só vez. Mas, durante a roda, Ferdinando fez duas intervenções. Na primeira delas descreveu como faria para retirar a pedra do lugar usando uma alavanca, apresentado um raciocínio completo e, a segunda, para responder a questão posta por Danilo, apresentando também um raciocínio completo.

    O relato de Ferdinando não nos possibilita afirmar se ele compreendeu ou não o funcionamento da alavanca.

    Como conclusão final deste trabalho podemos afirmar que a participação ativa da discussão em grupo é um agente facilitador da compreensão e conseqüente chegada à boa solução de um problema, mesmo que nem todos os seus componentes alcancem o mesmo patamar de entendimento da questão, ou, relatem suas soluções de maneira clara.

    O que nos remete novamente a Luria, já citado: "A presença da linguagem e de suas estruturas lógico-gramaticais permite ao homem tirar conclusões com base em raciocínios lógicos, sem ter que se dirigir cada vez à experiência sensorial imediata. A presença da linguagem permite ao homem realizar a operação dedutiva sem se apoiar nas impressões imediatas e se limitando àqueles meios de que dispõe a própria linguagem. Esta propriedade da linguagem cria a possibilidade de existência das formas mais complexas do pensamento discursivo (indutivoe dedutivo), que constituem as formas fundamentais da atividade intelectual produtiva do homem." (p. 202)

Referências


Bakhtin, M. (Volochinov) Marxismo e filosofia da linguagem 7a ed. São Paulo: Hucitec, 1995

Bakthin, M. Estética da Criação Verbal, São Paulo: Martins Fontes, 1997

Barbosa Lima, M. C. Explique o que tem nessa história 2001 Tese (Doutorado em Educação)- Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo

Barbosa Lima, C. Tão simples e tão úteis Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico1997

Cox, M. V. Desenho da Criança São Paulo: Martins Fontes 1995

Ferreira, S. Imaginação e Linguagem no Desenho da Criança Campinas :Papirus 1998

García, J. E. & García, F. F. Aprender investigando : una propuesta metodológica basada en la investigaciónSevilha: Diada1989

Gil Peréz, D. & Valdés Castro, P. La resolución de problemas de física: de los ejercicios de aplicación al tratamiento de situaciones problemáticas Revista Enseñanza de la Física, v. 10 (2) pp: 5 – 20 1997

Luria, A R. Pensamento e linguagem as últimas conferências de Luria Porto Alegre: Artes Médicas 1987

Mercer, N. La Construcción Guiada del Conocimiento Buenos Aires/Barcelona: Paidós 1997

Pillar, A.D Desenho & Escrita Como Sistemas de RepresentaçãoPorto Alegre: Artes Médicas 1996

Vygotsky, L. S. Pensamento e linguagem São Paulo: Martins Fontes 1989